O dilema dos juros no mundo capitalista

Por Osvaldo Bertolino

O ciclo de juros elevados no Brasil, confirmado pela decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, na quarta-feira (29) ao subir a taxa básica Selic de 12,25% para 13,25% ao ano, é parte de um complexo jogo na economia mundial. Ele se relaciona à natureza das essências do capitalismo e de seu antípoda, o socialismo. O ponto é: o que tem o capitalismo a oferecer à humanidade com um regime absolutamente controlado pelo giro descontrolado do capital financeiro? O que o centro do império capitalista, os Estados Unidos, têm para exportar, além de parasitismo financeiro?

Trata-se de um sistema que crava suas garras nos orçamentos e patrimônios públicos e suga as economias, ignorando fronteiras, soberanias, leis e direitos dos povos. O mercado de títulos públicos e de dividendos, e seus derivativos, transfere renda para os ricos numa proporção brutal. As economias ficam engessadas pela política de juros, arma discricionária contra a inflação usada como espécie de cláusula pétrea da gestão econômica, fórmula segura contra a desvalorização dos ganhos na ciranda financeira, aquilo que o Copom acaba de chamar de impacto da política fiscal nos “ativos financeiros”. Resultado: qualquer crescimento econômico gera descompasso entre consumo e produção se a demanda não for socorrida com investimentos.

Surge, dessa equação, o grande entrave: o investimento, inviabilizado pelo giro financeiro que faz dinheiro gerar dinheiro sem passar pela produção. Teria de haver investimentos públicos, a causa de tantos ataques a qualquer projeto de desenvolvimento com inclusão social que, consequentemente, conteria a farra financeira.

A receita dos juros altos está espalhada pelo mundo do capitalismo, gerando crises e controvérsias. Nos Estados Unidos, o coração do sistema, seu banco central, o Federal Reserve (Fed), manteve as taxas inalteradas na faixa de 4,25% a 4,50% ao ano, interrompendo um ciclo de cortes.

No comunicado que informa a decisão, o Fed fala de inflação “relativamente elevada”, uma alteração em relação à linguagem que falava de “progresso” no retorno à meta de 2% de juros. No mercado de trabalho, as “condições permanecem sólidas”, o que reforça a noção de que a economia continua sobreaquecida, a causa da inflação. Soma também os anúncios do presidente Donald Trump de elevação de tarifas às importações norte-americanas, além da política de deportações de imigrantes que poderá pressionar o custo da força de trabalho. O Fed prevê que, com essas políticas, pode haver um efeito expansionista da economia, que deverá resultar em crescimento mais forte e, por conseguinte, dificultar o corte dos juros.

Ameaças de Trump

Também para combater a crise de crescimento da economia, o Banco Central Europeu (BCE) acaba de reduzir a taxa básica de juros em 0,25%, no quinto corte desde o início do ciclo de afrouxamento monetário em junho de 2024. A decisão certamente comparecerá no debate eleitoral na Alemanha, a maior economia da região, prestes a ir às urnas. A perspectiva é de novos cortes pelo BCE, num duelo de falcões e pombos, como é chamada divisão entre os que defendem menos e mais juros. Falcões são os que reagem a qualquer sinal de subida da inflação com endurecimento da política de juros. Os pombos defendem a adoção de uma política menos agressiva para não gerar estagnação econômica.

Há também as ameaças de Trump, que promete rever as relações econômicas entre Estados Unidos e União Europeia (UE). O presidente norte-americano disse que seu país tem “centenas de milhares de milhões de dólares em déficits (comerciais) com a UE e ninguém está satisfeito com isso”. Trump lamentou ainda que seja difícil para as empresas norte-americanas competirem na UE. A presidente do BCE, Christine Lagarde, respondeu que Trump trata o problema de forma injusta. E fez um apelo para que as partes trabalhem juntas e respeitem as regras. “Se a Europa aprendeu alguma coisa depois da Segunda Guerra Mundial foi que não se pode avançar só, e que é preciso trabalhar em conjunto e respeitar-se mutuamente”, disse.

Ela apelou aos líderes políticos europeus para que cooperem com Trump em matéria de tarifas e comprem mais produtos fabricados nos Estados Unidos, alertando que uma guerra comercial lançaria o mundo no risco de destruir o crescimento económico global. “Como tornar a América grande outra vez se a procura global está caindo?”, questionou. “Levando os outros países a comprarem dos Estados Unidos”, respondeu. “Comprar certas coisas aos Estados Unidos”, como gás natural liquefeito e equipamento de defesa, sugeriu.

Argumentos matemáticos

O fato é que o capitalismo há tempos se debate com a superação de sua ideologia dita liberal. Desde o auge do iluminismo, ou movimento das luzes cuja era tem como símbolo a Revolução Francesa, até o começo do século XX, a ideia do “livre comércio” foi praticamente a fórmula única para erigir formas de sociedade. A transformação da Rússia – depois, União Soviética – na primeira nação a se industrializar e a se desenvolver política e economicamente fora desse padrão chacoalhou essa verdade. O desenvolvimento de uma nação, desde então, já não é tido como benesse exclusiva do homem anglo-saxão rico.

Criou-se, nessa nova configuração mundial, uma dualidade que, por um lado, cresceu como extensão do modelo de socialismo soviético e, por outro, expandiu pelo domínio econômico, e principalmente por força do poderio militar, das potências capitalistas. No final da Segunda Guerra Mundial, esse quadro ficou bem delineado. Enquanto o socialismo expandia para o Leste Europeu e cravava sua bandeira na América — Cuba — e na Ásia — China, Vietnã e Coréia — por meio de movimentos de libertação nacional e revoluções, o imperialismo “ocidental” implantava ditaduras e regimes atrelados aos seus interesses.

O ponto final do bloco soviético, esculpido pelo trio Reagan-Tatcher-Gorbachov, degradou muito esse quadro. Claro que China, Cuba, Coréia Democrática e Vietnã seguraram com brio a bandeira do socialismo. Mas, com a exceção da China, esses países ainda têm muito a caminhar até atingir um platô em sua trajetória de crescimento. O fato é que a atual fase da crise dos países capitalistas está mostrando que, em um mundo de economias “globalizadas” pelas finanças, a China, com seus números e ritmo de crescimento espetaculares, vai se firmando como centro de uma nova ordem mundial.

– Reforma tributária e justiça social

Reforma tributária: o que diz texto que vai a sanção de Lula

Por Osvaldo Bertolino

A aprovação pela Câmara dos Deputados da regulamentação da reforma tributária, que havia retornado do Senado com mudanças e segue para sanção presidencial, representa uma vitória histórica do governo. A decisão abrange três impostos estabelecidos pela Emenda Constitucional (PEC) sobre o sistema tributário nacional: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). Na transição entre 2026 e 2033, eles substituirão o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o Imposto Sobre Serviços (ISS), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), formando o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).

O assunto frequenta a pauta nacional desde o fim da ditatura militar, na qual vigorou um perverso sistema de concentração de renda, imposto por Roberto Campos (avô do atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto), entronizado como poderoso ministro do Planejamento do governo Castello Branco, o primeiro da ditadura militar. Ele e Octávio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda, operaram uma “reforma” econômica desastrosa para a maioria dos brasileiros. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) substituiu o regime de estabilidade no emprego. As tarifas de importação foram baixadas. E impostos como o do solo, que atingia os latifúndios, foram varridos numa “reforma” tributária.

Com as medidas, surgiu a tese de que as bases para o desenvolvimento de longo prazo seriam criadas, promessa semelhante à que permeou o projeto neoliberal e segue na agenda dos porta-vozes e agentes do mercado financeiro. Diziam que o ônus de curto prazo, como a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda, seria compensado no futuro com melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar. Como se sabe, essa teoria levou à crise das décadas de 1980 e 1990. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”

A reforma tributária foi também tema da Assembleia Constituinte, em 1987-1988, que resultou em mudanças tributárias com a extinção de impostos federais cumulativos e descentralização da receita. Criou, também, um sistema de seguridade social financiado por diversas formas de contribuição. Logo surgiram propostas de alterações na Constituição, como a PEC da reforma tributária do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), de 1995, no contexto das primeiras manifestações amplificadas sobre “crise fiscal” do Estado, associada a propostas de cortes drásticos nas áreas sociais, com o mesmo argumento de que era preciso conter a trajetória explosiva da dívida pública, já em processo de escalada, puxada pela elevação da taxa de juro.

A atual regulamentação da reforma tributária ocorre em meio a mais um grande embate dessa natureza, com o mercado financeiro promovendo mais um ataque brutal para chantagear o governo e impor regras draconianas ao pacote de cortes de gastos. A jogatina da especulação sem limite com o dólar traduz bem o que são essas manipulações, cujo espírito que ficou explícito nas contrariedades ao anúncio do governo de isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil e aumento da tributação para quem ganha R$ 50 mil por mês ou mais.

– Gabriel Galípolo e o galinheiro do Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

Atual diretor de política monetária e provável futuro presidente do Banco Central assume discurso dogmático do projeto neoliberal. Resta saber se é recuo tático ou rendição.

Num evento da Warren Investimentos, organização do mundo da especulação financeira, na segunda-feira (12) em São Paulo, Galipolo disse que a alta da taxa básica de juros é uma possibilidade que está na mesa do Comitê de Política Monetária (Copom). “Enquanto diretores do Banco Central, nós vamos perseguir a meta, isso com custo maior ou custo menor, segundo variáveis que não temos controle”, afirmou. “Espero que daqui a alguns anos possamos falar que a política monetária do Brasil é muito mais em função do arcabouço legal e institucional desenhado para a política monetária do que da idiossincrasia de um diretor A ou B”, completou.

Arcabouço legal e institucional pressupõe regras bem mais amplas do que a famigerada Lei de Responsabilidade Fiscal – corretamente chamada por José Alencar, vice-presidente da República do primeiro governo Lula, de lei da “irresponsabilidade fiscal” –, espécie de camisa de força que molda fórmulas como essa proclamada por Galípolo e amarra o país à estagnação do crescimento econômico e à paralisa do desenvolvimento. Funciona como cortina de ferro que separa o arcabouço legal e institucional dos interesses privados governados de maneira autocrática pelo Banco Central “independente”, que opõe sérias resistências – ou mesmo impossibilidades – para o governo priorizar investimentos públicos e sociais.

O impasse vem da ditadura militar, com o fracasso do “milagre econômico”, agravado pelo projeto neoliberal, sobretudo após o arcabouço do Plano Real. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pouco lembrada atualmente, é a fonte desses dilemas e de patetices panfletárias, a exemplo do que disse Pedro Malan, ministro da Fazenda dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), também na segunda-feira (12), num evento do mundo financeiro chamado Finance Of Tomorrow: “A sociedade brasileira hoje não permitirá que nenhum governo tenha uma atitude excessivamente leniente e complacente acerca da inflação.”

Esfriamento da economia

Por trás dessa retórica vazia está a preservação dos privilégios conquistados pelo mundo das finanças na “era FHC”. Esse dogma  autoritáro e excludente é uma tendência que vem do golpe militar de 1964. Os economistas que assumiram o controle chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio”: produto de fantasia; devaneio, utopia. Gustavo Franco, presidente do Banco Central na “era FHC”, repetiu a ladainha ao dizer que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso.

Tempos depois, já no primeiro governo Lula, outro ideólogo do arcabouço neoliberal do Plano Real, Luiz Carlos Mendonça de Barros, criticou, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, “o consumo das famílias e os gastos do governo”, responsáveis pelo “nível de absorção interna de bens e serviços”, segundo ele indutores da inflação. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

Seguir à risca esses mandamentos é repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, atribuída a Delfim Netto. Aquela análise monetária-culinária já desconsiderava o princípio de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento nacional, de que conceitos monetários não podem determinar a política econômica de maneira absoluta. Era a linha que estava trocando a fase em que o Estado deu prioridade ao crescimento de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais), adotado sobretudo pela “era Vargas”, pela acumulação financeira.

As consequências foram um longo período de inflação alta, concentração de riqueza e crescimento econômico pífio, sem melhoria dos serviços básicos e sem integração dos milhões de brasileiros que viviam à margem da cidadania e do poder aquisitivo na dinâmica social e econômica do país. Passaram ao largo da premissa de que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento e da sua variada relação de causas e efeitos monetários e estruturais, a afirmação de teses ditas únicas que apresentaram resultados melancólicos.

O desmentido de promessas feitas em tom de profecias, fez crescer as evidências de que o país tomara o caminho errado, mesmo na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci enveredando pelo caminho neoliberal. Eram os “ortodoxos de galinheiro”, na definição do economista Paulo Batista Nogueira Júnior. E seguem incorrendo na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Para eles, a gestão da economia só pode dar resultados positivos se estiver submetida às suas elucubrações.

Ilha da fantasia

O reinado absoluto de Palocci repetiu o viés autoritário dos “ortodoxos” da ditadura militar e da “era FHC”, a ponto de bater de frente até com o vice-presidente da República, José Alencar, crítico ferrenho da acumulação financeira via elevação da taxa de juros pelo Banco Central a pretexto de combater a inflação. “A Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura de bater na taxa de juros. Essa censura existe, tenho sofrido e sido vítima dela”, disse ele numa palestra para empresários na Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Essa gestão macroeconômica é um mundo separado dos reais problemas do país, no qual a razão cede lugar à adivinhação, à cartomancia, uma ilha da fantasia. Ao longo de sua vigência, o que se viu foi uma elite ignorando completamente a racionalidade econômica para justificar, com argumentos matemáticos, a diminuição de suas obrigações diante do Estado e assim se eximir de suas responsabilidades perante a coletividade, abusando do caixa do Estado, principalmente por meio da alta taxa de juros.

A arrogância dos arautos dessa teoria, somada à monopolização dos meios de comunicação pela mídia cartelizada e corrompida, dificulta um debate às claras sobre qual seria o melhor caminho para o Brasil. Esse samba de uma nota só ganhou superpoder com a “independência” do Banco Central, um dos principais itens do programa do golpe do impeachment fraudulento contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, entregue à autocracia protegida pela impunidade garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, um mundo à parte, privado, regido pela farra financeira, com a tese farsesca da “despolitização da moeda”. Isso remete ao problema do Estado, que deve ser visto como instrumento para atender aos interesses da nação, e não atentar contra eles.

– Contubérnio de parasitas no Banco Central “independente”

Por Osvaldo Bertolino

Não existe Estado Democrático de Direito sem transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar a eficácia de suas medidas. Esse é um direito humano fundamental, sonegado pelo controle autoritário da comunicação por uma mídia cartelizada e corrupta à raiz do cabelo.

Nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, está claro, sob o risco de afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do processo deliberativo. O grau exato depende, portanto, do tipo de atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos. Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de regras claras sobre o tema.

Mas, com o controle do Estado por grupos privados, a essência da ditadura do projeto neoliberal, esse princípio básico da democracia fica inviabilizado. Consequentemente, o setor público passa a ser saqueado impiedosamente por grupos de interesses que põem o Estado a seu serviço para pagar-lhes as contas e garantir um fluxo contínuo de dinheiro a custo zero, saído do couro do povo.

Recentemente, o noticiário da mídia corrompida mostrou que o Banco Central “independente” anunciou novas regras para as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o agendamento. É uma espécie de contubérnio entre compadres, sócios do projeto de saque ao Orçamento e ao patrimônio públicos.

Corvo do Banco Central pretende impor desemprego em massa

Por Osvaldo Bertolino

O comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom) que explicou a decisão de manter, pela segunda vez seguida, a taxa básica de juros, a Selic, em 10,5% ao ano, comprova que o Brasil passa por um acentuado acirramento da histórica disputa entre forças progressistas e entreguistas, tendo como ponto central o “ajuste fiscal”, exigido pelo controle autocrático da política monetária do Banco Central “independente”. A pressão midiática sobre o governo, com manifestações explícitas de censura e ataques virulentos, subqualificados, ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, potencializa a perversidade dessa política.

É uma realidade que impõe a máxima inversa à do corvo de Allan Poe: “Sempre mais”. Não há corte orçamentário que dê conta da voracidade financeira. Os recentes bloqueio e contingenciamento de R$ 15 bilhões do Orçamento é um bom parâmetro para se entender essa crueldade, adotado para cumprir a imoral e draconiana Lei de Responsabilidade Fiscal, criada para burlar e criminalizar dispositivos da Constituição que garantem projetos e investimentos públicos. Esse projeto da direita tem a inflação como questão central, sem considerar o emprego e a industrialização. Porque a inflação afeta os ativos, os valores dos títulos públicos e de todo papelório inventado pelos financistas internacionais.

Organização mais poderosa

O bloqueio e o contingenciamento se deram no âmbito do “arcabouço fiscal”, concebido dentro do limite da conjuntura em que Lula tomou posse em 2023 e que possibilitou desatar o nó da emenda constitucional do teto dos gastos públicos, imposta como projeto do golpe de Estado de 2016 contra a presidenta da República, Dilma Rousseff. O “arcabouço” estabeleceu que a meta fiscal – a garantia do exorbitante recurso público consumido pela engrenagem da dívida pública manipulada pela política monetária sob controle da autocracia do Banco Central “independente” – tenha uma banda de flutuação de até 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima e para baixo.

O corte no Orçamento visou o mínimo, para cumprir a imposição da burlesca Lei de Responsabilidade Fiscal, numa demonstração de compromisso do governo com a reconstrução do país. Logo em seguida, desconsiderando esse esforço do governo, o Copom – a organização mais poderosa do país, que se sobrepõe à Constituição e a toda institucionalidade da República – adotou a manutenção da Selic. Em essência, a justificativa foi de que era preciso uma ação preventiva diante da possibilidade de alta da inflação. A principal causa, deduz-se, é a elevação do nível de emprego.

A tese do sistema financeiro é de que a aceleração do rendimento médio aquece o consumo e leva a aumentos salariais acima da inflação, um dos pilares do projeto neoliberal, a teoria da “taxa natural de desemprego”. Ou seja: o controle da inflação pela contenção da demanda dos trabalhadores, uma crueldade que vai além do conceito de exército industrial de reserva desenvolvido por Karl Marx, correspondente à força de trabalho que excede as necessidades da produção, medida adotada, não raro, de forma preventiva. Além de lançar um vasto contingente de trabalhadores no desemprego, os juros elevados encarecem o crédito, com forte impacto no consumo, e travam os investimentos, comprometendo o desenvolvimento do país.

Sentenças de editoriais

Essa é a causa principal da alegação do comunicado do Copom de “que uma política fiscal crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida contribui para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de risco (juros altos) dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”. Não usaram o pretexto do cenário externo, sempre alegado para justificar decisões como essa, ignorando a decisão do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, que manteve inalterada, pela oitava vez seguida, a taxa de juros de referência daquele país, com indicação de queda diante dos sinais de desaceleração da atividade econômica, com redução de criação de postos de trabalho e aumento do desemprego.

Seguindo sentenças de editoriais dos jornalões, o Relatório Focus, divulgado semanalmente com pareceres de consultores financeiros – o “mercado” em carne e osso – sobre suas avaliações futuras de variáveis da economia – entre elas, a especulação com a alta do dólar –, que serve de baliza para a decisão do Copom, tem ignorado esse cenário externo, reforçando o aspecto interno, sobretudo a queda do desemprego, além da forte pressão sobre cortes orçamentários, com a alegação de que existe excesso de gastos públicos, que também pressionaria a inflação.

Gastos públicos – na verdade, investimentos e políticas sociais, como o aumento do salário-mínimo acima da inflação – e demanda interna em crescimento pela queda do desemprego são a essência do projeto de governo do presidente Lula, eleito por uma frente ampla em 2022 que isolou e derrotou, nas urnas, o bolsonarismo. Foi uma operação que implicou também o debate sobre os rumos do projeto neoliberal, que se firmou na década de 1990 com as eleições de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e seu projeto tocado por uma poderosa equipe de tecnocratas, sob o rótulo do Plano Real, após um precário ensaio no final do governo de José Sarney e as turbulências do período de Fernando Collor de Mello.

Hostilidades neoliberais

O ciclo dos governos Lula e Dilma Rousseff rompeu muitas amarras do arcabouço do Plano Real, mas o projeto neoliberal recobrou forças com a marcha golpista e após o golpe do impeachment de 2016. A condução trôpega do processo golpista, sobretudo pelo governo Bolsonaro, levou os ideólogos da direita a se voltar para a tática de dar à frente ampla a sua dinâmica, numa atitude de confronto aberto com o projeto representado pelo núcleo de esquerda que se uniu em torno de Lula numa trajetória iniciada nas eleições de 1989. Assim que saiu o resultado das eleições de 2022, as forças políticas da frente ampla procuraram ajustar sua tática para redefinir suas posições em busca de influência nos diversos setores da sociedade.

Ao assumir a Presidência da República, Lula passou a enfrentar as hostilidades neoliberais, uma condição que remete à reflexão sobre os grandes momentos históricos nacionais, sempre precedidos de duras lutas, inclusive pelas armas. Foi assim nas lutas pela independência, pela Abolição, pela derrocada da Primeira República, pelo fim do Estado Novo e da ditadura militar. E as vitórias ocorreram sempre que as forças mudancistas optaram pela tática da mais ampla unidade nacional.

Mais uma vez, estamos diante de um momento histórico assim, com o desafio de transformar possibilidades em realidades. O governo está sob forte pressão pela manutenção da ordem neoliberal restaurada com o golpe de 2016, a integração plena do país ao cassino global, caminho oposto, por exemplo, ao da China, que escapou da agonia da especulação financeira com seu sistema imunológico melhor definido basicamente pelo bloqueio da conversão da moeda local, o yuan, em moeda externa.

– FHC: a face da corrupção do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Roberto Civita, filho do fundador da Editora Abril, Victor, manteve por muito tempo em sua sala uma foto de Fernando Henrique Cardoso (FHC). “Pensam que a Abril apoia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apoia o programa de Fernando Henrique. É o Fernando Henrique que apoia o programa de governo da Abril”, disse ele certa vez. Era a negação dos treze pontos que magnetizaram o país na campanha de 1989, embalados pelo slogan Lula lá.

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A fala de Roberto Civita pode ser associada a um pronunciamento de FHC, em 1995, sobre a ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos. “Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo”, discursou ele. FHC não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões.

Era um verdadeiro devaneio, uma abstração inconsequente, possivelmente influenciado pela concepção baseada na ideia de que os conceitos de esquerda e direita foram varridos pela ordem neoliberal. Como não havia mais a oposição básica que lhe daria sentido, Washington capitalista e Moscou socialista, prevalecia o triunfo definitivo do capitalismo, a “nova ordem mundial” do presidente dos Estados Unidos, George Bush pai, que seria o fim da história, na definição de Francis Fukuyama. Ou a proclamação do pensamento único, o primado de que qualquer ideia fora de sua órbita representava o atraso. Defendê-la era coisa para caipiras e neobobos, segundo FHC.

Caipiras e neobobos

Em 15 de julho de 1996, em visita a Portugal, ele declarou: “Como vivi fora do Brasil, na Europa, no Chile, na Argentina, me dei conta disso: os brasileiros são caipiras. Desconhecem o outro lado e, quando conhecem, se encantam. O problema é esse.” Mais adiante ele diria: “Só quem não tem nada na cabeça fica repetindo que o governo só se preocupa com o mercado, que é neoliberal. Isso é neobobismo.” A mídia, coalhada de “economistas” e “comentaristas” afinados com a ideia de FHC, propagava essa cantilena diuturnamente.

FHC tangia politicamente aquilo que o jornalista Aloysio Biondi chamava de destruição da “alma nacional”. Sob a alegação de que era preciso reduzir a dívida interna e o déficit público, o governo vendeu tudo: bancos, ferrovias, empresas de energia, telefônicas, siderúrgicas e até estradas e portos. Biondi chamou os responsáveis por essa destruição de “clones malditos dos intelectuais de ontem”, que “destruíram o que havia sido construído ao longo de décadas”. “Destruíram mais. Destruíram o sonho, a alma nacional. O que somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Somos um curral”, escreveu ele no livro O Brasil privatizado.

Investiram contra o trabalhador, o funcionalismo público, o aposentado, o agricultor, o empresário nacional e o Estado, patrocinando desemprego, cortes na aposentadoria e nos direitos trabalhistas, falsas reformas do funcionalismo, falências, facilidades para importações e juros escorchantes – jogando, assim, um seguimento da população contra outro, afirmou. Até o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, foi posto a serviço dessa desconstrução nacional. (Biondi chamava o banco de Banco Nacional de Desmantelamento Econômico e Social.) Sem demanda e sem infraestrutura, a produção estagnou.

Conta da “estabilidade”

Em 1994, Lula disse que a conta da “estabilidade” — o Plano Real — seria posta na mesa do povo e ela seria salgada. Isso porque FHC escondeu seu real programa de governo. A maioria da sociedade, ansiosa pelo controle da inflação que castigava o país desde que o “milagre econômico” dos generais golpistas começou a fazer água, em meados da década de 1970, não viu as cláusulas do contrato escritas com letras minúsculas.

Uma delas era a cadeira da presidência do Banco Central, que passou a ser um dos postos mais importantes entre todos os ocupados pela legião de “economistas” que foi instalada nos mais destacados postos do governo e fez da passagem por Brasília um trampolim para uma abastada carreira no mercado financeiro. Até então, os ocupantes de cargos no Banco Central só eram conhecidos por quem tinha algum interesse específico na área financeira. Na “era FHC”, eles ganharam uma independência nunca vista no Brasil.

Era o que chamavam de “despolitização da moeda”, a criação de resistências – ou mesmo impossibilidades – a políticas de prioridades aos investimentos públicos, ideia que levou os dois governos FHC a uma conduta ideologicamente reacionária e politicamente fisiológica e clientelista. Em suas eleições, prevaleceu a linguagem publicitária, que substituiu o debate político franco, direto, com o uso de mais clipes e menos papo, menos verbo e mais efeitos especiais. Foram, enfim, eleições ajustadas ao molde neoliberal.

No plano político, o país passou a ser dirigido por um insólito concerto de facções da direita, cujo esteio era a aliança do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), constituída sob uma boa representação no Congresso Nacional e uma vasta rede de vereadores, deputados estaduais e prefeitos. As decisões eram tomadas entre quatro paredes, longe dos olhos do povo, muitas vezes tramadas com corrupção desbragada – não foram poucos os aliados de FHC pegos com a galinha no saco e nada sofreram. A corrupção rondou o Palácio do Planalto e não existiu uma condenação veemente por parte do governo.

Cartão vermelho

Essa constatação ajuda a compreender a afirmação de José Serra, candidato da direita à sucessão de FHC em 2002, de que, “numa perspectiva republicana, o governo é para servir às pessoas, não aos partidos” (ideia que serviria de base para o lavajatismo que levou ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016). Há, nessa afirmação, dois sofismas. O primeiro é a deliberada generalização das “pessoas”. O segundo é a tentativa demagógica de negar que os partidos são expressões da democracia. Era o crepúsculo da “era FHC”, um autêntico fim de feira.

Serra dizia que enfrentaria o desafio de neutralizar a dicotomia entre inflação baixa, represada pelos juros altos, e crescimento econômico, sem mexer nos fundamentos do Plano Real. Ele dizia que era possível. O povo não acreditou. Como não dava para servir a dois senhores, logou mostrou que estava claramente a serviço do capital financeiro. Não existia explicação plausível para a conciliação entre juros altos, uma bola de chumbo atada ao tornozelo da produção, e a geração de empregos. FHC prometeu conciliar esses conceitos opostos e não cumpriu. Nem tentou, o que demonstrava mais uma demagogia eleitoreira.

Lula chegou às eleições de 2002 com força porque fez as três campanhas anteriores defendendo coisas básicas como o direito a todo brasileiro de ter no mínimo três refeições por dia. A esperança de avanço social com o projeto neoliberal não existia mais. O povo olhava para a “era FHC” e só enxergava inépcia e fracasso. FHC e Serra receberam cartão vermelho, uma grande conquista para o país.

– O Plano Real contra a soberania nacional

Por Osvaldo Bertolino

Multidões nas ruas, palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, bombas de gás lacrimogêneo, tumulto. Este cenário era comum nas conturbadas privatizações dos anos 1990, sobretudo após o Plano Real, o catalisador de votos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Em 1994, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato da oposição, cortava o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania, FHC desfilava na mídia prometendo o que não cumpriria. Estava em andamento, como base da “estabilização da moeda”, a preparação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), a adequação do sistema bancário ao mercado de títulos públicos, aquecido com a liberalização financeira.

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O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

A visão do PCdoB sobre o Plano Real

De 1º de julho de 1994, data da implantação do Plano Real, a 3 de novembro de 1995, quando o Proer foi instituído por uma Medida Provisória, o Banco Central fez 22 intervenções no sistema bancário. Em 17 de novembro de 1995, outra Medida Provisória deu ao Banco Central a obrigação e o poder de escolher os bancos que teriam solidez. De outubro de 1995 a maio de 1996, o governo liberou US$ 12,1 bilhões, salvando bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira.

Estava também em andamento o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelo presidente dos Estados Unidos George Bush – pai do também presidente George W. Bush – em 1990 e reavivada em 1994, uma resposta ao fracasso das negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que enfrentava protestos onde se reunia. Seria uma ferramenta sobressalente, reserva estratégica que permitiria entrar pela janela o que não pôde entrar pela porta, a realização em escala regional daquilo que não pôde ser feito em escala mundial, na definição da professora do Centro de Pesquisas e Estudos sobre a América Latina e Caribe (Crealc), Janete Habel.

O Brasil entregou o comércio exterior a um grupo de 45 diplomatas, nove dos quais acreditados em Genebra – onde fica a sede da OMC – e seis na missão junto à União Européia, em Bruxelas, nenhum deles especialista em Alca. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães, que seria secretário-geral do Itamaraty no governo Lula – após ser demitido do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (Ipri) pelo ministro das Relações Exteriores do governo FHC, Celso Lafer, por suas repetidas e enfáticas criticas à entrada do Brasil na Alca -, o Brasil corria o risco de adotar uma incorporação de forma subordinada e assimétrica ao sistema econômico e político dos Estados Unidos.

“Julgava-se então que o livre ingresso de bens e de capitais estrangeiros modernizaria a estrutura produtiva e geraria exportações suficientes para compensar as remessas de recursos”, disse ele. “Nosso desarmamento unilateral, pensava-se, colaboraria para o desarmamento das grandes potências. Elas, porém, continuaram a se armar e a agir cada vez mais arbitrariamente. Acreditava-se na imparcialidade de agências como a OMC e o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o que se constata é o seu viés pró-Estados desenvolvidos”, afirmou. “O projeto da Alca atende aos interesses estratégicos dos Estados Unidos para a América do Sul, mas afeta muito em especial o Brasil, devido a nossas dimensões territoriais, de população e de PIB”, comentou

A Alca colocaria em confronto direito, ainda que gradualmente, as megaempresas multinacionais americanas e as empresas brasileiras, disse ele em entrevista ao jornal Correio Braziliense de 19 de abril de 2001. “As regras internacionais que viriam a ser consagradas pela Alca levariam à impossibilidade prática de o Brasil exercer políticas comerciais, industriais, tecnológicas, agrícolas e de emprego indispensáveis à superação das extraordinárias disparidades sociais e da crônica vulnerabilidade externa”, afirmou.

Um plebiscito organizado por entidades do movimento social, precedido de uma campanha de esclarecimento, ocorreu entre 1º e 7 de setembro de 2002, em 3.894 municípios. Dos 10.149.542 votantes, 98% manifestaram-se contrários à adesão. Renato Rabelo, então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que o plebiscito era “um instrumento de divulgação para a sociedade do significado da Alca para o nosso país e suas influências na vida dos trabalhadores”. Segundo ele, a Alca representava a continuidade do Consenso de Washington, projeto do governo norte-americano para ser aplicado na década de 1990 com o objetivo de alinhar os seus interesses na América Latina. “Esse tipo de zona de livre comércio, com os Estados Unidos no centro, é o mesmo que colocar numa piscina um tubarão e várias piabas: é evidente que elas serão extintas pelo tubarão”, exemplificou.

Ataques especulativos

O Proer e a Alca eram a essência do projeto neoliberal, que cumpria um novo ciclo na América Latina, depois da condução anglo-saxã de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos) e Margaret Thatcher (primeira-ministra da Inglaterra), com os presidentes Augusto Pinochet (Chile), Carlos Menen (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Carlos Andrés Perez (Venezuela) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Alguns se tornaram foragidos da lei, abrigados pelos Estados Unidos. O segundo ciclo se iniciava novamente sob a condução anglo-saxã, desta vez com Bill Clinton (Estados Unidos) e Tony Blair (Inglaterra), cujo símbolo foi o governo do presidente Fernando de la Rua, na Argentina, que fugiu, de helicóptero, de uma revolva popular nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, deixando para trás um saldo de mais de 30 mortos, cinco deles na Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires.

Assim começou a “era FHC”, soprada pela massa do que se dizia ser o “capital da nova era”, que gira pelos países em velocidades jamais vistas e emprestou ao capitalismo nova feição. Na definição do famoso economista norte-americano John Kenneth Galbraith, essa “nova era” tornou “o mundo mais vulnerável a manifestações de insanidade”, governado por uma massa de dinheiro opulenta, que passou a ser o personagem-chave das finanças internacionais, onipresente e onisciente, para a qual barreiras e fronteiras nacionais são meras abstrações, vagando em escala planetária diariamente ao comando de teclas de computador acionadas por operadores ávidos por mais dinheiro, assombrando principalmente economias dependentes.

São fundos formados por “investidores” sem face, unidos por instituições financeiras esparramadas pelo mundo afora, os chamados “mercados”, com seus “ataques especulativos” que atingiram o Brasil de frente pelo furacão que começou a girar na Ásia em 1997. Quando a farra especulativa começou a baixar a poeira, porque não encontrava mais contrapartida na economia real (pois, afinal, quem produz valor e excedente para alimentar a especulação é a economia real), surgiu a ameaça de insolvência, isto é, os créditos apodreceram. O projeto neoliberal estava espalhando a tendência de estagnação econômica dos países centrais – sobretudo dos Estados Unidos – e gerando crises financeiras assombrosas.

Donos estrangeiros

Ao denunciar, no primeiro semestre de 1997, a “exuberância irracional” das bolsas de seu país, o presidente do Fed (o banco central norte-americano), Alan Greenpan, estava constatando o esgotamento desse processo de especulação. A bolha estourou e seus ecos se espalharam pelo mundo quando a Enron puxou a fila de empresas que protagonizaram verdadeiros escândalos financeiros nos Estados Unidos, mostrando o tamanho dos “mercados” especulativos.

Essa massa amorfa de “investimentos” começou a aportar no Brasil, ainda no governo Collor, no leito do “choque de concorrência” proporcionado pela diminuição da proteção cambial e tarifária. Símbolos do capitalismo brasileiro – como Metal Leve, Cofap, Arisco e Bamerindus – entregarem as chaves para ícones do capitalismo mundial, como Bosch-Siemens, Gessy Lever e Hongkong & Shangai Banking Corporation (HSBC). Dados divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo dia 3 de outubro de 1999 revelam que a desnacionalização da indústria e do setor de serviços no Brasil havia produzido, do início do Plano Real até então, um aumento do envio de dinheiro pelas multinacionais para fora de US$ 2,5 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões.

Em 1994, segundo o jornal, apenas 0,38% dos US$ 2,1 bilhões em investimentos externos foram para a compra de empresas já constituídas. Em 1998, o percentual já era de 74,1%. Ou seja: dos US$ 28,7 bilhões que entraram, US$ 21,3 bilhões foram usados para que empresas brasileiras passassem a ter donos estrangeiros. A desnacionalização da economia brasileira implicou outra armadilha trágica: o Brasil entrou ainda mais no beco da dívida externa. Com a economia nas mãos das multinacionais, criou-se uma sangria permanente de despesas com dólares por dois caminhos principais: a compra de peças e componentes para produtos apenas montados aqui, de acordo com as ordens das suas matrizes, e um brutal aumento das remessas de lucros e dividendos.

O método de tratamento às críticas a essa insensatez era truculento. Gustavo Franco, o arrogante presidente do Banco Central, certa vez chamou Delfim Netto de “porta-voz do Parque Jurássico” para responder a críticas sobre a apreciação cambial. Em outra, ele comentou a resistência dos portuários à privatização dos portos chamando os trabalhadores de “flanelinhas de navio”. Em resposta a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que alertou para o peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo, ele disse que ali estava um “covil de retrógrados”.

Essa política empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em vários centros industriais do país, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas. Antigas indústrias transformaram-se em galpões abandonados – ou ocupados para outros fins teoricamente não econômicos – e levas de desempregados passaram a perambular pelas ruas, sem perspectivas. Eram as vítimas da lógica neoliberal segundo a qual para que alguns possam emergir social e economicamente muitos precisam submergir na pobreza e na miséria.

Privatização da Petrobras

Nesse processo, o programa de privatizações selvagens, que vinha do governo Collor, se acelerou. O símbolo dessa política foi a ideia de privatizar a Petrobrás, que surgiu oficialmente em 1996 quando um tucano de alta plumagem – o então presidente do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luis Carlos Mendonça de Barros – desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério – ele foi um dos baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. Em seguida, os petroleiros lançaram a palavra de ordem Defender a Petrobrás é defender o Brasil, uma síntese que remontava ao despertar do país para a importância do petróleo nacional muito tempo antes.

A Petrobras foi avariada, mas os neoliberais não reuniram forças para privatizá-la. Já em 1995, acabaram com o monopólio estatal do petróleo, decisão proclamada por FHC como “página virada” na história do Brasil. Mas houve força para privatizar empresas estratégicas, como a Vale do Rio Doce, processo que enfrentou forte resistência. Em maio de 1997, em pleno auge da “era FHC”, a revista Veja divulgou uma pesquisa mostrando que 50% dos entrevistados discordavam daquela privatização. Outros 18% não tinham opinião e apenas 30% apoiavam. Ou seja: sete de cada dez brasileiros não estavam de acordo com uma ação que foi considerada outro símbolo das privatizações selvagens.

Limite da irresponsabilidade

Os escândalos de corrupção também marcaram aquele período. O mais conhecido se deu com Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e apontado como um dos arrecadadores de recursos para campanhas eleitorais do PSDB, flagrado dizendo que atuava no “limite da irresponsabilidade” no processo de privatização do sistema Telebrás. Um grampo do BNDES trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos daquela privatização.

Soube-se que “o maior negócio da República”, tramado por Luiz Carlos Mendonça de Barros – então do Ministério das Comunicações –, André Lara Resende – então da presidência do BNDES – e o banqueiro Daniel Dantas, ocorreu numa atmosfera de alto risco (“no limite da irresponsabilidade”), em meio a um linguajar raso (“se der m…, estamos juntos”) e com pitadas de truculência (“temos de fazer os italianos na marra”). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre as “vantagens” da negociata, assentiu dizendo: “Não tenha dúvida, não tenha dúvida.”

Dizia-se que seria necessário privatizar para abater a dívida pública e liberar bilhões de dólares das despesas com juros para financiar investimentos sociais. FHC afirmou que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal-nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse. Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continuou estratosférica.

Os “guardiões da moeda” garantiam que o fluxo mirabolante de capital especulativo não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico competitivo. Nada de intervencionismos do Estado, nada de incentivos à microeconomia doméstica.

O efeito cachaça

Em outubro de 1998, FHC, se aproveitando da crise que começou na Ásia, disse: “A opção é simples: fazer logo o ajuste (as reformas), enfrentando os sacrifícios necessários, e voltar a crescer o mais cedo possível. (…) O Estado se tornou incapaz de cumprir o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro.” O Brasil estava no centro do que o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, chamou de “a pior crise financeira do mundo nos últimos 50 anos”. A saída foi um acordo falimentar com o Fundo Monetário Internacional para obter empréstimo de US$ 30 bilhões, condicionado à resolução dos “problemas” a que se referia FHC, um brutal “ajuste fiscal”. Na época do acordo, o Brasil estava em destaque nos principais jornais do mundo. Na definição do The New York Times, o país constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times. O medo de que o Brasil pudesse arrastar os países centrais para uma recessão chegou a ser tema de um seminário realizado em Washington pelo Center for Strategic and International Studies, entidade privada que congregava personalidades como os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. O nome do evento foi sugestivo: Os próximos 90 dias – o efeito cachaça. Numa reunião em setembro de 1998 com os ministros da Fazenda da América Latina e dos Estados Unidos, os dirigentes do FMI deram o recado claramente ao recomendar que o rumo traçado pelo neoliberalismo deveria ser seguido rigorosamente.

Código de Bancarrota

Na Folha de S. Paulo, de 13 de junho de 1999, o economista Celso Furtado escreveu que, com essa política, “o país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida, que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos”. “É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, escreveu.

Furtado explicou que os recursos postos à disposição do Brasil aprofundaram o endividamento do país. “Diante dessa perspectiva, teríamos de reconhecer que o recurso à moratória seria um mal menor em comparação com a abdicação da responsabilidade de o país autogovernar-se”, disse. Na opinião de Furtado, o essencial seria que o entendimento com os credores fosse adequadamente programado nos planos externo e interno. “Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Caberia inspirar-se no capítulo 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos, conforme recomenda a Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de reduzir a volatilidade dos fluxos de capital a curto prazo”, escreveu.

Lembrando Lênin, ele perguntou: o que fazer? “A estratégia a ser seguida comporta uma ação em três frentes. A primeira delas visa reverter o processo de concentração patrimonial e de renda que está na raiz das distorções sociais que caracterizam o Brasil. Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão-de-obra sub-ocupada. Esses fatores dificilmente se encontram em outras partes do planeta. (…) A segunda frente a ser abordada é a do atraso nos investimentos no fator humano, atraso que se traduz em extremas disparidades entre salários de especialistas e do operário comum. (…) A terceira frente de ação refere-se à forma de inserção no processo de globalização. Esse processo traduz a prevalência das empresas transnacionais na alocação de recursos raros, decorrência da importância crescente do fator tecnológico na orientação dos investimentos”, respondeu.

Brasil se tornou adulto

O projeto da Alca foi enterrado com a ascensão da esquerda na América Latina, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998. O acordo com o FMI foi encerrado no governo Lula. “Não fizemos nenhum barulho, rompemos o acordo porque não precisávamos mais do FMI”, afirmou o presidente. Ele disse que o país agora pode dizer que “tem governo” e é “dono de seu próprio nariz”.

O Brasil já havia passado por essa experiência quando o governo do presidente Juscelino Kubitschek (JK) tentou executar o “programa de estabilização” elaborado pelo seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, e pelo diretor do Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), Roberto Campos (este último um célebre economista de direita que marcaria época no regime militar). Havia uma contradição evidente: como conciliar altos investimentos com arrocho fiscal? Argentina e Chile experimentavam o tratamento de choque do FMI e os resultados faziam com que o plano de Lopes e Campos enfrentasse forte resistência no Brasil. Mas a pressão externa era grande e JK acabou cedendo, o que resultou no inevitável conflito entre seu “Programa de metas” e a “estabilização”. Lopes e Campos se isolaram no governo.

A controvérsia acabou com as ordens do presidente da República para que as negociações com o FMI fossem rompidas. Lopes e Campos pediam a JK paciência porque a economia estava prestes a gozar dos frutos da “estabilização”, argumento que seria repetido pelos neoliberais da “era FHC”. Mas o presidente não quis saber de conversa. Em discurso no Clube Militar, palco de intenso debate sobre as duas orientações que existiam no governo, JK disse: “O Brasil já se tornou adulto. Não somos mais os parentes pobres, relegados à cozinha e proibidos de entrar na sala de visitas. Só pedimos a colaboração de outras nações. Através de maiores sacrifícios poderemos obter a independência política e, principalmente, a econômica, sem ajuda de outros.”

– O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

Por Osvaldo Bertolino

Na madrugada de 24 de maio de 1995, trabalhadores de quatro refinarias da Petrobras foram surpreendidos por canhões de tanques do Exército apontados para eles. A ocupação militar, na calada da noite, foi uma resposta a uma greve que reivindicava o cumprimento de acordos assinados no governo Itamar Franco e descumpridos pelo seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC). As negociações salariais se arrastaram pelo ano anterior e resultaram em compromissos assumidos por Itamar e seu ministro da Minas e Energia, Delcídio Gomes. Até mesmo um acordo do presidente da Petrobrás, Joel Rennó, com a Federação Única dos Petroleiros (FUP) foi ignorado.

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Tropas militares ocuparam três refinarias em São Paulo e uma no Paraná. A decisão foi tomada na noite de 17 de maio numa reunião entre FHC e os ministros do Exército, general Zenildo Lucena, e das Minas e Energia, Raimundo Brito. Foi a segunda vez, após a ditadura militar, que tanques reprimiram trabalhadores – em 1988, três operários morreram na Companhia Siderurgica Nacional (CSN), numa invasão autorizada pelo então presidente da República, José Sarney.

A greve dos petroleiros havia sido julgada “abusiva” pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. A categoria ficou entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco de repressão. Ficaram com a segunda e receberam ampla solidariedade. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram em todo o país contra a ocupação militar das refinarias.

Racismo na Rede Globo

A revista Veja divulgou que, em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir os petroleiros em greve nas principais refinarias. As importações custaram à Petrobras US$ 700 milhões. Tudo isso gastando R$ 20 milhões por dia, quando o cumprimento dos acordos representava R$ 14 milhões. O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria os que divergissem de seu governo.

A mídia, mais uma vez, armou seu circo para difamar os trabalhadores. Paulo Francis, à época comentarista da Rede Globo de Televisão e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, disse: “Uma das falhas do governo FHC é sua boa educação. É preciso meter as mãos na cabeça raspada do Vicentinho (então presidente da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, da qual a FUP era filiada) língua-presa. Eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo.” Alexandre Garcia, que fora ligado à ditadura militar, também da Rede Globo, afirmou que a ocupação militar era uma medida necessária para evitar que os petroleiros ameaçassem o patrimônio físico das refinarias.

FHC havia investido contra a lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional, para ele uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. Na verdade, era uma investida contra a legislação trabalhista, a incompatibilidade do projeto neoliberal com a liberdade de organização dos trabalhadores, demonstrada no início dos anos 1980 pelo governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de voo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que estes retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.

A primeira-ministra da Inglaterra, Margareth Thatcher, outro símbolo do autoritarismo neoliberal, também fez o mesmo com as greves dos mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pelo neoliberalismo, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário – responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores ingleses. Apesar da solidariedade que se espalhou por todo o Reino Unido, da coesão entre trabalhadores mineiros e suas famílias – especialmente as mulheres – e da importante solidariedade internacional, a greve foi derrotada.

Ministro inoportuno

FHC assumiu com a promessa de implodir a estrutura sindical e a legislação trabalhista. A ideia começou a ser formada logo após a promulgação da Constituição de 1988, quando os principais executivos das empresas multinacionais instaladas no Brasil criaram um grupo permanente para organizar o lobby que atuaria no golpe fracassado da “revisão constitucional” de 1993. Em 1994, o presidente FHC foi buscar o economista Paulo de Tarso Almeida Paiva, que atuava no governo do Estado de Minas Gerais, para ocupar o Ministério do Trabalho com a função definida de comandar o ataque à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e à Constituição.

Quando o presidente apresentou seu ministério, fez uma menção especial a Paiva. “Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país”, disse, referindo-se à “era Vargas” como “apodrecida”. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro do Trabalho provocou uma tempestade ao defender, na sede da Força Sindical, em São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem “disponíveis para negociação”. “O ministro foi, no mínimo, inoportuno”, disse o então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros. O porta-voz da Presidência, Sérgio Amaral, anunciou que “o governo jamais cogitara de retirar da Constituição os sagrados direitos dos trabalhadores”. Era uma falácia.

Tudo virou barganha

Os trabalhadores iniciaram o combate ao Plano Real assim que ele surgiu. Em fevereiro de 1994, as centrais sindicais anunciaram uma greve geral contra as perdas da conversão dos salários pela média da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda, que chegavam a 36%. Para os preços, segundo FHC, não era preciso regras de conversão porque o próprio “mercado” se incumbiria de conter os abusos. Seu plano só atingia os salários. Greves e manifestações começaram a pipocar. Em 1º de março de 1994, as centrais sindicais definiram um plano de lutas e programaram um Dia nacional de lutas contra o arrocho da URV.

O passo seguinte foi uma manobra do governo para envolver as centrais na “reforma” da Previdência Social. Os termos previstos no acordo – substituição da aposentadoria por tempo de serviço por tempo de contribuição, fim da aposentadoria proporcional, fim da aposentadoria especial para os professores universitários e novas regras para aposentadoria integral no serviço público – foram duramente criticados. Em 21 de junho de 1996, uma greve geral, mesmo em meio àquele clima hostil, foi considerada um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve – ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação, mostraram o seu sucesso. Mas as condições para a ação sindical eram cada vez mais duras.

O governo havia editado uma Medida Provisória (MP) – chamada de MP da desindexação – que na prática proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho. As campanhas salariais muitas vezes se resumiam à luta para não perder direitos. No dia 25 de abril de 1997, os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do Plano Real. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país.

O primeiro golpe efetivo da “era FHC” na “era Vargas” ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1998, quando a “reforma” da Previdência foi aprovada no Congresso Nacional. Mas a direita pagou caro – na mesma data, ocorreu o Dia nacional de luta contra a reforma da Previdência. Nos bastidores da votação, a corrupção fervilhou. Tudo virou barganha. A obrigatoriedade do selo de controle colado no para-brisa dos carros tornou-se lei para atender a um lobby do sobrinho do deputado Delfim Netto, do Partido Progressista Brasileiro (PPB), uma das derivações das organizações partidárias que sustentaram a ditadura militar. A corrupção chegou a detalhes reles – um deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) negociou a transferência de sua mulher de São Paulo para Brasília. Um caminhão de dinheiro da Caixa Econômica Federal (CEF) foi liberado para a compra de votos.

A direita cooptava, mas também deixava o uso da força sempre ao alcance. “Se precisar bater, bata. Se precisar atirar, atire. Aqui não vai entrar ninguém. Eu estou aqui”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães, o ACM (PFL-BA), presidente do Congresso Nacional, aos seguranças chamados para reprimir os trabalhadores. O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ameaçou mandar a Polícia Militar atirar nos manifestantes se eles não se retirassem do plenário. FHC e a mídia abusaram da retórica para atacar os “baderneiros” que protestaram em todo o país.

Farsa de ACM

O país se arrastava e logo seria atingido de frente pelo furacão do ataque especulativo que começou na Ásia. O governo correu para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs duras condições para um socorro emergencial. Novas manifestações tomaram conta do país, puxadas pelo Fórum nacional de luta por trabalho, terra e cidadania, que lançou, em 1º de março de 1999, a Jornada nacional em defesa do Brasil. Em 26 do mesmo mês, sob a palavra de ordem Basta de FHC!, mais uma vez os trabalhadores foram às ruas.

O governo também agiu para amedrontar a Justiça do Trabalho. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas por ACM – um dos principais aliados de FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. A ordem era não conceder reajuste. ACM chegou a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho.

Em 26 de agosto de 1999, os trabalhadores promoveram a Marcha dos 100 mil, em Brasília, que representou uma grande vitória da unidade entre os partidos de oposição e o Fórum nacional de lutas. Aquela demonstração histórica de mobilização popular foi o resultado da consolidação da Frente de oposição democrática e popular, depois de sucessivas manifestações contra o projeto neoliberal. Representantes da Marcha dos 100 mil entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados 1 milhão e 300 mil assinaturas exigindo a instalação da CPI da Telebrás para apurar corrupção no processo de privatização do sistema telefônico brasileiro.

Índices de impopularidade

No ato da Marcha dos 100 mil em Brasília, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) expressou, em poucas palavras, o que representava aquele momento. “Estou gratificado. Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”, disse ele em resposta ao então presidente da República, que classificou a Marcha dos 100 mil como manifestação dos “sem rumo”. Dirigindo-se diretamente a FHC, Lula afirmou: “Quem não tem rumo é você”.

Os manifestantes deixaram claro que não pretendiam apenas uma mudança no governo, mas uma mudança de governo. Ou seja: a saída do presidente menos de oito meses após a sua posse no segundo mandato, traduzida no slogan Fora, FHC!. “Temos de fazer milhares de movimentos como este até tirar essa gente do poder”, discursou Lula, confirmando o que o presidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Leonel Brizola, dissera um pouco antes no mesmo palanque montado em frente ao Congresso Nacional. “Esse ato é apenas o começo de uma grande jornada que só vai parar no dia em que tivermos um governo em que o povo brasileiro confie”, afirmou Brizola.

O cumprimento das metas impostas pelo FMI corroía o governo. FHC, já abalado por altos índices de impopularidade, isolava-se cada vez mais. Uma nota assinada pelo Fórum nacional de lutas refletiu bem essa constatação. O documento defendeu emprego para todos, aumento geral de salários, redução da jornada de trabalho, fim das privatizações e auditoria nas empresas privatizadas, suspensão do pagamento da dívida externa e ampla reforma agrária. O texto também mencionou o pedido de impeachment de FHC e pediu a instalação da CPI das privatizações das empresas de telecomunicações.

FHC reagiu com mais ameaças. Questionado sobre a possível volta de uma lei para corrigir os salários automaticamente, disparou: “No limite, eu veto. Eu não vou deixar.” Para os neoliberais, cada empresa deveria definir sua política salarial. É o que chamavam de “livre negociação”. Em 2001, o país viveu o auge dos ataques à legislação trabalhista. FHC encaminhou ao Congresso um projeto de lei alterando o artigo 618 da CLT. “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de segurança e saúde do trabalho”, dizia a nova redação de FHC.

Hitler e o pastor Jim Jones

Era só o começo. O governo pretendia desregulamentar os 34 incisos do artigo 7° da Constituição – espécie de mini código do trabalho –, que tratam de direitos como jornada de 44 horas semanais, salário-mínimo, seguro-desemprego, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), aviso prévio, limites para a despedida arbitrária, piso salarial, irredutibilidade de salário e sua garantia, décimo-terceiro e remuneração do trabalho noturno. “Em que pese a pouca abrangência da reforma, o seu aspecto gratificante é saber que o governo atual está inspirado por uma nova mentalidade e uma nova determinação, tornando possível a reforma trabalhista em curso, que, até pouco tempo atrás, parecia impossível, empalidecendo as minorias vociferantes e conservadoras e as viúvas ideológicas”, disse o então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles.

A “reforma” da legislação e das práticas trabalhistas era uma das peças centrais do projeto neoliberal, um dos pilares do Plano Real. O projeto de lei de FHC, alterando o artigo 618 da CLT, fazia parte – em conjunto com a privatização da Previdência, da Saúde, da educação e do saneamento básico – das “reformas” de segunda geração previstas no pacote de exigências contidas no acordo com o FMI. FHC já havia conseguido a lei n. 9.601/1998, sobre o contrato por prazo determinado; editado a medida provisória n. 1.709, que instituiu o trabalho de tempo parcial; e o decreto n. 2.100, autorizando a demissão sem motivo.

A revista Época havia noticiado que ACM foi escalado por FHC para convencer os juízes trabalhistas a segurar os reajustes salariais. Em São Paulo, circulavam rumores de que FHC estaria articulando, por meio do secretário-geral da Presidência da República, Eduardo Jorge, e o juiz Nicolau dos Santos Neto – que mais tarde seria um foragido da Justiça –, a indicação de juízes pró-Plano Real em troca de dinheiro para a construção superfaturada do novo prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). ACM disse que estava recebendo apoios à ideia de acabar com a Justiça do Trabalho e provocou a seguinte resposta do então presidente do TST, Wagner Pimenta: “E daí? Hitler e o pastor Jim Jones também tiveram apoio às suas ideias.”

– O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Em 28 de junho de 1989, o candidato a presidente da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Mário Covas, marcou o início de sua campanha com o discurso que ficou famoso pelo título Choque de capitalismo. Era uma expressão da revoada – o partido assumiu o tucano como símbolo – de economistas para o ninho que estava nascendo, a chamada turma dourada do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) do final da década de 1970 e início dos anos 1980.

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Covas disse: “Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas. Basta de empreguismo. Basta de cartórios. Basta de tanta proteção a atividades econômicas já amadurecidas. Mas o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.”

O mesmo discurso ficaria famoso na boca de Fernando Collor de Mello, o ungido pelo projeto neoliberal para ser o candidato oficial da direita. Era uma repetição da ladainha de Margaret Tatcher, primeira-ministra da Inglaterra, e Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, precursores do projeto neoliberal, propagada como versão revisitada do liberalismo de Adam Smith. Seu livro Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, bíblia do liberalismo, suplantado pelo imperialismo como fase superior do capitalismo – na definição de Vladimir Lênin, líder da Revolução Russa de 1917 –, passou a circular amplamente, inclusive em exibições públicas de Collor.

Símbolo do udenismo

O PSBD foi concebido no influxo da propaganda do neoliberalismo de Tatcher e Reagan como ala do PMDB que se organizou no processo das eleições estaduais de 1982. Orestes Quércia era o principal líder do PMDB no estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Franco Montoro, eleito governador. Ficou decidido que ele seria o candidato do partido na sucessão estadual de 1986.

Um dos fundadores do MDB – transformado em PMDB com a Lei de Reforma Partidária, aprovada em 21 de novembro de 1979 –, Quércia despertou a ira dos poderosos quando foi eleito senador em 1974, vencendo de maneira acachapante Carvalho Pinto, candidato da ditadura militar e símbolo do udenismo – a organização de conservadores e golpistas chamada União Democrática Nacional (UDN) que precedeu o golpe de 1964 –, um barão da aristocracia paulista, secretário da Fazenda do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo e no estado, governador e ministro da Fazenda no final do governo João Goulart.

Na composição de 1982, Fernando Henrique Cardoso (FHC) elegeu-se senador pela sublegenda. Com a vitória de Montoro, Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta – que seria ministro das Comunicações no governo FHC – assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, em 1986, o grupo se aproximou do empresário Antônio Ermírio de Moraes, que se candidatou pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e não lançou candidatos ao Senado, um dos concorrentes de Quércia. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo estado. Foi a senha para a fundação do PSDB, em 25 de junho de 1988, uma articulação iniciada com o anúncio da vitória de Quércia em 1986.

Corrupção em São Paulo

Na campanha presidencial de Covas em 1989, os tucanos já estavam majoritariamente absortos pelo ideal do neoliberalismo. Em 1991, quando o presidente Collor emitia sinais óbvios de que o país caminhava para a ingovernabilidade, um setor tucano capitaneado por FHC defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra não surtiu efeito, mas o PSDB, impulsionado pela mídia, já articulava um projeto de poder para substituir o governo do presidente Itamar Franco, o vice-presidente eleito em 1989 que assumiu após o impeachment de Collor.

Em São Paulo, o ninho dos caciques tucanos, eles haviam arquitetado o afastamento definitivo de Quércia do posto de principal liderança política do campo que fez oposição à ditadura militar. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno das eleições para o governo do estado, disputado entre Luiz Antônio Fleury – o candidato do PMDB – e Paulo Maluf – candidato do Partido Democrático Social (PDS), o sucessor da Arena, o partido da ditadura militar – houve uma revoada de tucanos para a candidatura peemedebista.

José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury, o vencedor das eleições. Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do Banco Central para assumir a presidência do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Vladimir Rioli, obscuro personagem ligado ao tucanato, um dos caixas da campanha do PSDB, assumiu a vice-presidência de finanças do banco, do qual fora diretor na gestão Montoro, de onde saiu, misteriosamente, em 1993.

Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar US$ 14,1 milhões. Em 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no Banespa e mais tarde privatizá-lo, no processo de consolidação do Plano Real.

Liberalismo e imperialismo

A nomeação de FHC para o Ministério da Fazenda, em 1993, foi a concretização da plataforma política tucana, o molde do Consenso de Washington, receita do projeto neoliberal formulada em 1989 pelo economista norte-americano John Williamson, que seria adotada pelo governo dos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como condição para negociações das dívidas externas dos países dependentes, entre eles o Brasil, assolado por uma crise inflacionária gerada quando a conta do “milagre econômico” da ditadura militar começou a ser paga.

A receita consistia, basicamente, em arrocho fiscal – redução orçamentária de itens como Previdência Social, seguridade e investimentos públicos –, abertura comercial e financeira, privatizações selvagens e superávit primário, a garantia de pagamento dos títulos do Estado no mercado financeiro.

Quando FHC anunciou seu projeto, saudado pela mídia como a volta ao liberalismo, Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que era uma utopia. “A volta à época descrita por Adam Smith é uma quimera. Está longe da realidade. Seria a volta do capitalismo mais de um século atrás. O objetivo é confundir, para justificar o ‘modernismo’”, afirmou. Implicava a revogação de todas as teorias e práticas que contestaram o imperialismo – o sucessor do liberalismo –, como o keynesianismo (a teoria de John Maynard Keynes, economista britânico que na década de 1930 formulou a teoria do papel regulatório do Estado para minimizar as instabilidades da economia), a social-democracia e o projeto socialista.

A posse estridente de FHC se deu em meio a atropelos ao presidente Itamar, tratado pela mídia de forma desrespeitosa por sua discordância com os cânones do projeto neoliberal, como se houvesse uma espécie de carta branca para afrontas à Constituição, conforme confessou Edmar Bacha – um dos principais responsáveis pela coordenação do departamento de economia da PUC-RJ, integrante da turma que aportou no PSDB na sua fundação –,em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 30 de junho de 2024 sobre os trinta anos do Plano Real.

Ele relata que numa reunião com a equipe econômica e advogados, FHC ficou irritado e saiu dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Era a ignição do Plano Real, que já na largada afrontou o artigo da Constituição de 1988 que limitava os juros em 12% ao ano, proposta do constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP) sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, consultor-geral da República no governo do presidente José Sarney, ao propor a sua regulamentação por uma lei complementar que nunca veio.

Barões capitalistas

Assim surgiu o Plano Real, numa operação que levaria a sucessivas mutilações da Constituição, um festival de arbitrariedades. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia, basicamente, em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização monetária”, embrião do superávit primário), reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda.

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. O projeto neoliberal agora tinha sujeito, predicado e objeto direto. Renato Rabelo definiu a manobra como “unidade programática” da candidatura dos barões capitalistas e trazia o embate ideológico sobre a questão do Estado no processo de desenvolvimento. No capitalismo, disse, o Estado assumiu diferentes funções no desenvolvimento econômico, tendo em vista os interesses da burguesia e, logicamente, fazendo prevalecer a vontade dos seus setores mais fortes. “As empresas estatais a serviço do sistema capitalista, desde as ‘descobertas’ de Keynes, e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, adquiriram variadas funções. Transformaram-se, em países como o Brasil, em fator dinâmico no processo de industrialização, em instrumento de soberania econômica.”

Esse papel empresarial do Estado, prosseguiu Renato, já não servia aos capitalistas como antes, embora eles não prescindissem do concurso da ação estatal para empreendimentos que exigiam grandes investimentos, com retorno demorado. “As empresas estatais rentáveis, produtos da construção de décadas realizada pelo patrimônio público, são cobiçadas. No estágio atual, passam às mãos de grandes grupos privados, entrando no jogo das disputas intermonopolistas. Na concorrência entre eles conta, e muito, o controle de uma grande empresa estatal.”

Operação Lava Jato

A fusão monopolística abarcava setores privado e estatal, explicou Renato. “No caso dos países dependentes, como o Brasil, as empresas estatais, sobretudo as rentáveis e estratégicas, são presas de negócios vantajosos. Daí porque a propaganda neoliberal diversionista considera-as ‘ineficientes’ e ‘superadas’. Nos planos do grande capital, as estatais podem amortizar as dívidas externas dos países do Terceiro Mundo e são assumidas por grandes monopólios. Sem as estatais, esses países deixam de contar com importantes meios econômicos na sua luta pela independência”, denunciou.

O golpe, segundo Renato, era maquiado com o conceito de “Estado mínimo” e “modesto”, ou “pequeno, mas forte”, para justificar o objetivo do capitalismo de derrubar as fronteiras nacionais, transformando todas as nações em livre mercado para facilitar o acesso dos grandes conglomerados. “Além disso, o programa das tendências dominantes defende a liquidação dos monopólios estatais, mas preserva e fortalece os monopólios privados.”

Para levar adiante seu projeto, nas eleições presidenciais de 1994, o PSDB foi buscar o Partido da Frente Liberal (PFL), dissidência do PDS. Era o par perfeito, uma união em regime de comunhão de bens. FHC virou candidato único da mídia e venceu Lula – até o Plano Real, o favorito disparado nas pesquisas – no primeiro turno. Denúncias de “caixa dois” circularam amplamente, recurso repetido às claras na reeleição de FHC, em 1998. Tempos depois, a fraudulenta e corrupta Operação Lava Jato publicizou a prática dos neoliberais como “descoberta” de um grande esquema de corrupção, manobra que levaria ao golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, para a restauração da ordem neoliberal.

– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.