Por Osvaldo Bertolino
A cadeira de presidente do Banco Central, nos moldes atuais, é lugar de autocrata. E o atual presidente, Gabriel Galípolo, incorporou essa prática, conforme tem se revelado numa série de entrevistas com próceres do Plano Real no Youtube para comemorar os sessenta anos do Banco Central e, segundo ele, trazer sorte para a sua gestão. Suas interações ultrapassam os limites da parcimônia e omitem as barbaridades daquela trupe contra o povo e o país.
Leia também:
A herança maldita do Plano Real
Plano Real: Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa
O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia
O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real
FHC: a face da corrupção do Plano Real
O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores
A visão do PCdoB sobre o Plano Real
Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa
Galípolo assume a “legitimidade” do cargo sem mandato constitucional e popular, apesar da controvertida decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a legalidade da “independência” do chamado “guardião dos valores do Brasil”, também designado como “autoridade monetária”, com a ressalva de que “é fato induvidoso que a questão da autonomia do Banco Central divide opiniões”.
Esse poder autocrático representa interesses muito bem definidos. Ele opera o principal mecanismo de controle da riqueza produzida, a circulação monetária. Quem controla o dinheiro, a mercadoria espelho de todas as outras, tem plenos poderes sobre as políticas do país, uma anomalia do Estado Democrático de Direito, que rege os programas de governo, inviabilizados quando sua essência são investimentos públicos em infraestrutura e políticas sociais.
Cenário sem horizonte
O controle do dinheiro é o cerne do poder capitalista, hoje na forma de remuneração por juros já chamados de pornográficos, parasitando o orçamento público e submetendo todos ao seu designo, inclusive o Estado e suas instituições. É o esteio do projeto neoliberal, a ideia de que o velho liberalismo de Adam Smith triunfou sobre as teorias que se apresentaram como alternativas às mazelas do capitalismo. Socialismo, socialdemocracia e keynesianismo teriam fracassado, dando razão aos dogmas liberais.
A tese não se sustenta diante dos fatos. O projeto neoliberal é uma alternativa ao próprio fracasso do liberalismo, liquidado quando os ideais de livre circulação de capitais e de mercadorias foram inviabilizadas pela corrida às matérias-primas e à força de trabalho, a competição entre grupos econômicos pelo controle de territórios, povos e países, traduzida pelas guerras, por genocídios e morticínios que marcam a história do capitalismo, teorizada como neocolonianismo e imperialismo.
No século XX e neste início do século XXI, a violência e a guerra midiática-ideológica se concentram, basicamente, no combate às ideias democráticas e patrióticas. A forma mais conhecida é o clássico anticomunismo, cada vez mais rude e primário, a plataforma que impulsiona a extrema-direita, a expressão mais pronunciada do poder político do capitalismo na contemporaneidade, com a diferença de que, ao contrário do seu passado, age num cenário de maior complexidade, com o desafio de se impor num cenário sem horizonte.
Nova fórmula do velho poder
Ou seja: o poder político com base nessa suposta ressurreição do liberalismo de Adam Smith só se viabiliza com o rompimento das regras do Estado Democrático de Direito, o direito constitucional que se formou com a Revolução Francesa e seus desdobramentos, o ideal republicano e humanista do projeto socialista. A evolução dessa contradição fundamental explica a agressividade do projeto neoliberal, em todas as suas nuances, cada vez mais extremista e hostil às ideias de democracia, soberania nacional, direitos sociais e humanos.
Esse é o arcabouço político e ideológico da autocracia no Banco Central, a nova fórmula do velho poder que precedeu a Revolução Francesa, fundado no absolutismo e no escravismo. Todos devem se submeter aos “guardiões da moeda”, que usam e abusam do dinheiro público como propriedade privada, distribuindo-o aos que alimentam a ciranda financeira, a fonte de remuneração do capital acumulado à base do trabalho excruciante, desumano e alijado das regras do Estado Democrático de Direito.
Os ideólogos desse projeto de “independência” do Banco Central proclamam essas ideias, abertamente, como um grande feito atribuído por eles a eles mesmos. Isso aparece na série de entrevistas realizadas por Galípolo com os autocratas que impuseram o arcabouço do Plano Real. Foi, na verdade, um festival de arbitrariedades confessado pelo principal deles, Pedro Malan, ao lembrar que pretendiam fazer uma revisão constitucional para, na prática, revogar a Constituição de 1998 como condição para os arbítrios do Plano Real.
Dedo no nariz
Pretendiam, à base de corrupção desbragada, fazer, de uma vez só, o que fariam, com dificuldade e autoritarismo, nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC). A ordem era tirar, com apenas um golpe de mão, as cores progressistas da Constituição. Manipularam o Artigo 3° do título constitucional das Disposições Transitórias, que determinava mudanças em alguns aspectos caso o sistema de governo fosse alterado num plebiscito que decidiu pela continuidade do presidencialismo, derrotando as propostas de parlamentarismo e monarquia.
Não houve mudança de sistema de governo. Portanto, não havia justificativa legal para a revisão constitucional. O pensamento neoliberal mostrava força, mas, nesse caso, não obteve sucesso. A vitória da legalidade democrática veio como resultado de uma ampla mobilização popular. O ponto alto foi a segunda Carta aos Brasileiros, redigida pelo jurista Goffedro da Silva Telles, histórico combatente dos desmandos da ditadura militar.
Ficaram famosas as cenas de resistência ao golpe pelas bancadas do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no dia em o projeto de resolução convocando a revisão constitucional seria votado no Congresso Nacional, numa sessão marcada por grosseira manipulação das regras parlamentares. Wilson Muller (PDT-RS) tomou o projeto das mãos do primeiro-secretário, deputado Wilson Campos (PMDB-PE), e transformou-o em papel picado. Haroldo Lima (PCdoB-BA) falou poucas e boas com o dedo a um palmo do nariz do senador Humberto Lucena (PMDB-PB), o presidente do Congresso.
Repetição goebbeliana
A “independência” é uma prática antiga, criada pela chamada “reforma bancária” da ditatura miliar, no começo de 1965, quando surgiu o mandato fixo para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), autarquia criada em 1945, em 1965 substituída pelo Banco Central, e o Conselho Monetário Nacional. A “reforma bancária” se deu com os mesmos argumentos que ecoaram pela mídia com o arcabouço do Plano Real e que, desde então, são enfiados goela abaixo do povo, numa repetição goebbeliana abusiva.
A trupe do Plano Real promoveu um festival de arbitrariedades já no início de suas atividades, com intervenções para centralizar o sistema bancário pelos ditames do Banco Central, uma operação que passou pelo Proer, mecanismo que despejou US$ 12,1 bilhões no “salvamento” de bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira, originando a clássica fórmula de instituições falidas e banqueiros riquíssimos.
A “independência” do Banco Central – existente na prática desde o lançamento do Plano Real – encampou também o papel do Conselho Monetário Nacional, transformado em instância com pouco poder.
Sobre cigarras e formigas
Já se dizia, na ditadura militar, que a “autoridade monetária” se sujeitava ao Poder Executivo, transformando a política monetária em apêndice, sem autonomia fiscal. A “independência” e o mandato fixo evitariam “injunções políticas” nas decisões monetárias, o mesmo argumento, sem tirar nem pôr, da ladainha dos “pais” do Plano Real, um léxico de tolices que serve para qualquer justificativa contra as críticas aos seus abusos, espécie de novilíngua capaz de reinventar a história, recurso que reapareceu com força nas comemorações dos trinta anos do Plano Real.
Os arautos desse léxico frequentam a mídia como salvadores da pátria – sobretudo no Grupo Globo, conforme sintetizou recentemente o apresentar Pedro Bial ao dizer que a trupe era o “genial grupo do Plano Real” –, tida por eles como um dos grandes trunfos da “estabilização da moeda”, transformado em pensamento único pelo que definiram como “eficaz meio de comunicação com a população”. Esse léxico alicerçou os crimes contra o povo e o país na “era FHC” e chegou ao governo Lula pelo macaquear do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, registrado em seu infame livro intitulado Sobre cigarras e formigas.
Rua do Ouvidor
O linguajar padronizado, medíocre e hipócrita, é repetido à exaustão, como se eles estivessem fazendo um grande favor ao país, a soberba do poder absoluto, o galo que pensa que o sol nasce porque ele canta, não sem motivos chamados de “ortodoxos de galinheiro”. Dizem que foram “convocados” para os cargos e que enfrentaram as resistências, ridicularizando quem não reza por sua ladainha, principalmente os presidentes da República que se opuseram a essa roubalheira no período neoliberal, Itamar Franco e Lula.
Não se pode negar que esse poder autoritário serve muito bem à plataforma política da direita, que não tem como se manifestar sem extremismo. São, a rigor, criminosos perante o direito constitucional. Antigamente seriam criminosos comuns. Como lembra o economista Ney Bassuino Dutra em artigo no Monitor Mercantil, na Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro, a polícia volta e meia corria procurando prender dois tipos de contraventores: um, que vendia “rabinho de coelho” para dar sorte; outro, que emprestava dinheiro a juros aos funcionários públicos a 14% ao ano.