– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.

 

 

 

 

– A mulher gostosa e o show do estupro

Por Osvaldo Bertolino

A onda de indignação e protestos quando surge um caso de estupro é sempre justa. Mas é preciso ver o caso além dos muros da falsa moralidade da mídia, que fez o seu show à custa de tragédias como essas. Ela, a mídia, é a grande promotora do que, justamente, foi cunhado de “cultura do estupro”. Subtraindo o direito da sociedade de ser informada e formada com base em realidades concretas (não fictícias) e valores (verdadeiros, não hipócritas) por uma imprensa digna de ser chamada de imprensa como conquista da civilização, a mídia, somente por interesses econômicos, filtra os comportamentos sociais para forjar ideias imbecilizadas como regras, entre elas o machismo no sentido mais agressivo, a origem da “cultura do estupro”.

O que se vê na programação da televisão, sobretudo nos comerciais, é nada mais do que essa cultura, o sexo machista mostrado de forma subliminar de manhã, de tarde e de noite, 24 horas por dia. A mulher aparece sempre na posição de subjugada, de serviçal do homem, inclusive sexual. As formas mais acintosas de promoção dessa cultura são as propagandas das cervejas, nas quais, até hoje não entendo por que, tem sempre mulheres artificialmente “gostosas” servindo marmanjos folgados, boçais e vulgares. E, não raro, se utilizando de palavras e gestos torpes para se referir à “gostosa” que desfila para lá e para cá. Uma bobagem, uma cena deplorável, lamentável.

Esses são, a meu ver, exemplos dos mais explícitos. Mas há outros, igualmente abjetos, que mostram a mulher como objeto decorativo. Não vejo muito a programação da televisão, mas sei que é comum em programas de auditório ter aquele conjunto de mulheres seminuas rebolando e fazendo caras e bocas. E nos programas pretensamente humorísticos ter mulheres usadas, literalmente, como peças decorativas, como se fossem iguarias sexuais. Sem falar nos estádios de futebol, que de uns tempos para cá, antes e nos intervalos dos jogos, têm moças em trajes minúsculos dançando o que se considera dança sensual e fazendo coreografias com o único propósito de passar a ideia de que insinuam posições sexuais.

Racionalmente, qual o sentido disso tudo? O resultado é que nas rodas de amigos, nas ruas, praças e transporte coletivo a mulher é vista como a encarnação daquelas moças que rebolam na televisão e nos estádios. Com a diferença de que nessas ocasiões eles podem falar e, eventualmente, fazer o que gostariam de fazer com aquelas mulheres – e o fazem à força -, induzidos pela mensagem subliminar da lógica da exposição da mulher como objeto sexual, uma coisa deles por direito natural. Cria-se, dessa forma, a ideia generalizada de que a relação homem-mulher tem de ser assim naturalmente. E esses homens, moldados desde a infância (inclusive em casa, no convívio familiar, quando o homem não é incentivado a sequer lavar as suas cuecas), viram animais quando se deparam com uma mulher real que desperta seu desejo sexual. Essa é, a meu ver, a essência da cultura do estupro.

– Oitenta anos de Pelé: o rei brasileiro que veio de outro planeta

Ao completar 80 anos de idade neste 23 de outubro de 2020, o mais genial dos gênios da bola é lembrado como personagem que interpretou a essência do povo brasileiro.

Por Osvaldo BertolinoUma camisa 10 e sua eterna magia. Quando se fala do manto branco do Santos Futebol Clube e do amarelo da Seleção Brasileira, imediatamente vem à mente o maior atleta de todos os tempos – Edson Arantes do Nascimento, ou simplesmente Pelé, o homem que ajudou a parar uma guerra, que ganhou tudo o que um jogador poderia alcançar. Como diz José Macia, o Pepe – seu companheiro do ataque mágico também integrado por Mengálvio, Durval e Coutinho –, Pelé não é desse planeta.

Ano de 1962. Vestido com a camisa 10 do Santos, Pelé domina a bola durante o Mundial de Clubes de 62 na primeira partida contra o Benfica (Portugal), no estádio do Maracanã. Foto: Domício Pinheiro/AE

Pelé e seus companheiros espalharam o Brasil pelo mundo. Uma prova é a profusão de times com o nome Santos pelo planeta afora, um total de 39 equipes homônimas. Só no Brasil, além do clube do litoral paulista, existem nada menos do que dez xarás. Tem Santos em Macapá (AP), Alegrete (RS), Fortaleza (CE), Barra de São Francisco (ES), João Pessoa (PB), Toró (SP), São Borja (RS), São Martinho (SC), Taquara (RS) e Porto Velho (RO).

Recentemente, a imagem do menino Khamis Alghajar, de sete anos, chamou atenção nas redes sociais em todo o mundo esportivo. Ele postou fotos utilizando a camisa do Santos na Síria, sua terra natal. Khamis perdeu parte da perna direita durante a guerra em uma explosão que também destruiu a casa onde sua família vivia. “Na Síria, nós amamos o Brasil, o amor por esportes é muito brasileiro. O Santos vem nos divertindo muito e descobre vários grandes jogadores. Pelé é um super jogador. O Santos é muito famoso aqui. O prazer do futebol existe no Santos”, disse Khamis.

Pelé pertence a uma linhagem que representa a essência do povo brasileiro. Vem das tradições mais remotas dessa nação, que no futebol foi precedido por gênios como Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva (este, além do seu talento, vale registrar que participou do Partido Comunista do Brasil na campanha presidencial de 1945, apoiando o candidato dos comunistas, Yeddo Fiuzza). Ambos emergiram com seus talentos após a Revolução de 1930, que começou a mudar mais radicalmente a face elitista do futebol.

Imagem do jornal Tribuna Popular

As portas para o ingresso triunfal do povo brasileiro no futebol foram efetivamente abertas com a conquista da Copa do Mundo em 29 de junho de 1958. Pela primeira vez na história o mundo viu um time sul-americano levantando a taça em solo europeu. Foi quando o Brasil se tornou “insolente e vencedor”, segundo o dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, o primeiro a chamar Pelé de rei e um dos responsáveis pela popularização do futebol. À época ele escreveu, com razão, que não havia um só personagem da nossa literatura que sabia bater um mísero escanteio.

Alma de vira-lata

Segundo o escritor, antes de conquistar o primeiro título mundial o brasileiro tinha “alma de vira-lata”. Mas, com Pelé e Garrincha, o futebol do Brasil perderia sua “humildade deprimente” e ganharia em qualidade. Ninguém melhor do que Nelson Rodrigues soube louvar o futebol popular – segundo ele tão bonito como “uma paisagem de calendário”. Provocador, intitulou-se reacionário, espicaçou a “esquerda festiva”, os “padres de passeata” e as “freiras de minissaia”.

O escritor criou dezenas de expressões e personagens que ajudaram a formar a mitologia do futebol. Criou o “Sobrenatural de Almeida”, a “Grã-fina das narinas de cadáver”, o “Idiota da objetividade”, o “Narciso às avessas”, o “Príncipe etíope”, a “Lagartixa profissional”, o “Possesso”, o “Quadrúpede de vinte e oito patas” e tantos outros. E o magistral “Sublime crioulo”. “Mantos invisíveis pendem do peito do rei Pelé”, dizia.

Nelson Rodrigues vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando o garoto começava a brilhar no Santos. Em março de 1958, três meses antes da Copa, ele publicou a crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a conquista do título porque agora, com o rei que dribla os adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os “inimigos tremerão”. Antes, na Copa de 1950, o Brasil passou por um trauma definido por Nelson Rodrigues como uma “catástrofe nacional”. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”, escreveu.

Em sua clássica crônica sobre a famosa partida entre Santos e Milan pelo mundial interclubes de 1963, Nelson Rodrigues escreveu: “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico.” À alusão a teoria clássica do drama, estabelecida por Aristóteles, Nelson Rodrigues agregou que a vitória do Santos valeu pela vitória do homem brasileiro.

A ascensão do mulato

Se o futebol é “religião laica do povo”, na bela definição do historiador Eric Hobsbawn, Pelé é a sua divindade. Foi o mestre dos mestres em jogadas mágicas, quando o futebol encontra a arte; aqueles lances que ninguém sabe explicar como acontecem, que exigem uma reflexão a respeito, um esforço qualquer de fruição, de tradução do que é rarefeito, de compreensão daquilo que não é imediato, berrante, visível. O rei santista passava por cima dos zagueiros como Átila, o huno, que cavalgava por sobre os povos que conquistava.

O time bi-mundial

Gilberto Freyre, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo dia 3 de setembro de 1977 intitulado “A propósito de Pelé”, comparou o rei aos escritores Machado de Assis e Euclides da Cunha, ao compositor Heitor Villa-Lobos e ao arquiteto Oscar Niemeyer. O que une todos eles? A genialidade, respondeu. Em Sobrados e Mucambos, publicado em 1936, ele já mencionara “a ascensão do mulato não só mais claro como mais escuro entre os atletas, os nadadores, os jogadores de futebol, que são hoje, no Brasil, quase todos mestiços”. No fundo, ele estava dizendo que o futebol passava por um processo de abrasileiramento.

Gabriel Cohn, professor de sociologia do departamento de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), diz que sociólogo no Brasil que não tiver os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas não entenderá este país. Digo mais: quem não conhece a trajetória de personagens como Pelé também pouco sabe sobre a alma do povo brasileiro.

O homem do Brasil

O mesmo pode ser dito sobre outro gênio da sua contemporaneidade, Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, ou simplesmente Garrincha. Quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962, com Garrincha dando show sem o companheiro genial, que contundiu-se no início da Copa, Nelson Rodrigues, descreveu o seu significado magistralmente.

“É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, esta todo o brasileiro, esta todo o Brasil. (…) O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios”, escreveu.

O auge de Pelé seria na Copa do Mundo de 1970, com o time montado por João Saldanha – as feras do Saldanha – e comandado por Mário Jorge Lobo Zagallo, quando o Brasil conquistou o tri. Perseguido pela ditadura militar por sua militância comunista, Saldanha acabou demitido pela então Confederação Brasileira dos Desportos (CBD), hoje Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Nelson Rodrigues descreveu bem o acontecimento: “Estranho mundo em que não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar, sem pisar nas víboras inumeráveis. (…) Já sabemos que a competência é amargamente antipatizada no futebol brasileiro. Claro, e repito: a competência tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveitadores vorazes.”

– O avanço fascista e o combate do nosso tempo 

Por Roberto Amaral

“(…) Nossas ações são voluntárias, mas nem sempre são escolhas” – Jodi Dean (Camaradas. Boitempo Editorial)

O espectro que ronda o mundo, desrespeitando diversidades de desenvolvimento econômico, é a doença do capitalismo maduro. Mais do que uma disfunção, o fascismo é receita para enfrentar as crises impostas pela sua incapacidade de solver a questão social, que mais se agrava quanto mais cresce a expansão imperialista e os duelos hegemônicos.

O fascismo é um movimento de manipulação das massas, uma construção ideológica formulada de cima para baixo, sempre a serviço do império do capital. Nutre-se na violência que incita. É, de igual modo, a semente da guerra, a solução que conhece para as crises de hegemonia. Uma necessidade do sistema que se torna clara hoje, tanto quanto foi a alternativa única nos idos de 1939.

No século passado a mobilização ideológica da extrema-direita era alimentada pela difusão do medo ao comunismo, e os receios nacionais explorados em face do expansionismo da URSS. Encontrou campo arado na Itália e na Alemanha, mas igualmente em Portugal (salazarismo), na Espanha (franquismo) e no Japão de Hiroito (controlado pelo militarismo, e afoito em uma política guerreira e de expansão territorial). Foi-lhe fácil mobilizar o empresariado para o financiamento do assalto ao poder e o financiamento dos aparelhos de repressão e, na sequência, para a sustentação da guerra, da qual o grande capital e a indústria pesada saíram incólumes e mais poderosos.

A crise social na Itália abriu  a rota da mobilização das massas, que deram as costas aos comunistas, aos socialistas e aos democratas. Não foi distinto  na Alemanha, onde recebeu o apoio dos pequenos comerciantes e da grande burguesia e dos militares. Não lhe faltou mesmo o apoio da socialdemocracia alemã que viu no nazismo o dique que não conseguira construir contra a ascensão dos comunistas, que elegera como seus inimigos prioritários, assim como no Brasil designaria Lula como o inimigo a ser abatido.

Mussolini e Hitler (nada obstante seus inegáveis méritos como agitadores sociais) foram, mais do que tudo, sempre ao serviço do grande capital, instrumentos para a necessária mobilização das massas. Na Itália, as milícias fascistas, civis, assumiram a repressão. Na Alemanha nazista se multiplicavam os grupos civis e paramilitares. Caracterizavam-se pela brutalidade contra os que identificavam como inimigos do nazismo, judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc. Eram os “Camisas pardas”. Na Itália eram os  “Camisas negras”, ou Camicie nere – símbolo, aliás, atualizado pelo juiz neofascista maringaense Sergio Moro, no auge do seu romance com a grande imprensa.

A sociedade alemã, como a italiana, estava impregnada da violência da ideologia fascista. Denunciavam-se vizinhos, enquanto multidões ovacionavam o Führer em seus comícios, paradas e marchas. O povo alemão negou até a última hora o holocausto e os campos de concentração, e lutou até o derradeiro combatente em Berlim, numa alucinada resistência ao Exército Vermelho.

O fascismo, tanto quanto o nazismo, atendia a necessidades do sistema, como atende agora, em sua versão contemporânea, tosca como a matriz, à marcha da extrema-direita, que avança de forma expressiva pela quinta vez consecutiva nas eleições do Parlamento Europeu. E, entre nós, jamais esteve tão forte. Controla as duas casas legislativas e os governos dos principais estados da Federação, os mais ricos e os mais populosos.  Este encontro não resulta de acaso.

O fato de os EUA estarem presentemente divididos entre a direita esclerosada de Biden e a ultradireita belicosa de Trump é um indicador do nível de deterioração política da sociedade norte-americana, sem alternativa diante dos desafios que açoitam o imperialismo, em casa (onde crescem as desigualdades sociais) e no mundo: o fim do unilateralismo associado à crise de hegemonia.

É um artifício reacionário separar o nazismo da alma alemã: Hitler foi o depositário do imperialismo germânico. À aventura do Terceiro Reich, se não faltou o apoio, aberto ou silencioso, da população, foi ostensivo o financiamento da grande indústria, que, no pós-guerra,  permaneceu de pé, atuando em todo o mundo, inclusive no Brasil. O genocida Benjamin Netanyahu, há 16 anos no poder, avançando pela direta, representa o consenso sionista, em Israel e no mundo. É um agente da guerra, a serviço do imperialismo, que o nutre.

Que os sustos de 2022 nos ajudem a ver a sociedade que produziu o bolsonarismo.

A França – que, não faz muito, foi governada pelo Partido Socialista – está politicamente reduzida a dois blocos políticos não totalmente antagônicos: o lepenismo de extrema-direita e… “o resto” (como me diz o professor Marco Antônio Dias), a saber, um amontoado contingente, disforme e desconexo, reunindo os antigos comunistas e socialistas  e Emmanuel Macron, o presidente de direta, a quem as circunstâncias delegaram  o papel de líder da  resistência ao fascismo. Mas os conservadores, herdeiros do gaullismo, já se associaram aos fascistas na disputa das eleições legislativas francesas, convocadas para 30 de junho. La France Insoumise, a promessa que brotou no pleito presidencial com Mélenchon, obteve um pouco menos de 10% dos votos para o Parlamento Europeu, enquanto a extrema-direita de Mme. Le Pen consagrou-se com 30% do voto francês. A Itália, do glorioso PCI, é, desde 2022 governada pela líder fascista Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia. Na “joia da coroa” europeia, França e Alemanha, aliadas dos EUA na beligerância da OTAN, a esquerda e a social-democracia foram surradas no último pleito. O único respiro veio dos países nórdicos.

Na América do Sul três democracias (Brasil, Colômbia e Chile) ainda resistem, com as dificuldades sabidas. Nossa tragédia, porém, é a mais significativa, porque transitamos de cerca de vinte anos de conquistas sociais e democráticas para o avanço do projeto protofascista, construído a partir do golpe de 2016 e consolidado com as eleições de 2018, quando, pela primeira vez na história republicana, um quadro de extrema-direita é alçado à presidência da república pelo voto popular, em processo eleitoral que não pode ser questionado. A única boa notícia ao norte do equador vem do México, com a eleição de Claudia Sheinbaum. Mas o México  permanece “tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos.”

O presente brasileiro guarda relações com a falência das organizações originárias do velho PCB. Destaco a crise dos partidos populares, conquistados pelo eleitoralismo conservador, donde a renúncia coletiva à missão doutrinária da esquerda. O ‘chão de fábrica’ foi abandonado e muitos militantes e líderes sindicais foram conquistados pela burocracia, sindical ou pública, a que se somou a crise do trabalho (fenômeno global, agravado entre nós pela desindustrialização), erodindo o poder político dos trabalhadores e, por consequência, a potência de seus partidos políticos, comunistas, socialistas e trabalhistas.

Não ousamos canalizar para a política o desespero dos muito pobres, e hoje assistimos, desolados, ao deslocamento de trabalhadores e grupos marginalizados da sociedade capitalista para a extrema-direita, cujo governo agravará sua miséria e restringirá ainda mais seus direitos.
Não há acaso na história.

Os governos da social-democracia paulista e os governos de centro-esquerda do PT mostraram-se impotentes para promover as reformas que (ainda dentro do capitalismo periférico e dependente, que é o nosso) poderiam enfrentar o caráter concentrador de renda e riqueza da economia brasileira. Esquecemos que, mais do que uma vontade, vencer (isto é, mudar) era nosso dever e que, para mudar, precisávamos nos organizar e lutar. Organizar as massas, elevar seu nível político. Ao renunciar ao proselitismo e à denúncia da sociedade de classes, nos transformamos em uma esquerda desprovida de política e deixamos as massas à mercê do neopentecostalismo comercial e do discurso dos meios de comunicação da classe dominante. Movidos pelo eleitoralismo, elevado à categoria de fim em si mesmo, deixamos de condenar o capitalismo e abdicamos do proselitismo socialista.

As táticas do curto prazo eleitoral, quando as bandeiras fundamentais do pensamento socialista foram arriadas, cobram preço político muito alto: o retrocesso que se mede pelo avanço do pensamento da extrema-direita, que nos confronta. O termo revolução foi parar num Index que ninguém sabe quem prescreveu, e, mercê de uma trapaça histórica, nos transformamos em defensores da ordem – nós, os que já fomos denunciados como “subversivos”, e apostávamos na propaganda política e na agitação ideológica. De um certo tempo para cá, passamos a nos identificar com a institucionalidade, exatamente quando a nova direita se fantasia de combatente do sistema. Os sindicatos estão menores, menos representativos e mais fracos. Nossos partidos, na sua maioria, estão dispersos e desorganizados. O PT foi condenado à condição de  partido da ordem.

A esquerda, no geral,  ao ler o determinismo histórico como se fôra lição de um fatalismo religioso, renunciou ao fazer revolucionário, e quedou-se na esperança de que a história terminasse por realizar nossas utopias (afinal, estamos “do lado certo” e merecemos ser recompensados pelos fados). Assim, dava realidade aos nossos sonhos. Até lá, fizéssemos o que as condições objetivas da política prática indicavam. Nos misturámos com os conservadores e nos confundimos como agentes daquilo que Gramsci chamava de “a pequena política”. À noite todos os gatos são pardos.

Concluídas as eleições de 2022, empossado Lula nas condições conhecidas, vencido um ano e meio de governo, a direita neofascista permanece organizada, política e militarmente, com projeto concreto de tomada do poder, nos termos que as circunstâncias ensejarem. Conduz ideologicamente o Congresso, comanda em todos os palcos a oposição ferrenha ao governo Lula, e não apenas bloqueia todo avanço civilizatório, mas desconstrói sem dificuldade as conquistas sociais e políticas logradas pelo movimento social nas últimas décadas. Sua capacidade de mobilização das massas foi posta em evidência mais de uma vez, nas ruas e no processo eleitoral. Anuncia vínculos estreitos com a extrema-direita estadunidense. Em suas manifestações desfraldam bandeiras dos EUA e de Israel ao lado da suástica nazista.

É, a rigor, o único projeto de poder em movimento, contrastando com a anomia geral da esquerda e a insegurança política do nosso governo, que, condenado a prioritariamente lutar pela simples sobrevivência, ainda não encontrou forças para pôr em campo um programa político capaz de antepor-se, nas eleições e para além delas, à ameaça fascista.

Neste quadro, é evidente que cabe às forças progressistas de um modo geral, e não só às esquerdas e seus militantes, a defesa do governo, pois sua eventual derrocada significaria a abertura de todas as comportas para o intento fascista, que mantém sua aliança com o grande capital e setores majoritários das forças amadas. E conserva, ainda, suas bases populares em nível jamais conhecido em nosso país. Mas a imperiosa defesa de nosso governo deve ser vista nos termos do grande projeto de construção de uma nova sociedade, atenta ao desenvolvimento soberano e ao atendimento das necessidades básicas de nosso povo.

O ser esquerda se justifica na luta por um futuro emancipatório da humanidade. Sem ilusões, e distante do voluntarismo, terá de combater o Estado inventado para sustentar o capitalismo. Mirar o horizonte procurando ver para além da risca do horizonte, e jamais se contentar com a política do aqui e agora.

Precisamos nos preparar para uma luta diferente, revendo táticas e dogmas.

***

Adeus a Conceição – “A classe operária preferiu ir ao paraíso a fazer a revolução. De preferência se for em um paraíso consumista. […] Não há evidência de revolução operária depois do século XIX. […] O neoliberalismo apodreceu a ‘opinião pública’ e, ao apodrecê-la, produziu o que há de pior em matéria de liderança de direta. E produziu uma ideologia de classe-média que –Trotsky tinha razão – é a poeira da humanidade.” (Entrevista de Maria da Conceição Tavares à Margem Esquerda, nº 77, 1º semestre de 2008)

Genuflexão na Casa do Povo – Numa correlação de forças absolutamente desfavorável, a centro-esquerda acuada – aparentemente incapaz de superar o trauma de 2016 – houve por bem votar massivamente, nos últimos dias, visando ampliar o poder do capo da Câmara para punir seus adversários (após menos de 24 horas de debate). Há que louvar, sem dúvida, o esforço dos que se empenharam em reduzir os danos do surto autoritário de Don Lira, preservando a constitucionalidade. Mas, sobretudo, aplaudir as deputadas e deputados que se recusaram a chancelar a truculência do coronel alagoano.

As mãos sujas – Nada justifica que o Brasil siga comprando armas e contratando serviços de segurança do protetorado de Israel, ajudando assim a financiar o genocídio a que o mundo assiste inerte e  cumpliciado. Cabe ao presidente Lula dar concretude ao discurso – corajoso e imprescindível – que faz na arena internacional. Saudades do Tribunal Russell dos crimes de guerra cometidos pelos EUA no Vietnã.

Com a colaboração de Pedro Amaral

– A mãe de Lula e o tio da mídia

Por Osvaldo Bertolino

As recorrentes citações pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do exemplo da mãe, dona Lindu, como fez ele ao falar da pressão da direita para taxar os pobres e ampliar os ganhos dos ricos de todas as escalas, vão além do sentido didático. Tem o componente social. Dona Lindu era a ministra da Fazenda da casa, a administradora dos envelopes de pagamentos dos filhos. Agia com rigor, destinando os poucos recursos para cada necessidade da família. Dona Lindu, de acordo com Lula, é o seu exemplo para compreender como funciona as finanças do Estado. Elas têm mais complexidades, mas, na essência, é isso mesmo.

A mídia deu grande destaque a essa máxima do presidente em entrevista após a cúpula do G7 na Itália, quando ele falou da pressão para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adote “corte de gastos”. Lula disse que está aberto a analisar propostas, mas não fará “ajustes fiscais” à custa dos pobres. E lembrou que a taxa de juros acima de 10% “num país com inflação de 4%” não faz sentido. “Fazem uma festa com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) em São Paulo. Novamente, os que foram na festa devem estar ganhando dinheiro com a taxa de juros”, agulhou.

Epicentro político 

A “festa” foi uma homenagem ao presidente do Banco Central na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que posteriormente participou de um jantar oferecido pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas. Um ato político que vai além de reunir os que ganham dinheiro com a taxa de juros. Foi uma tentativa de sinalizar aos interessados no “ajuste fiscal” que aquele grupo da direita poderia abrir caminho para a organização política da oposição ao governo Lula. Sobretudo após o espocar de fogos da mídia para saudar o recente “ajuste fiscal” de Tarcísio.

A manobra não surtiu efeito e chegou a ser criticada pela própria mídia, que não gostou da exposição política de Roberto Campos Neto. A questão de fundo é a ligação de Tarcísio com Bolsonaro, um estorvo para eventuais pretensões à sucessão de Lula. Além da base social e política bolsonarista do governador, pesam as limitações organizativas em âmbito nacional, pressuposto básico para um projeto da direita capaz de se apresentar como viável politicamente para disputar a sucessão presidencial. Tarcísio teria de formar outro epicentro político, completamente divorciado de Bolsonaro, personagem desgastado pelos escândalos e desastres de seu governo.

Ataques sistemáticos

A direita mira em outra direção, a ideia de que governo Lula, que deveria ter trilhado o caminho do “ajuste fiscal” assim que saiu o resultado das urnas, já se mostrou inviável por ser um gastador inconsequente. E por não aceitar a imposição de que o presidente foi eleito não pelas ideias de esquerda, mas pelo projeto da direita contido na “frente ampla”. Trata-se de uma empulhação, presente diuturnamente na mídia, falsificação grosseira do movimento que se formou em 2022 para derrotar Bolsonaro. Era óbvio que Lula não adotaria a agenda da direita, embora soubesse das limitações conjunturais, sobretudo pela composição do Congresso Nacional.

Com o tempo, a diferença se transformou em ataques sistemáticos a Lula. A mídia adotou a linha de fazer oposição frontal, muitas vezes com apologia explícita ao golpismo. O “ajuste fiscal” passou a ser uma imposição implacável, espécie de tudo ou nada. Acionaram o sistema de projeção do mercado financeiro, chamado de Relatório Focus – segundo o Banco Central, as “expectativas” de mercado coletadas regularmente, na verdade manipulações de projeções de inflação e juros por agenciadores da especulação financeira –, para apresentar um futuro sombrio, o descontrole da dívida pública pela elevação da taxa de juros para “acalmar os investidores”. Surgiu até o fantasma da inflação alta pela demanda crescente com empregos, rendas, reajuste do salário-mínimo e outros investimentos públicos.

Tríade autocrática

Por trás de tudo está a política monetária, o controle da economia pela gestão do Banco Central dito “independente”, que administra uma “meta fiscal” draconiana, o chamado superávit primário, enormes recursos orçamentários abocanhados pelo mercado financeiro por decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre a taxa de juros. É um jogo bruto contra o povo e o país, sem que o governo ou qualquer outra instância de poder possam agir. A tríade Banco Central “independente”, Relatório Focus e Copom forma um poder paralelo, uma autocracia poderosa e inescrupulosa.

A mídia é a grande porta-voz desse autoritarismo. Em nome do “déficit” orçamentário, apresentado como o Armagedon, anunciam de forma peremptória que é preciso “cortar gastos”, mirando questões como o reajuste da aposentadoria, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência, além das verbas para a Saúde e a Educação. Tudo isso martelado em regime de monopólio midiático, sem espaço para o debate e sem a visão do conjunto da economia e da administração da política econômica.

Árvore mágica de dinheiro

O livro O mito do déficit, de Stephanie Kelton, professora de Economia e Políticas Públicas, explica bem a falácia do “ajuste fiscal”. Ela parte de uma citação da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 1983, segundo a qual o Estado “não tem fonte de dinheiro que não o dinheiro que as pessoas ganham”. “Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo se tomar emprestado as suas economias ou se tributá-lo ainda mais”, completou. Segundo Thatcher, “não existe dinheiro público”, mas “dinheiro do contribuinte”.

O mesmo discurso seria repetido mais adiante pela também primeira-ministra Theresa May. O governo não possui uma “árvore mágica de dinheiro”, disse ela. Para bancar investimentos ou políticas públicas o governo precisa pegar mais “do nosso dinheiro”. É a ideia de que se o governo gasta mais do que arrecada em impostos precisa emprestar recursos do “mercado”. Na verdade, taxar e fazer empréstimos vêm primeiro, explica a autora. É o modo convencional de pensar pelo que ela chama de (TE)G: Tributos e Empréstimos precedem os Gastos.

O resumo, de acordo com o que Stephanie Kelton denomina Teoria Monetária Moderna (TMM), é que existem o emissor de moedas (o Estado) e o usuário. Num sistema de controle autocrático da política monetária, o principal usuário é o mercado financeiro, destinatário de grandes somas de dinheiro – o mercado de títulos públicos – que empresta ao governo e cobra o juro determinado pelo Banco Central “independente”. Os demais destinatários, os serviços e investimentos públicos, ficam na dependência dos interesses do mercado financeiro para definir como gastar. Cumpre-se, assim, o ciclo da (TE)G.

Falsa imagem do Tio Sam

Stephanie Kelton relata projeções de aumento da dívida pública dos Estados Unidos de dezesseis trilhões de dólares em 2019 para vinte e oito trilhões em 2029. Enquanto isso, a repetição sistemática de que o governo não tem dinheiro se intensifica. Ela relata que a citação se espalhou pelo país, com a imagem do Tio Sam de bolsos das calças para fora, do avesso. “Muitas pessoas passaram a acreditar que nosso governo está totalmente falido, que seu orçamento não dá conta dos assuntos mais importantes da nossa atualidade.”

Essa falsa imagem do Tio Sam sem dinheiro é a ideia que a mídia tenta cravar como verdade absoluta no Brasil. O controle da economia por essa política monetária autoritária confronta o projeto de governo eleito em 2022 e vai se transformando em dilema. Há uma evidente tentativa de cooptar Haddad, amplificando declarações da ministra do Planejamento, Simone Tebet, numa clara manobra para isolar Lula e criar crises políticas para desestabilizar o governo, inviabilizando a aplicação do seu programa.

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– A UNE, a mídia torpe e o processo civilizatório.

O coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas contra a União Nacional dos Estudantes (UNE) é mais um exemplo de que falta à mídia elementos básicos ao exercício do jornalismo — como caráter e espírito democrático, valores que deveriam ser preservados.

Chamo de caráter a capacidade de manter princípios, independente da situação e do momento. O contrário disso é o casuísmo — quando o sujeito troca de premissas, de opinião e de ponto-de-vista ao sabor daquilo que está acontecendo ao seu redor naquele instante. Casuísmo, como está claro, é um dos aspectos da falta de caráter.

O casuísmo aqui, como no dito popular, é bater na canga para o boi andar. Ou seja: batem na UNE para atingir o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva — assim ocorre, vire e mexe, também com o MST, com o movimento sindical e com outras organizações de origem popular. É a campanha da direita para criminalizar os movimentos sociais. Outro valor fundamental da civilização é a democracia. Esse deveria ser um alicerce inegociável na construção de cada um de nós. No entanto, é de assustar o quanto a democracia anda frágil no convívio jornalístico da mídia. Estamos vendo isso ao vivo e em cores nessa cruzada contra a entidade máxima dos estudantes.

Falta para essa gente que comanda a mídia civilidade. Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra abusos como estes. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a “liberdade de imprensa” não passa de balela.

Conclusão inescapável

Essa civilidade poderia ser fruto de uma sociedade mais madura do que a nossa, em que a democracia seria de fato um valor essencial, cravado mais fundo na nossa alma. Seria fruto de uma sociedade com a consciência de que existem regras mínimas de convivência que se não forem levadas a sério acabam levando ao caos social e à guerra entre concidadãos. Numa palavra: falta a essa gente levar a sério a serventia da democracia. Democracia é, acima de tudo, reconhecer os direitos do outro. No meio jornalístico da mídia, costuma-se pensar em democracia como garantia para seus abusos. Podendo, ele cassa os direitos dos seus adversários — como ocorre de modo flagrante nesse caso.

O que está se passando com a UNE é ignóbil, abjeto. Há caso de ultraje pessoal. O Blog do Noblat, por exemplo, publicou que o presidente eleito da entidade, Augusto Chagas, tem “cara de néscio, jeito de néscio e pensa como néscio”. Ele é descrito como um mentecapto, “cevado pelo PCdoB” para “repetir velhos clichês” e “defender posições ditadas por seu partido”. É um jornalismo asqueroso, indigno e vil. “Quer dizer: a UNE vai de Dilma Rousseff. Nada mais natural”, diz o post, revelando o motivo politiqueiro para tamanha torpeza. Essa gente tem o hábito de julgar os outros pelos seus defeitos. Sórdidos, brandem patrocínios de entidades estatais aos eventos dos estudantes para agredir a lógica — como se eles não recebessem quantias infinitamente superiores para difundir suas torpezas.

Filme Twister

O controle da liberdade de imprensa no Brasil pelo poder econômico não será removido enquanto este modelo de jornalismo alicerçado pelo golpe militar de 1964 — promovido pelos grupos privados para assaltar o Estado e moldá-lo à sua imagem e semelhança — não for demolido. Os grupos que controlam com poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil pretendem controlar, ao mesmo tempo, as verbas publicitárias, o trabalho dos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicação, a produção cultural, as informações prestadas por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal dos cidadãos e as ações do Ministério Público. A conclusão é inescapável: os grupos que controlam a mídia brasileira fogem da democracia como o Diabo da água benta.

O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente. Afinal, a julgar pelo noticiário vivemos uma sucessão infernal de crises: elas mal começam a pipocar, em pouco tempo desaparecem, se esfumaçam como aqueles tufões que aparecem no filme Twister.

Emoções e realidade

É uma tentativa desesperada de subverter os resultados das pesquisas que dão altos índices de popularidade ao governo Lula. O Brasil conhece bem, e há muitos anos, a situação de ter dentro de si diversos países diferentes convivendo ao mesmo tempo. No presente momento, a diferença que mais chama a atenção é a existente entre o Brasil da calamidade e o Brasil do progresso. O primeiro, como dizem os mestres-de-cerimônia ao introduzir algum personagem que todo mundo conhece, dispensa apresentações: é o Brasil da elite em particular e da mídia, visível todo dia e a qualquer hora num noticiário político que cada vez mais se parece com os programas de palhaçadas.

O segundo Brasil é o país do trabalho, do mérito e do progresso — tão real, tão visível e tão vigoroso em suas virtudes quanto o primeiro é vigoroso em seus vícios. A questão mais relevante do momento, do ponto de vista prático, é determinar até onde o país da mídia pode piorar — e os fatos mostram que ele tem tudo para continuar piorando — sem que isso torne inviável o país do avanço. É muito fácil, diante da degeneração crescente da mídia, concluir que o filme já terminou e o bandido acabou ganhando.

Mais difícil, porque dá mais trabalho, é separar as emoções das realidades — e quando se faz essa tarefa com aplicação e cabeça fria o que começa a tomar forma é a possibilidade de que esteja ocorrendo exatamente o contrário. A direita continua perdendo terreno. Como diria Lula, o que se pode dizer com certeza, hoje, como nunca antes na história deste país, é que encontram-se em operação forças positivas que jamais haviam se manifestado de forma simultânea. O problema é que isso faz aflorar o que há de pior na mentalidade da direita. Só mesmo golpes baixos para reverter essa situação. É nisso que os golpistas apostam.

Um incêndio por dia

Seria ótimo se este processo pudesse evoluir a ponto de passar o Brasil a limpo realmente — de alto a baixo, de forma justa, ética, democrática e séria. Mas no jogo político da direita, infelizmente, a torpeza é moeda corrente. O problema é que o país já está em campanha eleitoral e a mídia tem o seu programa de governo. Oportunistas de diferentes matizes e chacais enraivecidos são acionados diuturnamente para difundi-lo. Nessa selva, nunca se sabe onde está o inocente útil e onde está o vilão oportunista. O jogo é pesado.

Será preciso muita estabilidade emocional para enfrentar o que vem por aí. As cidadelas da direita já deixam antever sua baixa tolerância às contrariedades. Dá para imaginar como o campo conservador reagirá diante da realidade hostil ao seu projeto de governo daqui para frente. Vamos enfrentar um incêndio por dia. Eles ignorarão o povo, com o qual não conseguem dialogar, e o próprio bom senso para impor o seu coquetel anti-Lula. O ataque cerrado à UNE faz parte desse jogo sujo da direita.

– Lula, a BIP e o juiz turbinado.

Submetido a provocações destemperadas do juiz Marco Aurélio Mello, o presidente Luis Inácio Lula da Silva reagiu à altura. Apesar da aspereza, Lula manteve a coerência. Foi um bom teste. Com a aproximação das eleições de 2008 — uma espécie de primeir

Autocontrole e sangue frio constituem requisitos essenciais para quem tem por missão comandar o Brasil nas circunstâncias impostas ao atual governo. Essas duas qualidades o presidente Luis Inácio da Silva mostrou claramente possuir ao longo das sucessivas crises políticas lançadas contra ele. Mas na semana passada Lula foi obrigado a bater duro para deixar bem demarcado o que é opinião juridica e o que é opinião política no embate que se trava atualmente entre situação e oposição no país.

O presidente respondeu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que teria criticado o programa ”Territórios da Cidadania”. ”Seria bom se o Poder Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas dele, o Legislativo apenas nas coisas dele e o Executivo apenas nas coisas dele. Nós iríamos criar a harmonia estabelecida na Constituição”, afirmou o presidente da República. O ministro é um notório militante do que já foi chamado pelo acrônimo de BIP (Busca Insaciável do Problema)

Líder da UDN no Supremo

Mello, tido por um dos seus pares como “líder da UDN” no Supremo, é sabidamente um adorador de holofotes, câmaras e microfones. E a mídia brasileira, em franca campanha eleitoral contra o campo governista, gosta de pedir suas opiniões sobre todos os assuntos. Assim, ele comenta desde a seleção brasileira de futebol até detalhes culinários. No meio, invariavelmente há os comentários políticos polêmicos. O ministro é o típico homem da eficácia, aquele que coloca os resultados sobre os princípios — um legítimo adepto da BIP.

A revista CartaCapital do dia 15 de fevereiro de 2008 traçou um perfil de sua personalidade e posições políticas numa alentada reportagem de sete páginas intitulada ”Toga Turbinada”. CartaCapital revela que o ministro possui uma mansão em Brasília onde cria cachorros, galinhas e até um cavalo num bem cuidado jardim do terreno de 12 mil metros quadrados. Segundo a revista, o primeiro ser que se avista quando um dos seguranças da casa ergue o portão de madeira é um pavão.

Algumas de suas decisões, no entanto, parecem extraoplar o limite da autopromoção. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando ele concedeu habeas corpus ao banqueiro Salvatore Cacciola, em 2000, que aproveitou a deixa para se refugiar na Itália. CartaCapital revela que a decisão sobre Cacciola não agradou ao então presidente da Casa, Carlos Velloso — Mello havia concedido o habeas corpus na ausência de Velloso, que revogou a liminar imediatamente depois de voltar, mas o banqueiro havia fugido.

Fidelidade partidária

A revista lembra que Mello e Cacciola foram vizinhos em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. CartaCapital pergunta se seu salário de ministro dá para tanto — uma casa enorme em Brasília e um apartamento no Rio de Janeiro —, ele responde que a herança recebida do pai deu uma ”ajudazinha”.

A revista também revela que Mello provocou duras críticas do Congresso Naconal ao decidir, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sobre a questão da fidelidade partidária. Segundo CartaCapital, um dos que se indignaram com a “ingerência inadequada” dos tribunais sobre o Parlamento foi o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia. Irônico, Chinaglia teria feito a seguinte comparação: “Quer dizer que se o Judiciário não faz Justiça os parlamentares também podem começar a fazê-la?”

CartaCapital opina que hoje há uma maior afinidade entre as posições do ministro e da mídia em geral — fato que explica porque desapareceu ”da narrativa jornalística” o tom jocoso com que era tratado por ter sido indicado por um parente (o ex-presidente Fernando Collor de Mello) mais tarde defenestrado do poder por acusações de corrupção. “Escuta, sou mercadoria de vocês. Será que gostariam de ter um juiz do Supremo encastelado, numa redoma? Não sou um semideus, sou um homem. Como homem público, devo contas à sociedade. E a forma de meu pensamento chegar a ela é via imprensa”, disse ele à revista.

Mello não fala só por ele

Se não é um semideus, comporta-se como tal. No auge da histeria sobre a denúncia acatada pelo SFT contra os acusados de envolvimento com o ”mensalão”, quando Mello estava deitando falação em praticamente todos os grandes meios de comunicação do país, na condição de colunista do Vermelho lhe fiz um pedido de entrevista por meio do seu assessor de imprensa, Renato Parente. Ele pediu uma prévia das perguntas e até hoje não as respondeu. Cobrado várias vezes, Parente sempre respondeu que Mello estava ”com a agenda lotada”.

Possivelmente ele sabia que no Vermelho não haveria a repercussão sobre o que se chama, em situações polêmicas como as que ministro adora, o ”merchandising das divergências” — comum nos veículos de comunicação da ”grande imprensa”. Isso leva à conclusão de que para ele o que importa ao conceder uma entrevista, unicamente, é se promover, marquetear e vender a divergência.

Há lógica nisso. Mello não fala só por ele. Se as diferenças entre a realidade e as suas versões forem minimizadas e desaparecerem, o que vai sobrar para quem tem como propósito fazer oposição? Num sentido institucional mais elevado, é certo que o Judiciário tem um papel político e os juízes não gostam de se ver como simples ”aplicadores da lei”. Mas onde começa e onde termina esse papel político?

Teste básico de integridade

Mello está claramente pisando em searas alheias com o único intuito de fazer política. Está na hora de o Judiciário questionar esse tipo de comportamento. Deputado, ator de TV ou jogador de futebol podem falar à vontade sobre o que bem entender. Um juiz, não. Como diz a clássica norma ética, ele só deve falar nos autos, ao decidir as questões que lhe são submetidas como guardião que é das leis e dos direitos dos cidadãos. O problema é ainda maior quando esta sede de autopromoção manifestada pelo ministro encontra pela frente uma mídia ávida por factóides contra o governo. Aí vê-se nitidamente a histeria denuncista.

A denúncia por si só — sem a compreensão mais ampla do problema, sem a definição mais clara dos objetivos — não leva a nenhuma conclusão consistente. Mas estamos diante de mais um daqueles fatos que conferem ao processo de denúncia um verniz de moralismo que obscurece uma verdade — ele é movido por uma elite que não foi eleita em 2002 e 2006 e que não admite perder novamente em 2010.

Ninguém elegeu Mello e seus promotores para cargo nenhum; ninguém elegeu a mídia para nada. Esse processo investe os agentes da investigação que trabalham para a BIP (juízes, parlamentares, mídia) de um poder que a Constituição nunca pretendeu que tivessem — e que vai além do que é aceitável numa democracia. É na verdade um conluio que se alimenta de um tipo de jornalismo barato, que não passa no teste básico de integridade e competência ao não retratar os fatos como eles são.

Respeito à democracia

A culpa maior é dos editores que, a serviço dos barões da mídia, encomendam ou aprovam essas distorções da verdade. A estupidez sancionada que vemos atualmente na mídia leva ao jornalismo descartável. Na ânsia de criar notícia, no afã de ter nas mãos um fato que possa causar escândalo, muitas vezes os melhores dados do país passam por estranhos processos de alquimia mental pelos quais sempre se transformam, de situação positiva, em algo a ser criticado.

Para sofrer essa metamorfose, as informações são manipuladas por profissionais malpreparados — ou mal-intencionados — que, com generalizações apressadas ou informações equivocadas, tentam jogar a opinião pública contra o governo. O procedimento: toma-se uma informação positiva e, usando-se de contorcionismo jornalístico, ela se transforma num fato negativo.

Em entrevista à rádio Jovem Pan, Mello disse que a idéia de que não há democracia sem ”imprensa livre” é tão antiga quanto a democracia — que, por sua vez, é tão antiga quanto a ”imprensa livre”. Ele repetiu um lugar-comum, dito quase em toda parte como um bordão da unanimidade. Mas, do ponto de vista institucional, a existência da ”imprensa livre” assegura a pluralidade das opiniões e o pleno atendimento do direito à informação, que é um dos pilares da cidadania. E, deste ponto de vista, Mello e a mídia têm faltado com o respeito à democracia.

Redução da jornada: Alexandre, Matusalém e a insensatez
Osvaldo Bertolino *

A redução da jornada de trabalho é um ato de sensatez. Mas que ninguém se iluda: esperar sensatez do capitalismo brasileiro seria ingenuidade. A luta pela redução da jornada no Brasil é, antes de tudo, uma luta contra a insensatez.

A história ensina que a redução da jornada de trabalho é uma medida absolutamente necessária. A começar pela melhora das condições de saúde. Diz a história que Alexandre, o Grande, conquistou o mundo e morreu, troncho e alquebrado, aos 32 anos de idade. Já Matusalém, revela o Gênesis, viveu 969 anos. Há uma razão para tamanha diferença em longevidade: Alexandre batalhava 18 horas por dia, 7 dias por semana; quanto a Matusalém, não há indício de que ele tenha feito sequer 1 hora extra em toda a sua vida.

Outro motivo para que a jornada de trabalho seja constantemente reduzida é a elevação da produtividade, um processo que ganhou impulso nos idos de 1881 quando os operários de uma metalúrgica na Filadélfia, nos Estados Unidos, receberam o aviso de que o trabalho na fábrica estava prestes a mudar. Um gerente decidira incorporar à rotina dos funcionários um novo equipamento: um cronômetro.

Grau de técnica e de ciência contido no produto

Incomodado com o modo quase artesanal de trabalho dos operários, o gerente — um certo Frederick Taylor — definiu um padrão de produtividade com base no tempo gasto pelos trabalhadores em cada uma de suas atividades. Era o início de uma inovação batizada de ”taylorismo”, que transformou a indústria norte-americana e, mais tarde, o modo de produzir em todo o mundo. Iniciava-se uma corrida alucinada pela inovação tecnológica.

Hoje, o número de horas trabalhadas tem pouca conexão com a qualidade e a produtividade do trabalho realizado. A economia é medida não apenas por aquilo que numericamente se é capaz de produzir, mas principalmente por aquilo que dá mais valor ao produzido, aquilo que efetivamente mostra o grau de técnica e de ciência contido no produto final. Ou seja: a produtividade. E com o elevado número de horas trabalhadas, a distribuição do crescente valor criado com a inovação tecnológica vai ficando cada vez mais injusta.

Doenças do trabalho: grave caso de saúde pública

Não é de hoje que o patronato tenta criar nos trabalhadores brasileiros a mentalidade da Toyota, que ajusta a produção à demanda. Pela organização do trabalho toyotista, o cliente faz a encomenda e até uma semana depois está recebendo um carro que não existia no momento em que ele formalizava o pedido. Há no Japão um ditado que ensina que todos os pregos tem de estar igualmente integrados à madeira. Se há algum prego com a cabeça saliente, é preciso martelá-lo até que fique enterrado na superfície como os outros.

Essa lógica está presente neste modo alucinado de organização do trabalho toyotista. Ou seja: um trabalhador vigia o outro na busca de prêmios que substituem o salário. Ou o trabalhador agrega o valor arbitrariamente determinado pela empresa, ou ele está fora. Para o funcionário submetido ao toyotismo, o terror é um acontecimento que está sempre à espreita. A conseqüência mais imediata é que as doenças do trabalho hoje já são um grave problema de saúde pública.

Apropriação indevida da elevada produtividade

A despeito desse tipo de situação ainda ser um padrão no Brasil, o trabalhador brasileiro parece reunir boas condições para enfrentar estes novos tempos — com a elevação constante da produtividade nacional. A forma que se apresenta neste momento como a mais factível é a luta pela redução da jornada de trabalho sem reduzir o salário. Não há como esconder que a atual distribuição da produtividade elevada da nossa economia consiste em uma apropriação indevida por alguns em detrimento de muitos.

O custo por hora na indústria de transformação brasileira, segundo o Bureau of Labor Statistics, é de algo em torno de 3 dólares. Na Coréia do Sul, 4 dólares, no Japão 13 dólares e nos Estados Unidos 15 dólares. O trabalhador brasileiro normalmente trabalha das 8 às 18 horas, acumulando uma jornada constitucional de 44 horas semanais. Segundo o ”Japan Information Network”, o japonês trabalha em média 41,3 horas por semana nos serviços e 43 horas na manufatura. O trabalhador norte-americano trabalha das 9 às 17 horas, ou 40 horas semanais.

Extensão estatal na propriedade do patrão

Que ninguém se iluda: a noção de que os ganhos com a produtividade da economia brasileira precisam ser melhor equalizados terá de ser arrancada a fórceps. A natureza da elite brasileira é a de interpretar o trabalhador brasileiro como um ser primevo — por sermos negro, índio, mestiço —, despossuído a ponto de não ter direito sobre o próprio corpo e cuja vida deve ser definida pelo trabalho cruciante e pelos suplícios impostos pelo patrão.

Dizia-se há algum tempo em tom jocoso que, para resolver os problemas da agricultura no Brasil, o governo deveria fornecer a cada fazendeiro um trator e um casal de estrangeiros. Você já deve ter ouvido a anedota. Aparece aí, em primeiro lugar, a forma patrimonialista com a qual a elite brasileira entende o Estado — a máquina e o trabalhador são a extensão estatal na propriedade do patrão. Aparece também uma imagem que a elite brasileira faz do caráter dos trabalhadores brasileiros.

Mão está excelente para os trabalhadores

A anedota estabelece uma dicotomia: de um lado estaria os demais trabalhadores e seu caráter superior, forjado na ética do trabalho; de outro, o brasileiro e seu caráter claudicante, formado por um comportamento negligente para com o trabalho. A idéia passada é a de que o trabalhador dos países ricos é intrinsecamente afeito ao trabalho e que por isso alcançou o sucesso; e de que o trabalhador brasileiro é irremediavelmente inferior e que por isso vive entregue às mazelas.

Esse é, antes de tudo, um jeito preconceituoso de interpretar essa falsa equação. É o reflexo de uma forma — sobrevivência dos mais de 300 anos de escravidão que tivemos por aqui e que chegou às barbas do século XX — de interpretar o trabalhador brasileiro. Já está mais do que na hora de escolhermos efetivamente o caminho do desenvolvimento com valorização do trabalho e apostar nele todas as suas fichas. As cartas para a próxima rodada deste grande jogo, que é a distribuição da renda nacional, já estão dadas. E a mão está excelente para os trabalhadores. Talvez nunca tenha estado tão boa. Agora é jogar.

– A “ditabranda” da Folha vista com lupa.

“Estamos vivendo até hoje os efeitos do golpe de 64, que era desejado pela elite mais feroz, ignorante e vulgar do mundo, que é a brasileira. Ela é a responsável, e os militares executaram esse projeto. Aliás, o golpe é um divisor de água. Depois do golpe

O famoso orador romano Marco Túlio Cícero ensinou que uma boa história precisa responder as perguntas “quem?” (quis/persona), “o quê?” (quid/factum), “onde?” (ubi/locus), “como?” (quem admodum/modus), “quando?” (quando/tempus), “com que meios ou instrumentos?” (quibus adminiculis/facultas) e “por quê?” (cur/causa). Isso posto, quero diz que o editorial golpista do jornal Folha de S. Paulo não é algo sem maiores conseqüências. Não é mais um mero episódio dos devotos daquilo que o cineasta Billy Wilder chamou de “Big Carnival” (Grande Carnaval) — filme que no Brasil recebeu o nome de “A Montanha dos Sete Abutres” e que retrata o caso de um repórter especialista na arte da trapaça.

A “ditabranda” pode ser definida como a síntese da índole golpista da chamada “grande imprensa”, da qual a Folha é um dos veículos mais salientes. Desde 2002, sintomaticamente o jornal define a sua pauta pelas previsões tétricas. Não procede, portanto, a análise de Igor Ribeiro, editor-executivo da revista Imprensa — em um excelente texto, registre-se —, de que o jornal, após defender o golpe de 1964 e sofrer duras conseqüências dessa posição — desde ataques de grupos de esquerda até a censura rígida durante os anos de chumbo —, procurou se redimir apoiando incisivamente o movimento das “Diretas Já!”.

“Acertadas as contas com a sociedade, o Grupo Folha se notabilizou pelo projeto inspirado no jornalismo estadunidense moderno que, por um lado, ditava uma rigorosa assepsia ideológica e forte comprometimento democrático e, por outro, deixava o jornal à mercê do liberalismo econômico e das leis de mercado”, escreve ele. “O passado nem sempre glorioso ficou na história e, dentro da nova realidade, o jornal deu voz à pluralidade e ao bom senso. O debate democrático ganhou corpo com a participação recorrente de personalidades dos mais variados matizes ideológicos, fosse enquanto pauta, fosse enquanto colaborador”, afirma.

Jornalismo rarefeito

Diz o axioma que dois erros nunca se anulam. Aliás, geralmente somam-se para dar um resultado ainda pior. A “ditabranda” não está dissociada da denunciamania golpista recente, quando não faltaram teorias sem fatos — matéria-prima indispensável a qualquer acusação que se preze —, no particular palco da mídia, onde uma combinação quase macabra entre interesses de certas corrente político-ideológicas e dos grupos que controlam a circulação de informações com mão de ferro gosta de encenar seus atos.

Esse jornalismo rarefeito, de baixa intensidade moral, é bem conhecido no Brasil. Ele chegou aqui nos anos 40, vindo dos Estados Unidos, num processo de “modernização” deflagrado por Pompeu de Souza, do Diário Carioca. Vocações literárias e evocações filosóficas foram substituídas por uma narrativa simples e linguagem empobrecida. Pompeu de Souza recebeu, apropriadamente, o título, concedido por Nelson Rodrigues, de “pai dos idiotas da objetividade”.

Como resultado, o que se vê é que o cidadão brasileiro presencia regularmente, com seus próprios olhos e ouvidos, a publicação de insultos, ataques pessoais, intrigas, falsidades, invenções, erros de fato e mentiras puras e simples. A “ditabranda” da Folha, vista com lupa, insere-se aí. São óbvios os laços que unem o ódio da direita na América Latina diante da franca ascensão da democracia progressista na região. O neologismo apenas expressou uma plataforma política latente, sempre recorrente quando os caminhos democráticos começam a ser pavimentados. Mais uma vez, a legião de “economistas”, “comentaristas”, politicólogos, provocadores e demagogos em geral que vive à sombra das oligarquias cumpre o seu papel histórico de erguer barricadas contra o progresso.

Apoio da Folha ao golpe

Mas a democracia está contra eles. O progresso está contra eles. A verdade está contra eles. Suas má-criações os fazem figuras subqualificadas e desmascaram o título de escolhidos para restaurar a ordem e a moralidade públicas. Na verdade, em nome dessas bandeiras o que se vê é o mesmo histórico amontoado de asneiras, meias-verdades e mentiras pela boca de pessoas que se julgam mais sábias do que todos.

Lembre-se que eles tentaram manter o presidente Luis Inácio Lula da Silva “sub judice” a fim de criar as condições para dar o bote. Esse poderoso braço do tráfico de informações da direita sonha em reviver cenas que predominavam no início da década de 60. Os métodos da direita magnetizada pela coesão que emana de clãs minúsculos estão de volta. São as mesmas faces, tangendo velhíssimos ideais. Recorde que o título do editorial do jornal Correio da Manhã que circulou no dia 31 de março de 1964 sintetizou numa palavra o desejo da elite brasileira naquele dia: ”Basta!”. No dia seguinte, 1º de abril, o jornal repetiu a dose: ”Fora!”.

A “grande imprensa” vinha entoando um coro muito bem afinado contra o governo do presidente João Goulart e incitando o golpe. A Folha do dia 27 de março de 1964, em editorial intitulado ”Até quando?”, indagou: ”Até quando as forças responsáveis deste país, as que encarnam os ideais e os princípios da democracia, assistirão passivamente ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado empenho capitaneado pelo presidente da República de destruir as instituições democráticas?”

Interesses terrenos

O jornal O Estado de S. Paulo do dia 14 de março de 1964 disse: ”(…) Depois do que se passou na Praça Cristiano Ottoni (…), após a leitura dos decretos presidenciais que violam a lei, não tem mais sentido falar-se em legalidade democrática, como coisa existente.” No dia anterior, cerca de duzentas mil pessoas participaram do famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no qual foi anunciado que o presidente acabara de assinar, no Palácio das Laranjeiras, o Decreto da Supra (Superintendência da Política Agrária), que propunha um plano de desapropriação dos latifúndios improdutivos acima de 500 hectares, por interesse social. O presidente mexeu num vespeiro.

No dia 19 de março de 1964 — dia de São José, padroeiro da família — mulheres ricas paulistas lideraram a ”Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, incitando o golpe militar. Em nome da família, de Deus e da liberdade o movimento estava defendendo os interesses terrenos dos latifundiários, banqueiros e industriais. No dia seguinte, o jornal O Globo comentou: ”Sirva o acontecimento para mostrar aos que pensam em desviar o Brasil de seu caminho normal, apresentando-lhe soluções contrárias ao ideal democrático e ensejando a tomada do poder pelos comunistas, que o povo brasileiro jamais concordará em perder a liberdade, nem assistirá de braços cruzados aos sacrifícios das instituições.”

Qual a diferença dos editoriais de hoje em dia? A “ditabranda” da Folha tem como fio condutor, que perpassa e une esses tempos históricos, e um dos pontos de partida de sua pauta ideológica os ideais do Partido Republicano Paulista (PRP), que representava os fazendeiros de São Paulo após a proclamação da República. Apesar da distância no tempo, e da forma diferente de apresentação das propostas, as idéias do PRP não são estranhas às da Folha.

O fator humano

A marca da mídia à brasileira é exatamente a ojeriza ao pensamento avançado, humanista. A cada dia ela nos apresenta exemplos dos mais edificantes, como o desse neologismo infeliz. Sempre há uma teoria. Mas são teorias do que seria-se-fosse, baseadas em características e fenômenos de um país que eles imaginam, muito diverso do país real. Equacionar, operar, extirpar e outros vocábulos os embalam em seus cálculos frios. São fantasias e fantasmagorias que não se destinam a descobrir, orientar, provar, mas… Se destinam a que precisamente? A sofismar, a mistificar e mitificar, a ludibriar.

Qualquer que seja o problema, por mais complexo e multiforme, não lhes faltam engenho e arte para transformá-lo em gráficos e diagramas para dar-lhe denominação própria e original. Mas não lhe dão especificidade, ou não querem lembrar que informar e analisar requer arte e ciência, essencialmente ligadas ao homem. Nenhum resultado se pode esperar de informações e análises que eliminam o fator humano.

Pastel de vento

Nessa pregação golpista, o delírio teorizante atinge o auge. Como a presunção é o traço mais evidente, eles insistem no diagramar, no cronogramar, no organogramar, no topogramar para ver se com o inusitado da linguagem obtêm crédito. Pensam que podem vencer pelo choque, pelo cansaço do prolixo. Pode-se dizer que é uma mídia nominalista. Se a realidade — onde coisas e fenômenos estão há muito nominados — não corresponde às análises, muda-se o nome das coisas e fenômenos.

Pois saibam os que não sabiam que esse gosto pelo nome dos senhores de sua semântica esvazia o conteúdo das informações para pôr no lugar palavras ocas como esse neologismo da Folha. Ditadura vira “ditabranda”. Como alguém lembrou, vazio igual só o daqueles pastéis que a velhinha vendia na feira, apregoando: “Pastéis de camarão!”.

O comprador se aproxima, pega um, paga. Na hora de comer, diz: “Mas, minha senhora, não achei camarão nenhum!” Ela responde: “O senhor sabe como é, uns gostam, outros não gostam, uns podem, outros não, por isso não ponho.” São pastéis de vento, ou vento de pastéis. E como eles inventam nomes com facilidade, suas explicações se encaixam naquele tipo de resposta que se dá às crianças de certa idade que não perguntam para saber, mas pelo perguntar.

Desabafo do leitor

Muitas vezes essas falsificações são imposições a jornalistas, massacrados pela ditadura dos donos do poder, que sequer têm tempo de estudar as leis e meditar sobre os problemas nacionais, de auscultar o coração do povo, de ler e entender os processos sociais. Muitos nem foram formados neste espírito e, em terra de batráquio, precisam se agachar para não ser atingido pela língua do sapo. Desrespeitam abertamente a Constituição e outras cartas — esquecendo-se que Ruy Barbosa deixou escrito que a Constituição não é roupa que se recorte para ajustá-la às medidas deste ou daquele interesse.

A conseqüência, na vida real, é, para muitos, a perda de rumo, de oportunidades e eventualmente da própria perspectiva. Há algum tempo, a Folha publicou uma sugestiva carta de um leitor. “Desculpe, mas acabou a minha capacidade de absorver só notícias negativas. A Folha há muito deixou de praticar um jornalismo investigativo e entrou firme no jornalismo denunciativo, que não leva a nada”, disse ele. O leitor estava comunicando a perda da paciência com um determinado tipo de jornalismo. Ele não é o único nem a Folha a única publicação a colocar como prioridade de sua estratégia editorial a busca do pior em tudo.

O caráter do jornalista

Topar tudo para conseguir uma “notícia” impactante tem um perverso efeito colateral: a corrosão do caráter do jornalista. Um jovem que chegue a uma redação e seja confrontado com a realidade cotidiana de trapaças de variadas espécies para a obtenção de notícias — mentiras sobre a natureza da reportagem para conseguir entrevistas e gravadores escondidos para colher flagrantes, para ficar apenas em dois exemplos — é rápida e inevitavelmente engolfado pela frouxidão dos valores.

Vemos, por exemplo, no jornalismo da “grande imprensa” gente como Diogo Mainardi — é rigorasamente apenas um exemplo, visto que muita gente como ele faz o mesmo em outros veículos —, que em sua coluna na revista Veja insulta o presidente Lula com a mesma virulência de David Nasser, na antiga revista O Cruzeiro, contra João Goulart e Leonel Brizola. Pela falta de educação e respeito, Nasser acabou levando dois bons socos do então governador gaúcho no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

Como diria Nelson Rodrigues, “um paralelepípedo analfabeto, uma cabra vadia ou um bode de charrete” saberia que isso não é bom jornalismo. Nelson Rodrigues usou essas palavras para ironizar, em 1968, um debate que se estabeleceu na mídia sobre o seguinte tema: era melhor ou pior a introdução da TV em cores no Brasil? Como se vê, há toda uma tradição brasileira quanto a esse gênero de coisas. Os grupos de mídia no Brasil ganharam o poder e o status de hoje no submundo da ditadura militar.

Sermão da Sexagenária

Tudo isso prova um fato: o Brasil de mentira é o que se paralisa nas crises apocalípticas anunciadas por velhos coveiros e propaladas nas manchetes e editoriais dos jornais. O Brasil de verdade é o que, a despeito de seus imensos problemas, deixou de ser uma piada. Podemos, nesse vazio de inteligência da mídia, nos consolar com as palavras do Padre Vieira, no Sermão da Sexagésima, onde se vê a causa de o povo não acreditar nessa pregação recheada de ameaças, uma discurseira que põe palavras onde faltam idéias.

Lá se diz: “As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. (…) O que sai da boca, pára nos ouvidos, o que nasce do juízo, penetra e convence o entendimento.”
Aspectos da China contemporânea
Osvaldo Bertolino *

A passagem dos 30 anos de reforma e abertura da China foi muito pouco comentada no Brasil. Meu entendimento é que isso se deve ao cerco que a mídia promove sobre qualquer assunto afeito ao progresso social. A China, com suas complexidades e peculiaridades

Foi assim que um seminário sobre o assunto, promovido pelo Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico no Rio de Janeiro, praticamente não apareceu no noticiário. Dada a importância do evento e o significado destes 30 anos de reforma e abertura da China, resgato alguns aspectos da China contemporânea — com a inestimável fonte informações que é a China Rádio Internacional.

Os participantes do seminário avaliaram que a política de reforma e abertura criada por Deng Xiaoping não só trouxe desenvolvimento rápido para a China, mas também deu uma contribuição significativa ao desenvolvimento da humanidade e do mundo. O diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Haroldo Lima, afirmou que o conceito de construção do socialismo com características chinesas apresentado por Deng Xiaoping indicou o caminho correto de desenvolvimento do país, trazendo para a China êxitos notáveis em um período curto de 30 anos. Ele acrescentou que, desde o início da prática de reforma e abertura, 250 milhões de chineses se livraram da pobreza, ocupando 2/3 da população que saiu da pobreza no mundo, o que foi uma grande contribuição para toda a humanidade.

O diretor do Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico, Severino Bezerra Cabral Filho, disse que a política de reforma e abertura dirigida por Deng Xiaoping foi a reforma política, econômica e social mais importante do mundo nos últimos 30 anos. Cabral Filho também destacou que, neste processo, a China tomou uma atitude programática e não imitou o modelo de desenvolvimento dos Estados Unidos e de países do Leste Europeu, mas explorou um caminho que atendia à sua própria situação — mantendo o rápido desenvolvimento econômico e a estabilidade social. Segundo ele, estudar este ”fenômeno chinês” tem um importante significado para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil e de outros países “em desenvolvimento”.

Um aspecto que merece observação especial é a acelerando do ritmo de urbanização chinês. De acordo com os dados oficiais, a superfície urbanizada da China subiu de 17,9% para 50% do território nacional. Durante este processo, as metrópoles que mais brilharam foram Beijing, Shanghai e Shenzhen. Xi´na — esta última a cidade com maior dificuldade na industrialização por causa do seu grande número de patrimônios culturais, conseguiu encontrar seu próprio modelo industrialização. A China possui oito famosas capitais antigas.

 

Princípios de política externa

Outro fenômeno chinês de grande relevância é a definição dos princípios de sua política externa. ”A China persistirá na via de desenvolvimento pacífico. Esta é uma opção estratégica feita pelo governo e pelo povo da China, de acordo com a tendência de desenvolvimento da nossa era e os próprios interesses fundamentais. A China é uma nação amante da paz e uma força sempre firme na defesa da paz mundial”, disse o presidente chinês, Hu Jintao, no 17º Congresso Nacional do Partido Comunista da China realizado em 2007.

Ele reiterou que a persistência na via de desenvolvimento pacífico constitui uma política inabalável para a China. Segundo Hu Jintao, trata-se de um compromisso fundamentado nos interesses da nação chinesa e do mundo. Trata-se uma definição decorrente do contexto da segunda metade do século passado, quando o mundo estava no período da Guerra Fria e a China não podia evitar as suas influências.

 

Cooperações com o exterior

A falta de um ambiente pacífico, tanto dentro como fora das fronteiras, impossibilitava o desenvolvimento nacional. A China de então era um país de economia atrasada, debilitado e empobrecido, que enfrentava grandes desafios à sua subsistência e ao seu progresso. Foi assim que o país começou a revisar suas políticas e reavaliar as relações com o mundo, além de considerar o futuro do país e tomar uma decisão histórica — 3ª Sessão Plenária do 11º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês realizada em 1978 definiu o modelo de crescimento e o desenvolvimento pacífico tornou-se parte da estratégia nacional.

O desenvolvimento pacífico significa buscar um ambiente internacional de paz em benefício do próprio desenvolvimento e defender a paz mundial com o desenvolvimento nacional. Durante este período, a China dedicou-se à construção econômica nacional, ao estabelecimento das cooperações com o exterior e ao melhoramento do ambiente externo. Como exemplo disso, a China vem promovendo as relações com os principais países e regiões, aprofundando o conhecimento e os intercâmbios com o Ocidente e mantendo a estabilidade do vínculo com as grandes nações.

O desenvolvimento melhora a vida dos chineses, aumenta o poderio e a importância internacional da China e traz oportunidades para o mundo. A China em desenvolvimento está dando suas contribuições para a paz mundial. Em assuntos como o Iraque, os conflitos palestino-israelenses, Kosovo, a questão nuclear da Península Coreana e o problema energético iraniano, entre outras importantes questões internacionais, a China desempenha um elevado papel de intermediação.

 

Enormes benefícios internos

Todo esse arcabouço teórico trouxe enormes benefícios internos. Um deles foi um deles é o salto educacional. Ao enumerar os principais eventos que afetaram a China nas últimas três décadas, a maioria dos chineses colocou o Exame Nacional para Entrada na Faculdade (Gaokao, em chinês) em primeiro lugar da lista. Em dezembro de 1977, 5,7 milhões de chineses participaram do exame nacional, o primeiro do tipo desde o começo da catastrófica Revolução Cultural (1966-1976).

Nos últimos 30 anos, milhões de estudantes graduaram-se de instituições de ensino superior de vários tipos, para formar uma força de trabalho de alta qualidade. De acordo com dados oficiais, as instituições de ensino superior chineses inscreveram cerca de 53,86 milhões de estudantes nas últimas três décadas, dos 128 milhões de participantes do Gaokao. Ao mesmo tempo, o governo fez grande esforços para desenvolver a educação obrigatória e a ocupacional, com a finalidade de melhorar a qualidade de todos os cidadãos.

 

Educação nas áreas rurais

Nos últimos 30 anos, mais de 100 milhões de estudantes formaram-se nas escolas ocupacionais de diferentes tipos. Em 2007, as escolas profissionais contavam com 80 milhões de estudantes. Até 2000, a China alcançou sua meta de garantir a educação obrigatória para as crianças e eliminar o analfabetismo entre os jovens e cidadãos de média idade. O grande sucesso nas reformas econômicas ajudou o desenvolvimento da educação no país.

Com recursos financeiros suficientes, o governo chinês passou a aumentar o investimento na educação e adotar políticas mais favoráveis, com a maior importância dada à educação nas áreas rurais. Em 2003, um programa de ensino à distância foi lançado para cobrir 360 mil escolas primárias e secundárias rurais, beneficiando mais de 100 milhões de estudantes. Em 2004, o governo central investiu 10 bilhões de yuans (US$ 1,45 bilhão) para construir mais de 8,3 mil internatos nas áreas rurais.

Em 2006, a China emendou sua Lei de Educação Obrigatória para isentar os estudantes primários e os estudantes nos primeiros três anos do ensino secundário de taxa de matrícula e outras taxas administrativas. A medida foi adotada primeiro nas áreais rurais do oeste do país, região menos desenvolvida, em 2006, e ampliado para o país inteiro em 2007.

 

A meta de “Educação par Todos”

Além de fazer grandes esforços para alcançar sua meta de ”Educação para Todos”, o governo chinês também tem encorajado estudantes chineses a estudar no exterior. O número subiu de 860 em 1978 para 144,5 mil em 2007. Até o momento, 319,7 mil estudantes chineses voltaram ao país após terem terminado o estudo em outros países.

A China também abriu suas portas a estudantes de fora. Nos últimos 30 anos, 1,23 milhões de mais de 180 países e regiões estudaram em instituições de ensino chinesas.

Até o momento, a China assinou acordos de cooperação e intercâmbio educacionais com 188 países e regiões. O país asiático e 33 países e regiões firmaram acordos de reconhecimento mútuo de diplomas. Com o sucesso da reforma e um maior prestígio internacional do país, o chinês tornou-se um idioma atrativo e útil para os estrangeiros. Até agora, o número de estrangeiros que estudam chinês ultrapassou 30 milhões.

No campo, o país também passa por uma revolução. Entre a população chinesa de 1,3 bilhão, mais de 800 milhões vivem no campo rural. Sendo assim, o governo chinês prioriza a produção agrícola e a elevação do nível de vida dos camponeses. A informatização no campo rural chinês prioriza que os camponeses dominem a tecnologia e informações, a fim de melhorar a produção e administração. Nos próximos cinco anos, a China investirá um bilhão de yuans (cerca de 250 milhões de reais) ao campo rural, destinado à infra-estrutura de informações e formação de técnicos.

A construção da indústria básica e da infra-estrutura também foi reforçada de forma significativa, dando um suporte crescente ao desenvolvimento econômico e social do país. Entre 1979 e 2007, os capitais destinados aos dois setores somaram aproximadamente 30 trilhões de yuans, representando 38% do total dos investimentos no país. Um grande número de projetos essenciais como transmissão de gás natural oeste-leste, transmissão de água sul-norte e reflorestamento de terras de cultivo foram concluídos ou seguem em ritmo acelerado.

A produtividade da indústria de base e o nível infra-estrutural da China aumentou significativamente. A capacidade de abastecimento da agricultura, energia e matérias-primas subiu para um novo patamar. Foram criadas redes de transporte e telecomunicações que cobrem todo o país. As instalações de educação, cultura, educação e esporte também tiveram aprimoramentos. Tudo somado, pode-se dizer que a China hoje é um exemplo de como uma sociedade pode se desenvolver de forma democrática e harmoniosa.

– John Reed: leitura obrigatória nestes tempos bicudos

Nestes tempos de crise econômica e moral, recomendo a leitura do meu professor de jornalismo, John Reed. Entre a sua rica e imperdível obra, destaco o livro “Eu vi um novo mundo nascer” – uma coletânea de artigos que relata acontecimentos sindicais e políticos.

O gênio de Reed desfila em narrativas de greves heróicas e massacres de operários nos Estados Unidos, guerras na Europa, revolução no México e de um emocionante julgamento da Industrial Workers of the World (Trabalhadores Industriais do Mundo – IWW), ocorrido na Corte Federal de Justiça de Chicago em 1918.

Reed abre este artigo com a seguinte citação de August Spies, um dos mártires da luta pela jornada de oito horas semanais de trabalho. “Estou aqui como representante de uma classe, e falo a vocês, representantes de outra classe. Minha defesa é a sua acusação, a causa do meu pretenso crime, sua história”, disse ele. Reed encerra afirmando: “A humildade dos trabalhadores é bonita, sua paciência é quase infinita e sua nobreza, milagrosa.” Em outra obra, ele afirmara que os autoritários confundem humildade com humilhação.

Quase trinta

Arquiteto de frases belíssimas, seus escritos são reconhecidos pela genialidade literária. Um contemporâneo seu, certa vez declarou: “É um pouco embaraçoso ter que admitir para um sujeito que você reconhece que ele é um gênio.” Além de gênio, já se disse que Reed foi herói. Num prefácio do seu livro “A filha da revolução”, o crítico Rogério de Campos escreveu: “Num dado momento, John Reed está preso com trabalhadores imigrantes grevistas, em outro está vivendo com uma milionária em Florença. Ora está cavalgando junto ao exército de Pancho Vila (…), ora está em uma festa em Paris com Gertrude Stein e Pablo Picasso. (…) Neste meio tempo, consegue fazer teatro com Eugene O’Neill, entrevistar Trótski, jogar em Monte Carlo e ser aplaudido por guerrilheiros numa de suas brilhantes exibições de bebedeira.”

Autor de obras-primas como “México Rebelde” e “Os dez dias que abalaram o mundo”, Reed foi ainda fundador do Partido Comunista dos Estados Unidos e membro da Terceira Internacional Comunista. No primeiro artigo da coletânea “Eu vi um novo mundo nascer”, intitulado “Quase trinta”, escrito em 1917 quando ele tinha 29 anos, afirma: “Sei que este é o fim de um período de minha vida, o fim da juventude. Às vezes me parece também o fim da juventude do mundo. Certamente a Grande Guerra mexeu com todos nós. Mas este é também o início de uma nova fase da vida, e o mundo em que vivemos está tão cheio de mudanças rápidas, cores e significados, que não posso deixar de imaginar esplêndidas e terríveis possibilidades da época que está por vir.”

Cinzas

Reed interpretou os acontecimentos do seu tempo como ninguém. Rogério de Campos diz: “John Reed aparece aqui como um elo entre Mark Twain, Jack London, Walt Whitmam.” Além disso, tinha uma comovente sensibilidade social. Certa vez, perguntaram sua opinião sobre as causas da Primeira Guerra Mundial. “Lucros”, respondeu, sintetizando uma gigantesca gama de fatores em uma palavra.

A passagem do livro “Os dez dias que abalaram o mundo” que relata o enterro dos operários que tombaram na luta pelo controle de Moscou é emocionante. “Ondas de povo e milhares de seres, com sofrimento gravado nas fisionomias, precipitavam pelas ruas, invadindo a Praça Vermelha. Chegou uma banda militar. E o som da Internacional fez com que todos, espontaneamente, começassem a cantar. (…) O cortejo fúnebre (…) desfilou (…), debaixo dos olhares do mundo e da posteridade.” Esse cemitério está entre o túmulo de Lênin e as muralhas do Kremlin. Na base das muralhas foram enterrados muitos revolucionários. As cinzas de John Reed também estão lá. Ele morreu de tifo, aos 33 anos de idade, na Rússia Soviética.

– Lula, Obama e o preconceito do professor Gaudêncio Torquato.

Um artigo do jornalista, professor titular da USP e consultor político Gaudêncio Torquato no jornal O Estado de S. Paulo, edição do dia 11 de novembro, sobriamente intitulado “A esperança lá e cá”, oferece uma boa oportunidade para se ver como a opinião p

Virou moda para a pregação elitista culpar o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva por tudo. No noticiário político diário aparecem os que achincalham as instituições democráticas agora que elas não estão mãos elitistas, os revoltados com o socialismo, com o MST, com a MPB, bem como os insatisfeitos em geral, seja com o campeonato brasileiro de futebol ou com o atraso do trem, a acne juvenil, a aftosa e o bicho-do-pé. Ou seja: tudo é culpa do governo. Foi assim que o professor jogou nas costas das “platéias assumidamente lulo-petistas” a culpa pela comparação entre Lula e o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama.

Segundo o professor, “se a eleição do primeiro presidente negro e o 44º da história dos Estados Unidos se reveste de simbolismo, por representar uma mudança profunda no paradigma da política norte-americana, a conquista de dois mandatos presidenciais pelo ex-metalúrgico brasileiro também se impregna de extraordinária força simbólica”. Mas, segundo decreta Gaudêncio Torquato, a semelhança termina aí. “Se os dois viveram uma infância humilde, Obama pôde estudar em boas escolas, formando-se em Direito, em 1991, em Harvard, centro educacional de excelência, freqüentado pela elite norte-americana e internacional. Lula minimiza o fato de não ter estudado. Obama não é o Lula americano”, ensina o professor.

Palavras ao vento

Depois de uma adjetivada aula sobre “a nova esquerda internacionalista, sob a qual se abrigam as bandeiras do aborto, do desarmamento, do diálogo com inimigos, dos direitos de minorias, etc.,” o professor decreta que “o discurso mudancista do lulismo (…) deu com os burros n’água”. Em seguida, Gaudêncio Torquato mostra, sem meias palavras, o que de fato ele representa. “As estacas macroeconômicas fincadas no ciclo FHC foram bem conservadas e até aperfeiçoadas, trazendo conforto ao país, que conseguiu zerar sua dívida externa. Trata-se de mérito inegável do governo Lula, não significando, porém, alentados avanços”, revela o professor.

Gaudêncio Torquato volta a soltar palavras ao vento ao mencionar que “o patrimonialismo continua a dar as cartas, sob o império do presidencialismo de coalizão, que torna o Parlamento refém do Executivo” (como?). E ataca “os jovens que, por ocasião das diretas-já e do impeachment de Collor, acorreram às ruas” e agora “delas fugiram”. E chega ao mérito da questão — como dizem os advogados. “As multidões aclamam hoje o presidente não por ações inovadoras, mas porque festejam a entrega de bolsas, que expressam uma visão ortodoxa (por não apontar uma porta de saída) de política social”, ensina.

Imprescritibilidade da tortura

Em seguida, Gaudêncio Torquato aponta a sua pena para “o campo das relações de trabalho”, segundo ele “dominado por centrais de trabalhadores motivadas a manter as correntes de um sindicalismo à sombra do Estado”. E chega à “seara dos tributos”, que “é um deus-nos-acuda”. O linguajar não é dos melhores, mas, com coragem, dá para entender o que ele quer dizer: a elite foge do fisco como o Diabo da água benta. “A bocarra do leão se alarga sob os olhos concupiscentes dos burocratas. Estados e municípios se engalfinham para tirar lasquinhas dos impostos, cujas partes gordas vão para os cofres da União. E a esfera política continua a fazer círculos ao redor do Palácio do Planalto, empunhando a mão franciscana”, afirma.

Outro ponto em que a aula do professor resvala para a mediocridade, depois de decretar mais uma vez que “o simbolismo de suas vitórias (de Lula) se esgarça a olhos vistos” (onde?), é a discussão sobre a imprescritibilidade da tortura. “A era Lula nem sequer conseguiu fechar o ciclo de 64”, avisa o professor já no início do assunto. “A guerra entre torturados e torturadores, pela voz autorizada do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, ganha novos atores: os grupos terroristas”, diz ele. A peroração de Gaudêncio Torquato é um primor. “Barack Hussein Obama simboliza o aceno a uma nova ordem. Que Lula prometeu e, até agora, não cumpriu. Que a esperança, lá, consiga efetivamente vencer o medo”, finaliza o professor com sua pena empostada.

Centralismo autoritário

O que devemos extrair disso tudo? Primeiro, que o professor tem todo o direito de escrever o que quiser. Tem até mesmo o direito de prescrever o que quiser para todo o mundo. Quem sonharia em impedir que Gaudêncio Torquato assumisse o partido elitista? Tem até o direito de usar um vaivém entre o Brasil e os Estados Unidos mal costurado, que resulta em uma compreensão rarefeita sobre o que ele quer de fato ensinar com isso. Destaco apenas que o professor se expressa de uma maneira curiosa. Parece que ele é mais um porta-voz da mídia, destes que têm o hábito de falar pela “sociedade”, pelo “contribuinte” ou pelo “cidadão” — seja lá o que isso quer dizer.

Eles falam assim não porque praticam o “centralismo democrático” — seria bom se o praticassem —, e sim porque têm sempre uma versão extremamente opaca de centralismo autoritário. Mas deixa isso para lá — em outra hora comento o assunto. O problema é que é difícil aceitar esse tipo de diagnóstico num país em que até há pouco tempo o governo foi uma mediocridade neoliberal em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo. No rol da ruindade presidencial, é possível que nem um outro presidente tenha superado FHC. Obviamente, esse ponto de vista vê o governo pelo ângulo esquerdo, aquele pelo qual se enxerga o povão e os interesses maiores da nação. Quem olha pelo ângulo direito, onde está enquadrada a elite, a visão é outra.

Dois insumos básicos

Mas é sempre bom prestar atenção no que dizem estes porta-vozes da direita brasileira. Em primeiro lugar porque ninguém, até hoje, perdeu alguma coisa levando-os a sério. Em segundo lugar porque o que eles dizem coloca às claras, quando se vai ao centro das coisas, o único fato realmente essencial na disputa política contemporânea: Lula na Presidência da República representa uma grande ruptura com a nossa história e tradição política. Quando Leonel Brizola o comparou a Getúlio Vargas em uma reunião petista, em 1998, ele não estava totalmente errado — ao menos no simbolismo político.

Mudanças importantes na vida dos países carecem de dois insumos básicos. O primeiro: um desejo amadurecido na sociedade de que essas mudanças aconteçam; uma espécie de consenso coletivo em relação à necessidade de mudar. O segundo insumo: alguém que tome a frente e as realize. Um líder que tenha vontade e competência para sintetizar o desejo da maioria e concretizá-lo. É desse cruzamento que surgem as grandes reformas, os grandes avanços. O governo Lula se formou com a bandeira social, símbolo de esperança. Politicamente emparedadas pela extensão do apoio popular ao presidente, as oposições, como seria de prever, contra-atacam com o refrão de que ”só a economia se salva”. É uma pobreza de dar pena!