Motivos e fatos da reorganização do PCdoB em 1962

Passados 63 anos da Conferência extraordinária que reorganizou o PCdoB, ocorrida em 18 de fevereiro de 1962, a versão de que o Partido foi “fundado” nessa data já não reina em regime de monopólio, superada pela força dos fatos.

Por Osvaldo Bertolino

Carlos Nicolau Danielli, um dos primeiros dirigentes comunistas a opinar sobre o cisma ocorrido com os impactos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), escreveu que naquele processo estava em questão a defesa dos princípios do Partido Comunista do Brasil. Segundo ele, os princípios deveriam ser defendidos sob pena de o Partido perder suas características essenciais de um partido revolucionário.

Outros dirigentes comunistas – principalmente João Amazonas – também rejeitaram com ênfase a tese superficial daquela primeira vertente revisionista. Pode-se afirmar com segurança que havia naquele primeiro embate uma manipulação dos fatos com uma finalidade mal escondida – a liquidação do Partido Comunista do Brasil.

Maurício Grabois escreveu, em 1960, durante o debate do V Congresso do PCdoB, que nas discussões de 1956/57 surgiram entre os comunistas ideias antipartidárias. Seus porta-vozes eram basicamente militantes que atuavam na imprensa do Partido.

Grabois conta que ideias reformistas e revisionistas do debate de 1956/57 acabaram se impondo no Partido. Mas no debate do V Congresso elas ganharam uma formulação claramente mais sofisticada.

O antológico texto de Grabois Duas concepções, duas orientações políticas resume a questão. Para ele, a nova orientação traçada pelo Comitê Central em março de 1958, com a Declaração de Março, defendia uma linha “oportunista de direita”. A polêmica evoluiu para o “racha”.

Já no V Congresso, doze dos vinte e cinco membros do Comitê Central – além de vários suplentes – não foram reeleitos. Entre eles estavam Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara.

Mais tarde, foram afastados também Pedro Pomar, Danielli e Ângelo Arroyo. E, mais adiante, uma nova leva de dirigentes – Lincoln Oest, José Duarte, Walter Martins e Calil Chade – também seria destituída.

Era a consolidação da direção que defendeu a nova linha política pós-XX Congresso do PCUS. No dia 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos publicou um suplemento com o programa e os estatutos do Partido Comunista Brasileiro, de inspiração visivelmente revisionista. A direção eleita no V Congresso pretendia, com os novos documentos e a mudança de nome, obter a legalidade da nova agremiação.

O problema é que esse ato contrariava o artigo 32 dos Estatutos do Partido. “As decisões do Congresso são obrigatórias para todo o Partido e não podem ser revogadas, no todo ou em parte, senão por outro Congresso”, dizia o documento.

Em resposta, os comunistas que combateram a linha política da Declaração de Março organizaram um abaixo-assinado – Carta dos Cem – pedindo à nova direção a revogação das medidas anunciadas. Na Carta, eles disseram que a mudança de nome do Partido era “uma séria concessão às forças reacionárias”.

De fato, quando a repressão lançou os comunistas na ilegalidade, em 1947, o principal pretexto foi o de que o nome deixava claro que o Partido Comunista do Brasil era um instrumento da política externa da União Soviética. “Na realidade, essa alteração tem sentido mais grave – procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista”, diz a Carta.

No encerramento do debate do V Congresso, Pedro Pomar escreveu que ele tinha esperanças de que a defesa feita por Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral, no único artigo por ele publicado, de uma “justa linha política revolucionária para o Partido”, viesse a se concretizar.

O texto da Carta dos Cem termina com esta conclamação: “Ao adotar essa posição, confiamos que nas fileiras do próprio Partido existam forças suficientes para derrotar as tendências errôneas e encontrar o acertado caminho para resolver as dificuldades que o Partido enfrenta”.

No longo debate interno – iniciado em 1956/57 e encerrado em 1960 – fica facilmente perceptível que os principais fatores que levaram à cisão eram de fato predominantemente internos.

O problema é que no curso do processo do V Congresso solidificou a tendência revisionista, culminando na criação do novo PCB – o que não deixou aos antigos dirigentes alternativas à reorganização do Partido.

Pedro Pomar afirmou que a Conferência de 1962 fora convocada para debater e enfrentar graves problemas do movimento comunista no Brasil, decorrente de um longo processo que culminara na formação de um novo partido.

Outra missão seria a discussão da necessidade de reorganizar “o nosso velho e glorioso Partido e de indicar o caminho da luta capaz de conduzir o proletariado e povo à sua emancipação nacional e social”.

Segundo Pedro Pomar, em comentário no jornal A Classe Operária, não seria possível compreender o significado da Conferência sem estabelecer conexão com os acontecimentos anteriores, sobretudo os dos anos 1950.

Fora um período difícil para país, constatou ele, que exigiu dos comunistas esforços para vencer os obstáculos “que o Partido teve de transpor para cumprir sua missão revolucionária”.

Fora também uma fase rica de ensinamentos, na qual muitos militantes manifestaram grande abnegação, “mas a direção do Partido não teve a capacidade de encontrar o melhor caminho da revolução e deixou que se perdessem magníficas oportunidades para elevar o nível da ação combativa das massas”.

Naquela época já se podia observar certo desalento nas fileiras comunistas e perceber que a linha política claudicava diante dos acontecimentos que se precipitavam, como os de 24 de agosto de 1954 e os de 11 de novembro de 1955, analisou.

O Programa do Partido, aprovado no IV Congresso, na opinião de Pedro Pomar passou a ter uma interpretação sui generis, que não afinava com as diretrizes essenciais nele contidas. “Nessas condições é que nos surpreendeu a ofensiva da reação imperialista e o surto revisonista”, afirmou.

Pedro Pomar constatou que nas fileiras comunistas propagou-se rapidamente uma sensação de frustração, sobretudo nos setores da intelectualidade ligada aos comunistas ou sob a influência do Partido. “Cresceu a confusão ideológica em face das enormes vacilações da direção partidária e da sua impotência para enfrentar os ataques dos revisionistas”, comentou ele.

Pedro Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização do Partido Comunista do Brasil, revelando nuances que permitem visualizar as entranhas da batalha desenvolvida no processo do V Congresso.

Segundo ele, o debate no “movimento comunista” começou por iniciativa dos revisionistas e, “embora contivesse aspectos positivos e revelasse o sentimento internacionalista e revolucionário de diversos camaradas, não contribuiu para esclarecer devidamente os problemas controvertidos”.

Ao contrário, gerou mais desorientação, disse ele. “Tudo isso contribuiu para que fosse declinando a influência dos comunistas no movimento operário e democrático. As forças populares, sem liderança efetiva, se tornaram objeto da traficância dos demagogos burgueses e pequeno-burgueses. O movimento de massas ia sendo empolgado, cada vez mais, pelo nacionalismo. As publicações comunistas de massa despareceram e o próprio nome do Partido Comunista do Brasil passou a ser omitido, sendo substituído pela expressão ‘movimento comunista’ ou pela assinatura de um único dirigente”, escreveu.

Toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria, disse Pedro Pomar. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

“O Programa do Partido foi considerado superado em sua totalidade pelos corifeus do revisionismo, sob a acusação de que não refletia as novas condições do mundo e do Brasil. No que se refere à situação internacional, os revisonistas afirmavam que, na base de uma falsa apreciação, havíamos exagerado o perigo de guerra, que o poderio do socialismo era de tal magnitude que todas as reformas sob o capitalismo favoreciam o socialismo e que, portanto, a ditadura do proletariado e a revolução proletária deixaram de ser indispensáveis.”

O culto à personalidade de Prestes, que segundo Pedro Pomar os comunistas estimularam durante muitos anos, tornou-se um fator primordial para que as ideias revisionistas acabassem se impondo.

“Por ironia, um dos aspectos negativos da atividade do Partido e que os revisionistas diziam combater é que lhes propiciou a arma mais poderosa para empolgar a direção e depois o conjunto do Partido. Justamente graças à adesão de Prestes ao grupo revisionista, em 1957, é que este passou a predominar no Partido.”

Pedro Pomar revelou que os dirigentes do grupo revisionista, de acordo com Prestes na reunião do Comitê Central em agosto de 1957, acusaram quatro integrantes do antigo Presidium de serem os principais responsáveis pelos erros do Partido.

“Embora em conversas privadas confessassem outra coisa, consideraram Prestes como vítima de uma conspiração, como um homem não informado. Os ‘cabeça de turco’ (locução de uso popular que significa teimoso, obstinado, resistente) foram apontados no Partido e alijados de seus postos e aquele que era de fato o maior responsável, não só como decorrência do posto que ocupava, mas, sobretudo, pelo sistema de culto à personalidade, foi inocentado, ou considerado capaz de recuperação”, detalhou.

Apelando para a esperteza e utilizando sofismas, disse Pedro Pomar, os revisionistas continuavam rendendo o mesmo culto à personalidade, acusando, entretanto, os que se mantinham fiéis às tradições revolucionárias do Partido como “saudosistas desejosos da volta do passado”.

“Com esses estribilhos monótonos, aplicavam a torto e a direito o método mandonista por eles tão condenado. Velhos quadros e militantes foram vítimas de uma política discriminatória mais absurda e hipócrita. Empregando tais processos, os revisonistas conseguiram impor no 5º Congresso a linha reformista, apesar da vigilância dos elementos revolucionários e de sua crescente resistência diante do que ocorria no Partido. Tanto assim que os Estatutos então aprovados ainda conservaram, no fundamental, os princípios e as normas leninistas consagrados pelo movimento comunista internacional.”

Era preciso ressaltar a resistência aos revisionistas para se apreciar de modo correto o que aconteceu quando o Comitê Central eleito no V Congresso resolveu alterar o nome do Partido e criar um novo partido, que não se regeria mais pelos princípios do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário, ponderou Pedro Pomar.

“Nessa ocasião, grande número de militantes se dirigiu ao Comitê Central para condenar essa tentativa de formar um novo partido, sob o pretexto de obter seu registro eleitoral. Simultaneamente, esses militantes solicitaram a convocação de um novo Congresso, única instância que podia decidir a questão caso a direção não quisesse voltar atrás de seus propósito liquidacionista.”

A resposta do Comitê Central a essa petição dos que divergiam de sua conduta foi de uma intolerância a toda prova.

“Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisonismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

A agressividade dos senhores da terra contra Lula

Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho,  9/7/2003

Se dividirmos o Estado do Rio Grande do Sul no sentido horizontal, teremos água e vinho, literalmente. A metade norte do Estado, colonizada por italianos e alemães, foi estruturada em minifúndios — assim como a maioria dos outros dois Estados da região sul, Paraná e Santa Catarina. Já a metade sul do Rio Grande do Sul foi estruturada em grandes concentrações de terra — assim como a maioria do Brasil. Enquanto o norte comemora a fartura com vinho — como a famosa festa da uva, em Caxias do Sul —, o Sul faz água com suas enormes estâncias cercadas de populações empobrecidas. Esse quadro sulista é a um só tempo uma fotografia do que o Brasil tem sido e do que poderia ser. As regiões das Missões, do Alto Uruguai e da Serra, ao norte, assim como as regiões Norte, Noroeste e Oeste do Paraná, correspondem à ideia que o resto do Brasil faz do sul: lavouras verdejantes, comércio forte, cidades em progresso. São lugares onde a fome, o analfabetismo e a mortalidade infantil não são tão escandalosos como em outras regiões do Brasil. Já as regiões da Campanha e das fronteiras Sul e Oeste do Rio Grande do Sul não guardam muita distância do que ocorre nos sertões do resto do país.

Essa fotografia social pode ser explicada pelo modo como aconteceu a colonização no Brasil. Enquanto os Estados Unidos atraíam imigrantes distribuindo a eles lotes de terra para que produzissem de modo autônomo, a elite brasileira decidiu resolver o problema da falta de trabalhadores promovendo uma imigração forçada de escravos como mão-de-obra barata para os fazendeiros. Somente alguns trabalhadores puderam ter a própria terra, mas bem longe de onde o país estava estabelecido — primeiro no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e depois desbravando matas no Norte, Noroeste e Oeste do Paraná. A abolição da escravatura não eliminou a estrutura oligárquica: antes o dono da terra tinha escravos, agora tinha vassalos. Tampouco a Revolução de 1930 e a industrialização do país mudaram essa ordem que, de certa forma, também se estabeleceu nos minifúndios do sul. A condição de senhor da terra não se alterou e segue solidamente instalada no campo como ideologia dominante. Os coronéis estão representados em todas as esferas da política nacional e seus jagunços continuam atirando a esmo em trabalhadores que lutam por um pedaço de chão.

É fundamental que o Brasil democrático chegue aos latifúndios

Nos anos 1970 e 1980, a ditadura militar empurrou muitas vítimas da concentração de terra para a Amazônia. Junto com elas foram muitos aventureiros que viram nesse gesto dos governos militares a oportunidade de expandir suas fronteiras latifundiárias para o Norte do país — cortando árvores e destruindo ecossistemas mais antigos do que a própria humanidade para plantar soja e criar gado. Muitos dos que foram para lá atrás de terra acabaram constatando logo que aquele solo não se presta à agricultura e sobrevivem do extrativismo predatório da floresta, derrubando árvores milenares para garantir pequenas plantações ou ganhando uma mixaria para jogar mercúrio no rio atrás de minerais preciosos. Esse quadro camponês paupérrimo, enfim, poderia ser radicalmente alterado ao custo de umas poucas leis e diretrizes administrativas. Não faz sentido um país com a extensão do Brasil ostentar um cenário de Idade Média em pleno século XXI. Evidentemente, para essa alteração seria necessário que o governo promovesse uma inflexão no campo.

É fundamental que o Brasil democrático vá até os latifúndios e troque de lugar com os muitos fora-da-lei que hoje dominam vastas regiões improdutivas. Aos aventureiros sem escrúpulos, que se estabeleceram em terras devolutas e se sentem na casa da mãe Joana, caberia aplicar uma receita básica: rua, lei e cadeia. Mas nada se fará enquanto essa idéia não for um posicionamento nacional claro e indiscutível. Esse é o problema. Para essa questão, é necessário considerar que tão importante quanto a vontade política do governo para alterar esse cenário — que indiscutivelmente existe — é a visão dominante que o Brasil tem sobre o campo. A ideologia escravista sobre a nossa estrutura fundiária vê atitudes como as do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) como crimes. Para ela, uma organização que abarca um grande número de pessoas com um enorme potencial de luta num ponto neurálgico da vida nacional é uma inconveniência intolerável. A história brasileira é pródiga em exemplos de repressão às organizações que tentaram mudar as regras desse jogo.

Radicalismo é contraponto ao autoritarismo da oligarquia

Ainda é recente o caso da histeria causada pelo decreto do presidente João Goulart que declarou de interesse social para fins de desapropriação algumas áreas inexploradas. A reação a essa medida, cujo ponto alto foi a tristemente famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” realizada dia 19 de março de 1964 pedindo aos militares que expressavam opiniões reacionárias que derrubassem o governo, teve na Sociedade Rural Brasileira — velha entidades de fazendeiros paulistas — um de seus principais organizadores. Por trás da vã invocação de Deus e da liberdade estavam os interesses terrenos e oligárquicos dos latifundiários — muitos deles grileiros. Os recentes episódios de luta no campo demonstram quão enraizada na elite brasileira está essa ideologia. Do ponto de vista político, essa herança escravista apresenta-se em uma dicotomia clara: de um lado há uns poucos que lutam para manter privilégios com rancor e nenhum bom senso e de outro uma imensa massa sem cidadania que vê no governo Lula uma boa oportunidade para a conquista de um pedaço de terra.

Se há algum radicalismo nas ações dos trabalhadores ele é mero contraponto ao autoritarismo histórico dessa oligarquia. Por nunca ter em seu projeto o conceito de nação, a elite brasileira abriu espaço, com sua conduta de exploração e acúmulo, para ações radicalizadas. Os governos passados, tradicionalmente vinculados ao poder econômico, não funcionavam como elemento de equilíbrio nessa dicotomia e contribuíam para o acirramento das posturas. No governo Lula, o que se espera é uma atitude que traga para o debate nacional a necessidade de se equalizar essa dicotomia. O desafio é gigante. Afinal, num dos pratos da balança estão os proprietários — e seus apoios ideológicos — de algo próximo a 150 milhões de hectares de terras improdutivas, um oceano de solos inúteis ao país que equivale a dois Chiles ou a quinze Coréias, dispostos a defender seus feudos com balas e chantagens — inclusive no Congresso Nacional, ameaçando votações de interesse do governo. No outro prato estão aqueles que viram na eleição de Lula a esperança de termos no país um desenvolvimento nacional integrado, no qual ninguém será esquecido.

Histeria feudal deve soar como sinal de alerta para todos nós

O ponto aqui é encontrar o norte do debate: a ideia de nação. A reflexão sobre algumas propostas do governo para o campo oferece uma visão clara da disposição das peças no tabuleiro do Brasil de hoje. Na reunião realizada dia dois de julho passado entre o governo e o MST, Lula anunciou medidas como a desapropriação de áreas que não cumprem função social e um programa massivo de educação no campo (a íntegra das propostas está na edição do Vermelho do dia três de julho). A rigor, por trás da histeria desatada supostamente pelo gesto de Lula de vestir o boné do movimento está o fato de a elite brasileira não aceitar do povão outra postura que não seja a reverência. Para ela, é um disparate o governo planejar ações do Estado com gente considerada a ralé da sociedade. Essa elite não simpatiza com a ideia de democratizar o debate nacional porque ela sempre viveu sob o domo do Estado, de modo fisiológico e clientelista. Seus expoentes querem forjar uma situação no país que permita a manutenção do status quo, com o governo lhes fazendo favores, lhes protegendo as fontes de lucro e lhes pagando as contas.

Segundo dados do Incra, 94% dos proprietários rurais com latifúndios entre 50 mil e 500 mil hectares sonegam o imposto territorial. Dados da Central Única dos Trabalhadores (CUT) mostram que 3.500 latifundiários foram perdoados de uma dívida de 7 bilhões de reais junto ao Banco do Brasil. No âmbito das empresas, também é possível reconhecer esses traços feudais — uma simbiose de um setor do capitalismo brasileiro com os senhores de terra. Não é novidade que o Estado protege certos monopólios em detrimento de uma economia com profusões de iniciativas. Ainda é a hegemonia do sobrenome, da família e dos círculos a que se pertence que domina o cenário econômico e, em certa medida, político brasileiro. A reação às ações do MST, portanto, é o ideário oligárquico lutando para conservar a riqueza e as oportunidades do mesmo lado da cerca — um comportamento baseado em nossa história de rasgada distância entre classes sociais e fundado na ideologia dominante de que existimos como senhor escravista e escravo, corte e plebe. Mudar esse quadro requer muito mais do que um governo democrático. Esse é um desafio que depende da tomada de consciência dos trabalhadores. A histeria escravista, portanto, soa como sinal de alerta para todos nós.

Os partidos e os donos do poder na história do Brasil

Assinatura do projeto da Constituição de 1891, símbolo do início da história republicana do Brasil

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 20/10/2004

Vivemos uma espécie de “Fim da história” no Brasil, a julgar pela opinião academicista e intelectualista que tomou conta dos maiores meios de comunicação a respeito das eleições em andamento no país. Para os porta-vozes desta opinião, os paradigmas econômicos e políticos que marcaram o século XX perderam a razão de ser. O modo como estávamos acostumados a ver as coisas e a entender o mundo não faz mais sentido. Os conceitos clássicos de esquerda e direita, segundo essa tese, não existem mais porque a oposição básica que lhes daria sentido — socialismo versus capitalismo — foi varrida pela “nova ordem mundial”. E com ela teria desaparecido a dicotomia entre revolução e reação, que estabelece o fio condutor com marxistas e liberais.

Onde havia a chama da revolução, teria passado a existir um desejo sereno de mudanças porque as forças da reação estariam tendendo a defender a manutenção dos cenários estabelecidos de uma forma menos cínica. Em consequência, as possibilidades de diálogo e de solução dos conflitos seriam maiores. A nova dicotomia no máximo lembraria um pouco a organização partidária norte-americana, comandada por republicanos à direita e democratas à esquerda — um espectro político muito próximo do “centro”. O PSDB seria a principal força de centro-direita e o PT a principal força de centro-esquerda, ambas enquadradas por “instituições maduras” no trato das políticas macroeconômicas e sem espaços para operar mudanças estruturais.

É difícil a comprovação desta tese num país em que o combate histórico à hegemonia liberal ainda é uma luta contra resquícios medievais. Essa constatação ajuda a desvendar por que no Brasil a direita morre de vergonha em admitir-se de direita e procura manter baixa a visibilidade de sua bandeira. A realidade, no entanto, mostra cotidianamente que o enfrentamento entre forças de transformação e forças conservadoras não desapareceu. Travamos hoje uma batalha contra uma direita que age de tacape na mão para suprimir direitos sociais, que luta com unhas e dentes para manter a imprensa a seu serviço, que abomina qualquer iniciativa que visa a distribuição de renda e que desqualifica qualquer conceito de Estado de corte humanista.

História do movimento partidário imperial

Ou seja: direita e esquerda, que sempre pintaram suas bandeiras com cores nítidas, enfrentam-se com projetos claramente opostos para o país. A direita brasileira não assume o escopo ideológico que lhe corre nas veias porque ele já está há muito tempo superado. Ela sempre se soube na contramão da história, dando sustentação a qualquer regime que protegesse seu senhorio, porque privilégios feudais e arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos em outros países ainda são a essência do seu projeto estratégico. Daí a tentativa da direita de camuflagem de sua bandeira, que vem sendo pintada desde antes da disputa ideológica típica do século XX — entre socialismo e capitalismo, o conflito clássico da esquerda com a direita —, quando no Brasil já havia o choque do contemporâneo com o obsoleto.

A história do movimento partidário imperial — principalmente no auge das disputas entre monarquistas e republicanos, quando os últimos fundaram mais de 300 clubes no ano e meio decorrido entre a Abolição e a República — guarda perfeita simetria com o atual estágio em que as forças políticas conservadoras reproduzem a forma como as oligarquias trataram o povo ao longo do período republicano. Ainda hoje pouco se sabe a respeito da atividade política popular contra a monarquia, registrada em muitos jornais republicanos, e do fio condutor das ações progressistas do século XX com as lutas que se vinham travando por um futuro melhor desde antes da proclamação da República — resultado da contumaz ação autoritária das forças conservadoras.

O papel progressista do PTB até o golpe

Na República Velha, que continuou restringindo a participação popular nos destinos do país, os trabalhadores começaram a construir um efetivo movimento político, que culminou na criação do Partido Comunista do Brasil. Depois da derrocada da República Velha e da consolidação da revolução que levou Getúlio Vargas à Presidência da República em 1930, com a superação da fase em que os comunistas enfrentaram a repressão varguista, o quadro partidário ganhou nova configuração. O PCB — a sigla do Partido Comunista do Brasil na época — contribuiu de forma decisiva para a unidade nacional contra a reação e conquistou a legalidade. Sua atuação junto ao povo, mesmo depois de ser cassado no governo do general Dutra, em 1947, foi marcante.

Neste período surgiu, pelas mãos de Getúlio Vargas, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com o objetivo declarado de ocupar os espaços do PCB. Surgiram também o PSD e a UND, que retomaram a clássica configuração partidária da República Velha — além de outros partidos de menor expressão à direita e à esquerda. O PTB, partido ligado ao movimento operário que adotou uma plataforma nacional e democrática, revelou-se uma força ponderável na formação de um campo político nacional amplo e ao mesmo tempo com base popular, também integrado pelo PCB, e cumpriu importante papel até o golpe militar de 1964.

A política de unidade confirma seu acerto

Vencido o longo inverno antidemocrático, o quadro partidário, após uma fase de redefinição das posições políticas, voltou a ser basicamente o mesmo do período que sucedeu o Estado Novo. Hoje, pode-se dizer que, numa conjuntura evidentemente muito mais complexa, o PFL e o PSDB são, em essência, a continuidade do PSD e da UDN. O Partido Comunista do Brasil, já com a sigla PCdoB, voltou a figurar com destaque no cenário partidário e novamente propôs uma frente popular, liderada pelo PT, que foi se ampliando até a vitória eleitoral que conduziu Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 2002.

As eleições deste ano são mais um passo que concorre para agrupar no plano político as correntes progressista e conservadora. Há, no entanto, um tremendo esforço — às vezes por meio de um academicismo exasperante e tumultuado — para situar o quadro político fora da realidade, ignorando classes, grupos de classes e interesses antagônicos. As eleições estão comprovando a heterogeneidade de alguns partidos tidos como grandes, mas também estão evidenciando a necessidade de unir para a ação conjunta todos os setores democráticos e populares. A política de unidade preconizada pelos comunistas vem obtendo sucessos que, embora ainda parciais, confirmam o seu acerto.

O governo tende a pender para a direita

No entanto, a campanha eleitoral também vem revelando que o campo governista não está conseguindo sensibilizar grande parte do eleitorado. Em grande medida, isto se deve ao fato de que setores do governo fazem caso omisso das condições de vida do povo. Concorrem para isso, principalmente, os conflitos de interesses — destacadamente dentro do PT. Se as eleições estão demonstrando que este partido é sensível às aspirações populares, constituindo hoje uma força política insubstituível para o campo progressista, estão revelando ao mesmo tempo suas contradições e deficiências, sua ligação débil com os interesses estratégicos do país e resquícios do tradicional “esquerdismo” sectário e divisionista.

A grande massa do povo brasileiro se integrará conscientemente no projeto mudancista proposto em 2002 à medida que ver claramente a relação entre seus interesses vitais e a defesa dos interesses gerais da nação. Talvez seja essa deficiência o principal entrave hoje para uma definição clara dos dois projetos que historicamente disputam a condução do país. Uma política progressista acertada, portanto, exige, além do apoio popular decidido às ações favoráveis do governo aos interesses nacionais, o combate enérgico à orientação de certos círculos que pretendem manter a economia do país subordinada à dependência do capital financeiro. Sem dar consequência às reivindicações populares, um governo composto por forças diversificadas tende a pender cada vez mais para a direita. Isto a vida tem demonstrado.

 

O marxismo e a emancipação da mulher

Por Osvaldo Bertolino

Feminismo e emancipação feminina. Eis uma questão que atravessa os tempos e desafia as formulações políticas que enfrentam a histórica ordem econômica e social regida pela opressão. Compreender o conceito de emancipação é o primeiro passo. Ele tem no entendimento de que a dicotomia opressores e oprimidos não é natural, uma condição que pode ser superada pelo domínio da ciência sobre as leis que determinam os fenômenos sociais, conhecido na história como socialismo científico, a grande síntese do pensamento sobre a igualdade social, desde a Antiguidade Clássica.

O tema está no livro Trajetória teórica e política do feminismo emancipacionista, publicação da Secretaria Nacional da Mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), uma coletânea de textos do período entre 1954 e 2012, infelizmente pouco conhecido. É uma espécie de síntese daquilo que Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, definiu como “base teórica clara e precisa” do movimento feminino. A secretária da Mulher, Liège Rocha, explica na apresentação que os textos foram publicados em revistas, jornais, boletins e outros veículos, além de informes de congressos do Partido.

O marxismo como síntese

São 403 páginas de textos de especialistas no tema: Ana Rocha, Clara Araújo, Iracema Ribeiro, Jô Moraes, Liège Rocha, Lilian Martins, Loreta Valadares, Lúcia Rincón, Mary Garcia Castro, Milton Barbosa, Olga Maranhão e Sara Romero da Silva. O texto que abre o livro, de Jô Moares, intitulado A origem da opressão da mulher, é uma espécie de apresentação da ideia emancipacionista. À indagação sobre se o homem é por natureza opressor, ela responde: “Nos movimentos de mulheres sempre surge a ideia de que a nossa luta é contra os homens. O preconceito com que a maioria da população vê o termo ‘feminismo’ vem daí.”

Loreta Valadares, no texto A ‘controvérsia’ feminismo-marxismo, é enfática. “As críticas à pretensa ‘insuficiência’ do marxismo sobre a questão da mulher se fazem presente em quase todas as análises sobre a situação de dependência e inferioridade na sociedade, bem como sobre as origens de sua opressão. Evidentemente, as diversas teorias feministas não param somente na crítica à interpretação do marxismo sobre o processo de transformação da sociedade, mas, sobretudo, investem contra o caminho apontado pelo marxismo para a luta de emancipação da mulher”, escreve.

Sara Romero da Silva, no artigo A classe operária e a questão de gênero, ressalva que no campo da teoria marxista vai sendo evidenciado o esgotamento de uma série de modelos teóricos e práticos, “sem o suficiente desenvolvimento científico do próprio marxismo por parte de seus seguidores”. “O marxismo-leninismo afirma, e a vida, tanto no mundo capitalista como das experiências socialistas, tem confirmado que a exploração de classe é decisiva em relação à opressão de gênero e que esta última não se resolverá sem que se resolva a exploração de classe.”

A questão é compreender o marxismo como síntese do pensamento social na história. “O marxismo apresentou a primeira formulação sistematizada acerca da opressão da mulher”, escreve Liliam Martins no artigo As mulheres e o socialismo. “Incorporando ideias formuladas pelas primeiras feministas, pelos socialistas utópicos, como Fourier, desvendou a origem dessa opressão como intrinsecamente ligada ao surgimento da propriedade privada, à formulação das classes sociais.”

O poder da reprodução humana

No artigo Gênero, trabalho e pobreza: para além dos direitos iguais, Clara Araújo constata que “as crises do capitalismo agravam sobremaneira as adversas condições de vida da maioria das mulheres”. “A chamada globalização tem como um dos pontos constantemente abordados o argumento de que, em uma economia internacionalizada, de mercados transnacionais, o Estado vai perdendo sua razão de ser, assim como o próprio conceito de soberania”, diz. “A ideologia neoliberal é, portanto, contrária à própria essência das reivindicações materiais das mulheres, que dependem de iniciativas de cunho social.”

Pelo mesmo viés, Lúcia Rincon comenta, no artigo O papel da maternidade, que “o poder da reprodução humana sempre foi alvo privilegiado de preocupações daqueles que detêm o poder econômico e político e que procuram dominá-lo e controlá-lo”. “Na sociedade patriarcal e, depois, na sociedade capitalista, muitos foram os cientistas e ideólogos que se dedicaram a compreender e a explicar a reprodução humana”, escreve.

Nos textos, o ponto de vista marxista é o norte das argumentações, mas não são poucas as observações críticas sobre leituras artificias do conceito emancipacionista. Mary Garcia Castro destaca, no artigo Feminismo marxista – mais que um gênero em tempos neoliberais, que o marxismo é uma teoria científica e um movimento social crítico das sociedades de classe, em particular contra o capitalismo. “A referência no feminismo de corte liberal e social-democrata e mesmo dito ‘radical’, porque destacaria sexualidade e diferenças, é uma mulher genérica, desterrada da classe e raça. Mas em tendências no feminismo socialista, que se pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica. Sem circulação na raça ou em outras identidades marcadas por sistemas político-econômico-culturais de opressões.”

Sara Romero Silva, no artigo Origens da opressão de gênero, afirma que “houve um tempo em que militantes socialistas consideravam, em termos práticos (e até teóricos), que a luta de classes explicava tudo”. “No entanto, Marx e Engels trazem o ensinamento de que é preciso conhecer melhor a realidade, não fechar o ângulo de visão. O próprio surgimento das ideias marxistas sobre a questão da família e da mulher traz essa lição também.”

Milton Barbosa, no bem ilustrado artigo Pequena contribuição metodológica ao feminismo emancipacionista, escreve que “durante um tempo demasiadamente longo e enfadonho, a filosofia e a ciência, com seus mais ilustres e melhores representantes, desqualificaram a mulher, tornando-a uma obviedade desinteressante para a investigação racional”. “Mais do que isso, a apropriação privada pré-capitalista e capitalista, que inicialmente aprisionou-as à vida doméstica, impedindo-as de desenvolver uma visão ampla da sua existência e de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino um meio de acesso à vida pública para eternizá-la como objeto de desejo dos machos, velhos e novos.”

Uma vida livre e feliz

Ana Rocha encerra o livro com o texto Impactos da ideologia neoliberal na subjetividade feminina. “Vimos que a mulher avançou sua presença no espaço público, mas que a questão da dupla jornada permanece como um problema crônico, que tem afetado a vida da mulher, aumentando seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e traz uma ameaça de retrocesso na condição feminina é necessário abordarmos em que consiste a vitória ideológica-cultural do neoliberalismo no mundo.”

Antes, o livro tem dois textos do 4º Congresso do Partido, realizado em 1954. O primeiro é uma intervenção de Iracema Ribeiro. “O trabalho de ganhar milhões de mulheres para o Programa (do Partido) só poderá se desenvolver com pleno êxito quando deixar de ser apenas tarefas das seções do trabalho feminino e das organizações de base femininas e for incluído entre as tarefas permanentes e diárias de todos os organismos do Partido.”

Olga Maranhão, também em intervenção no 4º Congresso, disse que o Partido Comunista do Brasil é herdeiro das gloriosas tradições de luta do povo e dirige “as lutas das massas femininas pelos direitos e interesses da mulher, pela paz, pelas liberdades democráticas e pela independência nacional”. “O Partido nos ensina que a ação unida e organizada das grandes massas femininas é indispensável para assegurar às mulheres uma vida livre e feliz.”

Mulheres contra os homens

Um ponto abordado em algumas passagens do livro, referente à indagação de Jô Moares sobre a natureza opressora do homem, representa um dilema histórico. O que se convencionou chamar de “sexismo” é tratado por ela no artigo A nova etapa do feminismo como “ruptura”, que se dá, “fundamentalmente, com o chamado feminismo da igualdade na sua expressão liberal-reformista”. “A concepção da universalidade da condição feminina reforçou-se com a ideia da ‘irmandade de mulheres’, que constituía o modelo feminino de fazer política. Expressa com força no feminismo americano, a ideia da irmandade se desenvolveu amplamente pelo mundo”, relata.

Jô Moraes traz um conceito que, às vezes, tenta se impor pelas palavras, tirando do debate o arejamento das ideias e o exercício reflexivo. Essa discussão, na verdade, é antiga. No Partido Comunista do Brasil ela aparece, por exemplo, numa sabatina do então deputado constituinte comunista Carlos Marighella, em 1946, em Salvador. “Com a presença de grande número de mulheres, operárias, donas de casa, elementos femininos progressistas de várias classes sociais e representantes da Liga Femina Democrática, além de pessoas outras, teve lugar na sede da Associação dos Empregados do Comércio, a sabatina com o deputado Carlos Marighella com as mulheres baianas”, noticiou a agência de notícias do Partido, Iter Press.

Segundo Marighella, a mulher só poderia se libertar “procurando se organizar e conseguindo participar da produção, porque então obterá uma situação de independência econômica, de onde decorrerão todas as outras situações de liberdade e vida digna e moderna”. Citou como exemplo a União Soviética, onde, mesmo após a vitória do socialismo, persistiu a violência contra a mulher. Mas “as mulheres mais esclarecidas se organizaram e se uniram às companheiras e, após séria luta organizada, conseguiram a sua independência”. E falou do falso feminismo, que se dizia disposto a emancipar as mulheres, um movimento de mulheres contra os homens.

Marighella citou o exemplo de mulheres no parlamento na França e na União Soviética para dizer que, com o atraso político no Brasil, mulher alguma tomava assento no Legislativo, a exemplo da dirigente comunista Adalgisa Cavalcanti, de Pernambuco, cuja candidatura à Assembleia Constituinte não foi reconhecida. Era um momento em que o Partido promovia debates sobre a emancipação da mulher. O Barão de Itararé, nome mais conhecido de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, era um dos palestrantes.

Destruir Cartago

Em 1956, A Editoria Vitória, ligada ao Partido, publicou, em livreto, uma coletânea de textos de Lênin, sob o título O socialismo e a emancipação da mulher. Num dos textos ele diz que “a verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começa onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado) contra a pequena economia doméstica, ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista”.

Em outra passagem, ele relata que “em dois anos, em um dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, por sua igualdade com o sexo ‘forte’, mais do que haviam feito todas as repúblicas avançadas, cultas, ‘democráticas’, do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos”.

O livreto inclui um cativante artigo de Clara Zetkin (personagem histórica do feminismo marxista), intitulado Lênin e o movimento feminino, relatando uma longa conversação com ele em 1920. Vale reproduzir essa pérola: “Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas consequências e estigmatizar, além disso, a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a essa conclusão: ‘É preciso destruir Cartago.’ Lênin sorria e fazia com a cabeça sinais de aprovação.”

Livro de José Genoino distorce história do PCdoB e da Guerrilha do Araguaia

Por Osvaldo Bertolino

O ano era 2003. O então presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Genoino, disse, ao explicar o governo então recém-iniciado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às delegações internacionais numa conversa reservada durante o 8º Congresso nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que seu partido era “radicalmente reformista”. Referia-se às “reformas” privatistas do Estado que tramitavam em Brasília, uma agenda do governo anterior, herança do projeto neoliberal.

Segundo ele, o PT representava a “esquerda democrática”, social-democrata, e se diferenciava da esquerda “dogmática”, que defendia a “revolução armada”, de onde ele vinha. “O PT me mudou”, disse. Genoíno falava do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ao qual pertenceu desde antes do seu ingresso nos preparativos da Guerrilha do Araguaia, no final dos anos 1960.

Genoino revelou desconhecimento das causas que levaram o PCdoB ao caminho da guerra popular, debate que percorreu suas fileiras desde o seu surgimento, em 1922, e ferveu quando o assunto compareceu nas Teses do seu 5º Congresso, em 1960. A linha que reorganizou o Partido, em 1962, reafirmou, em essência, que a passagem ao socialismo assumiria formas conforme os obstáculos no caminho do processo revolucionário, que poderiam ser pacíficas ou não.

As pessoas e o Partido

Ele volta ao assunto em seu livro de memórias, com duzentas e sete páginas, recém-publicado pelas editoras Kotter e Letra Selvagem, organizado por Salvio Kotter e Nicodemos Sena, intitulado José Genoino – uma vida entrevista, narrado na primeira pessoa. Cada passagem é descrita em detalhes, com ênfase em sua militância política desde o final da década de 1960.

O PCdoB ocupa grande parte da história, descrito com certo amargor, sobretudo quando o assunto é a Guerrilha do Araguaia, atribuindo ao Partido comportamentos pessoais. “A minha responsabilidade foi, ao ser preso e identificado como Genoino, ter falado que estava lá (no Araguaia) e reconhecer companheiros que estavam lá e os locais onde eu andava foram queimados. Nem que quisesse saberia dizer onde estava a Guerrilha. Nenhum dos depósitos que eu conhecia foi descoberto. Isso me dava certa tranquilidade, mas não o fato de ter admitido meu nome verdadeiro, o fato de ter admitido a minha militância, o fato de ter admitido a minha relação com os companheiros do Araguaia, aquilo me perturbava a cabeça, e essa perturbação era acrescida com as cobranças do PCdoB”, afirma, no capítulo 59, intitulado Zezinho do Araguaia, relatando sua convivência com o guerrilheiro sobrevivente Micheas Gomes de Almeida.

As “cobranças do PCdoB” aparecem em outras passagens, sempre de maneira enigmática. No capítulo 14, com o título A culpa do sobrevivente, Genoino descreve “dramas” acumulados “ao longo do tempo” e relata “a culpa de estar sobrevivendo aos companheiros que haviam tombado”. “Esse drama até o próprio PCdoB jogou na minha cara”, diz. Cita também o “drama de ficar sabendo, indiretamente, através das famílias ou dos advogados, que você está sendo acusado de estar entregando os companheiros nos depoimentos”. “As pessoas jogam isso, sem nenhuma base, mas o efeito que gera é muito cruel”, comenta.

O que “as pessoas jogam” de fato pode ser mais do que cruel. Pode ser inconsequente mesmo, perverso até. Mas esse juízo não pode se estender ao PCdoB. Não consta que o Partido tenha emitido alguma opinião ou tomado posição nesse sentido. Atribuir à organização o que, segundo ele, pessoas disseram não é correto, por mais que existam cicatrizes daqueles tempos. O PCdoB, como bem sabe Genoino, não toma posição ou emite opinião sem submetê-las aos seus coletivos de organização e direção.

Entrevero com Rogério Lustosa

No Capítulo 20, sob o título Dramático rompimento com o PCdoB, Genoino se estende sobre o assunto. Começa descrevendo de forma totalmente distorcida a “Chacina da Lapa”, o cerco da ditadura militar à reunião do Comitê Central nos dias 15 e 16 de dezembro de 1976 que resultou em mortes e prisões de dirigentes do Partido. “Por não admitir a derrota (no Araguaia), o PCdoB não queria prestar contas aos familiares dos mortos e desaparecidos e não concordava com o que eu comecei a fazer”, afirma, referindo-se às suas conversas com jornalistas.

Ele possivelmente sabe que esse assunto foi amplamente debatido no PCdoB e as conclusões estão relatadas nas biografias de Pedro Pomar e Maurício Grabois, e no livro Guerrilha do Araguaia – verdades, fatos e histórias, de minha autoria. Jamais houve alguma deliberação que omitisse os acontecimentos no Araguaia, obviamente resguardando as condições de segurança de dirigentes e militantes do Partido. Também omite as reuniões do Comitê Central que avaliaram a experiência da Guerrilha e distorce o conteúdo e a forma dos debates ao dizer que “a maioria da direção do Partido foi morta, ou no Araguaia ou na Chacina da Lapa, de modo que a minoria virou maioria”.

Genoino se apoia na recorrente invectiva de que havia no PCdoB uma divisão sobre a avaliação da Guerrilha, tomando divergências pontuais e naturais em qualquer debate – entre os comunistas, sempre intenso – como algo petrificado, fora das circunstâncias. Nas reuniões da direção do PCdoB que trataram do assunto – e de muitos outros, sem ligação com a Guerrilha –, as posições nunca se consolidaram como “maioria” e “minoria”. No máximo agrupavam-se conforme o tema, sem se constituírem em grupos ou frações. Nenhuma delas negou a Guerrilha. Tampouco defendeu omissão sobre os acontecimentos.

Mas, para Genoino, havia omissão. “Comecei a ser malvisto por defender que o PCdoB devia discutir publicamente a experiência da Guerrilha do Araguaia, bem como prestar contas às famílias e homenagear os guerrilheiros. Foi guerra, não teve jeito nem volta. Isso coincidiu com o surgimento do PT, em 1980. Fui direto para os movimentos que deram origem ao PT. A barra pesou. Fui tachado como traidor pelo pessoal do PCdoB”, relata. No Capítulo 24, intitulado Reaprendendo a voar, ele afirma que até sua esposa, Riocco Kayano, “foi retirada porque era minha companheira, e isso a machucou muito”.

Genoino não diz quem era o “pessoal do PCdoB”, mas lembra de “um companheiro do PCdoB, o Rogério Lustosa, que esteve preso comigo e era muito solidário e amigo”. “Ele dirigia o Tribuna Operária, jornal do PCdoB, e eu dava aulas na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, pertinho da sede do PCdoB. Fui lá cumprimentar o Lustosa e, quando botei a cara, ouvi: ‘Não aperto a mão de traidor.’ Fiquei tonto, dando voltas no quarteirão, sem saber o que fazer. Foi muito violento aquilo. Isso ficava martelando na minha cabeça. O PCdoB batia duro porque eu estava saindo do Partido para entrar no PT.”

Vias de fato com Rogério Lustosa

O relato deixa entrever que Rogério Lustosa se referia ao Araguaia, mas havia outro episódio, não mencionado por Genoino, que tem mais a ver com a cena descrita. Havia no PCdoB um grupo de dirigentes e militantes, do qual ele fazia parte, que na prática defendia a negação do Partido. João Amazonas, então o principal dirigente do PCdoB, disse que era “uma facção que mergulhou nas águas do eurocomunismo”, vertente liquidacionista de alguns partidos comunistas ocidentais. Um documento da reunião do Comitê Central de março de 1980 expôs críticas ao grupo, considerado capitulacionista e com concepções liberais. E fez um chamamento ao conjunto do Partido para que se unisse politicamente e ideologicamente.

Renato Rabelo, posteriormente o principal dirigente do PCdoB, lembra de lances dramáticos daquele processo. “Ozéas Duarte, Nelson Levy e um companheiro do Rio de Janeiro que vivia em Buenos Aires diziam que o Partido tinha que passar por uma grande reformulação. Nossa participação no processo de democratização era muito questionada. Mas eram pessoas sem muita influência de massa, algo localizado no Rio de Janeiro, Bahia e um pouco em São Paulo, na ‘estrutura um’ (na qual ficaram os militantes que não vieram da Ação Popular (AP) na incorporação dessa organização ao PCdoB em 1973, a “estrutura dois”, entre eles Genoino). Tivemos reuniões muito duras e acesas”, lembra. Segundo Renato, Rogério Lustosa “enfrentou esse pessoal”. “Numa reunião, Ozéas quis ir às vias de fato com Rogério e nós apartamos”, relata.

As Resoluções do 6º Congresso do PCdoB, realizado no início de 1983, informam que o grupo agia desde antes da 7ª Conferência, que ocorreu na Albânia entre o final de 1978 e início de 1979, manifestando “ideias e concepções políticas de cunho direitista, fazendo avaliações negativistas da trajetória do Partido, particularmente no período de enfrentamento do fascismo e da luta armada no Araguaia”. E mais: “Aproveitando-se das dificuldades orgânicas por que passava o Partido após a queda da Lapa em dezembro de 1976 e o fato de que parte do Comitê Central encontrava-se no exterior, alguns desses elementos tentaram criar uma direção paralela de âmbito nacional para dividir o Partido.” O grupo foi expulso.

No mesmo Capítulo 20, Genoino, reiterando que havia “posições divergentes”, diz que “a avaliação do PCdoB (sobre a Guerrilha) ficou dividida”, com o argumento de que “a vanguarda do Partido, os quadros mais preparados haviam morrido na Guerrilha (1972-1974) e na Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976”. “O que de melhor o Partido tinha gerado foi eliminado pela ditadura militar. Foi um drama. Na verdade, uma tragédia. A avaliação sobre o que realmente aconteceu com a Guerrilha mexeu com as relações pessoais.”

Gloriosa jornada de lutas

As “relações pessoais” na verdade envolviam posições do Partido e do grupo que estava em processo de confrontação. Sua versão sobre “o que realmente aconteceu com a Guerrilha” também não bate com os fatos. Já na reunião do Comitê Central de dezembro de 1976, quando houve a chacina, um documento da Comissão Executiva, derivado de um relato de Ângelo Arroyo – dirigente do PCdoB que estava no Araguaia –, intitulado Gloriosa jornada de lutas, foi aprovado. Pedro Pomar, que seria um dos mortos, informou que o documento era um esforço para responder a algumas preocupações e perguntas.

Genoino cita também, no Capítulo 58, intitulado Mais preparados para morrer, uma reunião com João Amazonas, com quem conviveu no Araguaia, realizada em 1979, depois da Anistia. “Nessa época, eu já estava explicitando divergências com o PCdoB e me inclinando a ir para o PT, que estava em processo de formação. Também fazia uma avaliação de que o PCdoB tinha que realizar uma avaliação e prestar contas do que aconteceu na Guerrilha. Essa conversa com João Amazonas foi muito tensa, muito mesmo, praticamente de ruptura, porque ele não aceitava as minhas opiniões e nem o fato de externá-las, o que considerava uma traição, e, somando-se a isso, o mais grave, para ele, era eu ir para o PT.”

Genoino toma o que avalia como posição de Amazonas o que era opinião do PCdoB, mais uma vez omitindo documentos e avaliações que vinham desde 1975, passaram pela 7ª Conferência e estavam em andamento. Mas o problema, segundo ele, eram suas opiniões e sua ida para o PT. “Por causa disso, durante certo tempo, o PCdoB me hostilizou. Não digo que o PCdoB mentiu ou usou as pessoas e as famílias dos guerrilheiros desaparecidos, porque as famílias queriam encontrar seus familiares lá. O PCdoB não estava errado em dizer que era o Partido da Guerrilha, pois a Guerrilha foi composta por seus militantes. Mas o PCdoB fez da Guerrilha um trunfo político para se cacifar, crescer e ser legalizado.”

São afirmações que afrontam a realidade. “O Partido Comunista do Brasil não faz proselitismo em função do Araguaia. Nosso Partido achou que cumpriu o seu dever, de procurar, em condições difíceis, o caminho da resistência, preparando o fim do regime de tirania implantado no Brasil. O Partido Comunista simplesmente cumpriu o seu dever, e cumprirá em qualquer circunstância, porque é um Partido integrado com as raízes do nosso povo e que aspira a um regime de liberdade, de justiça social, de esperança para a nossa gente tão sofrida e humilhada, sujeita a um processo de degradação que horroriza a todos nós. Que vivam eternamente na lembrança dos brasileiros os feitos gloriosos dos guerrilheiros do Araguaia”, disse Amazonas.

Três bandeiras do Partido

Genoino ignora também a luta do PCdoB por verdade, justiça e memória, desde 1975, com o documento intitulado Levar adiante e até o fim a luta contra a ditadura, a Mensagem aos brasileiros. Na reunião da Lapa, Pomar disse que o PCdoB deveria aplicar uma política de unidade de ação e frente única, com as três bandeiras do Partido: Assembleia Constituinte, anistia e abolição das leis repressivas da ditadura. Deveria também continuar a propaganda pelo fim da ditadura. Genoino insiste no proselitismo inconsequente ao recorrer insistentemente nos mesmos argumentos, aparentando estar disposto a firmar suas opiniões à força de repetição. Chega às raias da difamação ao dizer, negando evidências facilmente encontráveis, que o PCdoB abandonou familiares e se ausentou da autocrítica sobre erros na Guerrilha.

Ainda no Capítulo 20, ele afirma “que quando a Guerrilha foi derrotada, o PCdoB deveria ter feito uma prestação de contas à sociedade contando o que tinha ocorrido de maneira real, pois afirmar a história do Araguaia era uma maneira de defender o heroísmo, a bravura, a generosidade e o desprendimento dos guerrilheiros, uma homenagem a todos os que tombaram”. “Deveria apoiar a reivindicação legítima das famílias em recorrerem aos instrumentos jurídicos para localizarem os corpos, bem como fazer uma avaliação crítica da experiência, prestar contas e homenagear aos que entregaram suas vidas pela causa. Isso era possível, até porque nem toda a direção do Partido sabia do que tinha acontecido e só três da Executiva sabiam”, diz, numa sequência inacreditável de negação da realidade.

A Guerrilha no 6º Congresso do PCdoB

A avaliação da Guerrilha do Araguaia foi um dos principais pontos do 6º Congresso do PCdoB, realizado em 1983. O documento aprovado, intitulado Estudo crítico acerca da violência revolucionária, é denso. Abrange o amplo debate que começou em 1974, condensado no documento Gloriosa jornada de luta, aprovado nas instâncias do Partido e oficializado na 7ª Conferência. Foi um “ponto de partida para a sistematização daquela experiência”, conforme declaração de Amazonas ao jornal Movimento.

O documento aprovado no 6º Congresso registra as tentativas de luta armada na resistência à ditadura e destaca o Araguaia como “a expressão mais avançada”. “Apesar da férrea censura imposta aos meios de comunicação, o movimento guerrilheiro repercutiu intensamente em várias regiões do país e serviu de estímulo a muitas formas de resistência camponesa na luta pela terra”, ressaltou.

No primeiro item, intitulado As classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução, o documento cita a utilização da luta armada pelo povo como recurso histórico das grandes transformações sociais, a exemplo da Revolução Francesa, da Revolução Russa, da Revolução Chinesa e mesmo dos Estados Unidos, que se constituíram como regime capitalista com o emprego das armas. Citou também o Vietnã, o Laos, o Cambodja, a África e a “nossa independência”, que “não pôde prescindir da luta armada patriótica em alguns estados”.

O segundo item entrou na experiência do Araguaia, iniciando-se com a análise do documento Guerra popular – caminho da luta armada no Brasil, da 6ª Conferência, de 1966. Faz uma descrição dos combates e destaca que em muitos aspectos o Exército surpreendeu o comando guerrilheiro. “A substituição de recrutas por soldados das chamadas ‘tropas de elite’ e o emprego de armamento moderno fizeram com que o conflito direto entre os dois lados de contendores resultasse em crescentes perdas para os guerrilheiros”, avaliou. Também refuta as críticas errôneas, referindo-se às versões que circulavam com base em informações deformadas do debate no PCdoB.

O terceiro item, intitulado Indicações gerais sobre o caminho revolucionário, aborda basicamente estratégia e tática. “As forças sociais em presença, sobretudo o proletariado e o campesinato, com o aprofundamento da crise econômica e social e sob a influência de fatores objetivos, vão amadurecendo a sua consciência política e encontrando novas formas de combater seus inimigos. As seguidas medidas antipopulares e antinacionais do governo, as represálias e brutais repressões policiais encarregam-se de ‘educar’ em pouco tempo o proletariado, as pessoas simples das cidades, o campesinato, preparando-os para as formas de luta revolucionária”, resumiu.

O quarto e último item analisa “o movimento revolucionário nas condições atuais”, apontando o papel do PCdoB diante da violência contrarrevolucionária das classes dominantes. “O centro da estratégia do Partido, expresso no Manifesto-programa e desenvolvido em particular na 7ª Conferência Nacional, é a conquista de um regime de democracia popular, rumo ao socialismo. Deste objetivo desprende-se o eixo da orientação tática do Partido, definido na orientação de derrubada do regime militar e na conquista das mais amplas liberdades políticas, tática relacionada com uma situação objetiva em agravamento”, afirma.

Há setenta e sete anos, Câmara dos Deputados cassou mandatos comunistas

70 anos da cassação dos mandatos do Partido Comunista do Brasil - Congresso em Foco

Bancada comunista protesta contra cassação

Por Osvaldo Bertolino

A bancada comunista brilhou na sessão da Câmara dos Deputados de 29 de dezembro de 1947 quando o projeto de cassação dos mandatos comunistas foi a discussão. O Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB, passava por uma dura perseguição, resultado do contexto de expansionismo do regime dos Estados Unidos, o imperialismo, conhecido como Guerra Fria, o anticomunismo da Doutrina Truman, formulada pelo então presidente norte-americano, Harry Truman. O registro do Partido havia sido cassado em 7 de maio daquele ano. Não demorou e a artilharia dos perseguidores dos comunistas mirou os mandatos dos eleitos pelo PCB.

Discursando em nome da bancada comunista, Carlos Marighella comentou que contradição mais absurda não poderia existir: cancelou-se o registro do Partido Comunista do Brasil, mas os representantes comunistas no parlamento continuavam defendendo o mesmo programa apresentado aos seus eleitores. O problema em si merecia outros comentários, disse Marighella, não fosse o fechamento do PCB uma decisão meramente política do Judiciário, sob a coação do Executivo. E já Rui Barbosa dizia: “Justiça política equivale a justiça de partido, justiça de interesse, justiça de desforra, justiça de crueldade.”

O Conselho Nacional do Partido Social Democrático (PSD), liderado pelo presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, reuniu-se a portas fechadas e decidiu criar uma comissão de cinco “juristas” para dar um parecer sobre a cassação dos mandatos comunistas, uma trama golpista denunciada pelo PCB como conjura na qual estavam envolvidos, entre outros, o chefe do Gabinete Militar do governo Dutra, Alcio Souto; o ministro da Justiça, Costa Neto; o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, o magnata da indústria paulista Morvan Dias de Figueiredo; e o famigerado Pereira Lira, o chefe de polícia.

A derrota eleitoral do PSD em São Paulo, com a eleição de Adhemar de Barros pelo Partido Social Progressista (PSP), atribuída pelo grupo à aliança com o PCB, acendera o sinal de alerta sobre o potencial dos comunistas nas eleições futuras. Diante da derrota do PSD, Dutra pensou em formar um novo partido, uma maneira de expurgar do seu projeto político a corrente getulista que se abrigava na agremiação partidária que herdara.

O líder pessedista na Câmara dos Deputados, Nereu Ramos, se opôs à ideia, alertando o presidente que o PCB representava um perigo maior. O plano era transformar o governo em algo parecido com o que fizera o ditador Higino Morínigo no Paraguai, sustentado em um sistema monopartidário. O PSD seria o Partido Colorado brasileiro. Para isso, o regime de força teria de ser restaurado e o principal empecilho precisava ser removido. O alvo estava definido: a bancada do Partido Comunista do Brasil. Para cassá-la, o senador Ivo de Aquino (PSD) apresentaria um projeto de lei.

Parábola de Monteiro Lobato

O PCB começou a se preparar para mais uma campanha de resistência. Comícios foram programados em diferentes pontos do país, muitos proibidos pela polícia. Em São Paulo, os líderes comunistas Pedro Pomar e João Amazonas discursaram no “comício da unidade democrática”, realizado no Vale do Anhangabaú em junho de 1947. “A política da reação é: depois de nós, o dilúvio”, disse Pomar. Segundo ele, Dutra poderia ser derrotado porque as condições internacionais não eram favoráveis à ditadura.

No comício foi lida a parábola História do Rei Vesgo, escrita por Monteiro Lobato especialmente para aquele evento. O povo ouviu:

Na frente do palácio de certo Rei do Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse Rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem”; vontade tão grande que ele não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrasar o morro. Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis, nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do Rei. Sem ele o Rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham como um grande mal. Mas aquele Rei, que além de vesgo era malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cavouqueiros, aos quais disse:

— Tirem-me um pouco de terra desse morro, ali há umas touceiras de craguatá espinhento. Se o povo protestar contra a minha mexida no morro, direi que é para destruir o craguatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.

Os cavouqueiros arrancaram os pés de craguatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam: “Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma”.

Vendo que não houve protesto, o Rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra — ele fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra… Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o Rei por muito tempo naquela política de “extirpação das plantas daninhas do morro”, e as foi arrancando, sempre “com terra”, até que um dia…

— Que é do morro?

Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, estender o seu olhar vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente — não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas pelo de trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.

Isso foi no Oriente. Mas nada impede que aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. É preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos Reis vesgos não as arranquem “com terra”. Do contrário o morro se acaba — e… como é? Ditadura outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paizinho dos pobres outra vez?

Este comício tem essa significação. É um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso Rei, sob o pretexto de arrancar o craguatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície.

E se tal acontecer e esse soba instituir o relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-se pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.

O preço da liberdade é uma vigilância barulhenta como a dos gansos do Capitólio.

O PCB estimou em setenta mil o número de participantes do comício, uma multidão que se estendeu por todo o Vale do Anhangabaú, o “vale do povo”.

Palavras de Rui Barbosa

O Senado aprovou o projeto de Ivo de Aquino por trinta e cinco contra dezenove votos. Segundo Maurício Grabois, líder da bancada comunista na Câmara dos Deputados, os senadores votaram, na verdade, o suicídio daquela Casa, uma medida em grande parte devida ao golpe de 29 de outubro de 1945, afastando Getúlio Vargas da Presidência da República, que manteve em posições-chave da administração pública fascistas notórios. “Nós, comunistas, estamos tranquilos; não tememos de maneira alguma aquela votação, porque sabemos que cumprimos nosso dever para com o povo brasileiro. A nação, amanhã, ou hoje mesmo, irá julgar esses senadores que não foram capazes de honrar seus mandatos”, afirmou.

Na sua avaliação, a votação do projeto, tanto no Senado como na Câmara, tinha o poder de mostrar ao povo quem respeitava sua vontade e quem passava por cima da legalidade democrática para impor tiranias. “O povo brasileiro está com os olhos voltados para esse parlamento, e no dia em que a Câmara votar – se, por acaso, assim fizer – a cassação dos mandatos, não mais merecerá – sobre isso não tenho dúvida – a consideração e o respeito do nosso povo. Nosso mandato não foi obtido ilegalmente, por meios fraudulentos; não o conseguimos enganando o povo. Nosso mandato resultou do sufrágio de seiscentos mil brasileiros que deram seus votos conscientes aos representantes eleitos sob a legenda do Partido Comunista do Brasil.”

Grabois foi à tribuna da Câmara dos Deputados no começo de novembro de 1947 para antecipar-se à chegada do projeto em plenário, conforme anunciou no início do discurso. “Hoje, senhor presidente, quando comemoramos a passagem de mais um aniversário da maior figura das letras jurídicas brasileiras – Rui Barbosa – podemos ajustar algumas de suas palavras, relativamente a governos de sua época, ao do senhor general Dutra que permite, em vésperas de eleições, que homens como o senhor Adhemar de Barros criem um clima de desordem e insegurança na principal unidade da federação brasileira.”

As posições que o governador paulista vinha adotando eram embaraçosas para os comunistas. Dois dias depois da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que cassou o registro do PCB, Adhemar de Barros recebeu do ministro da Justiça, Benedito Costa Neto, uma mensagem por rádio instruindo o governo paulista sobre como a polícia deveria agir. A ordem era fechar e interditar as sedes comunistas e arrolar “bens, papéis e documentos encontrados” e lacrar “outros quaisquer locais em que o Partido porventura passe a exercer atividades”. Uma das condições para a aliança do PCB com o governador era a defesa da “existência legal de todos os partidos”. Mantida na gaveta durante o processo de cassação do registro, depois da ordem do ministro da Justiça Adhemar de Barros jogou-a no lixo e assumiu o papel de verdugo dos comunistas.

Em 1947, São Paulo seria tabuleiro de uma jogada eleitoral decisiva para a sucessão do presidente Dutra. As eleições para vereador, prefeito e vice-governador atraíam a atenção de todas as forças políticas do país. Com os olhos voltados para os movimentos políticos no estado, o governo federal pressionava Adhemar de Barros, exigindo que ele eliminasse a força dos comunistas. Estes, por sua vez, conclamavam as forças democráticas para que cerrassem fileiras contra novos golpes na democracia.

O clima estava exaltado quando o PCB tentou organizar comícios no estado para defender seus mandatos e fazer “propaganda dos candidatos recomendados pelo senador Luiz Carlos Prestes”. O ambiente de “intranquilidade” era fomentado pela passagem do governador para o posto de simples interventor de Dutra. Seria um daqueles delegados tão comuns na época do Estado Novo, um concorrente do “louco de Maceió”, segundo Pomar, numa referência ao governador de Alagoas, Silvestre Péricles de Góis, que ameaçou atirar em Prestes e mandou cercar a Assembleia Constituinte do estado com policiais portando metralhadoras, um clima que lembrava “a Alemanha de Hitler”.

Segundo Grabois, o grupo ao qual agora Adhemar de Barros também pertencia, obcecado pelo ódio insaciável aos comunistas, empregava todos os esforços “no sentido de fazer desaparecer da política brasileira, e mesmo da própria face geográfica do Brasil, mais de quinhentos mil compatrícios que concorreram às eleições de 2 de dezembro de 1945 e 19 de janeiro de 1947”.

“Por isso, senhor presidente, na data em que se comemora o nascimento de Rui Barbosa, gênio das letras jurídicas de nossa pátria, não há melhor homenagem a esse grande brasileiro do que ler algumas palavras por ele preferidas, acusando o governo de então, também de incapaz e inepto. Assim permito-me ler o seguinte trecho de discurso proferido no Supremo Tribunal Federal, a 23 de abril de 1892:

Não há mais justiça, porque o governo a absorveu. Não há mais processo, porque o governo o tranca. Não há mais defesa, porque o governo a recusa. Não há mais códigos nem leis, porque os governo as substitui. Não há mais Congresso, porque o governo é senhor da liberdade dos deputados. O governo… o governo, o oceano do arbítrio em cuja soberania desempenham todos os poderes, se afoga todas as liberdades, se dispersam todas as leis. Anarquia vaga, incomensurável, tenebrosa como os pesadelos das noites de crime. De toda parte a desordem, por todos os lados a violência. E flutuando apenas à sua tona, expostas à ironia do inimigo, as formas violadas de uma Constituição, que os seus primeiros executores condenaram ao descrédito imerecido e à ruína precoce.

Senhor presidente, essas palavras do grande Rui Barbosa se aplicam hoje, sem dúvida, à situação presente, quando já podemos dizer que não vivemos mais sob o império da lei, não temos mais um governo que respeite à Constituição. O que temos é uma ditadura terrorista, à frente da qual se encontra um homem cujo passado não é dos mais democráticos, porque ninguém pode contestar ter sido o senhor Eurico Gaspar Dutra um dos executores do golpe de 10 de novembro de 1937, que apoiou durante longo período o Estado Novo com as suas perseguições e todos os seus atos antidemocráticos. E só desembainhou a espada quando a democracia já estava vitoriosa em nossa terra. Só soube desembainhá-la no dia 29 de outubro de 1945.”

As palavras de Rui Barbosa eram bastante oportunas, reforçou Grabois, principalmente naquele momento em que a Câmara dos Deputados teria a necessidade de se manifestar sobre o projeto de lei enviado do Senado que, segundo ele, surgiu sob a inspiração direta do Catete e, “podemos afirmar, do bolso do senhor general Eurico Gaspar Dutra”, que não dormia, não descansava enquanto ele não fosse aprovado. “Assim, não só perderão os mandatos os representantes comunistas como também será ferida a Constituição e liquidada a democracia em nosso país.”

Estado de sítio

Grabois considerava possível a confirmação de uma informação do deputado comunista José Maria Crispim dando conta de que, caso o projeto não fosse aprovado, logo após chegaria à Câmara dos Deputados o pedido de estado de sítio, sob ameaça de dissolução do Congresso Nacional. “Devemos compreender, portanto, que esse projeto de cassação de mandatos é, sem dúvida, repito, profundamente político. A partir disso, querem utilizar o projeto como pretexto para novos assaltos à democracia. O Poder Executivo – esse grupo fascista que tem à frente o senhor Eurico Gaspar Dutra – pretende assim encobrir sua inépcia administrativa, a desorganização em que vive o país, as dificuldades econômicas que atravessa nossa pátria.”

Os comunistas compreendiam o projeto, disse Grabois, como objetivo profundamente político, cortina de fumaça. “Não tenho pretensões a cultor de letras jurídicas e a envolver-me em discussões de caráter puramente constitucional. Vindo do seio do povo, escolhido pela população do Distrito Federal para representá-la nesta Casa, aqui, no trato com os constitucionalistas, tenho aprendido algumas noções referentes aos problemas jurídicos. No entanto, qualquer estudioso do assunto, por certo, observará que esse projeto de cassação de mandatos, de autoria do ‘luminoso’ senhor Ivo de Aquino, sem dúvida, é uma chicana, constituindo mesmo um ridículo lançado à face da nação e que cobre mais que a seu próprio autor, o Congresso Nacional.”

Grabois citou uma matéria do jornal A Noticia classificando o projeto “de uma vergonha e mesmo de acinte, porque procurava regulamentar aquilo que não exige regulamentação”. “Visa-se, para arrecadar as cadeiras dos parlamentares comunistas, forjar uma lei, criar uma teoria sui generis para os casos de extinção de mandatos. Como bem afirmou ao jornal Diretrizes o deputado pessedista senhor Vieira de Melo (PSD), ‘procura-se forçar uma porta aberta’.”

Em tom irônico, Grabois comentou superficialidades e contradições primárias do projeto. Segundo ele, Ivo de Aquino fez uma grande descoberta quando dizia que, passados oito anos, seria extinto o mandato do senador. “Depois, o supersábio senador – e digo supersábio porque sua excelência ultrapassou em sabedoria aqueles famosos cinco sábios que enviaram a petição em nome do Conselho Nacional do Partido Social Democrático ao Superior Tribunal Eleitoral –, como cultor das letras jurídicas, também fez notável descoberta ao declarar que o mandato se extingue por morte do representante do povo. Acreditará sua excelência que uma alma do outro mundo possa ocupar no parlamento a cadeira, vaga por falecimento de um deputado ou senador? Não terá sido preenchido pelo respectivo suplente o lugar daquele saudoso senador desaparecido durante os trabalhos de elaboração da Constituição? Pensou, àquele tempo, o senhor Ivo de Aquino ser indispensável que o representante falecido mantivesse ainda seu mandato? É inconcebível, senhor presidente, pretender-se elaborar uma lei estabelecendo que, pelo fato de um membro do parlamento morrer, fica extinto o mandato de representante do povo.”

Com esse conteúdo, afirmou Grabois, o projeto era um conjunto de chicanas, constituindo afronta à mentalidade jurídica do parlamento. Quando ele foi discutido no Senado, poucas vozes se levantaram “para defender a indecorosa e inconstitucional proposição”. “Homens cujos méritos pessoais serão desconhecidos da população brasileira anônima, cujos argumentos não convencerão a ninguém e cujas afirmações são superficiais e vazias de conteúdo. Que fazem eles? Servem a interesses dos poderosos que querem desmoralizar o parlamento, dos que desejam acabar com a democracia em nossa terra.”

Em contraposição, disse, nomes esclarecidos da pátria, figuras respeitadas de juristas com grande folha de serviços prestados à democracia, estavam contra o projeto. “Não procurarei mais argumentos para demonstrar a inconstitucionalidade de tal projeto, porque nenhum assunto foi tão debatido, com tão vasta literatura, como o da cassação dos mandatos. Quase todos os juristas já se manifestaram sobre ele. Tive oportunidade de comparar as afirmações de senadores e juristas consagrados, relativamente à questão”, asseverou. Mas, para que a Casa ficasse bem elucidada, ele citou mais “algumas opiniões abalizadas”. “Assim, senhor presidente, inúmeros representantes do povo e juristas deram sua opinião contrária à cassação de mandatos. Poderia citar o parecer do desembargador Vieira Ferreira, do advogado Sobral Pinto, enfim, de muitos juristas e políticos de nossa pátria com autoridade para afirmar que este projeto é inconstitucional e ofende a democracia.”

Capítulo amargo

A votação do projeto foi marcada para 8 de janeiro de 1948. Um dia antes, Grabois foi à tribuna da Câmara dos Deputados para dirigir a voz, conforme afirmou na primeira frase do discurso, não para os deputados, pelo menos a maioria deles, mas, sim, diretamente ao povo brasileiro, à imensa massa dos trabalhadores do Brasil. “Porque estou certo de que minhas palavras neste recinto não terão a virtude de convencer aqueles homens que já traçaram seu roteiro, sua posição em face do projeto de cassação dos mandatos. Não tenho ilusões sobre o caráter tremendamente reacionário que orienta a maioria parlamentar, nem espero que a minha palavra possa convencer a esses homens que se esqueceram da dignidade do parlamento nacional, da soberania desta Casa do Congresso Nacional, permitindo a sua automutilação e com seu voto favorecendo a liquidação do próprio regime democrático em nossa pátria.”

O discurso foi rápido. Afirmou que nunca, no cenário político do Brasil, um parlamento tomara uma atitude como aquela, que sem dúvida passaria à história como sendo de conivência com os traidores da pátria. “Não tenhamos ilusões: o historiador saberá julgar essa maioria parlamentar que não ouve os reclamos da população, não é o intérprete da vontade popular, e não faz outra coisa senão se submeter, de maneira subserviente, aos imperativos desse grupo fascista que infelicita nossa pátria, levando o país para o caos e a catástrofe.”

Para Grabois, ali estava se encerrando mais um capítulo amargo da história do Brasil. “Sim, senhor presidente, usando esta tribuna não me dirijo a essa maioria parlamentar incapaz de defender o regime democrático, porque sei que não é a capitulação desta Câmara, a que se pode aplicar o qualificativo que Silveira Martins deu a uma determinada Câmara, que há de servir para a salvação do regime democrático; nesta hora em que se debate o projeto de cassação de mandatos, minha voz se volta para o povo brasileiro, para esse povo que a 2 de dezembro de 1945 acorreu às urnas cheio de esperanças, cheio de entusiasmo, certo de que as eleições iriam trazer para nossa pátria uma nova época de progresso e de liberdade. Logo após o pleito, empossado o candidato eleito através de acordos eleitorais, porque não tinha nenhum prestígio popular, que vimos? A marcha do Brasil no sentido da ditadura, no sentido da reação, a fim de liquidar com todas as conquistas obtidas pelo nosso povo na gloriosa jornada de 1945.”

Nos dias que antecederam à votação, a bancada comunista fez uma marcação cerrada sobre o projeto. Enquanto ele era discutido na Comissão de Constituição e Justiça, os deputados do PCB revezavam-se para denunciar, todos os dias, na tribuna, o que representava aquela medida proposta. O governo tinha pressa. Seu líder, Acúrcio Torres, corria de deputado em deputado, de bancada para bancada, a fim de impedir que os comunistas continuassem a falar. A mídia seguia a procissão e acusava a bancada do PCB de “sabotar os trabalhos parlamentares”.

A precaução contra a revolta do povo brasileiro fazia sentido. Segundo Grabois, ao falar em um comício no Parque Treze de Maio, no Recife, ele viu que a “numerosa multidão verberou o imperialismo e o grupo fascista no poder”. O PCB organizara uma bateria de manifestações pelo país, muitas vezes enfrentando as restrições policiais, com a presença de seus dirigentes nacionais, para que a força do povo se erguesse contra os atentados à democracia e à Constituição. Grabois esteve também em Salvador. “Os comícios de que participei em Recife e em Salvador estão mostrando que o povo está compreendendo que a defesa da democracia e agora, particularmente, a luta contra a cassação dos mandatos está em suas próprias mãos”, disse ele.

As manifestações ganhavam apoio das massas mesmo com a repressão fazendo vítimas por todo o país. Em Salvador, relatou Grabois, havia um ambiente de intranquilidade por conta das provocações policiais que tinham empastelado o jornal local do PCB, O Momento. “Em Salvador, onde o senhor Mangabeira (governador do estado pela UDN) afirma querer realizar um governo democrático, paira um ambiente de intranquilidade em face das ameaças dos mesmos fascistas que, servindo-se das armas da nação, empastelaram O Momento e continuam impunes. Assim, durante o comício na Liberdade, corriam boatos de que esse mesmo grupo pretendia dissolver o comício. No entanto, o povo deu a resposta merecida, comparecendo ao comício e aplaudindo os oradores”, disse.

Pomar, eleito deputado federal em 1947 na aliança com Adhemar de Barros em São Paulo, denunciara que “um bando de criminosos, envergando a farda do Exército para enxovalhá-lo, invadiu e empastelou o jornal O Momento, destruindo implacavelmente todo material do referido órgão da imprensa baiana”. No Recife, informou Grabois, a polícia proibiu comícios nos bairros, o que não impediu que uma multidão comparecesse ao Parque Treze de Maio, embora houvesse muito pouca preparação. “Após o comício, a grande massa, demonstrando mais uma vez a grande fibra de luta do povo pernambucano, saiu em passeata pelo centro da cidade, exigindo a renúncia do ditador. Ao fim da passeata, policiais espancaram alguns manifestantes, demonstrando, mais uma vez, que estamos em ditadura, contra a qual ergue-se o povo.”

Na capital pernambucana, uma “malta de vagabundos e policiais”, segundo disse Grabois na tribuna da Câmara dos Deputados, ameaçava o jornal local do PCB, a Folha do Povo. Ele presenciou “um assassino conhecido, velho agente de polícia” que contava em sua folha de serviço com “numerosos assassinatos, inclusive o do jornalista José Lourenço Bezerra, irmão do senhor Gregório Bezerra, e de operários presos em 1935”, colocar-se “à frente de cinquenta desocupados, ameaçando empastelar a Folha do Povo”. “O povo mobilizou-se em frente à redação do referido jornal, esperando que a malta de provocadores fosse atacar esse órgão de imprensa, para lhe dar a resposta merecida”, discursou.

Grabois asseverou que para os comunistas o parlamento era um lugar de luta contra o capital estrangeiro reacionário e os contratos lesivos ao progresso do país. “É, igualmente, a tribuna para defesa da indústria nacional ameaçada pela concorrência estrangeira. E finalmente o meio constitucional indicado para o início da reforma agrária, capaz de enfrentar o problema da concentração da propriedade rural nas mãos de alguns poucos latifundiários e assegurar aos lavradores sem terra do interior a área necessária ao seu sustento e a sua família. No parlamento os comunistas defenderam melhores salários para os trabalhadores, medidas eficazes de combate à carestia, uma política objetiva de fomento à produção de melhoramento dos transportes, de facilidades à distribuição, de combate aos especuladores, de defesa e amparo aos consumidores e dos produtores.”

Segundo ele, não houve um único problema de interesse do Brasil discutido no parlamento que não tinha recebido a melhor atenção da parte dos comunistas. “Tendo como objetivo exclusivo a defesa do país e do povo, souberam os comunistas desmascarar as manobras lesivas à economia nacional, evitando pela vigilância e firmeza muitos golpes solertes do imperialismo. Ainda nestas últimas semanas, quando a luta pela defesa dos mandatos e da soberania do Poder Legislativo lhes consumia o melhor de suas energias não cessaram os comunistas na sua batalha em prol da economia nacional. Consultem-se os anais desses dias memoráveis e lá se lerá a palavra dos comunistas mostrando como o projeto de cassação dos mandatos nada mais é que uma cortina de fumaça para encobrir a inércia administrativa do governo Dutra, cuja incapacidade se traduz nesta simples verdade: há hoje mais fome, mais doença e mais miséria no Brasil do que antes de sua chegada ao poder.”

Pomar disse que, se dependesse de Dutra o Brasil já teria se transformado em um campo de concentração e as forcas estariam nas praças erguendo os corpos de patriotas, especialmente o de Prestes. “Mas é a posição firme, é a posição enérgica, é a posição corajosa dos comunistas que tem impedido, até o presente momento, que o país enverede pelo caminho que quer a ditadura, o grupo fascista e o senhor Dutra”, discursou. Lembrou que ao espírito unitário dos comunistas, à política de ausência de ressentimentos e de mão estendida, a ditadura respondia com perseguições, brutalidades, violências, espaldeiramentos e assassinatos em praça pública.

A declaração de voto de José Maria Crispim, deputado comunista por São Paulo, foi implacável. Em um copioso discurso, ele esmiuçou o projeto e contestou, detalhe por detalhe, as argumentações de Ivo de Aquino. Nos dias seguintes, a bancada comunista fez uma marcação cerrada sobre o projeto. Os deputados comunistas revezavam-se para denunciar, todos os dias, na tribuna da Comissão de Constituição e Justiça, o que representava aquela medida proposta. O governo tinha pressa. Seu líder, Acúrcio Torres, corria de deputado em deputado, de bancada para bancada, a fim de impedir que os comunistas continuassem a falar. A mídia seguia a procissão e acusava a bancada do PCB de “sabotar os trabalhos parlamentares”.

Coveiros da democracia

Os debates começaram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Os deputados comunistas se revezaram na tribuna para fazer um diagnóstico profundo do país e do papel das forças progressistas. Dados, fatos, números, citações e análises formaram o conjunto da defesa da bancada. Em alguns momentos, os ânimos se exaltaram. O jornal do Partido A Classe Operária reproduziu um áspero entrevero iniciado pelo deputado comunista Pedro Pomar com o líder do governo na Câmara dos Deputados, Acúrcio Torres, que discursava de maneira efusiva para tentar justificar o projeto:

— Vossa Excelência está lendo um discurso de encomenda.

Acúrcio Torres esbraveja.

Diógenes Arruda interrompe suas cavilações de rábula do imperialismo, gritando-lhe:

— Vossa Excelência se diz patriota, mas está falando em nome do “partido americano”.

Marighella acrescenta:

— Se dinheiro tivesse cheiro, o projeto Ivo de Aquino teria cheiro de dólares.

E Gregório Bezerra:

— Vossa Excelência diz que não conhece os americanos, mas conhece o dinheiro americano.

Acúrcio Torres sua, desconversa, torna-se patético. O líder do PSD.

Amazonas interrompe:

— A liberdade de Vossa Excelência é a liberdade de fazer negociata.

O “líder” queremista continua aos trancos e solavancos.

Diógenes Arruda o desmascara:

— As palavras de Vossa Excelência e as palmas da maioria revelam o medo que Vossas Excelências têm da bancada comunista e dos comunistas que sempre defenderam e defenderão os interesses do proletariado e do povo. Vossas Excelências têm medo.

A “maioria” cumpre o seu triste papel: vota, passando por cima do próprio regimento.

No encerramento da discussão, a bancada comunista grita:

— Maioria subserviente a Dutra e ao imperialismo americano! Coveiros da democracia!

O Jornal de Notícias disse que na confusão que se estabeleceu houve uma nuvem de palavras ásperas trocadas entre Gregório Bezerra e Pereira da Silva, do PSD, que sacou um revólver contra o deputado comunista. Benedito Valadares, também do PSD, igualmente sacou sua arma em defesa do companheiro de partido. Outros deputados e até jornalistas se envolveram no quiproquó. Indagado se o uso de arma era permitido no plenário, o presidente da Câmara, Samuel Duarte (PTB), respondeu que não podia revistar os parlamentares.

No dia da votação do projeto, Grabois fez seu último discurso. Lembrou que no dia anterior, no encerramento da sessão, tinha conseguido usar da palavra durante cinco minutos. “Naquele exíguo espaço de tempo, tive ensejo de recordar palavras de uma das figuras políticas de nossa história, Gaspar Silveira Martins, que, ao se dirigir à Câmara de sua época, considerava-a uma Assembleia de servis. E, neste instante, senhor presidente, não há outras palavras senão aquelas pronunciadas por Silveira Martins, para dirigir-me a uma Assembleia que se dobra aos imperativos e à vontade do grupo que se encontra encastelado no Catete, levando o país para a catástrofe e para o caos.”

Era com esse espírito que ocupava a tribuna, asseverou Grabois, compreendendo que já não falava para um parlamento soberano capaz de defender a democracia, capaz de defender sua dignidade. “Por isso, usando da palavra, dirijo-me, não a essa maioria que liquida com a democracia, mas, particularmente, ao povo brasileiro, porque, nesta hora, em que o regime democrático está em completa derrocada, somente o povo – e somente ele organizado – é capaz de assegurar a democracia em nossa pátria.”

Grabois homenageou os homens do povo, anônimos, que deram seus votos aos comunistas para representá-los no parlamento, para que defendessem o regime democrático e que nas ruas clamavam contra o “crime monstruoso” da cassação dos mandatos, “o qual irá golpear, temporariamente, a democracia em nossa pátria, mas só temporariamente, porque a democracia é invencível”. “Quero render minhas homenagens àqueles homens que estão vertendo sangue para que a democracia não pereça, olhos voltados para o operário Anísio Dario, morto pela polícia de Aracajú, o qual perdeu a vida clamando contra o crime que se pretende perpetrar com a cassação dos mandatos de representantes legitimamente eleitos.”

Grabois repetiu o argumento de que os comunistas eram vítimas de uma trama contra a democracia. “Não assomamos à tribuna para nos defender, nem fazer a defesa de nossa posição dentro do Parlamento, porque, senhor presidente, se aqui estamos é mais para acusar, pois somos o alvo desse grupo fascista, dessa maioria subserviente. Se sairmos desta Casa, será com nossa consciência tranquila, com a cabeça erguida, porque temos a certeza de haver cumprido o nosso dever, fiéis ao nosso eleitorado e ao povo brasileiro, defendendo, palmo a palmo, suas reivindicações e a própria Constituição.”

O golpe de violência anticonstitucional, por parte dos maiores inimigos da democracia, disse, seria temporário. “Estou certo, porém, de que, amanhã, em outra eleição, quando a democracia ressurgir em nossa pátria — não essa democracia de fachada, que serve a meia dúzia de politiqueiros e generais fascistas, que estão entregando o Brasil ao imperialismo norte-americano —, quando ressurgir a verdadeira democracia, a democracia do povo, quando for respeitada sua vontade, podem estar certos os senhores representantes que neste instante cassam nossos mandatos de que voltaremos, não apenas com uma bancada de dezesseis deputados, mas com número bem maior, capaz de derrotar todos os reacionários que infelicitam o povo brasileiro e impedem o progresso nacional.”

Grabois afirmou que não alimentava ilusões de reverter a decisão da maioria. “Senhor presidente, inoperante, sem nenhum resultado, seria desenvolver nesta altura dos debates, argumentos jurídicos para atacar o projeto de cassação de mandatos. As maiores figuras da cultura jurídica nacional já se manifestaram, demonstrando a inconstitucionalidade do projeto – homens como o Ministro Eduardo Spinola, como João Mangabeira, como o Desembargador Vieira Ferreira, como o Professor Homero Pires, como o Desembargador Bianco Filho, como o professor Luiz Carpenter, como o doutor Sobral Pinto, como o professor Jorge Americano e inúmeros constitucionalistas de reconhecido valor. Não há, na consciência de qualquer homem honesto, a convicção de que este projeto seja constitucional e venha beneficiar a democracia. Aqui mesmo, neste parlamento, poucos são os representantes do povo, mesmo aqueles que opinam pela cassação de mandatos, que estejam convencidos da constitucionalidade do projeto.”

Os votos seriam por motivos políticos, disse, por interesses próprios e pessoais. “É uma verdadeira farsa querer fazer debate jurídico em torno dessa monstruosa proposição, porque tem a sua origem, não na vingança de um homem, como o senhor Barreto Pinto (obscuro deputado do PTB que iniciou a patranha que resultou na cassação do registro do Partido), mas nos círculos reacionários encastelados no Catete e diretamente inspirados nos trustes e monopólios norte-americanos. Essa a origem do projeto, deste golpe contra a democracia em nosso país. Há outros homens que estão defendendo seus interesses e procuram manter suas posições sob a máscara da constitucionalidade. Sabemos mesmo que não há nenhuma convicção nesse argumento.”

Grabois fez um alerta à nação contra o “grupo fascista que aí está no poder e aproveita-se da ofensiva imperialista, no mundo inteiro, para liquidar com as liberdades e instaurar a mais feroz ditadura em nosso país”.  Está à frente de tal grupo um fascista (o presidente Dutra), conhecido homem que foi condecorado por Hitler e recebeu a espada dos samurais das mãos dos militaristas do Japão, homem que só no último instante, sob a pressão das massas, foi capaz de concordar com o envio das forças expedicionárias para combater o nazismo no solo da Itália.” Dutra, afirmou, transformado por obra do acaso em presidente da República em virtude da instabilidade política em que vivia o país, era um homem de tendências fascistas, que não fazia outra coisa a não ser aplicar diretrizes políticas que favoreciam ao imperialismo.

A atitude dócil do Congresso Nacional diante do autoritarismo do presidente da República, disse Grabois, seria desastrosa para o próprio parlamento. “Neste discurso, desejo ainda lembrar que o parlamento está assumindo grandes responsabilidades. Em 1937, ele não foi capaz de defender sua dignidade, curvando-se às vontades dos senhores que dominavam no Catete. Foi ele que votou as leis de segurança, o estado de sítio e o de guerra, permitindo a prisão e processo de membros seus. Esse parlamento, portanto, sucumbiu, apodrecido, sem o protesto popular, porque quando a polícia cercou este mesmo Palácio do Congresso, nenhuma voz do povo se levantou para proteger um parlamento incapaz de defender suas próprias prerrogativas. Os fatos se repetem de maneira muito mais trágica e mais séria, porque esta Casa se mostra muito abaixo daquela de 37. Aquele cedeu ao futuro ditador, votando leis de arrocho e exceção; o atual corta na própria carne, expulsando de seu seio homens legitimamente eleitos pelo voto popular, sem contestação alguma.”

Uma vez consumado o crime, o parlamento não mereceria o respeito da opinião pública, disse. Seria um parlamento desfibrado, que o povo não levaria a sério. E, quando os inimigos da democracia procurassem implantar uma ditadura sem aparência legal, bastaria simplesmente um vigilante noturno para fechá-lo, pois nenhuma voz seria capaz de se interessar por um parlamento de capitulação e de traição nacional, analisou. “Atrás de todo esse projeto de cassação, entretanto, esconde-se toda uma política contrária aos interesses do povo. Quando encerramos a última sessão legislativa tive oportunidade de dizer que este parlamento não votou nenhum projeto de caráter social. Durante quase um ano de funcionamento, só se votaram as mensagens enviadas pelo Executivo, solicitando abertura de créditos para o governo, ou isenção de direitos para empresas imperialistas. É um parlamento que serve aos poderosos; não se viu aqui aprovado nenhum projeto que viesse beneficiar o povo brasileiro. Esta a realidade palpável.”

Ao votar a cassação dos mandatos, afirmou Grabois, o Congresso nacional assumia uma conduta reacionária. “Incomoda aos representantes da classe dominante ouvir a voz da classe operária e do povo brasileiro que tem assento neste parlamento. Dói aos reacionários, aos negocistas, aos exploradores, ouvir a voz rude, às vezes mal formulada, dos operários que têm assento nesta Casa, do deputado negro Claudino Silva, do ferroviário Agostinho de Oliveira, porque é a voz do povo que aqui está vigilante, desmascarando as manobras do senhor Dutra e do grupo fascista contra o país. Aqui também está a origem do projeto de cassação de mandatos: se votam por subserviência, também o fazem por interesses pessoais para afastar a voz do povo, do proletariado, do recinto desta Assembleia. Mas podem estar certos de que este parlamento, sem os representantes da classe operária, sem os representantes que vêm do povo, não merecerá mais o respeito e a devida consideração, não será mais o terceiro poder, mas um apêndice podre da ditadura do senhor Eurico Gaspar Dutra.”

Jogo de palavras

Grabois denunciou o jogo de cena que a maioria dos deputados fazia ao falar de democracia demagogicamente. “Senhor presidente, a democracia não é um jogo de palavras. A democracia são os fatos, a prática diária e concreta do respeito à nossa Constituição e da defesa dos interesses do povo, e não a subserviência, o calar ante as manobras e as violências dos poderosos. Estou certo de que os acordos e arranjos, que tiveram como objetivo principal facilitar a marcha deste indecoroso projeto, não darão resultado, porque as contradições aumentarão. As posições são poucas e os cargos não chegam para todos. As divergências prosseguirão, porque, para contemplar a UDN (União Democrática Nacional), se descontentará o PSD.”

Ele comentou também a discriminação social manifestada por alguns deputados. “O nobre deputado senhor Munhoz da Rocha (PR), em discurso aqui proferido afirmava que todos nós falamos uma só linguagem. É verdade. Falamos a linguagem do povo, do interesse nacional. Mas todos nós, da bancada comunista, saímos dos mais diferentes setores da sociedade. Lá não estão os negocistas, os industriais reacionários e advogados de empresas imperialistas. Lá estão homens como Gregório Bezerra com sua vida dedicada ao povo pernambucano; Abílio Fernandes, operário metalúrgico; Jorge Amado, uma das glórias da literatura nacional; Alcedo Coutinho, médico, que honra a ciência pátria; João Amazonas, Pedro Pomar, Diógenes Arruda e Carlos Marighella, provados lutadores da causa democrática; Henrique Oest e Gervásio de Azevedo, heróis da FEB (Força Expedicionária Brasileira); Claudino Silva, Francisco Gomes, Agostinho Oliveira e José Maria Crispim, a voz patriótica da classe operária.”

Grabois encerrou dizendo que a vitória seria do povo e não de Dutra, com seu parlamento de ficção, simples chancelaria do Catete, visando apenas aos atos do governo. “Não será o senhor Dutra nem esta maioria – repito – que acabarão com o movimento comunista no Brasil, porque nós somos a vanguarda das forças do progresso e da democracia. Somos a juventude do mundo, os homens que lutam pelo progresso do Brasil. Somos soldados do grande Prestes. Sabemos que a luta para muitos, será difícil, muitos serão sacrificados; mas outros ocuparão nossos lugares, erguerão a bandeira de defesa da democracia e do nosso povo e o triunfo será certo e decisivo. O governo do senhor Dutra cairá sob a pressão das massas e será execrado por todos os brasileiros e por toda a humanidade.”

Segundo Pomar, o anticomunismo do governo era a bandeira com a qual seus integrantes justificavam os maiores crimes contra a Constituição e a soberania da pátria, como fizeram Petáin e Weygand quando entregaram a França a Hitler. Com a mesma cegueira política com que participou do golpe de 10 de novembro de 1937, com que quis impedir a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e resistiu à democratização do país, Dutra queria arrastar a nação para as aventuras guerreiras do imperialismo americano, antes arruinando a indústria nacional, cedendo o petróleo e o ferro, aumentando a fome e o desemprego das massas, sufocando as liberdades democráticas e subordinando as Forças Armadas ao plano de “cooperação” militar do governo dos Estados Unidos, denunciou.

Ataques a Pomar

O anticomunismo raivoso havia sido abraçado também pelos jornais conservadores, principalmente O Globo e A Noite. O jornal do senhor Roberto Marinho esmerava-se nas mais torpes invencionices para atribuí-las aos comunistas e reforçar a tese que os “cinco sabichões” do PSD estavam preparando. A Noite chegou ao ponto de protestar com virulência quando Pomar assumiu a presidência dos trabalhos em uma sessão da Câmara dos Deputados na ausência dos demais membros da mesa. Segundo o jornal, “quando o fato ocorreu houve no ambiente uma sensação de mal-estar”. “O que admira, não tendo havido nenhum protesto imediato, é que ninguém tivesse lembrado ao menos de requerer a suspensão dos trabalhos para que não continuasse perante os olhos da assistência estupefata aquele espetáculo de uma Câmara democrática presidida pelo representante de um partido fora da lei”, vituperou.

O jornal A Noite disse ainda que “houve um grande erro político por parte das correntes democráticas da Câmara em permitir a participação dos bolchevistas na mesa daquela casa legislativa”. “O erro agravou-se, porém, quando em seguida à decisão do Superior Tribunal Eleitoral não se procedeu ao imediato expurgo dos agentes vermelhos, não só da mesa como das comissões internas da Câmara”, esbravejou. “Aquele que outro dia se exibiu na cadeira da presidência da Câmara não é apenas um líder comunista. É um agitador conhecido e o diretor responsável de um jornal que segue, entre nós, as diretrizes do Pravda de Moscou, jornal que prega diariamente a subversão do regime, o desrespeito aos poderes públicos, o ódio de classe e que naturalmente é solidário com o ponto de vista de seu chefe, o que pegaria em armas contra o Brasil, a favor da Rússia”, praguejou o jornal.

Mandado de segurança

O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados por cento e oitenta e um a setenta e quatro votos. Depois da votação, a bancada comunista subiu nas poltronas e, de pé, com o braço esquerdo levantado e a mão fechada, brandiu: Viva o Partido Comunista do Brasil! Viva Prestes! Viva o proletariado! Nós voltaremos! Uma comissão de deputados, indicada pela Mesa, se encaminhou ao Palácio do Catete para que o presidente da República sancionasse a lei aprovada. Em uma cerimônia simples, Dutra assinou a sentença contra a bancada comunista precisamente às vinte e duas horas do dia 8 de janeiro de 1948. Estavam presentes, entre outros, os ministros da Justiça, do Trabalho e da Agricultura; os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado; o chefe do Gabinete Militar Alcio Souto e o chefe da Casa Civil, José Pereira Lira.

Os comunistas estavam fora da Casa especialmente construída sob a invocação de Tiradentes para servir de sede à Câmara dos Deputados e do Palácio Monroe, a sede do Senado. Na Câmara dos Deputados, das catorze vagas abertas sete ficaram com o PSD, cinco com a UDN, uma com o PR e uma com o PTB. A vaga de Prestes no Senado ficou para a UDN. Quarenta e oito horas depois da sanção presidencial, os tribunais regionais da Justiça Eleitoral (TREs) oficiariam as assembleias legislativas e as câmaras municipais, enviando a relação dos eleitos pelo Partido Comunista do Brasil. Ao receber a lista, os presidentes daquelas casas deveriam declarar vagas as cadeiras dos citados.

Um mandado de segurança – assinado por Maurício Grabois, Abílio Fernandes, Agostinho Dias de Oliveira, Alcedo Coutinho, Carlos Marighella, Gervásio Gomes de Azevedo, Gregório Lourenço Bezerra e José Maria Crispim – foi impetrado pelo advogado Sinval Palmeira no Supremo Tribunal Federal apontando a inconstitucionalidade da lei, que nunca seria julgado.

Resistência armada

Tão logo a cassação dos mandatos se consumou, o regime de Dutra voltou a mostrar as garras. O temor maior era o de Prestes ser preso quando pisasse fora do edifício da Praça Paris, onde funcionava o Senado, sem o mandato. Amazonas organizou um comando armado que, com três veículos, foi esperá-lo em uma porta lateral. Pomar e Arruda, que preservaram os mandatos por terem sido eleitos pelo PSP de Adhemar de Barros, foram buscar o senador comunista no interior do prédio. Já era noite. Prestes, escoltado pelos dois deputados, entrou imediatamente em um dos veículos. Amazonas seguiu atrás, em outro. Um terceiro abriu caminho, deixando o que conduzia Prestes no meio da caravana. Em velocidade máxima permitida, levaram o secretário-geral para um esconderijo.

No dia seguinte à cassação dos mandatos — os deputados do PCB só deixariam formalmente suas cadeiras depois do acatamento pela mesa diretora da Câmara dos Deputados da comunicação do Superior Tribunal Eleitoral, em 10 de janeiro de 1946 —, José Maria Crispim, falando como “eventual líder” da bancada comunista, denunciou que na madrugada daquele dia agentes da polícia política invadiram as oficinas da Tribuna Popular, jornal do PCB, para cumprir uma determinação do ministro da Justiça, alegando que um jornal ilegal — a Imprensa Popular — estava sendo impresso.

“Sabe vossa excelência, senhor presidente, e a Casa, que a Tribuna Popular está suspensa por determinação arbitrária do senhor ministro da Justiça, determinação ilegal e, por isso mesmo, violenta, que mostra bem o governo que o Brasil suporta nesta hora grave da vida nacional. Sem poder funcionar a Tribuna Popular, em suas oficinas vem sendo impresso um novo órgão – a Imprensa Popular –, que há vários dias circula na capital da República e nos estados”, afirmou.

Segundo ele, naquela madrugada “a polícia de bandidos”, armada até os dentes de metralhadoras e bombas de gás, com armas de guerra, realizou uma verdadeira batalha, assaltando as oficinas do jornal, “onde se encontravam máquinas para a sua impressão e meia dúzia de trabalhadores”.  O deputado comunista Henrique Cordeiro Oest comentou que entre os trabalhadores das oficinas estava o ex-tenente da FEB Salomão Malina, que fora ferido em combate na Europa, e era o vice-presidente e presidente em exercício do Conselho da Associação dos Ex-Combatentes do Brasil. “É o protesto que faço diante da prisão deste camarada a quem a democracia e o Brasil muito devem”, registrou.

Crispim voltou a falar no dia seguinte, em 9 de janeiro de 1948, para dar mais detalhes da ocorrência. Ao pedir a palavra para fazer “uma comunicação relevante”, foi informado pelo presidente que a Câmara dos Deputados estava “na ordem do dia” e que ele, de acordo com o Regimento, só poderia usar a questão de ordem — um expediente limitado a cinco minutos. Crispim respondeu que o Regimento da Casa assegurava aos líderes de bancada “a faculdade de fazerem comunicações relevantes ao plenário em qualquer fase” dos trabalhos. Mesmo com a interferência de outros deputados, em meio a uma áspera troca de palavras, o presidente manteve a posição inicial.

O deputado comunista informou que houve uma chacina nas oficinas da Tribuna Popular. “São gráficos que nessa hora se encontram entre a vida e a morte, pois foram intoxicados, ao máximo, pelo uso de bombas de gás lançadas pela polícia”, denunciou. Estavam todos nos porões da Polícia Central. Gregório Bezerra aparteou: “Quando vossa excelência falar nos porões da Polícia Central, use a expressão ‘casa de torturas’, pois é o que de fato representa neste governo do ditador Dutra.” Salomão Malina estava, segundo Crispim, além de intoxicado incomunicável. Todos corriam o risco de morrer; quatro deles feridos à bala, internados em estado grave. Ele informou também sobre várias prisões ocorridas pela cidade e relatou casos de detenções e espancamentos das pessoas que assistiram à sessão que cassou os mandatos.

Depois de quatro horas presos, os funcionários da Tribuna Popular foram surpreendidos por um flagrante de apreensão de quatro armas consideradas de guerra. O fato repercutiu na Câmara dos Deputados, onde uma moção repudiando a repressão policial foi assinada por Afonso Arinos, Hermes Lima, Jaci Figueiredo, Monteiro de Castro, Café Filho, Gurgel do Amaral, Nelson Carneiro e outros parlamentares. Pomar, então diretor do jornal, comandou a resistência. Ele telefonou para o presidente da Câmara dos Deputados, Samuel Duarte, comunicando o ocorrido, dizendo que sua vida estava em risco. O presidente se dirigiu ao local dos fatos e comunicou-se com o chefe de polícia, Lima Câmara, pedindo a ele que garantisse a imunidade parlamentar a Pomar.

Prisão de Gregório Bezerra 

A polícia política também andou espalhando que Gregório Bezerra seria preso tão logo pusesse os pés fora da Câmara dos Deputados. As ameaças não foram cumpridas porque ele saiu escoltado por Pomar, Arruda e mais alguns deputados. Mas as aperreações – como ele dizia – logo começariam. Passou a ser seguido pela polícia ostensivamente e não fora preso porque Pomar era uma espécie de guardião dos seus passos. No dia 17 de janeiro de 1948, tomaram café na residência de Luiz Carlos Prestes, onde morava o ex-deputado pernambucano, e foram para o escritório da “fração parlamentar”. Gregório Bezerra ficou no local e Pomar foi para a Câmara dos Deputados.

Ao meio dia, Pomar passou no escritório e ambos saíram para o almoço. O combinado era de que o carro oficial da Câmara dos Deputados estaria esperando-os em frente ao antigo prédio do Senado, na Cinelândia. Por algum motivo, houve um atraso e a polícia política não perdeu a oportunidade. Quando se deram conta, estavam cercados por um bando de policiais, em pela Avenida Rio Branco, uma das principais artérias do centro da cidade do Rio de Janeiro. Pomar protestou, Gregório Bezerra reagiu, mas os “tiras”, em maior número, acabaram vencendo.

Nesse momento, chegou o carro da Câmara dos Deputados e Gregório Bezerra se atirou para o seu interior. Um policial ainda tentou agarrá-lo pela janela, mas teve os dedos prensados na portinhola do veículo. Diante da brutalidade crescente, Pomar comprometeu-se a levar Gregório Bezerra à Polícia Central. Ao chegar, o ex-parlamentar comunista foi brutalmente arrancado do carro e preso em um minúsculo cofre de aço. Depois de protestar a plenos pulmões, foi levado para uma cela. Ficou incomunicável por três meses. Transferido para o Recife, foi julgado pelo Conselho da Justiça Militar e cumpriu dois anos de detenção.

A prisão fora ordenada por ninguém menos que o ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa, que agia como cão de guarda de Dutra. Gregório Bezerra era acusado de haver incendiado o quartel do 15º Regimento de Infantaria em João Pessoa, no estado da Paraíba, a dois mil quilômetros da cidade em que se encontrava e dela não saíra. Segundo ele, a polícia política do general Lima Câmara, desonestamente, negou as informações que provavam sua inocência. Desde que saíra da Câmara dos Deputados, estivera na residência de Prestes, “a casa mais vigiada do Brasil”, ambos protegidos pelas imunidades parlamentares de Pomar e Arruda. Com o incêndio e o processo farsesco que seria montado, a intenção era incompatibilizar o Exército com o Partido Comunista do Brasil, disse Gregório Bezerra. Os autores do incêndio, portanto, deveriam ser procurados entre os “fascistas do governo”, denunciou.

O caso do “reichstag mirim” — uma alusão ao famoso incêndio do parlamento alemão provocado pelos nazistas, em 1933, e atribuído aos comunistas — fez Pomar ocupar a tribuna da Câmara dos Deputados sistematicamente para exigir notícias do “bravo filho de Pernambuco”. “Afinal de contas, o que ocorre com Gregório Bezerra? Por que lhe cassam o direito de defesa?”, indagou. Segundo Pomar, o grupo “militar-fascista” criou uma novela para espalhar calúnias contra os comunistas. “Há três dias, enviamos um advogado à Paraíba. Até agora, o causídico (o doutor Sinval Palmeira) não teve oportunidade de verificar se o senhor Gregório Bezerra lá se achava porque o inquérito se processa sob sigilo”, denunciou.

Ao fazer o histórico dos acontecimentos, Pomar disse que todos os partidos, com exceção de poucos democratas, se atiraram de maneira indigna sobre aquilo que não lhe pertencia — as cadeiras tomadas da bancada comunista. Desde o PTB, dito de oposição e mais interessado do que qualquer outro nas vagas pecebistas, até a UDN, o partido da “eterna vigilância” que mal procurava salvar as aparências para fingir amor à Constituição. Os udenistas, segundo Pomar, marcharam vergonhosamente de sacola na mão atrás dos “senhores da ditadura”, agiram como juristas do “acordo interpartidário” que repartiu as cadeiras que pertenciam aos comunistas.

A Guerrilha do Araguaia e o filme “O pastor e o guerrilheiro”, sobre Glênio Sá

Por Osvaldo Bertolino

Assisti na manhã deste dia 27 de março de 2023 ao filme O pastor e o guerrilheiro, no espaço “Reserva Cultural”, em São Paulo, numa exibição especial para jornalistas convidados. Saí com a convicção de que ninguém interessado na história do Brasil pode perdê-lo. Com estreia prevista para 13 de abril nos cinemas brasileiros, o longa dirigido por José Eduardo Belmonte é uma dessas raridades quando se fala da Guerrilha do Araguaia, sem as descontextualizações habituais e mesmo distorções grosseiras.

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Bem produzido, com bons atores e um roteiro envolvente, o filme traz à reflexão, além do fato em si, evocações filosóficas e históricas sobre a Guerrilha. Em diálogos permeados por contradições – e às vezes antagonismos –, os personagens mostram que ali estavam ideais elevados e razões humanísticas fundamentais, condicionados a potencialidades pelas circunstâncias em que os fatos aconteceram. Não há lugares-comuns, muito presentes em narrações históricas que exigem juízo multifacético.

A sobriedade do filme leva a sínteses na junção de personagens que buscam o sentido da vida enfrentando a barbárie, naquele momento representada pela ditadura militar. O “partido” – na verdade, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) –, mencionado em apenas duas falas, aparece como a bússola dos guerrilheiros, assim como a Bíblia para o pastor. Fica a indicação tácita para que se busque o conhecimento de ambos – inclusive com alerta sobre os que usam a fé para maléficas demandas terrenas.

O pastor Zaqueu traduz a Bíblia como caminho para a transcendência humana sem atalhos desviantes. O humano é agora, guiado pelo que Jesus Cristo falou e fez, conforme está na Bíblia. É assim que ele dialoga com o guerrilheiro João, quando se encontram no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Exército, em Brasília. Zaqueu quer chegar em algum lugar sem injustiça. João responde que luta para chegar onde Zaqueu quer chegar, contra-argumentando com o Manifesto do Partido Comunista.

Ambos caíram nas garras dos algozes desses ideais. A ditadura via nas ideias de Zaqueu uma espécie de “comunismo bíblico”. O filme não entra nesse pormenor – o pastor foi preso por ser amigo de “comunistas” que frequentavam com ele um curso bíblico. Mas, com essa abordagem, revolve a doutrina da ditadura que interpretava pregações religiosas no âmbito da justiça social como “comunismo” com disfarce eclesiástico. Sobretudo no meio católico. A Bíblia não podia ser ensinada com o rigor dos mandamentos cristãos.

O encontro entre os dois é a principal intersecção do filme, inspirado num livreto de Glênio Sá, intitulado Araguaia – relato de um guerrilheiro, da editora Anita Garibaldi, um registro de quarenta e oito páginas sobre seu drama ao se perder na mata, a captura pelos agentes da ditadura, as brutais torturas no PIC em Brasília e no DOI-Codi do Rio de Janeiro, e seu retorno ao estado natal, Rio Grande do Norte. No filme, João deixa sua história registrada em livro com dedicatória para Zaqueu, afirmando que a memória é resistência, um rio sempre leva a outro e a vida é uma grande correnteza.

No livro Rio Vermelho – que conta a história do PCdoB no Rio Grande do Norte desde o Levante de 1935 –, refaço a trajetória de Glênio Sá, desde seus primeiros dias como liderança estudantil até sua morte trágica num acidente de carro em 1990. O episódio que no filme aparece como o encontro com o pastor, narrei assim:

“Em Brasília, Glênio conseguiu quebrar sua incomunicabilidade com ajuda de um vizinho de cela condenado por contrabando. Com um palito de fósforo queimado, anotou num papel de jornal apanhado do lixo as palavras ‘Farmácia Minâncora, Caraúbas-RN’, de propriedade de seu pai, Epitácio Martins de Sá. Assim a família tomou conhecimento do local onde estava. Com a informação, seu irmão Gilberto, professor universitário em Fortaleza, foi a Brasília e, no PIC, recebeu a informação de que nunca alguém chamado Glênio estivera por lá. Recorreu, então, à ajuda do senador Dinarte Mariz, a quem seu pai sempre apoiara politicamente em Caraúbas, amigo do comandante do I Exército, e assim conseguiu descobrir a verdade.”

Não há reparos a fazer no filme. Os recortes são precisos para demonstrar o essencial, criando uma ficção que não destoa dos fatos. Pode-se, eventualmente, apontar algumas lacunas, como uma melhor indicação do que representou a ditadura militar e do organizador da Guerrilha – o PCdoB –, mas são detalhes secundários para um filme que resgata e projeta, de maneira sóbria, um acontecimento tão importante para a luta contra a barbárie.

– Biografia conta a vida e a luta de Péricles de Souza pela democracia e o socialismo

O livro, de autoria do jornalista e historiador Osvaldo Bertolino, intitulado Péricles de Souza – uma vida uma luta, fala, em quatrocentos e quarenta páginas, da geração que entrou na juventude na década de 1960, enfrentando uma das fases mais complexas da história do Brasil e do mundo. Narra a vida de Péricles de Souza no contexto daqueles jovens nascidos na conjuntura da Segunda Guerra Mundial e que viviam no auge da “era de ouro”, os anos de crescimento ininterrupto das principais economias, que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “trina anos gloriosos”, o período de 1945 a 1975. Geração também influenciada pela cultura erudita, a música, o cinema, a literatura e as revoluções socialistas na China (1949) e em Cuba (1959).

Filho de uma família de Vitória da Conquista que se mudara para Salvador quando o Brasil vivia os impactos das transformações promovidas pelo governo de Getúlio Vargas, eleito em 1950, em segunda passagem pela Presidência da República depois de liderar a Revolução de 1930. Péricles presenciou, aos dez anos de idade, a professora e o pai tomados pela emoção com o suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954. A cena representou o início do seu despertar político. Logo ingressaria no movimento estudantil e, quando a Ação Popular (AP) surgiu, no começo da década de 1960, ele estava entre seus fundadores.

Os militantes da juventude católica se destacavam na Bahia, um dos principais pontos da resistência às ameaças golpistas ao presidente João Goulart. No golpe de 1964, Péricles estava entre os estudantes que foram para Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, organizar a resistência, que seria comandada pelo prefeito Francisco Pinto, um foco que se somaria à resposta dos governadores de esquerda em Pernambuco e Rio Grande do Sul, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Frustrados, pela ocupação da cidade pelos militares golpistas voltaram para Salvador.

Após um episódio de enfrentamento dos estudantes com o ministro das Relações Exteriores da ditadura, Juraci Magalhães, ex-interventor e ex-governador do estado, Péricles foi para clandestinidade e se instalou no Bico do Papagaio, região Sul do estado do Maranhão, para organizar o que seria um ponto da guerra popular contra a ditadura. A AP transitava para a incorporação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), num momento em que estava em preparação, no Sul do Pará, a Guerrilha do Araguaia.

Com a incorporação, em 1973, Péricles foi para Comitê Central e se mudou para Sergipe, de onde comandaria a reorganização do PCdoB no Nordeste. Por um acaso se livrou de estar na reunião de dezembro de 1976, quando a ditadura metralhou a casa em que a direção comunista se reunia em São Paulo, no bairro da Lapa, matando alguns dirigentes e prendendo outros.

Péricles retornou a Salvador após a anistia de 1979 e assumiu a direção do PCdoB no estado. Ao mesmo tempo, como membro do Comitê Central, participou dos principais eventos que levaram o país a transitar para a redemocratização, elaborar a Constituição de 1989, enfrentar o neoliberalismo dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso e eleger e reeleger os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Osvaldo Bertolino é autor de treze livros, entre eles oito biografias de lideranças comunistas que combateram a ditadura militar. É jornalista e historiador, com experiência em assessoria sindical e parlamentar. É pesquisador de temas relacionados à política, à economia e à história, com destaque para o período da formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil.    

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– O PT e a “utopia” marxista

Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 10/11/2004

Um curioso argumento do ministro da Educação Tarso Genro ocupou as páginas do jornal Folha de S. Paulo nas edições dos dias 6 e 7: o de que o Partido dos Trabalhadores (PT) é um partido “pós-comunista” e “pós-social-democrata”. Segundo ele, a destruição da estrutura de classes originária da Segunda Revolução Industrial teve uma consequência diferenciada nos países da periferia e da semiperifeira, como o Brasil. “Destruiu a centralidade da classe operária emergente, e os limites científico-tecnológicos do desenvolvimento não criaram rapidamente uma nova classe trabalhadora orgânica, que substituísse, como sujeito político, a classe operária industrial”, escreveu o ministro. “Nós temos hoje uma conflituosidade social que não se dá mais diretamente na relação de classe contra classe”, afirmou.

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Para Tarso Genro, essa conclusão tem a ver também com a quebra dos paradigmas originários do socialismo “totalitário, estadista”, e com a crise da social-democracia. Para o ministro, a social-democracia é inaplicável num país como o nosso. “Ao mesmo tempo que estamos governando, estamos reconstruindo o partido e teorizando sobre o futuro”, escreveu ele. “Temos que rebaixar as nossas pretensões utópicas, e dizer de maneira clara que o socialismo não está na ordem do dia”, afirmou. Segundo Tarso Genro, “podemos e devemos mantê-lo (o socialismo) como uma ideia reguladora, mas temos que reconhecer, para podermos ser honestos com as nossas bases e com o país, que a questão do socialismo não é uma questão concreta da história hoje”.

Nova alternativa à barbárie

O ministro também defendeu um curioso conceito de “modernização democrática da vida republicana do Brasil” por meio do fortalecimento do PSDB — segundo ele “um partido que tem proposta, tem enraizamento social definido e, embora tenha divisões internas talvez maiores que as nossas (do PT), é um partido modernizante”. “A via de modernização que é a hegemonia do que o PSDB propõe é pela centro-direita. Mas é modernizante. O crescimento do PSDB é totalmente compatível com esse processo e com a necessidade que o país tem de ter um partido capaz de compartilhar da luta democrática. Isso nos ajuda”, escreveu Tarso Genro. Mais curioso ainda é o que o ministro chama de “rebaixamento do horizonte utópico” do PT.

Para ele, a utopia que o PT deve encarnar nesse momento configura-se com três elementos: “recuperar a ideia de nação dentro da pós-modernidade, que exige internacionalmente uma visão de compartilhamento e de integração com autonomia, e não uma visão fechada de nação como era na década de 1960; a democratização do Estado, ou seja, uma nova regulação da relação Estado-sociedade; um modelo de desenvolvimento que cause permanentemente inclusão na sociedade de classes”. “Se a nossa visão utópica era, via o socialismo, destruir a sociedade de classes, hoje é reorganizá-la. Porque isso significa reconstituir o sujeito político da democracia, isso significa poder repor, para quem quiser, num próximo período, pretensões utópicas mais radicais. Sem isso, é a barbárie”, afirmou.

O valor dos conceitos marxistas

Seria muito confortável acreditar nessas ideias, se não fosse o fato de que elas se chocam com a realidade. “Não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou”, escreve o historiador Eric Hobsbawm. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, assistimos a uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.

Tanto as teses de Tarso Genro quanto a de Eric Hobsbawm concluem que ainda não podemos afirmar como será a nova era. Contudo, ambos dizem que é possível observarmos suas fundações e, a partir daí, definirmos que rosto lhe daremos. A diferença é que Eric Hobsbawm deixa entrever a necessidade urgente de erradicarmos a base econômica dada pelo capitalismo. Já o ministro da Educação desconsidera um princípio básico da análise marxista das sociedades: o papel das organizações políticas como representantes de classes ou grupo de classes. É um direito dele. Mas para os marxistas os conceitos clássicos de direita e esquerda, aparentemente varridos pela nova ordem mundial, não podem ser ignorados em uma análise desse porte.

Já no século XIX, quando a maioria dos países havia trocado a monarquia de base feudal pela república baseada no liberalismo, esquerda passou a significar o projeto de modificação radical da estrutura social e do sistema econômico instituídos nas sociedades capitalistas — seu ideário reivindica a precedência do trabalho em relação ao capital. E direita tomou o significado de manutenção do status quo — seu ideário advogava a primazia do capital em relação ao trabalho. Salvo melhor entendimento, a tese de Tarso Genro é de que essa dicotomia não desapareceu de todo, mas, por estar desorganizada, está menos extremada. E, em última instância, no terreno econômico, está também, por ora, circunscrita ao neoliberalismo — com toda a coloração ideológica que este termo encerra no Brasil.

Trabalho doméstico é uma anomalia

Isso quer dizer que, se este raciocínio for levado às últimas consequências, ao definirmos a proposta do PSDB como “modernizante” estamos aceitando como socialmente cabível, embora por um certo tempo histórico, até resquícios da relação entre a Casa Grande e a Senzala na cidade e no campo. Em poucos outros lugares do mundo, por exemplo, uma família fazendo 30 mil reais por ano pode dar-se ao luxo de manter uma empregada doméstica cativa. O próprio emprego doméstico, com todo seu teor semi-escravista, é uma anomalia que não cabe em nenhum projeto moderno tão logo subamos mais um ou dois degraus em direção ao desenvolvimento social e econômico. No campo, as relações sociais ainda conservam traços nitidamente escravocratas. Por essas e outras, o projeto neoliberal enfrenta no país o visível obstáculo da imensa maioria da sociedade.

Nesse ambiente, a conceituação de direita e esquerda renova seu sentido histórico e classista. De um lado está o pensamento elitista e excludente, que privilegia a acumulação da riqueza em relação à sua distribuição, a ordem macroeconômica em relação à qualidade de vida dos indivíduos, a benesse de poucos em relação ao bem-estar de todos. De outro, está o pensamento que considera o todo e busca incluir, que visa aumentar e distribuir a riqueza, que eleva a qualidade de vida dos indivíduos à condição de prioridade econômica, que privilegia os consumidores em relação aos monopólios e o bem-estar de todos em relação ao acúmulo de alguns. A oposição, portanto, não deixou de ser entre o patrão de cartola e charuto e o trabalhador empunhando um martelo ou uma foice.

No Brasil, a esquerda luta contra o feudalismo

Pode-se admitir uma exceção extemporânea a essa regra — essa dicotomia, com tremendas ressalvas, pode até estar menos visível. Mas, independente disso, a melhor analogia é considerar, à direita, um capitalismo que em nome da “ordem” admite suprimir direitos individuais, que gosta da imprensa sob as suas rédeas e que não admite negociar a distribuição da renda nacional. E, à esquerda, o pensamento progressista, de corte humanista, que defende um Estado capaz de pensar um projeto para o conjunto da sociedade. Objetivamente, não há como haver trégua nessa luta. E a esquerda, que sempre pintou sua bandeira com cores mais nítidas e sempre a fincou de modo mais firme do que a direita, não tem motivo para recolher suas armas.

Temos, por exemplo, hoje, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), que luta contra um Brasil medieval, que precisa ser superado se quisermos de fato transformar este país numa nação democrática, em desenvolvimento e baseada nos direitos humanos fundamentais. Ou seja: enquanto a esquerda na Europa, ou o que remanesce dela, luta somente contra a hegemonia neoliberal, no Brasil ainda combatemos resquícios do escravismo. Essa constatação ajuda a desvendar por que no Brasil a direita morre de vergonha em admitir-se de direita. Manter baixa a visibilidade das cores de sua bandeira sempre contribuiu muito para diminuir sua rejeição perante o brasileiro médio.

Sem os ensinamentos da história, vem o fascismo

Ela representa privilégios escravistas, arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos por países que, não por acaso, ao fazê-lo desbloquearam seus caminhos em direção ao desenvolvimento. Daí o grande constrangimento. A direita é de fato conservadora por desejar a manutenção da estrutura inviável que temos no país, e reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder público. Daí a grande antipatia por ela arrecadada e o fato de a esquerda ter sido engolida com menos dificuldade pelo brasileiro médio ao longo do século XX. Para se ter uma base da rejeição às sua ideias, em uma pesquisa divulgada pela revista Veja, em junho de 1996, 62% dos conceitos que a elite brasileira atribuía a si própria eram negativos. E a esquerda, quem diria, foi reconhecida como a ala progressista da política nacional enquanto muros tombavam de Berlim à Sibéria.

Uma sociedade democrática deve alargar ao máximo o leque de possibilidades individuais e garantir um lugar digno a cada um. E isso, para os marxistas, não é utopia — é um projeto factível de sociedade. Para isso, é preciso assegurar, por meio de um regime verdadeiramente democrático, o direito de a sociedade escolher seu destino. Se reduzirmos tudo à aplicação prática, à eficácia estrita, à utilidade visível, imediata, comensurável, estaremos correndo o risco de ficarmos parados no tempo. A esquerda precisa, de fato, de novos projetos. Mas eles não podem ser uma abstração com pouca relação com a realidade objetiva do país. Se esquecermos os ensinamentos da história, estaremos dando chance para o fortalecimento do regime neoliberal de intolerância social e de homens autômatos. Aí vem o fascismo.

O boi voador do general Villas-Boas, do reitor José Vicente e do “cientista” Sergio Fausto

Por Osvaldo Bertolino – O outro lado da notícia – 24/11/2018

Hugo Studart anda se vangloriando no seu Facebook de que seu livro sobre a Guerrilha do Araguaia, Borboletas e lobisomens, continua fazendo sucesso. A prova seriam palestras dele e elogios à obra. Numa de suas palestras ele falou no Instituto Federal de São Paulo, campus Pirituba, e foi elogiado por um professor da instituição, Robson Barbosa. “Hoje tivemos a honra e o prazer de receber o professor Hugo Studart que nos brindou com excelente palestra (sobre) a guerrilha do Araguaia, trabalho de sua tese de doutoramento que resultou em seu livro Borboletas e Lobisomens, talvez a mais completa e fidedigna obra sobre o tema”, exagerou Barbosa em seu Face.

Studart falou também na “FlinkSampa Afroetnica — Festival de Literatura e Cultura Negra”, fato ilustrado no seu Face por uma foto com o “reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente (fazendo publicidade de livros), o historiador Luís Mir, a escritora Guiomar de Grammond, e o professor Thiago”. O convite, segundo Studart, foi do reitor e da curadora Francisca Rodrigues.

Jornalismo de esgoto

Em outro post, Studart agradece ao jornalista José Neumanne Pinto, conhecido demiurgo do jornalismo de esgoto do jornal O Estado de S. Paulo, que em um comentário no Youtube elogiou Borboletas e lobisomens, depois de afagos ao também jornalista de esgoto, José Roberto Guzzo, da revista Veja, “por conta de uma análise crítica sobre o Itamaraty do PT”. Neumanne Pinto disse que a obra de Studart é “um livro antológico, um livro importante que você tem que prestigiar”. “É a história verdadeira da guerrilha do Araguaia. Ele não poupa o PCdoB”, completou.

O demiurgo fez esse gancho para falar de um comentário do general Eduardo Villas-Boas, o comandante do Exército, que citou o livro, motivo de mais um comentário de Studart. “Descobri que o general Villas-Boas, comandante do Exército, leu meu livro Borboletas e Lobisomens. Durante a entrevista coletiva em Porto Alegre, 4ª feira, cita a obra como exemplo de ‘isenção’ e de busca da verdade histórica. Entre jornalistas e convidados, tinha umas 150 pessoas presentes. Aos 26 minutos da entrevista, perguntam-lhe sobre a Comissão da Verdade. Ele respondeu: ‘A gente deve preservar a verdade’”, escreveu ele.

Sobre o livro, o general disse: “Agora mesmo saiu um livro, Borboletas e lobisomens, escrito pelo Hugo Studart, sobre a Guerrilha do Araguaia. Ele é extremamente crítico em relação ao Exército. Mas também crítico, e relata as coisas que foram feitas pelo Partido, o PCdoB (…), coisas que eles fizeram lá, naquela região, naquela época, barbaridades, atrocidades que eles cometeram, e que, por exemplo, a Comissão da Verdade não relatou. Trouxe à tona. Tanto que a esquerda ficou atônita com esse livro. Então, a gente tem que produzir a verdade.” Segundo o general, tudo o que o Exército tinha sobre o assunto já foi liberado, o que leva à conclusão de que ele não leu o livro ou não conhece a verdade sobre essa história.

Mãos particulares

Outra citação do livro veio de Sergio Fausto, cientista político e superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso (FHC), em artigo publicado na revista Piauí, intitulado Os militares de volta ao time principal — O papel das Forças Armadas no governo Bolsonaro. Segundo ele, “nada incomoda mais os militares do que a prevalência, ao ver da corporação, de uma interpretação unilateral da história do regime autoritário em geral e das atividades repressivas do Estado naquele período, em particular”. “Os militares têm um ponto ao criticar a glorificação da luta armada. Está mais do que na hora de se reconhecer amplamente que a ideologia que animava os grupos clandestinos pouco ou nada tinha de democrática”, escreve.

Sergio Fausto faz uma digressão sobre o assunto, invocando o tempo como fator determinante para que a verdade apareça, e então cita Borboletas e lobisomens como um bom exemplo, segundo ele “um relato factual cuidadoso, baseado em extensa pesquisa, que não encobre as atrocidades feitas por militares na repressão e extermínio da guerrilha rural naquela região do país, nem sacraliza os guerrilheiros”. “Mostra-os como seres humanos, movidos por paixões generosas e uma ideologia totalitária, capazes de levá-los a cometer atos heroicos de sacrifício pessoal, mas também, em certos casos, a comportar-se com absoluta indiferença ante o sofrimento alheio”, divaga.

O cientista encerra citando que, “nos agradecimentos, Studart menciona ex-guerrilheiros e militares que se dispuseram a compartilhar com ele memórias e documentos”, uma evidência de que o general Villas-Boas desconhece — ou faz vistas grossas — a existência de documentos que deveriam ser públicos e que estão indevidamente em mãos particulares. “Está na hora de curar essa ferida de vez e não há outro modo de fazê-lo se não falar abertamente sobre ela. O melhor do Brasil está em ser muitos e ao mesmo tempo um só. Cuidemos de manter vivo o que temos de melhor, com a razão democrática e o afeto que se encerra em nosso peito já não tão juvenil”, conclui.

Essas versões prevalecem porque esse período de obscurantismo em que vivemos favorece a distorção dos fatos e a revisão oportunista da história. Faltam, nessas análises, o rigor da pesquisa, a fidelidade à verdade e o sentido do espírito democrático proclamado com o fim do regime militar. Nessa atmosfera turva, com o horizonte da democracia e da verdade histórica obnubilado pelo oportunismo de obras como essa de Studart — não por acaso vinda à luz nessa conjuntura —, prevalece a mistificação, a falsificação e a mentira pura e simples, como é o caso desse livro infame.

São Tomaz de Aquino

Como lembrou o cronista Humberto de Campos, contam os fatos da ordem de São Domingos que achando-se São Tomaz de Aquino na sua cela, no convento São Jacques, curvado sobre obscuros palimpsestos medievais, ali entrou, de repente, um frade folgazão, o qual foi exclamando com escândalo:

— Vinde ver, irmão Tomaz! Vinde ver um boi voando!

Tranquilamente, o grande doutor da Igreja ergueu-se do seu banco, deixou a cela, e, vindo para o átrio do mosteiro, pôs-se a olhar o céu, a mão sobre os olhos fatigados do estudo. Ao vê-lo assim, o frade jovial desatou a rir com estrépito.

— Ora, irmão Tomaz, então sois tão crédulo a ponto de acreditar que um boi pudesse voar?

E com a mesma singeleza, flor da sabedoria, irmão Tomaz respondeu:

— Eu preferi admitir que um boi voasse a acreditar que um religioso pudesse mentir.

Não conheço o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, assim como o general Eduardo Villas-Boas e o cientista Sergio Fausto. Mas conheço bem a obra de Hugo Studart e os motivos dos elogios a ela por seu séquito. Imagino — apenas imagino — que, com a responsabilidade das inteligências e da cultura de José Vicente, Eduardo Villas-Boas e Sergio Fausto, há, nos céus do Brasil, um boi de asas abertas, pastando entre as nuvens. E eu sairei para ver. Mas sairei, como se viu na história de São Tomaz de Aquino, em homenagem a eles, não em atenção ao boi.