Osvaldo Bertolino, Portal Vermelho – 30/11/2005
Tina e Themba não é dupla sertaneja. É uma tirada que li em algum lugar. São os dois partidos que teriam sobrado à medida que a “globalização” foi estreitando a margem de manobra dos governos nacionais. Tina (There Is No Alternative — não há alternativa) seria o partido da situação — o dos resignados, dos que se imaginam “realistas” e dos que já se sentem à vontade neste admirável mundo novo “global”. Themba (There Must Be an Alternative — deve haver uma alternativa) seria a oposição: o partido dos que insistem em que há outro caminho, embora por enquanto não saibam nem por onde devam começar a procurá-lo. O confronto entre tinistas e thembistas se manifesta com intensidade no Partido dos Trabalhadores (PT).
Os thembistas abriram largos sorrisos com a vitória de Lula em 2002. Mas logo entraram em atrito com os tinistas. Desse confronto, o que chama a atenção é a debilidade, não o vigor desse partido. Como ainda estamos a pouco mais de 10 meses da eleição presidencial, é claro que esse quadro pode se alterar. Mas parece inegável que o PT chega manifestamente dividido ao final deste terceiro ano do governo Lula. Esse quadro de debilidade petista sugere importantes indagações. Será o PT uma combinação aleatória de tendências políticas sem correspondência com a estrutura de classes do país? Este partido estará fora de combate em 2006? Bastam cinco minutos de reflexão para ver que essas não são hipóteses convincentes.
Choque de interesses internos
O PT vive um dilema, é certo. Uma prova disso é a atuação petista nas renhidas polêmicas a respeito da política econômica e da política exterior do governo Lula. Este partido ainda tenta definir claramente uma posição a favor das forças interessadas no desenvolvimento do país. Há uma nítida divisão nesse sentido. E essa luta existe também dentro do aparelho do Estado — o governo Lula realiza uma política contraditória, que reflete o conflito entre as necessidades de desenvolvimento e as concessões ao capital especulativo. Dadas as condições políticas existentes, essa contradição é até compreensível. Mas o PT, para manter o papel de principal força política do campo progressista, será forçado a definir melhor o rumo.
O Brasil já está em pleno choque de interesses internos. Recrudesce a luta das correntes nacionalistas por soluções patrióticas para os problemas econômicos e financeiros do país e, de outro lado, a oposição dá sinais evidentes de que fez do golpismo a sua principal bandeira política. Ou seja: entramos numa fase de acentuação dos obstáculos ao desenvolvimento do país, fato que forçará as correntes políticas a se definirem por um ou por outro campo. Embora cresça e se firme a luta progressista, ela ainda não se traduziu, efetivamente, num grande movimento capaz de unificar no plano político as diversas correntes que a exprimem.
Sacrifícios aos trabalhadores
Em face da diversidade das correntes e tendências progressistas e nacionalistas, que se identificam por certos objetivos comuns, mas se distinguem por posições ideológicas e políticas diferentes, quaisquer tentativas de adotar formas rígidas de organização e direção poderiam estreitar o alcance do movimento. Amadurece, no entanto, a coordenação das diversas correntes progressistas em função de objetivos comuns, respeitadas as características e a autonomia de cada uma — como ficou demonstrado na recente reunião entre PT, PSB e PCdoB. A realidade parece indicar que o primeiro passo seria definir um conteúdo programático capaz de construir um fator de unidade e aglutinação de diferentes tendências.
O próprio aprofundamento da contradição entre a nação que se desenvolve e a dependência ao imperialismo suscita a necessidade de soluções capazes de unificar a ação política das correntes patrióticas. A indefinição de uma política progressista — ou a sua formulação apenas em termos de slogans gerais — pode conduzir a equívocos como o de identificar a luta pelo desenvolvimento do país com a atual política macroeconômica. Em certa medida, tal equívoco verifica-se agora em um setor do PT, identificado com a gestão de Antônio Palocci no Ministério da Fazenda, que defende subordinar o desenvolvimento do país à dependência ao capital especulativo e solucionar as dificuldades econômicas e financeiras pela imposição pura e simples de maiores sacrifícios aos trabalhadores e ao povo.
Uma premissa perigosa
Para este setor, parece estar havendo uma tentativa retardatária de aggiornamento (modernização), que levou partidos de esquerda, sobretudo europeus, a apresentar resultados catastróficos. Seria uma adaptação ao conservadorismo macroeconômico, que se autodefine como a única via capaz de modernizar o país. É uma premissa perigosa. No Brasil, há um movimento de intolerância da direita para com a “esquerda atrasada”. É uma marcha forçada do pensamento único neoliberal, para quem só existe liberdade e democracia dentro de seus modelos de sociedade — o que lembra as passeatas de 1964, as Marchas com Deus pela Família e Liberdade que saudavam o enterro do comunismo e purgavam temores na doação de alianças de ouro para salvar as finanças da nação.
(No dia 28 de outubro passado, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, o yuppie Gustavo Ioschpe escreveu que “essa crise política pode ser um presente para a democracia brasileira: dá a chance de levar de rodo todo um núcleo antidemocrático que danificava o país na oposição e o faz de forma exponencialmente mais grave no poder”.)
É o canto da sereia. Na verdade, a direita rancorosa — cuja expressão política é a dupla PSDB/PFL e cujas teses são amplificadas pela “grande imprensa” — sabe que a união das forças progressistas ameaça o staus quo. O que é aceitável seria uma “esquerda democrática”, que expresse um movimento no sentido de se adequar a um mundo que não é mais aquele do Estado desempenhando papel importante na economia e garantindo os direitos da Constituição de 1988 — considerados pelos neoliberais antiguidades do mundo da brilhantina Gumex e da manteiga Aviação. Por isso, a esquerda tem urgência em diagnosticar corretamente os seus próprios problemas e fazer, com eficiência e justeza, o que deve ser feito. Só assim se avança de verdade.
Projeto de união nacional
A renovação que o governo Lula trouxe produziu o milagre da incorporação de uma esquerda combativa à direção do Estado, coisa jamais vista por estas bandas da Terra. Essa construção política assumiu a iniciativa dos debates e ganhou o direito de ser tratada como um protagonista entre iguais. Daí a intolerância da direita. Os problemas apareceram quando um lado do governo optou por fazer política em nome da “estabilidade monetária” e da “responsabilidade fiscal” — corretamente corrigida pelo vice-presidente da República, José Alencar, para “irresponsabilidade fiscal”. O debate não deve ser enfrentado por aí. Com o governo na condição de vidraça, muitos supõem que a oposição vai deitar e rolar na condição de estilingue. A situação social deverá ser a grande arena no combate eleitoral.
O problema, para a direita, não é apenas que o presidente Lula continua desfrutando de bons índices de popularidade e pode ter o apoio de uma coalizão partidária mais ampla em 2006. É que, para apresentar-se como alternativa programática consistente, ela precisa redefinir todo o campo do debate. Como fará isso? É preocupante constatar que reapareceram fantasmas como o da exacerbação irresponsável de conflitos sociais, o de chantagens parlamentares e até o da instabilidade política. Descartada a possibilidade de o Brasil desandar por causa dos primeiros desvarios da direita — as CPIs revelaram-se um autêntico 171, um estelionato político (a dos Correios obteve o sugestivo número 171 de assinaturas para a sua prorrogação) —, o governo Lula deve se preparar para golpes cada vez mais baixos. O confronto entre “tinistas” e “thembistas” no PT deveria convergir rapidamente para a formação de um projeto de união nacional contra o neoliberalismo.