Amélia, mulher comunista de verdade

Por Osvaldo Bertolino

Ninguém fazia a menor ideia de quem era aquele casal andando pelas ruas de Mossoró, Oeste do Rio Grande do Norte. Ele um cego e ela sua guia, uma mulher de barriga volumosa, aparentemente perto de dar à luz. Os disfarces escondiam o professor Raimundo Reginaldo da Rocha e sua filha, Amélia Gomes Reginaldo, de dezoito anos de idade, com a roupa com enchimento de pano, fingindo-se grávida. Fugiam das perseguições desencadeadas em Natal, onde participaram do Levante da Aliança Libertadora Nacional (ANL), deflagrado em 23 de novembro de 1935, de armas nas mãos.

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As ideias marxista-leninistas foram lançadas no Rio Grande do Norte por Raimundo, que iniciou a organização do Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB, em 1928. Em Mossoró, incentivou os irmãos a entrarem para o Partido, formando o grupo que ficou conhecido como irmãos Reginaldo. Ingressaram, além de Raimundo, Lauro Reginaldo – que ficaria conhecido como Bangu e seria importante personagem nos primeiros anos do Partido em âmbito nacional –, Jonas Reginaldo, Antônio Reginaldo e Glicério Reginaldo.

O Levante teve importante ponto de apoio na União Feminina Brasileira (UFB), à época organizada clandestinamente em várias cidades do país, que chegou a Natal também sob orientação do professor Raimundo, incumbência que teria recebido de representantes da ANL que foram ao Rio Grande do Norte tomar pulso da situação e incentivar a organização aliancista. Núcleos da UFB se espalharam pela cidade, organizados por homens e mulheres comunistas. Na residência de Raimundo, ocorreram as primeiras reuniões, quando foram debatidas as ideias da ANL. Conhecido por Tomé – seu nome clandestino –, ele foi auxiliado pela esposa, Luiza Gomes, e a filha, Amélia, com o nome clandestino de Clotilde.

Em panfleto com o título Convite, o diretório da União Feminina do Brasil, com “seção no Rio Grande do Norte”, convidou as excelentíssimas famílias “a tomarem parte na União Feminina, a única que luta por Pão, Terra e Liberdade”, o lema da Insurreição. Como todos os boletins, o Convite terminou com proclamações de “viva” a Luiz Carlos Prestes, à Aliança Nacional Libertadora, ao 21º Batalhão de Caçadores – o epicentro do Levante – “e ao povo em armas” – além, claro, à União Feminina.

Amélia assumiu a importante função de coordenadora da correspondência com as demais cidades insurretas – Rio de Janeiro e Recife –, falando em nome do Comitê Revolucionário, que havia se instalado na Vila Cincinato, sede do governo. De acordo com a denúncia do procurador criminal da República no Rio Grande do Norte, Carlos Gomes de Freitas, Amélia e outras mulheres invadiram o 21º Batalhão de Caçadores fardadas e portando armas pesadas. Como secretária do Comitê Popular Revolucionário, contribuiu na edição do jornal A Liberdade, o órgão oficial do Levante. Foi a única condenada, das mulheres que participaram do Levante, e recebeu pena de cinco anos de reclusão. Sua prisão foi decretada em 4 de setembro de 1936.

Além de Amélia, Leonila Felix – segundo Graciliano Ramos, no livro Memórias do cárcere, uma mulher branca, nova, bonita –, esposa de Epifânio Guilhermino, motorista de táxi responsável por reunir carros e caminhões para os revoltosos, se destacou por participar do Levante fardada e portando arma.

Raimundo Reginaldo e Amélia dirigiram-se à cidade de Picos, no Piauí. Havia, por parte do governador Rafael Fernandes, uma particular sede de vingança contra ele. Também originário de Mossoró, o governador tentara cooptá-lo, oferecendo-lhe a inclusão do seu nome numa chapa eleitoral pela qual seria eleito deputado estadual. Diante da recusa, foi transferido para lecionar na Casa de Detenção, em Natal, posto que lhe possibilitou a soltura dos presos para ajudar no Levante.

A fuga de Raimundo e Amélia começou antes do amanhecer de 27 de novembro de 1935. Com eles estava um garoto, chamado Eucário, que morava com a família, segundo Amélia em carta enviada ao tio Lauro, o Bangu. Passaram pela casa de um simpatizante do Partido, onde ficaram por certo tempo, ela escondida num quarto e eles no mato. Chegou a informação de que as residências de suspeitos estavam sendo revistadas e Amélia se juntou a Raimundo e Eucário. Alimentavam-se de frutas e do que o menino conseguia comprar.

Três meses depois, voltaram à casa do simpatizante, que comprou roupas e alimentos para que prosseguissem na fuga. Conseguiram tomar um trem com destino a Recife, viajando um distante do outro, até perceberem que estavam sendo observados por policiais. Numa parada, saltaram e se refugiaram num matagal. Decidiram caminhar na direção contrária, rumo a Natal, para despistar a polícia, onde foram recebidos por simpatizantes do Partido.

Raimundo foi trabalhar com um grupo de madeireiros. Comprou uma casa de palha e lá ficou até ser reconhecido. A polícia montou um cerco, mas, percebendo a movimentação estranha, ele fugiu pouco antes do ataque. Passou na casa onde estava Amélia e partiram, com destino a Juazeiro, no Ceará. Foi quando cruzaram Mossoró.

O menino Eucário possivelmente ficou em Natal. Seu destino não consta da carta de Amélia ao tio, mas em seu relato ele deixa de acompanhá-los. Com a polícia no encalço, que prendera e torturara parentes, chegaram a Juazeiro e fixaram residência. Raimundo montou uma “bodega” e Amélia foi morar na casa de um parente em Crato, cidade vizinha a Juazeiro.

A esposa, Luiza, ficara em Mossoró e Reginaldo decidiu visitá-la. Mesmo com toda cautela, a informação chegou à polícia, que divulgou a informação de que ele estaria por lá à frente de um grupo de bandidos, ameaçando assaltar fazendeiros. Mas foi e voltou sem incidente. Logo chegou a informação de que a caçada a eles se estendia por toda a região e decidiram rumar para o Piauí. E por lá ficaram.

Algum tempo depois, Raimundo faleceu de ataque cardíaco. Amélia relata que, quando ele começou a se sentir mal, pediu para ela cantar A Internacional Comunista, o hino de sua paixão, que relembrava suas lutas, seus ideais de redenção do povo brasileiro. “Notando que ele estava muito comovido, eu não quis cantar. Ele insistiu e eu não pude continuar me esquivando. Comecei a cantar. Aí as lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Eu parei de cantar e procurei mais uma vez reanimá-lo. Passado algum tempo, ele começou a passar mal. A agonia de que vinha se queixando, voltou forte, violenta”, detalha.

Amélia casou-se – passou a se chamar Amélia Nogueira Feitosa –, teve filhos e não se apartou da sua biblioteca, que começou a montar assim que se estabeleceu no Piauí. Renato Duarte, no livro Picos – os verdes anos cinquenta, diz que Amélia singularizava-se como pessoa simples e recatada, ao mesmo tempo culta. “Leitora ávida de livros e revistas, possuía uma das poucas bibliotecas particulares da cidade”, uma “mulher diferente dos padrões de comportamento feminino de então”.

O hábito da leitura vinha de quando fora líder estudantil na Escola Normal de Mossoró. Recebeu inicialmente o nome de Rosa de Luxemburgo e cresceu em meio às lutas populares. Entre suas leituras, estavam Victor Hugo, Euclides da Cunha, Jorge Amado, Karl Marx e Vladimir Lênin. À frente da União Feminina do Brasil, foi a principal protagonista do Levante. Amélia faleceu em 11 de novembro de 1978, de problemas causados por hipertensão e diabetes.

Adaptado do livro Rio Vermelho – raízes potiguares do Brasil democrático e progressista desde o Levante de 1935  

5 Reflexões sobre “Amélia, mulher comunista de verdade

  1. Viva as AMÉLIAS guerreiras!
    Conheci um pouco dessa história no livro Rio Vermelho, lançado em Niterói, no aniversário do PCdoB.

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