Mulheres heroínas nas biografias do PCdoB

Por Osvaldo Bertolino

Escrevi oito biografias de lideranças do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – Carlos Nicolau Danielli, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Aurélio Peres, Vital Nolasco, Antônio Almeida Soares (Tom), Péricles de Souza e Renato Rabelo. Nelas, adotei como método situar a vida dos biografados nas dimensões pessoais e familiares, nas conjunturas por eles vividas e nas circunstâncias das organizações nas quais atuaram. Em todas, aparecem mulheres como importantes alicerces da história, em geral pouco notadas. No PCdoB, foram elos essenciais, sem os quais as histórias narradas não existiriam ou teriam tomado outros caminhos.

Procurei dar a elas o espaço devido, mostrando como, muitas vezes, seguraram a barra na retaguarda, além de, em alguns casos, militarem na linha de frente. Com as que convivi, criei laços de amizade e camaradagem. Com as que não tive o privilégio de conviver, fiquei com a sensação de que também teriam a mesma atitude.

Marilda Costa Danielli

A primeira delas foi Marilda Costa, esposa de Carlos Nicolau Danielli, com quem convivi, em 2001, por aproximadamente quinze dias, em Niterói, Rio de Janeiro. Mulher de gestos cordiais, memória privilegiada e de convicção sólida, ajudou muito para que na biografia do marido constasse o máximo de informações. Mãe de três filhos – Wladimir, Waldenir e Wladir –, Marilda se viu só, de uma hora para outra, com o brutal assassinato de Danielli no Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, em 31 de dezembro de 1972.

Recebi dela, em reconhecimento pela biografia, uma comovente carta me considerando membro da família. Uma grande honra, que comentei em artigo no Portal Vermelho, dia 24 de março de 2006, para homenageá-la quando soube de sua morte, intitulado A perda de uma guerreira: morre Marilda Costa Danielli. Escrevi:

“Os vizinhos gostavam daquela família solidária e unida. Na casa em frente, duas jovens estudantes sempre se socorriam da presteza de Danielli para os trabalhos escolares. Na manhã do dia 27 de dezembro de 1972, ele tomou o café da manhã e fumou um cigarro. Marilda já estava no tanque lavando roupa quando ele se despediu e avisou que possivelmente voltaria dali a um ou dois dias. Não voltou. (…) No dia 5 de janeiro de 1973, uma sexta-feira, ela fazia crochê na sala quando ouviu Sérgio Chapelin (um dos apresentadores do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão) anunciar com voz grave: “Morto em São Paulo o terrorista Carlos Nicolau Danielli”. (…) Sem parentes, sem conhecidos e com três crianças, Marilda resolveu procurar as vizinhas estudantes. Ao saber da verdadeira história, uma delas se dispôs a levá-la com as crianças para o Rio de Janeiro.”

Marilda foi presa em São Gonçalo, na casa de uma irmã, onde estava com os filhos. Algemada e encapuzada, foi levada para algum lugar no Rio de Janeiro. Dois dias depois, foi encaminhada para o DOI-Codi paulista, onde ficou por dez dias. Ao voltar para a casa da família, no bairro Jabaquara, viu, desolada, que praticamente nada restava. Voltou para o Rio de Janeiro para recomeçar a vida como revendedora de cosméticos. Para as crianças, o pai estava viajando e um dia voltaria.

Alzira da Costa Reis Grabois

A esposa de Maurício Grabois, Alzira da Costa Reis, também atuou intensamente no Partido. No começo da noite de 28 de dezembro de 1972, Danielli deu a ela notícias de Maurício Grabois e de seu filho, André, trazidas pela guerrilheira Criméia Alice Schmidt de Almeida, em um “ponto” na Rua Marselhesa, na Vila Clementino, próximo à Vila Mariana, antes de se dirigir  à Rua Loefgreen, onde foi preso. A operação fazia parte do restabelecimento de contatos entre os dois dirigentes do PCdoB, após o ataque da repressão à Guerrilha do Araguaia em 12 de abril de 1972. Danielli era o secretário de Organização do Partido, responsável pela infraestrutura da Guerrilha.

Alzira militava no Partido antes de conhecer Grabois. O casal teve os filhos Victória e André (também morto no Araguaia). No dia que Maurício Grabois teve o seu mandato de deputado federal cassado, em 1948, ela enfrentou a repressão, que estava pronta para prendê-lo. Ele saiu da Câmara direto para a cama, acometido de mononucleose, doença provocada por vírus que causa dores nas articulações e ínguas pelo pescoço. O estado de saúde do agora ex-líder da bancada do Partido era considerado muito grave pelo médico que o atendeu, José Sarmento Barata.

Mas a situação não impediu que ele fosse levado para a delegacia, detido por policiais que invadiram a sua residência. Na frente dos agentes do delegado José Piccoreli, Alzira telefonou para José Sarmento Barata, que comunicou a eles que o paciente estava proibido de sair de casa. Mas de nada adiantou. Maurício Grabois foi arrastado, de pijama, sem poder andar e escorado por policiais, protestando contra aquela atitude arbitrária.

O vandalismo policial atraiu a vizinhança, que se aglomerou em frente à residência. Alzira, acompanhada dos filhos de quatro e dois anos de idade, fez um discurso contra o autoritarismo do governo do general Eurico Gaspar Dutra. Em seguida, dirigiu-se à Câmara dos Deputados para denunciar a prisão. Lá protestou veementemente e foi recebida pelo deputado Flores da Cunha (UDN-RS), que localizou Maurício Grabois na Delegacia de Segurança Política, levado para prestar “esclarecimentos” sobre o Partido. O parlamentar gaúcho telefonou para o ministro da Justiça e exigiu sua libertação.

Alzira também foi atingida pela repressão. Ela participava da Associação Feminina da Gávea, com forte influência do Partido, e, em uma atividade na favela da Praia do Pinto, foi presa com outras quatro pessoas. Na hora, ela se pôs a protestar, mas o grupo foi levado, fichado e posto à disposição do delegado, que mandou recolher todos ao xadrez, onde passaram a noite. Alzira também seria demitida sumariamente do cargo que ocupava, havia mais de cinco anos, no Serviço Florestal do Ministério da Agricultura.

Pouco depois, a polícia voltou à residência de Maurício Grabois, onde também estava o ex-senador do Partido, Luiz Carlos Prestes. Percebendo a aproximação da repressão, os dois pularam o muro dos fundos e fugiram. Quando a polícia entrou na casa, encontrou Alzira revoltada, segurando André, chorando, no colo. Maurício Grabois e Prestes foram parar no Hotel Glória, no apartamento do ex-deputado e governador da Bahia Octávio Mangabeira que, por telefone, exigiu do presidente da República o fim da perseguição policial aos ex-parlamentares comunistas.

Alzira participou da Federação de Mulheres do Brasil, foi advogada trabalhista e dirigente do Partido no estado do Rio de Janeiro. No desdobramento da crise do movimento comunistas na segunda metade da década de 1950, quando grupos revisionistas tentaram liquidar o Partido, Alzira foi “expulsa” do Parido Comunista Brasileiro (PCB), criado por eles em 1961. O jornal Novos Rumos publicou a seguinte nota: “Os comunistas de Niterói, capital do Estado do Rio, comunicam aos trabalhadores e ao povo que Lincoln Cordeiro Oest (que também seria morto na operação que assassinou Danielli) e Alzira Reis Grabois não mais pertencem às fileiras do movimento comunista, das quais foram expulsos em virtude de suas atividades fracionistas e contrárias aos interesses da classe operária e do povo.”

Catharina Patrocínia Torres Pomar

Pedro Pomar igualmente teve na esposa, Catharina Patrocínia Torres, também militante do Partido desde antes de se conhecerem, um apoio decisivo. O casal teve os filhos Wladimir, Eduardo, Jonas e Carlos Alberto. Ainda no Pará, quando o marido e outros dirigentes locais do Partido foram presos ela encaminhava cartas para serem distribuídas pelo país afora denunciando os abusos da repressão.

Era uma mulher de reconhecida coragem. Quando o presidente Getúlio Vargas visitou Belém, ela entregou-lhe um documento de protesto. A ousadia custou-lhe uma queda do bonde, quando estava nos últimos meses da gravidez do segundo filho, Eduardo. Catharina foi também um elo importante no estabelecimento de contatos entre Grabois – que estava reorganizando o Partido no Rio de Janeiro, após a repressão do Estado Novo – e Pomar e Amazonas. “Já conhecia a Catharina (…) antes mesmo de eles se casarem, pessoa também muito amiga, muito estimada”, disse Amazonas ao jornal Tribuna da Luta Operária.

Na fuga da prisão, liderada, entre outros, por Pomar e Amazonas, Catharina foi um elo fundamental. Ela se encarregou de falar com o médico Raimundo Silas de Andrade, amigo dos comunistas, que seria outro ponto-chave do plano. Faria uma receita para adormecer os guardas. Catharina providenciou carteiras de trabalho com nomes falsos para todos e comprou duas passagens para Marabá, uma para Monte Alegre, duas para São Benedito, em Faro, no Baixo Amazonas. Cada um sabia o destino a tomar depois da fuga. Pomar e Amazonas foram para o Rio de Janeiro. A data da fuga coincidiu com a partida dos barcos – 5 de agosto de 1941.

O escritor comunista Dalcídio Jurandir conta que, em meados de setembro de 1945, quando se dirigia ao Paraná para representar a direção nacional na instalação do Comitê Estadual, passou por São Paulo e foi recebido por dirigentes locais, entre eles Jorge Amado. “Uma grande amiga corre para abraçar-me. É Catharina Pomar. Que alegria na sua voz e a recordo, no Pará, quando a via carregando papéis ilegais, quando foi jogada no chão pelo policial, quando levava horas e horas no Umarizal (onde estavam presos Pomar, Amazonas e outros) à espera de que os policiais lhe trouxessem o companheiro”, disse.

Pomar era amigo dos  escritores Jorge Amado e Zélia Gattai e lhes disse que gostaria que Catharina e as crianças fossem passar uma temporada no sítio do casal, entre São João de Meriti e Caxias. “Catharina está precisando descansar, os meninos andam pálidos… Vão te fazer companhia”, teria dito ele, segundo Zélia em seu livro Um chapéu para viagem. Ela conta que a família de Pomar era unida. O amor reinava entre marido e mulher, pais e filhos. Zélia Gattai diz que concordou com satisfação. Gostava de Catharina e sua presença seria bem-vinda.

Durante três ou quatro semanas que passou no sítio, a “sofrida” mulher de Pomar contou-lhe sua vida. Os momentos de amor, as horas terríveis que vivera, como esposa de um dirigente comunista perseguido, preso várias vezes, condenado. Desde que haviam se casado, somente após a anistia aos presos políticos conseguiram viver juntos, em uma vida estável, em paz.

Uma das distrações de Catharina era conversar com o papagaio do sítio. Segundo Zélia Gattai, nem sempre ela entendia o que o louro dizia. Certa vez, achou que ouvira pirarucu. Mas a conversa nada tinha a ver com peixe. Tratava-se de uma frase indecente, grosseira. Recordações dos tempos em que o papagaio convivia com mulheres da vida e boêmios. Diante da gargalhada de Zélia Gattai, Catharina prestou mais atenção e entendeu: ofendeu-se até o fundo da alma. “Vai você, seu louro vagabundo!”, teria respondido. Foi a última vez que Catharina se dirigiu ao papagaio. Cortou relações com ele, conta Zélia Gattai.

Antes da Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, quando Pomar foi assassinado pela repressão, ele estava de viagem marcada para o exterior, em missão do Partido. Mas Catharina foi diagnosticada com aneurisma cerebral e precisava passar por uma delicada cirurgia. Pomar trocou a viagem com Amazonas. Catharina faleceu em 1984, em decorrência do agravamento do aneurisma.

Maria da Conceição Peres

Maria da Conceição, esposa de Aurélio Peres, iniciou a militância política no trabalho de formação de lideranças populares nos bairros mais afastados da zona Sul paulistana, uma iniciativa da ala progressista da Igreja Católica. O casal teve os filhos Leni e Marco Aurélio. O trabalho começou em 1970 e evoluiu para os clubes de mães e o Movimento do Custo de Vida, mais tarde transformado em Movimento Contra a Carestia, sob a liderança de Aurélio Peres.

Quando ele foi preso em sua residência por agentes do DOI-Codi, em 1974, Conceição foi para a rua e gritou denunciando o ocorrido e saiu a procura de ajuda de advogados ligados ao movimento de resistência organizado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Foi uma heroína, nas palavras de Aurélio. Ao relatar esses fatos, Aurélio fez esforço para segurar as lágrimas, que insistiam em avermelhar seus olhos. Os músculos da face crisparam e o olhar se perdeu no infinito. Ao seu lado, Conceição mexia as mãos, com olhos marejados, revelando a mesma angústia e impotência de quando o marido foi arrancado de casa por agentes da repressão.

Maria Ester Nolasco

Maria Ester também já era militante política quando conheceu Vital Nolasco. O casal teve os filhos Patrícia, Daniel e Iara. Ester foi comerciária e ingressou numa empresa metalúrgica, como operária, seguindo a diretriz da Ação Popular (AP), a organização a qual pertenciam, de integração à produção. Vital diz que faziam os chamados comícios relâmpagos: subiam em um banquinho num lugar de concentração popular, como o Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, São Paulo, e metiam o pau na ditadura e na carestia. Falavam rápido e sumiam. Ester, como é chamada, só soube o nome completo de Vital no dia do casamento civil. Até então, era somente Vicente (nome clandestino) ou Vital, conforme a ocasião.

Quando ele estava preso no DOI-Codi paulista, recebeu a visita da mãe, Diva Zanandreis Nolasco, e soube que Ester e a filha, Patrícia, estavam com seus familiares em Belo Horizonte. Para que ela não visse as marcas da tortura, os agentes da ditadura montaram uma farsa: providenciaram uma camisa de mangas compridas.

Para não ficar exposta à repressão, Ester pegou a filha, passou a mão nas coisas que pôde levar e se mandou para a casa de um padre amigo da família. Dali, foram levadas para um convento de freiras. A Patrícia tinha um ano e pouco e foi para uma creche. Depois de certo tempo, arrumaram um esquema para dona Diva pegá-las e levá-las para Belo Horizonte. Foram no mesmo ônibus, mas não se falaram por razões de segurança.

Assim que saiu da prisão, Vital foi reencontrá-las em Belo Horizonte. Quando nasceu o filho, homenagearam Danielli, de quem Vital ouviu falar muito na prisão por sua postura de enfrentar os torturadores, com o nome de Daniel. Vital voltou a trabalhar como operário e Ester ficou em casa para cuidar dos filhos e se reaproximou do Movimento do Custo de Vida. Ester continua na militância do PCdoB.

Anna Martins

Anna Martins também era militante da AP quando conheceu Antônio Almeida Soares, o Tom. Tiveram os filhos Juliana e Pedro. Foi operária e o casal se integrou à produção como camponeses em Livramento de Nossa Senhora, Bahia, logo após o casamento. De volta a São Paulo, trabalhou como operária e liderou lutas sociais históricas nas periferias paulistanas. Ela e Tom foram essenciais para a reestruturação do PCdoB, na luta contra a ditadura militar, na organização e formação dos comunistas.

Filha de agricultores, se integrou à Juventude Operária Católica (JOC), uma das vertentes que criaram a AP. Como estudante, participou também da Juventude Estudantil Católica (JEC). Na década de 1970, integrou-se aos movimentos comunitários e participou dos clubes de mães e do Movimento Contra a Carestia. Foi diretora da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam) e presidente da Federação Estadual das Associações Comunitárias de São Paulo. Pelo PCdoB, cumpriu três mandatos de vereadora em São Paulo e elegeu-se deputada estadual.

Carmilce Miriam Carneiro de Souza

Carmilce Míriam Brito Carneiro e Péricles de Souza se conheceram na militância estudantil. Algum tempo após o golpe militar de 1964, já militantes da AP, foram se integrar à produção na região do Bico do Papagaio – confluência dos estados do Pará, Maranhão e Norte de Goiás (atualmente pertencente ao estado de Tocantins) – e fixaram residência no município maranhense de Imperatriz. Carmilce assumiu o nome de Clea, atuando como professora num projeto de alfabetização de adultos e crianças.

No processo de incorporação da AP ao PCdoB, o casal se estabeleceu em São Paulo. Carmilce se integrou à equipe de “serviços” – os bastidores do trabalho organizativo – da direção nacional. Era também responsável pelo trânsito da produção e distribuição do jornal da AP, Libertação. Cumpria a ela levar os pacotes do jornal impresso a um ponto, onde era recolhido pelo sistema de organização para a distribuição.

Nesse sistema, Carmilce também se tornou um elo importante com os militantes que chegavam em São Paulo, fazendo o controle dos “pontos” de rua e da rede que garantia a segurança da organização. Os contatos não eram estabelecidos diretamente. Havia um sistema de senhas e símbolos, como a cor da camisa, o tipo de jornal ou revista embaixo do braço, o gesto de tomar café numa padaria e assim por diante.

Após a anistia, com a família de volta a Salvador, Carmilce foi trabalhar na Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba), como instrutora de ensino. Antes, trabalhou como auxiliar administrativa na rede de supermercados Paes Mendonça, de 1º de dezembro de 1979 a 9 de agosto de 1980, e passou dois meses na Secretaria de Educação do estado. Na Coelba, fez parte do sistema de direção do Sindicato dos Eletricitários. Se aposentou no começo dos anos 2000 e continuou participando da Associação dos Aposentados da empresa e de atividades sindicais da categoria.

Conceição Leiro Vilan (Conchita)

Conceição Leiro Vilan, a Conchita, e Renato Rabelo também se conheceram no movimento estudantil. Juntos, enfrentaram a investida da ditadura militar e foram, clandestinos, para Belo Horizonte, em 1966, organizar o 28º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), no qual Renato foi eleito vice-presidente. Casaram-se em 1967 e foram morar no Rio de Janeiro. Tiveram os filhos André e Nina. Ela também se integrou ao “serviço” da AP após uma dura experiência de integração à produção na região de Formoso e Trombas, em Goiás.

No episódio da Chacina da Lapa, em 1976, quando Renato estava fora do país e não pôde retornar, Conchita se viu só, com duas crianças. A família havia se estabelecido em Belém, Pará, numa operação montada pelo Partido para que Renato tentasse contato com eventuais sobreviventes da Guerrilha do Araguaia. A residência era precária, vizinha a um local em que porcos eram criados ao ar livre. Não raro apareciam ratos em profusão nos arreadores. Poucos dias após a mudança para Belém, de coração partido – diria Renato mais tarde – ele deixou a esposa com as crianças e os ratos para participar de reuniões da direção do Partido, em 1976, e viajar ao exterior.

Conchita tomou conhecimento da Chacina da Lapa andando pelo centro de Belém. Avistou, numa banca de jornais e revistas, as manchetes sobre o caso. Na busca por notícias de Renato, soube que ele estava na França. Com ajuda de familiares e de entidades solidárias aos perseguidos políticos conseguiu se juntar ao marido em Paris. As crianças foram em seguida. Lá, enfrentou também a dura situação da prisão de Renato, acusado de portar documentos falsos. Ficaram no exílio até a anistia, em 1979.

Assim como Renato e outros militantes da resistência democrática, Conchita continuou vigiada pela ditadura. Nos arquivos da repressão consta que em 1982 ela esteve entre as pessoas que contribuíram para o “agravamento do processo subversivo e contestatório ao regime vigente”. Os espiões relataram sua participação em uma reunião de mulheres, em 1984, num curso de “capacitação política” organizado pelo PCdoB em Campos do Jordão, São Paulo, e a citação do seu nome em uma reportagem intitulada Desempregados invadem prefeitura de Embu, onde ela trabalhava. Cita também sua participação em diversas atividades do PCdoB.

Em 4 de abril de 2014, Renato participou da sessão da Comissão de Anistia que anistiou filhos de presos políticos durante a ditadura militar, na Câmara Municipal de São Paulo. Entre eles estavam os filhos e Conchita, homenageada “pela destacada atuação na luta em prol da democracia e contra a opressão promovida pelo golpe de 1º de abril de 1964”, conforme descreve um certificado assinado pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.

Edíria Carneiro Amazonas

Na França, Conchita fez amizade com Edíria Carneiro, esposa de João Amazonas, sempre visitada por ela. A amizade se fortaleceu quando Conchita se aposentou como assistente social da prefeitura de São Paulo e passou a visitá-la semanalmente. “Nos tornamos muito amigas. Ela ficava numa alegria grande quando eu chegava. A gente papeava a tarde inteira. Ela servia Chá e a conversa continuava”, lembra Conchita.

A biografia de Amazonas foi escrita por Augusto Buoinicore, mas fiz uma bela amizade com Edíria na busca de informações para escrever as biografias de Danielli, Grabois e Pomar. Na biografia de Pomar, escrevi:

“Foi uma paciente consultora quando minhas limitações eram desafiadas pela história. Conheci essa figura generosa e simpática na manhã fria e ensolarada de 5 de agosto de 2002, quando preparava a biografia de Carlos Danielli. Desde então, tornou-se, além de consultora, uma amiga carinhosa. As conversas com ela eram sempre agradáveis, permeadas por suas tiradas de humor e olhares no espaço, buscando recordações que em seus olhos apareciam como doces lembranças.

Ela se foi sem cumprir uma promessa que me fez quando iniciei a redação final deste livro. Em uma agradável noite de verão, dona Ediria me recebeu em sua casa para trocarmos ideias sobre alguns detalhes que surgiram no curso das pesquisas. Conversamos longamente. Sempre revelava algo novo em nossos contatos. Falou da admiração de Catharina por Pedro Pomar, comentou alguns episódios em que o aqui biografado agiu com exagerado rigor moral e falou da generosa cordialidade do casal.

Deixei com ela cópias da revista Seiva (ligada ao Partido, na Bahia), na qual trabalhou como ilustradora nos anos 1940, gentilmente cedidas por João Falcão, seu diretor, com quem estive em sua residência na cidade de Salvador. Fiquei imaginando como reagiria ao ver seus trabalhos muitos anos depois. Pedi para ela ler os originais deste livro, como fez com as duas primeiras biografias que escrevi (de Danielli e de Grabois). Aceitou de pronto e com indisfarçável satisfação.

Seus olhinhos vivos, seu sorriso discreto quase permanente, sua voz pausada e suas ideias compunham uma doce criatura. Estive com ela pela última vez em 25 de agosto de 2011, no lançamento da sua exposição – era uma refinada artista plástica – no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Pouco mais de dois meses depois, recebi a notícia de que estava internada. Travou uma dura batalha pela vida, foi vencida e faleceu na noite de Natal de 2011. Perdi uma colaboradora e, mais que tudo, uma amiga que me cativou profundamente. O Brasil perdeu uma lutadora, uma socialista de raro brilho intelectual e artístico. Este livro ficou menos completo sem as suas preciosas observações.”

Tenho de todas elas as melhores recordações e os mais elevados sentimentos, assim como de irmãs, filhas ou mulheres de outros graus de parentesco dos biografados. As que convivi foram de um carinho imenso. Com as que continuo me comunicando, sempre me emociono com suas mensagens transbordantes de generosidade, graça e delicadeza. E, acima de tudo, o reconhecimento pelo esforço para retratá-las nas biografias, método que adoto para dar visibilidade a essas personagens invisibilizadas pelas durezas da vida e, sobretudo, pela estrutura social que esconde essas maravilhosas mulheres heroínas. Um beijo carinhoso em cada uma delas.

2 Reflexões sobre “Mulheres heroínas nas biografias do PCdoB

  1. A história do PCdoB é composta por homens e mulheres de muitas lutas!
    Que bom Bertolino, que esse seu trabalho, traz um pouco da história dessas heroínas!
    Parabéns, camarada!

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