Por Osvaldo Bertolino
Roberto Civita, filho do fundador da Editora Abril, Victor, manteve por muito tempo em sua sala uma foto de Fernando Henrique Cardoso (FHC). “Pensam que a Abril apoia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apoia o programa de Fernando Henrique. É o Fernando Henrique que apoia o programa de governo da Abril”, disse ele certa vez. Era a negação dos treze pontos que magnetizaram o país na campanha de 1989, embalados pelo slogan Lula lá.
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A fala de Roberto Civita pode ser associada a um pronunciamento de FHC, em 1995, sobre a ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos. “Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo”, discursou ele. FHC não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões.
Era um verdadeiro devaneio, uma abstração inconsequente, possivelmente influenciado pela concepção baseada na ideia de que os conceitos de esquerda e direita foram varridos pela ordem neoliberal. Como não havia mais a oposição básica que lhe daria sentido, Washington capitalista e Moscou socialista, prevalecia o triunfo definitivo do capitalismo, a “nova ordem mundial” do presidente dos Estados Unidos, George Bush pai, que seria o fim da história, na definição de Francis Fukuyama. Ou a proclamação do pensamento único, o primado de que qualquer ideia fora de sua órbita representava o atraso. Defendê-la era coisa para caipiras e neobobos, segundo FHC.
Caipiras e neobobos
Em 15 de julho de 1996, em visita a Portugal, ele declarou: “Como vivi fora do Brasil, na Europa, no Chile, na Argentina, me dei conta disso: os brasileiros são caipiras. Desconhecem o outro lado e, quando conhecem, se encantam. O problema é esse.” Mais adiante ele diria: “Só quem não tem nada na cabeça fica repetindo que o governo só se preocupa com o mercado, que é neoliberal. Isso é neobobismo.” A mídia, coalhada de “economistas” e “comentaristas” afinados com a ideia de FHC, propagava essa cantilena diuturnamente.
FHC tangia politicamente aquilo que o jornalista Aloysio Biondi chamava de destruição da “alma nacional”. Sob a alegação de que era preciso reduzir a dívida interna e o déficit público, o governo vendeu tudo: bancos, ferrovias, empresas de energia, telefônicas, siderúrgicas e até estradas e portos. Biondi chamou os responsáveis por essa destruição de “clones malditos dos intelectuais de ontem”, que “destruíram o que havia sido construído ao longo de décadas”. “Destruíram mais. Destruíram o sonho, a alma nacional. O que somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Somos um curral”, escreveu ele no livro O Brasil privatizado.
Investiram contra o trabalhador, o funcionalismo público, o aposentado, o agricultor, o empresário nacional e o Estado, patrocinando desemprego, cortes na aposentadoria e nos direitos trabalhistas, falsas reformas do funcionalismo, falências, facilidades para importações e juros escorchantes – jogando, assim, um seguimento da população contra outro, afirmou. Até o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, foi posto a serviço dessa desconstrução nacional. (Biondi chamava o banco de Banco Nacional de Desmantelamento Econômico e Social.) Sem demanda e sem infraestrutura, a produção estagnou.
Conta da “estabilidade”
Em 1994, Lula disse que a conta da “estabilidade” — o Plano Real — seria posta na mesa do povo e ela seria salgada. Isso porque FHC escondeu seu real programa de governo. A maioria da sociedade, ansiosa pelo controle da inflação que castigava o país desde que o “milagre econômico” dos generais golpistas começou a fazer água, em meados da década de 1970, não viu as cláusulas do contrato escritas com letras minúsculas.
Uma delas era a cadeira da presidência do Banco Central, que passou a ser um dos postos mais importantes entre todos os ocupados pela legião de “economistas” que foi instalada nos mais destacados postos do governo e fez da passagem por Brasília um trampolim para uma abastada carreira no mercado financeiro. Até então, os ocupantes de cargos no Banco Central só eram conhecidos por quem tinha algum interesse específico na área financeira. Na “era FHC”, eles ganharam uma independência nunca vista no Brasil.
Era o que chamavam de “despolitização da moeda”, a criação de resistências – ou mesmo impossibilidades – a políticas de prioridades aos investimentos públicos, ideia que levou os dois governos FHC a uma conduta ideologicamente reacionária e politicamente fisiológica e clientelista. Em suas eleições, prevaleceu a linguagem publicitária, que substituiu o debate político franco, direto, com o uso de mais clipes e menos papo, menos verbo e mais efeitos especiais. Foram, enfim, eleições ajustadas ao molde neoliberal.
No plano político, o país passou a ser dirigido por um insólito concerto de facções da direita, cujo esteio era a aliança do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), constituída sob uma boa representação no Congresso Nacional e uma vasta rede de vereadores, deputados estaduais e prefeitos. As decisões eram tomadas entre quatro paredes, longe dos olhos do povo, muitas vezes tramadas com corrupção desbragada – não foram poucos os aliados de FHC pegos com a galinha no saco e nada sofreram. A corrupção rondou o Palácio do Planalto e não existiu uma condenação veemente por parte do governo.
Cartão vermelho
Essa constatação ajuda a compreender a afirmação de José Serra, candidato da direita à sucessão de FHC em 2002, de que, “numa perspectiva republicana, o governo é para servir às pessoas, não aos partidos” (ideia que serviria de base para o lavajatismo que levou ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016). Há, nessa afirmação, dois sofismas. O primeiro é a deliberada generalização das “pessoas”. O segundo é a tentativa demagógica de negar que os partidos são expressões da democracia. Era o crepúsculo da “era FHC”, um autêntico fim de feira.
Serra dizia que enfrentaria o desafio de neutralizar a dicotomia entre inflação baixa, represada pelos juros altos, e crescimento econômico, sem mexer nos fundamentos do Plano Real. Ele dizia que era possível. O povo não acreditou. Como não dava para servir a dois senhores, logou mostrou que estava claramente a serviço do capital financeiro. Não existia explicação plausível para a conciliação entre juros altos, uma bola de chumbo atada ao tornozelo da produção, e a geração de empregos. FHC prometeu conciliar esses conceitos opostos e não cumpriu. Nem tentou, o que demonstrava mais uma demagogia eleitoreira.
Lula chegou às eleições de 2002 com força porque fez as três campanhas anteriores defendendo coisas básicas como o direito a todo brasileiro de ter no mínimo três refeições por dia. A esperança de avanço social com o projeto neoliberal não existia mais. O povo olhava para a “era FHC” e só enxergava inépcia e fracasso. FHC e Serra receberam cartão vermelho, uma grande conquista para o país.