– O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia

Por Osvaldo Bertolino

A comunicação foi uma das duas grandes inovações do Plano Real, além da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda. Essa afirmação consta em um artigo no jornal O Globo de 4 de julho de 2024, de autoria de Hamilton dos Santos, doutor em filosofia pela USP, diretor executivo da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje), e Leonardo Müller, economista-chefe da Aberje, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do ABC.

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Aparentemente exagerado, o diagnóstico, atribuído pelos autores a Maria Clara do Prado, coordenadora da campanha de divulgação do Plano Real, nao é de todo impreciso. A campanha de convencimento de que as medidas adotadas eram algo “genial” – como disse recentemente o jornalista da Rede Globo de Televisão, Pedro Bial, numa entrevista com Pedro Malan, Gustavo Franco e Edmar Bacha, próceres do projeto de “estabilização monetária” – precisava ser infalível.

Segundo o artigo, quem ainda acredita que a comunicação não deva ser encarada como estratégica na economia contemporânea deveria se voltar com calma para a história do Plano Real. “Para garantir que as medidas fossem bem-sucedidas, era essencial que a população compreendesse e confiasse no plano. A transparência e a clareza na comunicação ajudaram a dissipar dúvidas e a evitar surpresas, facilitando a aceitação das mudanças propostas”, disseram os autores.

Uma grande farsa

É evidente que a população não compreendeu. A confiança é uma subjetividade que não se relaciona automaticamente à compreensão. Está associada ao axioma atribuído a Joseph Goebbels, o marqueteiro de Adolf Hitler, de que mentiras se tornam verdades à força de repetição. O conceito também implica uma generalização absolutista, igualmente supostamente goebbeliana, a ideia de que é possível montar uma grande farsa dizendo apenas verdades. A aceitação das medidas adotadas esteve longe de ser unanimidade fora das versões impermeáveis que circularam na mídia.

Para os autores, contudo, esse é um ponto comum no relato de diversos atores da trama: a comunicação transparente dos objetivos, mecanismos e etapas foi elemento indispensável para o sucesso. Os fatos – mostrados nesta série sobre o outro lado da notícia dos trinta anos do Plano Real – revelam que a comunicação monopolizada pelos interessados naquela formulação do projeto neoliberal não passou sequer perto da transparência. Mas eles repetem, citando Maria Clara do Prado, que tudo foi “feito às claras”, desde o princípio.

Depois, afirmaram que antes e durante a implementação das medidas a equipe econômica usou comunicação eficaz para explicar as razões e os mecanismos das reformas. Na verdade, foi o contrário: a mídia usou a equipe econômica para amplificar as versões oficiais. “Campanhas publicitárias, entrevistas feitas com regularidade e discursos planejados para informar e engajar a população”, prosseguiram. Mais uma vez, a transparência passou longe. Em nenhum momento essa overdose de comunicação explicou questões básicas, sobretudo a inter-relação arbitrária da taxa de juros oficial e índice de inflação, uma armadilha para capturar o Estado e transformá-lo em comitê de gestão de uma brutal transferência de renda dos pobres para os ricos.

Pérola de desinformação

E assim foi, segundo eles, até a adoção, em 1999, do regime de metas de inflação. “O Banco Central (BC) instituiu um arcabouço de política monetária que tem na comunicação um de seus pilares fundamentais”, disseram, apresentando como comprovação a divulgação de comunicados e atas a cada reunião do Comitê de Polícia Monetária (Copom), além de boletins, relatórios e pesquisas de sua equipe. Na verdade, são meras formalidades, um conjunto de informações artificiais que não influenciam no debate público.

Dizem também que o presidente do BC pode ser convocado pelo Congresso e, em caso de descumprimento da meta, é obrigado a escrever uma carta aberta ao ministro da Fazenda. “Em paralelo aos instrumentos oficiais, entrevistas dos integrantes do Copom para a imprensa também são comuns. A transparência foi e é crucial para ancorar as expectativas dos agentes econômicos, reduzindo incertezas e aumentando a confiança na moeda”, afirmam, novamente apresentando informações meramente protocolares, longe de servir ao debate democrático.

E confessam que a comunicação “eficaz do Banco Central também ajuda a estabilizar os mercados financeiros”. “Ao fornecer orientação clara sobre a direção futura da política monetária, o BC é capaz de influenciar as expectativas de inflação e as taxas de juros de longo prazo, o que proporciona um ambiente mais previsível para investimentos privados”, dizem, mais uma vez deixando o distinto público distante de informações essenciais para se entender o que representam mesmo esses conceitos do vocabulário neoliberal.

E concluem com uma pérola de desinformação, atribuída a Pérsio Arida, um dos caciques do Plano Real: a “estabilidade monetária” é uma exigência da democracia. “Nela, a comunicação transparente é pilar indispensável para garantir a legitimidade das decisões de um corpo técnico não eleito – e um dos principais remédios tanto contra eventuais deslizes desse corpo como contra incursões demagógicas na gestão monetária”, sentenciam, com um raciocínio raso e obtuso sobre democracia, uma mula sem cabeça que tenta sustentar os superpoderes da tecnocracia que concentra decisões nas mãos de um autocrata, o presidente do BC.

Aparato midiático

Maria Clara do Prado também escreveu n’O Globo, dia 1º de julho de 2024. Seu artigo, intitulado Comunicação ajudou a consolidar o Real, revela alguns detalhes dos bastidores da mídia na divulgação das versões dos tecnocratas, segundo ela uma inovação “no campo da comunicação”. “Na fase mais delicada, anterior à vigência da nova moeda, contou com um ministro da Fazenda que, ao invés de falar para o mercado financeiro e os empresários falava para o povo, e com economistas dotados do mais alto preparo técnico que passaram a frequentar as páginas dos jornais com regularidade nunca imaginada”, escreveu.

Falta, nessa formulação, a regra básica de que jornalismo implica explorar o contraditório. Falar “para o povo” não é apresentar dados e números acabados, como dogmas para pronta aceitação, sem uma sistematização mínima. Com esse recurso, a imensa maioria do povo não tomou conhecimento sequer dos rudimentos das medidas que estavam sendo adotadas. “Não havia a figura de um porta-voz do plano, mesmo porque não se empresta a voz quando a credibilidade de um projeto futuro é o objetivo maior. Para dirimir as dúvidas de ordem técnica, as entrevistas eram dadas diretamente pelos formuladores do plano, donos das ideias e das soluções que levariam à estabilização”, confessa, relatando exatamente como eram as manipulações e as ocultações de informações.

Segundo ela, um verdadeiro aparato midiático foi montado para dar voz aos tecnocratas. “Toda a estratégia de comunicação foi montada na premissa de que nenhum jornalista, não importa onde estivesse, deixaria de ser atendido. Não havia verba pública para uma campanha do Real, mas nem por isso recorreu-se ao uso de expedientes como press releases ou outros tipos de comunicados oficiais que impõem a informação pronta, protegida de questionamentos”, relatou, sem dizer que os entrevistadores estavam pautados não para fazer questionamentos, mas para difundir o que estava sendo comunicado. Não havia sequer informações para se fazer perguntas abrangentes.

Numa dessas entrevistas, Rubens Ricupero, que substituiu Fernando Henrique Cardoso (FHC) no Ministério da Fazenda, resumiu, inadvertidamente, o que era essa comunicação, numa conversa informal, acidentalmente captada, com Carlos Monforte, jornalista da Rede Globo de Televisão: “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.” Era o auge da campanha eleitoral das eleições que faria a sucessão presidencial em 1994, quando a direita atuava freneticamente para atacar o candidato favorito nas pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva. A confissão de Ricupero não representou qualquer arranhão à campanha de FHC.

Com Lula foi bem diferente. Ele fez uma campanha baseada na Caravana da Cidadania, percorrendo o país, e não desceu aos subníveis da mídia. Seu candidato a vice, José Paulo Bisol, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras, mote para uma virulenta campanha contra Lula. Mais tarde, passadas as eleições, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, teve de pagar a Bisol indenização de R$ 1,191 milhão pela publicação da acusação falsa.

Ordem democrática

Segundo Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), para compreender o que se passava, as razões em geral deviam ser buscadas na nova ordem imperialista e em particular na sua nova estratégia para os países dependentes, o projeto neoliberal. A orientação ditada para o chamado Terceiro Mundo e para o Leste Europeu visava à liquidação das fronteiras nacionais desses países, integrando-os como apêndices de um mercado de grande escala dos oligopólios mundiais.

Citou a política dos sete países ricos, que considerava imprescindível solapar as bases que constituem o Estado nacional. Na América Latina, procurava-se estabelecer o “ajuste estrutural” no âmbito da economia, que impunha o desmonte do Estado, redefinindo inclusive o papel das Forças Armadas. “Logo em seguida à rebelião militar na Venezuela (o levante de 4 de fevereiro de 1992 contra o governo do presidente Carlos Andrés Pérez, que tinha Hugo Chávez entre seus líderes), o embaixador dos Estados Unidos e o seu representante na OEA (Organização dos Estados Americanos) declararam diante de um grupo de oficiais venezuelanos que já existia o ‘direito’ de intervir militarmente em qualquer país da América Latina onde se produzisse uma ‘ruptura da ordem democrática’”, denunciou Renato.

De acordo com ele, o PCdoB e as forças consequentes na defesa da independência nacional, naquelas condições do mundo, eram “alvos de ataques das forças entreguistas e imperialistas, as quais empreendem ações e campanhas para denunciá-los e isolá-los”. “Desse modo, para a necessária ampliação e fortalecimento do movimento patriótico, devemos considerar as novas alianças de forças que o curso político vai demonstrando”, considerou.

Personagem contra Lula

Segundo Renato, o acirramento da polarização desencadeou o impasse. Havia uma encruzilhada, que se revelava, em termos gerais, na contraposição de dois projetos: ou prevalecia o caminho neoliberal, “que deteriora intensamente a grave situação social e submete o país à nova ordem mundial imperialista, ou a resistência na busca de um novo caminho, de base nacional, democrática e popular, que concretize, no plano interno, ampla coalizão de forças política e sociais, e, no plano externo, a formação de uma frente dos países e povos dependentes, pela retomada do desenvolvimento com independência e progresso social”.

Aquele quadro de crise e confronto de dois projetos definiria a sucessão presidencial, disse Renato. “Articulam-se nervosamente na busca de um personagem contra Lula, esforçando-se para chegar a um candidato único, no qual pretendem concentrar todo o seu poderio”, afirmou. As oligarquias mais poderosas encontraram seu escolhido na pessoa de Fernando Henrique Cardoso, que, convertido ao credo neoliberal, agia como um “cristão novo”, resumiu. “Tem de aprovar seu plano atual, que já encampa o artifício da dolarização, a última palavra em matéria de planos encomendados ao FMI (Fundo Monetário Internacional) para países da América Latina.”

Renato alertou que a candidatura de FHC, apresentada como de centro-esquerda pelas elites, moldada com a ênfase no seu passado de intelectual de prestígio e de esquerda, não deixava de ser burlesca. “Acabam admitindo o prestígio da esquerda, apesar da manipulação pela permanente propaganda em contrário. Dessa maneira, a fina flor dos setores mais ricos de nossa sociedade, em parceria com seus cupinchas extemos (segundo o jornal Financial Times, FHC é o favorito dos ‘mercados’), monta um perfil farsante”, enfatizou.

Projeto global

De acordo com Renato, o plano de “estabilização da inflação” de FHC era considerado o “esboço prático” de um projeto global. “Significa que esse novo governo das elites não será diferente dos precedentes. Se isso acontecer, a crise irá se agravar.” A tentativa de juntar duas correntes dos setores dominantes – o “liberalismo” e a “social-democracia” – era um jogo de palavras, demagogia para salvar as aparências e tinha o mesmo efeito “de apresentar um círculo como se fosse um quadrado”.

FHC seria eleito e arrancou sua reeleição novamente por meio de um jogo sujo. Em meados de 1998, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa do instituto Datafolha de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.

A mídia entrou em cena com ataques a Lula num ponto sensível: a política econômica. O jornal O Estado de S. Paulo de 14 de junho de 1998 resumiu a questão numa matéria sobre suposta quebra de um pacto de silêncio na coligação oposicionista. Na convenção do PT, Lula criticou a pressa no processo de privatizações e cogitou uma auditoria no que já havia sido vendido. Brizola também fez duras críticas à voracidade privatista de FHC.

Na questão do câmbio e do dólar, o Estadão ouviu representantes do PT e Renato. Segundo a matéria, o PCdoB era o “parceiro radical”, que desejava o “compromisso de ajustar rapidamente o câmbio e os juros” para definir “um programa de cunho claramente nacionalista”. A conclusão derivava da fala de Renato de que “queremos o desenvolvimento a partir de recursos próprios”, numa crítica explícita ao fluxo de capital especulativo que parasitava as finanças públicas.

Rumo da campanha

Em 18 de junho, o Estadão voltou à carga, agora explorando o debate na oposição sobre o futuro das privatizações. Havia no PDT propostas de medidas mais duras em relação às denúncias de corrupção e promessa de reestatização da Companhia Vale do Rio Doce e do Sistema Telebras. No PT, as opiniões se limitavam a medidas jurídicas, caso se comprovasse irregularidades.

A coligação decidiu requerer oficialmente do governo informações sobre câmbio, reservas internacionais e execução orçamentária, essenciais para a elaboração de propostas, segundo informou Renato ao Estadão. Sem aqueles dados, seria difícil fechar um programa detalhado, considerando a possibilidade de mudança na conjuntura econômica, teria dito Renato, que “refutou a possibilidade de um governo das esquerdas promover mudanças bruscas na gestão econômica”.

A Folha de S. Paulo também explorou o assunto. Na edição de 20 junho, o jornal enviou perguntas aos representantes dos partidos da oposição sobre reestatização da Vale, privatização da Telebras, imposto sobre lucros extraordinários de empresas privatizadas, quarentena para capital externo especulativo (exigência de permanência do dinheiro por certo período no país) e proposta cambial. Foram ouvidos Renato, Vivaldo Barbosa (PDT), Igor Grabois (PCB) e Roberto Amaral (PSB). Renato foi enfático na defesa do patrimônio nacional e na necessidade de soberania do país na administração das finanças públicas.

Com recursos como esses, o projeto neoliberal reavaliou o rumo da campanha e reforçou a divulgação das propostas de FHC, repetindo promessas que em 1994 foram simbolizadas numa mão espalmada – segundo FHC, gesto que Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek usaram para liderar o país – mostrando que depois da “estabilidade da moeda” viriam as questões sociais, hierarquizando emprego, saúde, agricultura, segurança e educação. A direita recuperou a vantagem e venceu novamente no primeiro turno, em 4 de outubro de 1998.

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