– O avanço fascista e o combate do nosso tempo 

Por Roberto Amaral

“(…) Nossas ações são voluntárias, mas nem sempre são escolhas” – Jodi Dean (Camaradas. Boitempo Editorial)

O espectro que ronda o mundo, desrespeitando diversidades de desenvolvimento econômico, é a doença do capitalismo maduro. Mais do que uma disfunção, o fascismo é receita para enfrentar as crises impostas pela sua incapacidade de solver a questão social, que mais se agrava quanto mais cresce a expansão imperialista e os duelos hegemônicos.

O fascismo é um movimento de manipulação das massas, uma construção ideológica formulada de cima para baixo, sempre a serviço do império do capital. Nutre-se na violência que incita. É, de igual modo, a semente da guerra, a solução que conhece para as crises de hegemonia. Uma necessidade do sistema que se torna clara hoje, tanto quanto foi a alternativa única nos idos de 1939.

No século passado a mobilização ideológica da extrema-direita era alimentada pela difusão do medo ao comunismo, e os receios nacionais explorados em face do expansionismo da URSS. Encontrou campo arado na Itália e na Alemanha, mas igualmente em Portugal (salazarismo), na Espanha (franquismo) e no Japão de Hiroito (controlado pelo militarismo, e afoito em uma política guerreira e de expansão territorial). Foi-lhe fácil mobilizar o empresariado para o financiamento do assalto ao poder e o financiamento dos aparelhos de repressão e, na sequência, para a sustentação da guerra, da qual o grande capital e a indústria pesada saíram incólumes e mais poderosos.

A crise social na Itália abriu  a rota da mobilização das massas, que deram as costas aos comunistas, aos socialistas e aos democratas. Não foi distinto  na Alemanha, onde recebeu o apoio dos pequenos comerciantes e da grande burguesia e dos militares. Não lhe faltou mesmo o apoio da socialdemocracia alemã que viu no nazismo o dique que não conseguira construir contra a ascensão dos comunistas, que elegera como seus inimigos prioritários, assim como no Brasil designaria Lula como o inimigo a ser abatido.

Mussolini e Hitler (nada obstante seus inegáveis méritos como agitadores sociais) foram, mais do que tudo, sempre ao serviço do grande capital, instrumentos para a necessária mobilização das massas. Na Itália, as milícias fascistas, civis, assumiram a repressão. Na Alemanha nazista se multiplicavam os grupos civis e paramilitares. Caracterizavam-se pela brutalidade contra os que identificavam como inimigos do nazismo, judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc. Eram os “Camisas pardas”. Na Itália eram os  “Camisas negras”, ou Camicie nere – símbolo, aliás, atualizado pelo juiz neofascista maringaense Sergio Moro, no auge do seu romance com a grande imprensa.

A sociedade alemã, como a italiana, estava impregnada da violência da ideologia fascista. Denunciavam-se vizinhos, enquanto multidões ovacionavam o Führer em seus comícios, paradas e marchas. O povo alemão negou até a última hora o holocausto e os campos de concentração, e lutou até o derradeiro combatente em Berlim, numa alucinada resistência ao Exército Vermelho.

O fascismo, tanto quanto o nazismo, atendia a necessidades do sistema, como atende agora, em sua versão contemporânea, tosca como a matriz, à marcha da extrema-direita, que avança de forma expressiva pela quinta vez consecutiva nas eleições do Parlamento Europeu. E, entre nós, jamais esteve tão forte. Controla as duas casas legislativas e os governos dos principais estados da Federação, os mais ricos e os mais populosos.  Este encontro não resulta de acaso.

O fato de os EUA estarem presentemente divididos entre a direita esclerosada de Biden e a ultradireita belicosa de Trump é um indicador do nível de deterioração política da sociedade norte-americana, sem alternativa diante dos desafios que açoitam o imperialismo, em casa (onde crescem as desigualdades sociais) e no mundo: o fim do unilateralismo associado à crise de hegemonia.

É um artifício reacionário separar o nazismo da alma alemã: Hitler foi o depositário do imperialismo germânico. À aventura do Terceiro Reich, se não faltou o apoio, aberto ou silencioso, da população, foi ostensivo o financiamento da grande indústria, que, no pós-guerra,  permaneceu de pé, atuando em todo o mundo, inclusive no Brasil. O genocida Benjamin Netanyahu, há 16 anos no poder, avançando pela direta, representa o consenso sionista, em Israel e no mundo. É um agente da guerra, a serviço do imperialismo, que o nutre.

Que os sustos de 2022 nos ajudem a ver a sociedade que produziu o bolsonarismo.

A França – que, não faz muito, foi governada pelo Partido Socialista – está politicamente reduzida a dois blocos políticos não totalmente antagônicos: o lepenismo de extrema-direita e… “o resto” (como me diz o professor Marco Antônio Dias), a saber, um amontoado contingente, disforme e desconexo, reunindo os antigos comunistas e socialistas  e Emmanuel Macron, o presidente de direta, a quem as circunstâncias delegaram  o papel de líder da  resistência ao fascismo. Mas os conservadores, herdeiros do gaullismo, já se associaram aos fascistas na disputa das eleições legislativas francesas, convocadas para 30 de junho. La France Insoumise, a promessa que brotou no pleito presidencial com Mélenchon, obteve um pouco menos de 10% dos votos para o Parlamento Europeu, enquanto a extrema-direita de Mme. Le Pen consagrou-se com 30% do voto francês. A Itália, do glorioso PCI, é, desde 2022 governada pela líder fascista Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia. Na “joia da coroa” europeia, França e Alemanha, aliadas dos EUA na beligerância da OTAN, a esquerda e a social-democracia foram surradas no último pleito. O único respiro veio dos países nórdicos.

Na América do Sul três democracias (Brasil, Colômbia e Chile) ainda resistem, com as dificuldades sabidas. Nossa tragédia, porém, é a mais significativa, porque transitamos de cerca de vinte anos de conquistas sociais e democráticas para o avanço do projeto protofascista, construído a partir do golpe de 2016 e consolidado com as eleições de 2018, quando, pela primeira vez na história republicana, um quadro de extrema-direita é alçado à presidência da república pelo voto popular, em processo eleitoral que não pode ser questionado. A única boa notícia ao norte do equador vem do México, com a eleição de Claudia Sheinbaum. Mas o México  permanece “tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos.”

O presente brasileiro guarda relações com a falência das organizações originárias do velho PCB. Destaco a crise dos partidos populares, conquistados pelo eleitoralismo conservador, donde a renúncia coletiva à missão doutrinária da esquerda. O ‘chão de fábrica’ foi abandonado e muitos militantes e líderes sindicais foram conquistados pela burocracia, sindical ou pública, a que se somou a crise do trabalho (fenômeno global, agravado entre nós pela desindustrialização), erodindo o poder político dos trabalhadores e, por consequência, a potência de seus partidos políticos, comunistas, socialistas e trabalhistas.

Não ousamos canalizar para a política o desespero dos muito pobres, e hoje assistimos, desolados, ao deslocamento de trabalhadores e grupos marginalizados da sociedade capitalista para a extrema-direita, cujo governo agravará sua miséria e restringirá ainda mais seus direitos.
Não há acaso na história.

Os governos da social-democracia paulista e os governos de centro-esquerda do PT mostraram-se impotentes para promover as reformas que (ainda dentro do capitalismo periférico e dependente, que é o nosso) poderiam enfrentar o caráter concentrador de renda e riqueza da economia brasileira. Esquecemos que, mais do que uma vontade, vencer (isto é, mudar) era nosso dever e que, para mudar, precisávamos nos organizar e lutar. Organizar as massas, elevar seu nível político. Ao renunciar ao proselitismo e à denúncia da sociedade de classes, nos transformamos em uma esquerda desprovida de política e deixamos as massas à mercê do neopentecostalismo comercial e do discurso dos meios de comunicação da classe dominante. Movidos pelo eleitoralismo, elevado à categoria de fim em si mesmo, deixamos de condenar o capitalismo e abdicamos do proselitismo socialista.

As táticas do curto prazo eleitoral, quando as bandeiras fundamentais do pensamento socialista foram arriadas, cobram preço político muito alto: o retrocesso que se mede pelo avanço do pensamento da extrema-direita, que nos confronta. O termo revolução foi parar num Index que ninguém sabe quem prescreveu, e, mercê de uma trapaça histórica, nos transformamos em defensores da ordem – nós, os que já fomos denunciados como “subversivos”, e apostávamos na propaganda política e na agitação ideológica. De um certo tempo para cá, passamos a nos identificar com a institucionalidade, exatamente quando a nova direita se fantasia de combatente do sistema. Os sindicatos estão menores, menos representativos e mais fracos. Nossos partidos, na sua maioria, estão dispersos e desorganizados. O PT foi condenado à condição de  partido da ordem.

A esquerda, no geral,  ao ler o determinismo histórico como se fôra lição de um fatalismo religioso, renunciou ao fazer revolucionário, e quedou-se na esperança de que a história terminasse por realizar nossas utopias (afinal, estamos “do lado certo” e merecemos ser recompensados pelos fados). Assim, dava realidade aos nossos sonhos. Até lá, fizéssemos o que as condições objetivas da política prática indicavam. Nos misturámos com os conservadores e nos confundimos como agentes daquilo que Gramsci chamava de “a pequena política”. À noite todos os gatos são pardos.

Concluídas as eleições de 2022, empossado Lula nas condições conhecidas, vencido um ano e meio de governo, a direita neofascista permanece organizada, política e militarmente, com projeto concreto de tomada do poder, nos termos que as circunstâncias ensejarem. Conduz ideologicamente o Congresso, comanda em todos os palcos a oposição ferrenha ao governo Lula, e não apenas bloqueia todo avanço civilizatório, mas desconstrói sem dificuldade as conquistas sociais e políticas logradas pelo movimento social nas últimas décadas. Sua capacidade de mobilização das massas foi posta em evidência mais de uma vez, nas ruas e no processo eleitoral. Anuncia vínculos estreitos com a extrema-direita estadunidense. Em suas manifestações desfraldam bandeiras dos EUA e de Israel ao lado da suástica nazista.

É, a rigor, o único projeto de poder em movimento, contrastando com a anomia geral da esquerda e a insegurança política do nosso governo, que, condenado a prioritariamente lutar pela simples sobrevivência, ainda não encontrou forças para pôr em campo um programa político capaz de antepor-se, nas eleições e para além delas, à ameaça fascista.

Neste quadro, é evidente que cabe às forças progressistas de um modo geral, e não só às esquerdas e seus militantes, a defesa do governo, pois sua eventual derrocada significaria a abertura de todas as comportas para o intento fascista, que mantém sua aliança com o grande capital e setores majoritários das forças amadas. E conserva, ainda, suas bases populares em nível jamais conhecido em nosso país. Mas a imperiosa defesa de nosso governo deve ser vista nos termos do grande projeto de construção de uma nova sociedade, atenta ao desenvolvimento soberano e ao atendimento das necessidades básicas de nosso povo.

O ser esquerda se justifica na luta por um futuro emancipatório da humanidade. Sem ilusões, e distante do voluntarismo, terá de combater o Estado inventado para sustentar o capitalismo. Mirar o horizonte procurando ver para além da risca do horizonte, e jamais se contentar com a política do aqui e agora.

Precisamos nos preparar para uma luta diferente, revendo táticas e dogmas.

***

Adeus a Conceição – “A classe operária preferiu ir ao paraíso a fazer a revolução. De preferência se for em um paraíso consumista. […] Não há evidência de revolução operária depois do século XIX. […] O neoliberalismo apodreceu a ‘opinião pública’ e, ao apodrecê-la, produziu o que há de pior em matéria de liderança de direta. E produziu uma ideologia de classe-média que –Trotsky tinha razão – é a poeira da humanidade.” (Entrevista de Maria da Conceição Tavares à Margem Esquerda, nº 77, 1º semestre de 2008)

Genuflexão na Casa do Povo – Numa correlação de forças absolutamente desfavorável, a centro-esquerda acuada – aparentemente incapaz de superar o trauma de 2016 – houve por bem votar massivamente, nos últimos dias, visando ampliar o poder do capo da Câmara para punir seus adversários (após menos de 24 horas de debate). Há que louvar, sem dúvida, o esforço dos que se empenharam em reduzir os danos do surto autoritário de Don Lira, preservando a constitucionalidade. Mas, sobretudo, aplaudir as deputadas e deputados que se recusaram a chancelar a truculência do coronel alagoano.

As mãos sujas – Nada justifica que o Brasil siga comprando armas e contratando serviços de segurança do protetorado de Israel, ajudando assim a financiar o genocídio a que o mundo assiste inerte e  cumpliciado. Cabe ao presidente Lula dar concretude ao discurso – corajoso e imprescindível – que faz na arena internacional. Saudades do Tribunal Russell dos crimes de guerra cometidos pelos EUA no Vietnã.

Com a colaboração de Pedro Amaral

– A UNE, a mídia torpe e o processo civilizatório.

O coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas contra a União Nacional dos Estudantes (UNE) é mais um exemplo de que falta à mídia elementos básicos ao exercício do jornalismo — como caráter e espírito democrático, valores que deveriam ser preservados.

Chamo de caráter a capacidade de manter princípios, independente da situação e do momento. O contrário disso é o casuísmo — quando o sujeito troca de premissas, de opinião e de ponto-de-vista ao sabor daquilo que está acontecendo ao seu redor naquele instante. Casuísmo, como está claro, é um dos aspectos da falta de caráter.

O casuísmo aqui, como no dito popular, é bater na canga para o boi andar. Ou seja: batem na UNE para atingir o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva — assim ocorre, vire e mexe, também com o MST, com o movimento sindical e com outras organizações de origem popular. É a campanha da direita para criminalizar os movimentos sociais. Outro valor fundamental da civilização é a democracia. Esse deveria ser um alicerce inegociável na construção de cada um de nós. No entanto, é de assustar o quanto a democracia anda frágil no convívio jornalístico da mídia. Estamos vendo isso ao vivo e em cores nessa cruzada contra a entidade máxima dos estudantes.

Falta para essa gente que comanda a mídia civilidade. Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra abusos como estes. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a “liberdade de imprensa” não passa de balela.

Conclusão inescapável

Essa civilidade poderia ser fruto de uma sociedade mais madura do que a nossa, em que a democracia seria de fato um valor essencial, cravado mais fundo na nossa alma. Seria fruto de uma sociedade com a consciência de que existem regras mínimas de convivência que se não forem levadas a sério acabam levando ao caos social e à guerra entre concidadãos. Numa palavra: falta a essa gente levar a sério a serventia da democracia. Democracia é, acima de tudo, reconhecer os direitos do outro. No meio jornalístico da mídia, costuma-se pensar em democracia como garantia para seus abusos. Podendo, ele cassa os direitos dos seus adversários — como ocorre de modo flagrante nesse caso.

O que está se passando com a UNE é ignóbil, abjeto. Há caso de ultraje pessoal. O Blog do Noblat, por exemplo, publicou que o presidente eleito da entidade, Augusto Chagas, tem “cara de néscio, jeito de néscio e pensa como néscio”. Ele é descrito como um mentecapto, “cevado pelo PCdoB” para “repetir velhos clichês” e “defender posições ditadas por seu partido”. É um jornalismo asqueroso, indigno e vil. “Quer dizer: a UNE vai de Dilma Rousseff. Nada mais natural”, diz o post, revelando o motivo politiqueiro para tamanha torpeza. Essa gente tem o hábito de julgar os outros pelos seus defeitos. Sórdidos, brandem patrocínios de entidades estatais aos eventos dos estudantes para agredir a lógica — como se eles não recebessem quantias infinitamente superiores para difundir suas torpezas.

Filme Twister

O controle da liberdade de imprensa no Brasil pelo poder econômico não será removido enquanto este modelo de jornalismo alicerçado pelo golpe militar de 1964 — promovido pelos grupos privados para assaltar o Estado e moldá-lo à sua imagem e semelhança — não for demolido. Os grupos que controlam com poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil pretendem controlar, ao mesmo tempo, as verbas publicitárias, o trabalho dos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicação, a produção cultural, as informações prestadas por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal dos cidadãos e as ações do Ministério Público. A conclusão é inescapável: os grupos que controlam a mídia brasileira fogem da democracia como o Diabo da água benta.

O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente. Afinal, a julgar pelo noticiário vivemos uma sucessão infernal de crises: elas mal começam a pipocar, em pouco tempo desaparecem, se esfumaçam como aqueles tufões que aparecem no filme Twister.

Emoções e realidade

É uma tentativa desesperada de subverter os resultados das pesquisas que dão altos índices de popularidade ao governo Lula. O Brasil conhece bem, e há muitos anos, a situação de ter dentro de si diversos países diferentes convivendo ao mesmo tempo. No presente momento, a diferença que mais chama a atenção é a existente entre o Brasil da calamidade e o Brasil do progresso. O primeiro, como dizem os mestres-de-cerimônia ao introduzir algum personagem que todo mundo conhece, dispensa apresentações: é o Brasil da elite em particular e da mídia, visível todo dia e a qualquer hora num noticiário político que cada vez mais se parece com os programas de palhaçadas.

O segundo Brasil é o país do trabalho, do mérito e do progresso — tão real, tão visível e tão vigoroso em suas virtudes quanto o primeiro é vigoroso em seus vícios. A questão mais relevante do momento, do ponto de vista prático, é determinar até onde o país da mídia pode piorar — e os fatos mostram que ele tem tudo para continuar piorando — sem que isso torne inviável o país do avanço. É muito fácil, diante da degeneração crescente da mídia, concluir que o filme já terminou e o bandido acabou ganhando.

Mais difícil, porque dá mais trabalho, é separar as emoções das realidades — e quando se faz essa tarefa com aplicação e cabeça fria o que começa a tomar forma é a possibilidade de que esteja ocorrendo exatamente o contrário. A direita continua perdendo terreno. Como diria Lula, o que se pode dizer com certeza, hoje, como nunca antes na história deste país, é que encontram-se em operação forças positivas que jamais haviam se manifestado de forma simultânea. O problema é que isso faz aflorar o que há de pior na mentalidade da direita. Só mesmo golpes baixos para reverter essa situação. É nisso que os golpistas apostam.

Um incêndio por dia

Seria ótimo se este processo pudesse evoluir a ponto de passar o Brasil a limpo realmente — de alto a baixo, de forma justa, ética, democrática e séria. Mas no jogo político da direita, infelizmente, a torpeza é moeda corrente. O problema é que o país já está em campanha eleitoral e a mídia tem o seu programa de governo. Oportunistas de diferentes matizes e chacais enraivecidos são acionados diuturnamente para difundi-lo. Nessa selva, nunca se sabe onde está o inocente útil e onde está o vilão oportunista. O jogo é pesado.

Será preciso muita estabilidade emocional para enfrentar o que vem por aí. As cidadelas da direita já deixam antever sua baixa tolerância às contrariedades. Dá para imaginar como o campo conservador reagirá diante da realidade hostil ao seu projeto de governo daqui para frente. Vamos enfrentar um incêndio por dia. Eles ignorarão o povo, com o qual não conseguem dialogar, e o próprio bom senso para impor o seu coquetel anti-Lula. O ataque cerrado à UNE faz parte desse jogo sujo da direita.

– Lula, a BIP e o juiz turbinado.

Submetido a provocações destemperadas do juiz Marco Aurélio Mello, o presidente Luis Inácio Lula da Silva reagiu à altura. Apesar da aspereza, Lula manteve a coerência. Foi um bom teste. Com a aproximação das eleições de 2008 — uma espécie de primeir

Autocontrole e sangue frio constituem requisitos essenciais para quem tem por missão comandar o Brasil nas circunstâncias impostas ao atual governo. Essas duas qualidades o presidente Luis Inácio da Silva mostrou claramente possuir ao longo das sucessivas crises políticas lançadas contra ele. Mas na semana passada Lula foi obrigado a bater duro para deixar bem demarcado o que é opinião juridica e o que é opinião política no embate que se trava atualmente entre situação e oposição no país.

O presidente respondeu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que teria criticado o programa ”Territórios da Cidadania”. ”Seria bom se o Poder Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas dele, o Legislativo apenas nas coisas dele e o Executivo apenas nas coisas dele. Nós iríamos criar a harmonia estabelecida na Constituição”, afirmou o presidente da República. O ministro é um notório militante do que já foi chamado pelo acrônimo de BIP (Busca Insaciável do Problema)

Líder da UDN no Supremo

Mello, tido por um dos seus pares como “líder da UDN” no Supremo, é sabidamente um adorador de holofotes, câmaras e microfones. E a mídia brasileira, em franca campanha eleitoral contra o campo governista, gosta de pedir suas opiniões sobre todos os assuntos. Assim, ele comenta desde a seleção brasileira de futebol até detalhes culinários. No meio, invariavelmente há os comentários políticos polêmicos. O ministro é o típico homem da eficácia, aquele que coloca os resultados sobre os princípios — um legítimo adepto da BIP.

A revista CartaCapital do dia 15 de fevereiro de 2008 traçou um perfil de sua personalidade e posições políticas numa alentada reportagem de sete páginas intitulada ”Toga Turbinada”. CartaCapital revela que o ministro possui uma mansão em Brasília onde cria cachorros, galinhas e até um cavalo num bem cuidado jardim do terreno de 12 mil metros quadrados. Segundo a revista, o primeiro ser que se avista quando um dos seguranças da casa ergue o portão de madeira é um pavão.

Algumas de suas decisões, no entanto, parecem extraoplar o limite da autopromoção. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando ele concedeu habeas corpus ao banqueiro Salvatore Cacciola, em 2000, que aproveitou a deixa para se refugiar na Itália. CartaCapital revela que a decisão sobre Cacciola não agradou ao então presidente da Casa, Carlos Velloso — Mello havia concedido o habeas corpus na ausência de Velloso, que revogou a liminar imediatamente depois de voltar, mas o banqueiro havia fugido.

Fidelidade partidária

A revista lembra que Mello e Cacciola foram vizinhos em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. CartaCapital pergunta se seu salário de ministro dá para tanto — uma casa enorme em Brasília e um apartamento no Rio de Janeiro —, ele responde que a herança recebida do pai deu uma ”ajudazinha”.

A revista também revela que Mello provocou duras críticas do Congresso Naconal ao decidir, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sobre a questão da fidelidade partidária. Segundo CartaCapital, um dos que se indignaram com a “ingerência inadequada” dos tribunais sobre o Parlamento foi o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia. Irônico, Chinaglia teria feito a seguinte comparação: “Quer dizer que se o Judiciário não faz Justiça os parlamentares também podem começar a fazê-la?”

CartaCapital opina que hoje há uma maior afinidade entre as posições do ministro e da mídia em geral — fato que explica porque desapareceu ”da narrativa jornalística” o tom jocoso com que era tratado por ter sido indicado por um parente (o ex-presidente Fernando Collor de Mello) mais tarde defenestrado do poder por acusações de corrupção. “Escuta, sou mercadoria de vocês. Será que gostariam de ter um juiz do Supremo encastelado, numa redoma? Não sou um semideus, sou um homem. Como homem público, devo contas à sociedade. E a forma de meu pensamento chegar a ela é via imprensa”, disse ele à revista.

Mello não fala só por ele

Se não é um semideus, comporta-se como tal. No auge da histeria sobre a denúncia acatada pelo SFT contra os acusados de envolvimento com o ”mensalão”, quando Mello estava deitando falação em praticamente todos os grandes meios de comunicação do país, na condição de colunista do Vermelho lhe fiz um pedido de entrevista por meio do seu assessor de imprensa, Renato Parente. Ele pediu uma prévia das perguntas e até hoje não as respondeu. Cobrado várias vezes, Parente sempre respondeu que Mello estava ”com a agenda lotada”.

Possivelmente ele sabia que no Vermelho não haveria a repercussão sobre o que se chama, em situações polêmicas como as que ministro adora, o ”merchandising das divergências” — comum nos veículos de comunicação da ”grande imprensa”. Isso leva à conclusão de que para ele o que importa ao conceder uma entrevista, unicamente, é se promover, marquetear e vender a divergência.

Há lógica nisso. Mello não fala só por ele. Se as diferenças entre a realidade e as suas versões forem minimizadas e desaparecerem, o que vai sobrar para quem tem como propósito fazer oposição? Num sentido institucional mais elevado, é certo que o Judiciário tem um papel político e os juízes não gostam de se ver como simples ”aplicadores da lei”. Mas onde começa e onde termina esse papel político?

Teste básico de integridade

Mello está claramente pisando em searas alheias com o único intuito de fazer política. Está na hora de o Judiciário questionar esse tipo de comportamento. Deputado, ator de TV ou jogador de futebol podem falar à vontade sobre o que bem entender. Um juiz, não. Como diz a clássica norma ética, ele só deve falar nos autos, ao decidir as questões que lhe são submetidas como guardião que é das leis e dos direitos dos cidadãos. O problema é ainda maior quando esta sede de autopromoção manifestada pelo ministro encontra pela frente uma mídia ávida por factóides contra o governo. Aí vê-se nitidamente a histeria denuncista.

A denúncia por si só — sem a compreensão mais ampla do problema, sem a definição mais clara dos objetivos — não leva a nenhuma conclusão consistente. Mas estamos diante de mais um daqueles fatos que conferem ao processo de denúncia um verniz de moralismo que obscurece uma verdade — ele é movido por uma elite que não foi eleita em 2002 e 2006 e que não admite perder novamente em 2010.

Ninguém elegeu Mello e seus promotores para cargo nenhum; ninguém elegeu a mídia para nada. Esse processo investe os agentes da investigação que trabalham para a BIP (juízes, parlamentares, mídia) de um poder que a Constituição nunca pretendeu que tivessem — e que vai além do que é aceitável numa democracia. É na verdade um conluio que se alimenta de um tipo de jornalismo barato, que não passa no teste básico de integridade e competência ao não retratar os fatos como eles são.

Respeito à democracia

A culpa maior é dos editores que, a serviço dos barões da mídia, encomendam ou aprovam essas distorções da verdade. A estupidez sancionada que vemos atualmente na mídia leva ao jornalismo descartável. Na ânsia de criar notícia, no afã de ter nas mãos um fato que possa causar escândalo, muitas vezes os melhores dados do país passam por estranhos processos de alquimia mental pelos quais sempre se transformam, de situação positiva, em algo a ser criticado.

Para sofrer essa metamorfose, as informações são manipuladas por profissionais malpreparados — ou mal-intencionados — que, com generalizações apressadas ou informações equivocadas, tentam jogar a opinião pública contra o governo. O procedimento: toma-se uma informação positiva e, usando-se de contorcionismo jornalístico, ela se transforma num fato negativo.

Em entrevista à rádio Jovem Pan, Mello disse que a idéia de que não há democracia sem ”imprensa livre” é tão antiga quanto a democracia — que, por sua vez, é tão antiga quanto a ”imprensa livre”. Ele repetiu um lugar-comum, dito quase em toda parte como um bordão da unanimidade. Mas, do ponto de vista institucional, a existência da ”imprensa livre” assegura a pluralidade das opiniões e o pleno atendimento do direito à informação, que é um dos pilares da cidadania. E, deste ponto de vista, Mello e a mídia têm faltado com o respeito à democracia.

Redução da jornada: Alexandre, Matusalém e a insensatez
Osvaldo Bertolino *

A redução da jornada de trabalho é um ato de sensatez. Mas que ninguém se iluda: esperar sensatez do capitalismo brasileiro seria ingenuidade. A luta pela redução da jornada no Brasil é, antes de tudo, uma luta contra a insensatez.

A história ensina que a redução da jornada de trabalho é uma medida absolutamente necessária. A começar pela melhora das condições de saúde. Diz a história que Alexandre, o Grande, conquistou o mundo e morreu, troncho e alquebrado, aos 32 anos de idade. Já Matusalém, revela o Gênesis, viveu 969 anos. Há uma razão para tamanha diferença em longevidade: Alexandre batalhava 18 horas por dia, 7 dias por semana; quanto a Matusalém, não há indício de que ele tenha feito sequer 1 hora extra em toda a sua vida.

Outro motivo para que a jornada de trabalho seja constantemente reduzida é a elevação da produtividade, um processo que ganhou impulso nos idos de 1881 quando os operários de uma metalúrgica na Filadélfia, nos Estados Unidos, receberam o aviso de que o trabalho na fábrica estava prestes a mudar. Um gerente decidira incorporar à rotina dos funcionários um novo equipamento: um cronômetro.

Grau de técnica e de ciência contido no produto

Incomodado com o modo quase artesanal de trabalho dos operários, o gerente — um certo Frederick Taylor — definiu um padrão de produtividade com base no tempo gasto pelos trabalhadores em cada uma de suas atividades. Era o início de uma inovação batizada de ”taylorismo”, que transformou a indústria norte-americana e, mais tarde, o modo de produzir em todo o mundo. Iniciava-se uma corrida alucinada pela inovação tecnológica.

Hoje, o número de horas trabalhadas tem pouca conexão com a qualidade e a produtividade do trabalho realizado. A economia é medida não apenas por aquilo que numericamente se é capaz de produzir, mas principalmente por aquilo que dá mais valor ao produzido, aquilo que efetivamente mostra o grau de técnica e de ciência contido no produto final. Ou seja: a produtividade. E com o elevado número de horas trabalhadas, a distribuição do crescente valor criado com a inovação tecnológica vai ficando cada vez mais injusta.

Doenças do trabalho: grave caso de saúde pública

Não é de hoje que o patronato tenta criar nos trabalhadores brasileiros a mentalidade da Toyota, que ajusta a produção à demanda. Pela organização do trabalho toyotista, o cliente faz a encomenda e até uma semana depois está recebendo um carro que não existia no momento em que ele formalizava o pedido. Há no Japão um ditado que ensina que todos os pregos tem de estar igualmente integrados à madeira. Se há algum prego com a cabeça saliente, é preciso martelá-lo até que fique enterrado na superfície como os outros.

Essa lógica está presente neste modo alucinado de organização do trabalho toyotista. Ou seja: um trabalhador vigia o outro na busca de prêmios que substituem o salário. Ou o trabalhador agrega o valor arbitrariamente determinado pela empresa, ou ele está fora. Para o funcionário submetido ao toyotismo, o terror é um acontecimento que está sempre à espreita. A conseqüência mais imediata é que as doenças do trabalho hoje já são um grave problema de saúde pública.

Apropriação indevida da elevada produtividade

A despeito desse tipo de situação ainda ser um padrão no Brasil, o trabalhador brasileiro parece reunir boas condições para enfrentar estes novos tempos — com a elevação constante da produtividade nacional. A forma que se apresenta neste momento como a mais factível é a luta pela redução da jornada de trabalho sem reduzir o salário. Não há como esconder que a atual distribuição da produtividade elevada da nossa economia consiste em uma apropriação indevida por alguns em detrimento de muitos.

O custo por hora na indústria de transformação brasileira, segundo o Bureau of Labor Statistics, é de algo em torno de 3 dólares. Na Coréia do Sul, 4 dólares, no Japão 13 dólares e nos Estados Unidos 15 dólares. O trabalhador brasileiro normalmente trabalha das 8 às 18 horas, acumulando uma jornada constitucional de 44 horas semanais. Segundo o ”Japan Information Network”, o japonês trabalha em média 41,3 horas por semana nos serviços e 43 horas na manufatura. O trabalhador norte-americano trabalha das 9 às 17 horas, ou 40 horas semanais.

Extensão estatal na propriedade do patrão

Que ninguém se iluda: a noção de que os ganhos com a produtividade da economia brasileira precisam ser melhor equalizados terá de ser arrancada a fórceps. A natureza da elite brasileira é a de interpretar o trabalhador brasileiro como um ser primevo — por sermos negro, índio, mestiço —, despossuído a ponto de não ter direito sobre o próprio corpo e cuja vida deve ser definida pelo trabalho cruciante e pelos suplícios impostos pelo patrão.

Dizia-se há algum tempo em tom jocoso que, para resolver os problemas da agricultura no Brasil, o governo deveria fornecer a cada fazendeiro um trator e um casal de estrangeiros. Você já deve ter ouvido a anedota. Aparece aí, em primeiro lugar, a forma patrimonialista com a qual a elite brasileira entende o Estado — a máquina e o trabalhador são a extensão estatal na propriedade do patrão. Aparece também uma imagem que a elite brasileira faz do caráter dos trabalhadores brasileiros.

Mão está excelente para os trabalhadores

A anedota estabelece uma dicotomia: de um lado estaria os demais trabalhadores e seu caráter superior, forjado na ética do trabalho; de outro, o brasileiro e seu caráter claudicante, formado por um comportamento negligente para com o trabalho. A idéia passada é a de que o trabalhador dos países ricos é intrinsecamente afeito ao trabalho e que por isso alcançou o sucesso; e de que o trabalhador brasileiro é irremediavelmente inferior e que por isso vive entregue às mazelas.

Esse é, antes de tudo, um jeito preconceituoso de interpretar essa falsa equação. É o reflexo de uma forma — sobrevivência dos mais de 300 anos de escravidão que tivemos por aqui e que chegou às barbas do século XX — de interpretar o trabalhador brasileiro. Já está mais do que na hora de escolhermos efetivamente o caminho do desenvolvimento com valorização do trabalho e apostar nele todas as suas fichas. As cartas para a próxima rodada deste grande jogo, que é a distribuição da renda nacional, já estão dadas. E a mão está excelente para os trabalhadores. Talvez nunca tenha estado tão boa. Agora é jogar.

– Lula, Obama e o preconceito do professor Gaudêncio Torquato.

Um artigo do jornalista, professor titular da USP e consultor político Gaudêncio Torquato no jornal O Estado de S. Paulo, edição do dia 11 de novembro, sobriamente intitulado “A esperança lá e cá”, oferece uma boa oportunidade para se ver como a opinião p

Virou moda para a pregação elitista culpar o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva por tudo. No noticiário político diário aparecem os que achincalham as instituições democráticas agora que elas não estão mãos elitistas, os revoltados com o socialismo, com o MST, com a MPB, bem como os insatisfeitos em geral, seja com o campeonato brasileiro de futebol ou com o atraso do trem, a acne juvenil, a aftosa e o bicho-do-pé. Ou seja: tudo é culpa do governo. Foi assim que o professor jogou nas costas das “platéias assumidamente lulo-petistas” a culpa pela comparação entre Lula e o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama.

Segundo o professor, “se a eleição do primeiro presidente negro e o 44º da história dos Estados Unidos se reveste de simbolismo, por representar uma mudança profunda no paradigma da política norte-americana, a conquista de dois mandatos presidenciais pelo ex-metalúrgico brasileiro também se impregna de extraordinária força simbólica”. Mas, segundo decreta Gaudêncio Torquato, a semelhança termina aí. “Se os dois viveram uma infância humilde, Obama pôde estudar em boas escolas, formando-se em Direito, em 1991, em Harvard, centro educacional de excelência, freqüentado pela elite norte-americana e internacional. Lula minimiza o fato de não ter estudado. Obama não é o Lula americano”, ensina o professor.

Palavras ao vento

Depois de uma adjetivada aula sobre “a nova esquerda internacionalista, sob a qual se abrigam as bandeiras do aborto, do desarmamento, do diálogo com inimigos, dos direitos de minorias, etc.,” o professor decreta que “o discurso mudancista do lulismo (…) deu com os burros n’água”. Em seguida, Gaudêncio Torquato mostra, sem meias palavras, o que de fato ele representa. “As estacas macroeconômicas fincadas no ciclo FHC foram bem conservadas e até aperfeiçoadas, trazendo conforto ao país, que conseguiu zerar sua dívida externa. Trata-se de mérito inegável do governo Lula, não significando, porém, alentados avanços”, revela o professor.

Gaudêncio Torquato volta a soltar palavras ao vento ao mencionar que “o patrimonialismo continua a dar as cartas, sob o império do presidencialismo de coalizão, que torna o Parlamento refém do Executivo” (como?). E ataca “os jovens que, por ocasião das diretas-já e do impeachment de Collor, acorreram às ruas” e agora “delas fugiram”. E chega ao mérito da questão — como dizem os advogados. “As multidões aclamam hoje o presidente não por ações inovadoras, mas porque festejam a entrega de bolsas, que expressam uma visão ortodoxa (por não apontar uma porta de saída) de política social”, ensina.

Imprescritibilidade da tortura

Em seguida, Gaudêncio Torquato aponta a sua pena para “o campo das relações de trabalho”, segundo ele “dominado por centrais de trabalhadores motivadas a manter as correntes de um sindicalismo à sombra do Estado”. E chega à “seara dos tributos”, que “é um deus-nos-acuda”. O linguajar não é dos melhores, mas, com coragem, dá para entender o que ele quer dizer: a elite foge do fisco como o Diabo da água benta. “A bocarra do leão se alarga sob os olhos concupiscentes dos burocratas. Estados e municípios se engalfinham para tirar lasquinhas dos impostos, cujas partes gordas vão para os cofres da União. E a esfera política continua a fazer círculos ao redor do Palácio do Planalto, empunhando a mão franciscana”, afirma.

Outro ponto em que a aula do professor resvala para a mediocridade, depois de decretar mais uma vez que “o simbolismo de suas vitórias (de Lula) se esgarça a olhos vistos” (onde?), é a discussão sobre a imprescritibilidade da tortura. “A era Lula nem sequer conseguiu fechar o ciclo de 64”, avisa o professor já no início do assunto. “A guerra entre torturados e torturadores, pela voz autorizada do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, ganha novos atores: os grupos terroristas”, diz ele. A peroração de Gaudêncio Torquato é um primor. “Barack Hussein Obama simboliza o aceno a uma nova ordem. Que Lula prometeu e, até agora, não cumpriu. Que a esperança, lá, consiga efetivamente vencer o medo”, finaliza o professor com sua pena empostada.

Centralismo autoritário

O que devemos extrair disso tudo? Primeiro, que o professor tem todo o direito de escrever o que quiser. Tem até mesmo o direito de prescrever o que quiser para todo o mundo. Quem sonharia em impedir que Gaudêncio Torquato assumisse o partido elitista? Tem até o direito de usar um vaivém entre o Brasil e os Estados Unidos mal costurado, que resulta em uma compreensão rarefeita sobre o que ele quer de fato ensinar com isso. Destaco apenas que o professor se expressa de uma maneira curiosa. Parece que ele é mais um porta-voz da mídia, destes que têm o hábito de falar pela “sociedade”, pelo “contribuinte” ou pelo “cidadão” — seja lá o que isso quer dizer.

Eles falam assim não porque praticam o “centralismo democrático” — seria bom se o praticassem —, e sim porque têm sempre uma versão extremamente opaca de centralismo autoritário. Mas deixa isso para lá — em outra hora comento o assunto. O problema é que é difícil aceitar esse tipo de diagnóstico num país em que até há pouco tempo o governo foi uma mediocridade neoliberal em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo. No rol da ruindade presidencial, é possível que nem um outro presidente tenha superado FHC. Obviamente, esse ponto de vista vê o governo pelo ângulo esquerdo, aquele pelo qual se enxerga o povão e os interesses maiores da nação. Quem olha pelo ângulo direito, onde está enquadrada a elite, a visão é outra.

Dois insumos básicos

Mas é sempre bom prestar atenção no que dizem estes porta-vozes da direita brasileira. Em primeiro lugar porque ninguém, até hoje, perdeu alguma coisa levando-os a sério. Em segundo lugar porque o que eles dizem coloca às claras, quando se vai ao centro das coisas, o único fato realmente essencial na disputa política contemporânea: Lula na Presidência da República representa uma grande ruptura com a nossa história e tradição política. Quando Leonel Brizola o comparou a Getúlio Vargas em uma reunião petista, em 1998, ele não estava totalmente errado — ao menos no simbolismo político.

Mudanças importantes na vida dos países carecem de dois insumos básicos. O primeiro: um desejo amadurecido na sociedade de que essas mudanças aconteçam; uma espécie de consenso coletivo em relação à necessidade de mudar. O segundo insumo: alguém que tome a frente e as realize. Um líder que tenha vontade e competência para sintetizar o desejo da maioria e concretizá-lo. É desse cruzamento que surgem as grandes reformas, os grandes avanços. O governo Lula se formou com a bandeira social, símbolo de esperança. Politicamente emparedadas pela extensão do apoio popular ao presidente, as oposições, como seria de prever, contra-atacam com o refrão de que ”só a economia se salva”. É uma pobreza de dar pena!

– A unidade do sindicalismo brasileiro tem futuro?

Eis o que está em jogo no movimento sindical: uma oportunidade única para a unidade efetiva dos trabalhadores. Mas o ”esquerdismo” e o cutismo podem ser obstáculos poderosos a esta unidade.

Há uma equação que não fecha: no começo do ano passado, um informe da Organização Regional Interamericana de Trabalhadores (Orit) anunciou que o sindicalismo das américas daria um importante passo rumo ao seu fortalecimento porque seria formada uma nova central sindical do continente. ”Esse processo, que vem se desenvolvendo desde 2001, representa também um avanço regional do processo de unidade mundial, concretizado em novembro do ano passado quando foi criada a Confederação Sindical Internacional (CSI)”, dizia o texto. Ao mesmo tempo, as articulações excluíam setores importantes do movimento sindical — que começam a se articular em torno da Federação Sindical Mundial (FSM).

A questão é saber que efeito esta divisão terá no sindicalismo brasileiro. Tem sido fácil, nos últimos tempos, quebrar a unidade sindical em nome de concepções exclusivistas. O exemplo mais evidente disso é a forma como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) surgiu, em 1983, fundada por um grupo de sindicalistas ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT). O episódio representou a consolidação de uma lamentável divisão no movimento sindical. Em um discurso aos principais líderes sindicais do país em 2002, o então senador eleito Aloizio Mercadante (PT-SP) lembrou que na Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), realizada em 1981, ”os sindicatos entraram unidos e saíram divididos”.

Imaginação infantil do sectarismo doutrinário

Mais tarde, um ilustre representante petista, o intelectual Florestan Fernandes, falando sobre a importância da unidade da esquerda na eleição para a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 condenou energicamente a estreiteza política. ”A esquerda devora a esquerda; ela não parte de um equacionamento objetivo das tarefas políticas das classes trabalhadoras da cidade e do campo, no momento atual, mas de fantasmas que rondam a imaginação infantil do sectarismo doutrinário”, disse ele. É óbvio que para falar em esquerda e direita quando se trata do movimento sindical de hoje em dia é preciso tomar alguns cuidados.

Há pelo menos duas vertentes significativas que reivindicam o rótulo de ”esquerda” e que, de uma forma ou de outra, reproduzem certos ”fantasmas que rondam a imaginação infantil do sectarismo doutrinário”. A primeira é a própria CUT. É comum ouvir hoje dirigentes daquela central dizer que o ”novo sindicalismo” que motivou a divisão do movimento sindical na Conclat ainda é a referência cutista. Dizem que a CUT nasceu como uma central de trabalhadores, não de sindicatos. E que a central se diferenciou porque combateu as articulações entre sindicatos, as negociações de cúpula tentadas por um ou outro dirigente sindical de boa vontade. Tais manifestações são comuns, por exemplo, quando o assunto é a organização e a sustentação financeira dos sindicatos.

A outra vertente é a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), de coloração trotskista. Para esta vertente, neste momento a unidade da classe trabalhadora só é possível com a luta implacável contra os ”colaboracionistas”. O termo põe num saco de gatos todas as tendências sindicais que não compartilham de sua opinião, mas o alvo, por ter as mesmas raízes, é a CUT. Exemplo disso é um artigo de José Maria de Almeida, um dos artífices da Conlutas, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 16 de novembro de 2007, no qual ele escreve que, diferentemente da CUT, ”que traiu seus princípios de fundação”, a Conlutas não aceitará os recursos oriundos do imposto sindical.

Forma definida a um anseio difuso

Não há uma vertente sindical que se reivindica de ”direita”, mas muitas passam longe do que se convencionou chamar de esquerda. Algumas, no passado recente apoiaram abertamente o neoliberalismo. A questão é: como unir todas estas vertentes em torno de uma plataforma comum? O processo de união, no sentido mais amplo, com o funcionamento do fórum das centrais está ultrapassando o obstáculo mais difícil: a barreira ideológica. Este é um passo importante, mas o difícil mesmo é formar a vontade política necessária para deflagrar e sustentar um processo de unidade desse porte.

Este é um aspecto decisivo e nem sempre lembrado. O fórum das centrais pode dar forma definida a um anseio difuso que vem ganhando corpo entre os trabalhadores. A distância política entre as centrais mais fortes tenderá a se reduzir, como já começou a ocorrer. Mesmos os cutistas tendem a aceitar com menos constrangimento esta unidade — sob pena de ficarem falando sozinhos, não percebendo o tamanho das mudanças que estão sendo gestadas sob os nossos olhos. E qual será, afinal, a cara desse novo sindicalismo? Imaginar que teremos superado todas as seqüelas do sectarismo doutrinário e do conservadorismo é patente exagero.

Pregações verbosas, empoladas, difusas

Mas é razoável supor que atingimos um patamar irreversível rumo a um movimento sindical mais arejado e mais combativo. Politicamente, já temos entre as principais organizações sindicais uma relação democrática robusta, com diálogo fluente entre as correntes políticas. O desafio agora é alçar esta organização a um novo patamar. O oxigênio da concórdia informal é sempre importante, mas só ele não é suficiente. Uma nova Conclat deve criar uma amálgama que dê firmeza a essa unidade. A dificuldade maior será com a tendência infantil, que acha que os problemas não estarão resolvidos enquanto não houver uma organização sindical pura — um sindicalismo predominantemente de ”esquerda”.

O ”esquerdismo” sempre achou que o capitalismo usurpa inexoravelmente as entidades sindicais que não fecham todas as portas e janelas para impedir que o capital malvado tome conta de suas organizações. São os ”fantasmas que rondam a imaginação infantil do sectarismo doutrinário” ditos por Florestan Fernandes. Suas pregações verbosas, empoladas, difusas, idealistas e repletas de declarações de princípios no fundo são completamente vazias de senso prático e nem de longe tocam nos problemas fundamentais da classe trabalhadora. São tendências especialistas em velhos chavões e velhíssimas fórmulas tonitruantes, tudo vago, impreciso e superficial.

Interesses de classe dos trabalhadores

Para unificar-se como é necessário, as organizações sindicais terão de assentar suas bases no interesse comum dos trabalhadores — que é a questão econômica. Politizar a luta sindical não quer dizer deixar de lado o critério de que acima das opiniões políticas e ideológicas, das opções religiosas ou pessoais, estão os interesses econômicos fundamentais, que são comuns a todos os trabalhadores. Um trabalhador, por mais distância que mantenha das questões políticas e ideológicas, compreende perfeitamente a identidade de interesses que o liga aos demais integrantes de sua classe social. Isto é fácil de demonstrar, de compreender e de sentir porque a própria realidade das relações de trabalho se encarrega de mostrar as causas fundamentais das desigualdades sociais.

A unidade do movimento sindical, portanto, só será verdadeira se estiver assentada no terreno comum dos interesses de classe dos trabalhadores. Somente esta sólida unidade pode enfrentar o bloco patronal, que até se fraciona em matéria de política, de religião ou de qualquer outra coisa, mas quando se trata de defender seus interesses se coesiona de forma compacta, homogênea. Para defender seus interesses, o patronato esquece suas divergências e une-se na defesa solidária de seus projetos, que são comuns frente aos projetos da classe trabalhadora. Enfim: a política do divisionismo no fundo é traição.

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Líderes e chefes

Domingo, 31 de julho de 2005. Jogavam Santos e Corinthians. Era um jogo marcado pela fraudulenta arbitragem daquele campeonato brasileiro para o Corinthians ganhar. Mas o Santos tinha Giovanni, o Messias (apelido carinhoso que ganhou da torcida), que simplesmente atuou como Pelé. Resultado: mesmo sendo um jogo marcado para dar a vitória ao Corinthians, o time da Vila Belmiro venceu por 4 a 2. Quando o jogo terminou, a torcida ainda rasgava a garganta com um grito que revelava a importância daquele jogador para o time. Giovanni marchou para o meio do campo com seu trote característico e um sorriso no rosto. No centro do gramado, socou o ar. A torcida explodiu.

Durante toda a partida, Giovanni fez sentir em campo sua presença e sua experiência. Funcionou como a cola que mantém as peças juntas, energizou o espírito do grupo. Ajudou a organizar o time no gramado, combateu ferozmente o adversário e também a displicência e os erros de seu time. Em suma: sua participação, como um líder inspirado e que inspira, foi fundamental para que o Santos enveredasse pelo caminho do êxito naquele jogo fatídico. A pergunta que fica é: que substância fez de Giovanni um líder com o poder de conduzir seu time à vitória? A capacidade de ser líder.

Líder precisa saber ouvir

Dunga é outro jogador que também ficou conhecido por sua liderança em campo. Só que um tipo diferente de liderança. Em um comercial que fez para uma linha de picapes, a GM anunciava que Dunga era ”respeitado por sua força” e ”temido por sua liderança”. Giovanni era o oposto de Dunga. A diferença está no modo como se concebe a liderança. Líderes não são temidos — são respeitados. E o respeito de que gozam não é angariado através do exercício da força ou do medo. Até porque as pessoas nutrem ojeriza, e não respeito, por aquilo que temem, por aquilo que lhes é enfiado goela abaixo.

Há líderes e chefes. O chefe para gerir lança mão da coerção, do uso da hierarquia como lâmina. O chefe impõe-se pela chibata exatamente porque não é líder. Abrir mão do individualismo monárquico é uma condição indispensável para o líder ter a capacidade de mediar suas próprias opiniões e intuições com o ponto de vista das outras pessoas. Dito de outra forma: o líder precisa saber ouvir. Muitas vezes, precisa mais escutar do que falar. Além de ouvir, o líder precisa também — óbvio — dominar a arte de dizer as coisas certas na hora certa. Precisa ter a capacidade de convencer, de gerar consenso. O chefe trabalha com um monte de burocratas — ou burrocratas — ditando regras e espalhando suas bílis.

Chefes são caudilhos toscos

Em outras palavras: se o papel e o microfone aceitam qualquer bravata dos chefes, o mesmo não acontece com a realidade. Chefes são caudilhos toscos. Sua capacidade de diagnosticar corretamente os problemas e fazer, com eficiência e justeza, o que deve ser feito é praticamente zero. O líder cria sistemas, que nada mais são do que uma série de ações que, pela eficiência que proporcionam, acabam se tornando padrão pelo período de tempo de uma determinada conjuntura.

O líder Luis Inácio Lula da Silva tem demonstrado destreza para conduzir o país em meio a sucessão de crises criadas pela mídia a serviço do setor UDN-DEM-tucano da sociedade brasileira. Lula vem se revelando um leão na arena política, mas a direita ataca atiçando o preconceito social e utilizando a pecha de um presidente fraco. No fundo, os direitistas querem um chefe. O uso do cachimbo entorta a boca, diz o povo. A direita brasileira nunca tibubeou: sempre que a democracia alargou o seu espectro ela recorreu ao autoritarismo. E sempre o fez em nome da ”democracia”. Os apelos ao autoritarismo, com a mesma retórica, estão de volta.

– Para onde vai o sindicalismo brasileiro?

A unidade dos trabalhadores sempre foi uma bandeira tida como definidora dos rumos que a dinâmica social assume em cada momento histórico. Agora, com a fundação da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), este tema volta a freqüentar com

George Wilhelm Friedrich Hegel certa vez disse com ironia que só os inteiramente ignorantes raciocinam de modo abstrato. Ultrapassar esta categoria de raciocínio é um desafio que persiste em pleno século XXI. E o movimento sindical talvez seja o setor da sociedade que mais precisa debater este tema. Isso porque a abordagem da realidade social não pode se dar sem uma formulação conceitual — isto é, sem uma teoria da vida social, com as suas categorias básicas, os seus pontos-de-vista, os seus princípios e processos metodológicos daí decorrentes. Mesmo o defensor mais empírico da luta social já parte para o trabalho com um estoque de conceitos e julgamentos — geralmente errados —, ainda que somente para justificar o seu empirismo.

O movimento sindical é um terreno fértil para o empirismo. O problema é que o empirismo leva ao pragmatismo. E o pragmatismo gera o caudilhismo, o mandonismo. Em lugar da atitude positiva, de enfrentamento dos problemas e da garimpagem de soluções, apareceram o autoritarismo e a procrastinação. Essa condição exalta os valores da competitividade, do individualismo e da concorrência entre os próprios trabalhadores. É um instrumento para se pisar em cabeças, não assumir falhas e jogar erros nas costas de quem está em posição mais frágil. Enfim: são valores opostos às concepções classistas e se contrapõem à solidariedade, à coletividade e à perspectiva transformadora da sociedade.

Contribuição efetiva das bases

O pragmatismo apenas se aproxima da solução dos problemas, sem atingi-los. Fica a meio caminho. Não serve sequer à unidade efetiva do movimento sindical. Um pragmático vai defender a unidade em torno de quê? Para qual objetivo? Um pragmático pode até defender a necessidade de instrumentos teóricos para o estudo da realidade social. Mas se atém à subordinação da luta a sistemas apriorísticos ou à fixação das categorias teóricas em moldes imutáveis. O conhecimento atinge essências sempre mais profundas e exige a constante incorporação de novas categorias. A meta estratégica é a mudança da estrutura social.

Se recorrermos à história da ciência social no Brasil, veremos que foram grandes os esforços para transformar a estrutura de classes existente em nosso país. Esforços guiados pelas idéias de superação das contradições sociais — o que significa luta pelo poder. O sindicalismo classista, portanto, precisa sempre ascender a planos teóricos mais elevados, onde se possa pôr constantemente em xeque a estrutura da sociedade. Não serve, para este pensamento, um aparelho conceitual de tipo imediatista, que resulta, no fim das contas, em mais fragmentação da vida social ao focalizar isoladamente aspectos de curto alcance. A unidade só serve de fato aos trabalhadores se for fundada na compreensão das categorias e princípios metodológicos para o conhecimento da vida social.

A questão é aprender a manejar este instrumental na análise concreta da realidade concreta e assim criar as condições para a formulação de propostas factíveis. Aqui está a chave para a disputa típica entre capital e trabalho no Brasil de hoje. Nesta disputa, é necessário abrir espaços para a participação dos trabalhadores de maneira efetiva, não apenas retórica. A realidade brasileira exige das organizações sindicais uma nova postura, que incorpore a contribuição das bases, que estimule o debate franco — fazendo críticas responsáveis e autocríticas sinceras.

Conteúdo e forma da dinâmica social

Essas organizações, em sua maioria, ainda são verticalizadas — concentram as decisões nas cúpulas e desestimulam a colaboração das bases. Em muitos casos, suas ações não sensibilizam o conjunto dos trabalhadores e inibem a formação do pensamento coletivo, gerando um ambiente de indiferença e uma cultura de comportamentos pragmáticos e de performances recolhidas. Um sindicalismo que enfrente este desafio deve ter sempre presente a determinação de romper o círculo do pragmatismo e do corporativismo.

Vivemos ainda a época dos impérios e do expansionismo, de relações entre países baseadas numa lógica metrópole-colônia, de guerras por mercados. O Brasil, ao assentar a dinâmica da sua economia no mercado financeiro internacional, se transformou numa das mais evidentes vítimas deste desbalanceamento de forças — que encrenca a vida de muitos para beneficiar a de poucos. A solução deste problema passa mais pelo conteúdo do que pela forma da dinâmica social.

Revolução burguesa sem o proletariado

O fato de a teoria fundamental das forças que expressam a luta por mudanças estruturais em nossa sociedade ter sido duramente atingida pelo turbilhão pós-Muro de Berlim não é algo inexplicável. Essa derrota em larga escala decorre fundamentalmente das deficiências no plano teórico. Portanto, só a reanimação teórica e prática do movimento transformador pode dar um sentido real de mudanças para a nova correlação de forças políticas e sociais que vai se formando no país. E nela não cabem caudilhismo, sectarismo doutrinário e estreiteza política.

Em grande medida, nosso atraso econômico e social se deve ao fato de a maioria dos governos da República ter excluído os trabalhadores de seus projetos. Mesmo no período em que o país deu um passo importante para o seu desenvolvimento, depois da revolução de 1930, o governo tentou realizar a ”revolução burguesa sem o proletariado” — segundo Nelson Werneck Sodré. O pano de fundo do problema tem coloração liberal. E um dos pré-requisitos para esse modelo é o de garantir força de trabalho barata — incluindo nesse conceito, além do achatamento salarial, o enfraquecimento dos sindicatos e a ”flexibilização” das leis trabalhistas.

Consolidar a mudança de rumo

O primeiro passo para que os trabalhadores façam com que os ventos soprem a favor de novos rumos é, sem dúvida, se organizar. Só assim haverá força suficiente para uma pressão por mudanças. Os trabalhadores, hoje, mais do que nunca, precisam desenvolver estudos de primeira, argumentos sólidos e linhas de raciocínio claras. Não há, portanto, por que não insistir na elaboração de uma ampla e unitária atuação do movimento sindical.

É enorme a responsabilidade do movimento sindical classista neste momento. Isolar e combater o conservadorismo é uma ação que requer arte e engenhosidade. A extensão que a crise social adquiriu está transformando a luta pelo poder no Brasil em impasses políticos. Esse quadro requer alternativas realistas, uma unidade capaz de mobilizar a esperança que levará o país a consolidar a mudança de rumo. Em política, mudança implica numa busca pela hegemonia no processo de governar.

Desprendimento e disciplina política

Mas a mobilização popular em torno de um grande projeto como este, num processo de prazo longo, só pode se desenvolver num ambiente de unidade verdadeira. Por isso, o debate sobre essa questão é tão premente. Qualquer proposta de solução da crise fora desse ambiente seria aventureirismo inconsequente. É, sem dúvida, uma engenharia de grande envergadura, que exige flexibilidade tática para fazer os objetivos encadear sempre na perspectiva da solução que preconizamos, acompanhando a vida e suas nuances.

Não se está aqui defendendo um clube em que imperam discussões e debates intermináveis. Está se dizendo que devemos buscar, já, um patamar mínimo de unidade de ação de forma sólida — não apenas retórica. Não atingiremos esse patamar com comportamentos imediatistas, corporativistas e economicistas. Para enfrentar essas contradições com eficiência, a realidade exige desprendimento, serenidade e uma boa dose de disciplina política. Fora disso, a unidade não passa de papo furado.