– A longa Revolução de Getúlio Vargas

Por Osvaldo Bertolino

Na passagem dos setenta anos do suicídio de Getúlio Vargas, na madrugada de 24 de agosto de 1954, o balanço de sua era revela que o Brasil é o que é, com seus vícios e virtudes, seus esplendores e suas misérias, graças, fundamentalmente, às mãos que o conduziram a partir da Revolução de 1930. Após sair da pasmaceira que deu o tom da República Velha, o país entrou no período difuso do Estado Novo para em seguida chegar à era da “união nacional”.

Getúlio Vargas (o dos anos 1930) industrializou um Brasil que praticamente só plantava café. Derrubado por militares, quando seu projeto unitário avançava a passos largos, foi substituído, nas eleições de 1945, pelo general Eurico Gaspar Dutra — francamente pró-americano no processo de nascimento da Guerra Fria. Seu governo foi determinante para a formação, no Brasil, de dois campos abertamente em conflito.

Dutra perseguiu os patriotas — em seu governo, o registro do Partido Comunista do Brasil (então PCB) e a bancada parlamentar comunista foram cassados — e franqueou o país aos interesses dos Estados Unidos. Nas eleições seguintes, este projeto entreguista sofreu uma derrota — Vargas venceu em 1950 com um projeto de programa nacional. Ameçado de novo golpe, saiu morto do Palácio do Catete, então a sede do governo no Rio de Janeiro.

Em 1956, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República também sob ameaças. Fez um governo de conciliação, com boa dose de apoio da sociedade, e foi sucedido por Jânio Quadros. Os gestos histriônicos e os bilhetes teatrais do novo presidente pouco fizeram além de criar um clima de grande tensão política no país. Sua renúncia abriu lugar a outro presidente popular, João Goulart — fato que despertou a ira dos interesses dominantes.

O golpe militar de 1964 condensou um processo histórico de luta da elite contra o povo, que ganhou contornos bem definidos no segundo período Vargas: o modelo entreguista, alheio ao interesse nacional, versus o desenvolvimento. No ciclo militar, o país sangrou e, do ponto de vista econômico, foi uma mediocridade fardada em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo.

Resposta dos conservadores

Depois desse período, o país experimentou o período neoliberal, quando multidões saíram às ruas com palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo e tumulto. Este cenário era comum nos conturbados processos de privatização brasileiros dos anos 1990, um quadro do qual decorre uma pergunta óbvia: que importância é essa que a venda das estatais brasileiras angariou no enfrentamento entre as forças da transformação e da reação?

A resposta é a determinação, expressa pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC) na sua primeira posse como presidente da República, de acabar com a “era Vargas”. Era uma reação conservadora ao salto proporcionado pelos esforços empreendidos por Vargas para industrializar o país, alicerçados na bandeira do nacionalismo — condição fundamental para o governo do presidente Juscelino Kubitscheck conduzir a industrialização pesada dos anos 1950. Sob essa bandeira, o Brasil combateu o domínio dos trustes internacionais e advogou a formação de novas áreas de consumo interno.

Essas iniciativas impulsionaram os movimentos operários — em 1953, trezentos mil trabalhadores aderiram a uma greve em São Paulo; em 1954, uma greve geral anticarestia, liderada pelo Pacto de Unidade Intersindical (PUI), chegou à adesão de um milhão também em São Paulo; e em 1957, 400 mil operários pararam, ainda na capital paulista, reivindicando aumento de 25%, além das lutas camponesas.

Avanço da industrialização

O Brasil vivia uma polarização decorrente de uma renhida luta entre as forças do desenvolvimento e os círculos que defendiam a dependência econômica e política. Este cenário manifestava-se inclusive dentro do governo Juscelino Kubitscheck e refletia a evolução do quadro político desenhado pelos embates das décadas anteriores.

Quando Vargas assumiu o seu segundo governo, se deparou com problemas complexos herdados do governo do general Dutra e enfrentou a crise econômica acelerando o papel do Estado na economia e atraindo os trabalhadores para o seu projeto. Ao contrário de Dutra, que considerava indevida a intervenção do Estado na economia, Vargas aplicou — como havia feito no início da década de 1940 — uma orientação política que correspondia às tendências nacionalistas das forças que o apoiavam e à sua doutrina de harmonia dos interesses de classes.

A atenção de seu governo concentrou-se nas medidas que possibilitariam o avanço da industrialização, que deveria ser apoiada preferencialmente no capital nacional e orientada para o mercado interno. A industrialização naqueles moldes era considerada por Vargas uma solução para a falta de divisas, para o desemprego e para a independência do país. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), pelo qual ele foi eleito, não dispunha de maioria no Congresso Nacional e o governo compôs um bloco de sustentação parlamentar com representantes de outros partidos.

O suicídio do presidente adiou o golpe pró-americano por dez anos. No início dos anos 1960, os elementos das duas opções estratégicas para o país se condensaram e em 1964 os golpistas acabaram com o sonho das reformas de base lançadas por Vargas e preconizadas pelo governo do presidente João Goulart.

Uma nova era

As forças democráticas e progressistas podem aprender boas lições com o estudo da experiência de Vargas. Quando ele chegou ao Palácio do Catete, em 1930, em um trem militar vindo do Estado do Rio Grande do Sul, o país inaugurou uma nova era. O líder da Revolução vestia um uniforme cáqui, com um revólver metido na cintura, e representava, até na forma de vestir, os tenentes rebeldes que promoveram dois levantes e uma marcha histórica — a Coluna Prestes — na década de 1920 contra a República Velha.

Até então, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) revezavam-se no poder. O país era essencialmente rural — apenas 10% do Produto Interno Bruto (PIB) era industrial. Quando o esquife de Vargas deixou o Catete, 24 anos mais tarde, o Brasil não era nem sombra daquele país esculpido pelas oligarquias paulista e mineira. Em 1955, a produção industrial já representava 30% do PIB.

Intervenção do Estado

Uma das primeiras providências de Vargas foi alterar o papel do Estado. Antes, o governo interferia na economia apenas para garantir a boa vida dos oligarcas. O Estado comprava o café para preservar os fazendeiros de eventuais problemas na produção e da oscilação de preços no exterior. A moeda nacional flutuava ao sabor dos interesses dos fazendeiros — quando o preço caía no mercado internacional, o governo desvalorizava o dinheiro brasileiro e assim garantia os ganhos dos cafeicultores.

O novo presidente optou pela intervenção do Estado na economia para promover o desenvolvimento industrial. De 1932 a 1937, o PIB cresceu, em média, 7% ao ano. O Estado construiu empresas estratégicas para a economia nacional, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, e criou uma vasta legislação trabalhista — a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) — e social, especialmente a Previdência Social. No seu segundo governo, Vargas criou a Petrobras — iniciativa que resultou de um vigoroso movimento patriótico — e fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), hoje acrescido da palavra Social, agora com a sigla BNDES.

Divisão do país

As turbulências políticas do primeiro governo Vargas decorreram das contradições que envolviam o país. Os levantes dos tenentes e a Coluna Prestes tinham como objetivo único derrotar as oligarquias da República Velha. Eles não formaram um partido político e deram seqüência às suas carreiras políticas por caminhos distintos.

De um lado, o movimento operário avançava e sua liderança — o Partido Comunista do Brasil — via a Revolução de 1930 como algo que deveria ser substituído por um governo “apoiado em sovietes de operários e camponeses”, avaliação que evoluiu para o levante revolucionário de 1935 liderado pela Aliança Nacional Libertadora (ANL). De outro, a oligarquia paulista lançou a campanha pela constitucionalização do país e promoveu a guerra civil de 1932. Dois anos depois, uma assembléia eleita pelo povo promulgou a nova Constituição. Como resposta ao levante de 1935, Vargas desencadeou a repressão e, mais tarde — em 1937 —, instaurou a ditadura do Estado Novo.

Os tenentes se dividiram, basicamente, entre os que apoiaram Vargas e os que participaram do levante de 1935. A ditadura investiu com fúria contra os comunistas até a hábil política do então PCB de propor a “união nacional” contra o nazi-fascismo — palavra de ordem que logo seria associada à defesa da democracia. O governo se dividiu.

De um lado, apoiando o Eixo Roma-Berlin-Tóquio, ficaram o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o sucessor de Vargas, e o feroz chefe do aparelho repressivo, Filinto Müler. De outro, ficaram o presidente e o ministro das Relações Exteriores, o chanceler Osvaldo Aranha. Com forte apoio dos comunistas, o governo criou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que foi combater o nazi-fascismo na Europa. Essas posturas democráticas de Vargas e a vitória dos aliados fizeram do presidente um campeão de popularidade.

Apoio dos trabalhadores

Quando ele voltou ao governo, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria e respirava os ares reacionários do governo Dutra — aliado incondicional do imperialismo norte-americano. Vargas fez um governo dúbio: cedeu aos setores golpistas das Forças Armadas, doutrinados pela Escola Superior de Guerra (Esg), criada em 1949, tutelada pelo expansionismo da ideologia norte-america liderado pelo ocupante da Casa Branca HarryTruman (o famoso Plano Truman), com o acordo militar Brasil-Estados Unidos, mas amainou a repressão política.

O governo também desenvolveu uma política nacional de impulso à industrialização, enfrentou a crise econômica deixada por Dutra e procurou atrair o apoio dos trabalhadores. O ministro do Trabalho, João Goulart, propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, sofreu um violento ataque de militares reacionários e caiu — mas Vargas bancou a proposta e concedeu o reajuste. O governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investir no país.

Violentamente atacado pela direita, Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou a morte do presidente, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais. Sua marca ficou gravada, de forma indelével, na memória do povo brasileiro e na história do Brasil. E seu Testamento, registrado na carta famosa, é um dos importantes documentos da luta pela independência e soberania do país.

– Guerra híbrida e cultural na história do Brasil

Por Osvaldo Bertolino

Precisamente às 18h30 de 31 de junho de 1963, uma quarta-feira, o então governador do estado da Guanabara, Calos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), recebeu no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, a escritora francesa Suzanne Labin. O motivo da visita era o lançamento do livro Em cima da Hora – a conquista sem guerra, obra prefaciada e traduzida por ele. Em seu texto, Lacerda escreveu que certas faculdades de Filosofia, de Direito e de Economia estavam pondo em circulação centenas de jovens líderes, doutrinados e condicionados pelo treinamento comunista custeado pela nação.

O mesmo ramerrame seria ouvido anos depois, com o alarido sobre a “Escola sem partido” e outras diatribes do gênero. Como diz a extrema-direita agora, Lacerda dissera que “os liberais arrependidos, os socialistas retardados, os religiosos tomados de surpresa, os ensaístas deslumbrados, os jornalistas alfabetizados, os intelectuais ressentidos, os desajustados da liberdade, os novos-ricos de certos bancos e os novos-pobres de certo espírito, formam as mais estranhas contribuições para abrir caminho à propaganda, ao sofisma, às ideias-força da guerra subversiva que os soviéticos movem contra o mundo livre”.

O conjunto listado pelo então governador da Guanabara pertencia à categoria dos que, à falta de melhor definição, são nominados por “comunistas”, uma minoria ínfima que manipulava “uma parte considerável e poderosa das elites dirigentes, para induzir o povo a aceitar as teses de Moscou”. Eram aqueles que não seguiam a cartilha da extrema-direita e nem rezavam por sua ladainha, além de ousar pensar pela ciência e, com ela, contestar o obscurantismo ideológico. Na definição de Lacerda, seria uma “camada de autômatos” que estava sendo preparada “para dirigir o Brasil por conta dos soviéticos”.

O diapasão daquele lacerdismo obtuso, muito familiar aos ouvidos da contemporaneidade, expressava, mais do que o histórico anticomunismo rombudo, uma ojeriza ao Brasil. Seu histrionismo chegava ao ponto de enxergar propaganda soviética nas livrarias, nas bancas de revistas e nos jornais, uma confraria que atendia pelo nome-fantasia de “nacionalistas”. O Brasil estava sendo alvejado por essa propaganda para ser o epicentro da conquista da América Latina pelo comunismo, uma ameaça ao destino da liberdade no mundo.

Seria uma colonização cultural, já dominante na política e na economia. A nação, escreveu Lacerda, estava dominada por um medo intelectual e psíquico, traduzido pelo pavor de muitos de serem chamados de reacionários e perder o bonde da história, uma “enxurrada de estupidez” que estaria “burrificando a mocidade e degradando a velhice de tão grande parcela da intelligentsia brasileira”. A autodeterminação dos povos, pregada por Woodrow Wilson, um dos presidentes dos Estados Unidos, estaria servindo de pretexto para que o Brasil fosse posto, por brasileiros, “a reboque da Rússia e dos seus títeres, como Fidel Castro”.

Estado de guerra

As ideias de Lacerda guardavam proporção com seu destempero verbal – seu conhecido palavreado estridente e oco –, mas foram a base do golpe militar de 1964. Assim como agora, elas ganharam certa popularidade, repetindo o que ocorrera em 1937 com o “Plano Cohen”. O historiador Hélio Silva conta em seu livro A América vermelha que “a história do Brasil não registrou, felizmente, outro embuste, farsa, mentira, impostura, fraude, falsidade, felonia, traição, deslealdade, que se equipare em suas intenções pérfidas, de efeitos políticos calculados, além do Plano Cohen, atirado à face da nação, em sua publicidade cavilosa, chamada nos jornais em 30 de setembro de 1937”.

A fraude grosseira do militar de extrema-direita Olympio Mourão Filho – o primeiro que marcharia quando o golpe de 1964 foi deflagrado, agora como general – não poderia ser ignorada por quem não viveu aquele acontecimento e desconhecia “o que foi e o que fez o documento, ou melhor, o papel sujo, o texto ardilosamente explorado e transformado na ‘prova’ da ameaça de uma subversão comunista”. “Não obstante a origem sabida e o autor conhecido, a finalidade verdadeira, fatos e pessoas desmascaradas logo que havia colimado o objetivo de apavorar a nação e arrancar do Executivo e do Legislativo o estado de guerra, a fraude permaneceu impune e os seus exploradores não foram punidos”, indignou-se.

Mourão Filho e seus cúmplices — o mais destacado deles o general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército — iludiram as Forças Armadas e violentaram o Congresso Nacional para lançar o país na trilha do absolutismo, denunciou Hélio Silva. Mourão filho era chefe dos serviços secretos da Ação Integralista Brasileira, condição na época só conhecida por não mais que cinco pessoas. Batizara o plano de “Cohen” por ser um sobrenome judaico comum, derivado de “Bela Kun”, nome de um conhecido dirigente da Internacional Comunista e do Partido Comunista da Hungria.

Os fios da trama começaram a aparecer em 28 de setembro de 1937, quando os jornais publicaram um comunicado de Góis Monteiro negando rumores de que projetava um golpe militar e realçando o apoio do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, à “obra de fortalecimento moral e material do Exército”. No mesmo dia, a Câmara dos Deputados aprovou a inserção do comunicado nos seus Anais e assegurou, “em nome da representação nacional”, a decisão de “colaborar em todas as medidas que se fizerem mister, em nome da pátria e da autoridade”. A proposta do Legislativo terminou expressando o desejo “de acolher as sugestões do Conselho Superior da Segurança Nacional, em tudo quanto toque às necessidades urgentes da ordem pública e da defesa das instituições nacionais”.

No dia 30, os jornais estamparam parcialmente um plano de ação comunista, também levado ao ar pela Hora do Brasil. O autor seria o Komintern, do alemão Kommunistische Internationale, a Internacional Comunista. O ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, estava em São Paulo e foi chamado com urgência ao Rio de Janeiro para apreciar o pedido de providências dos ministros militares ao presidente da República. Apesar de fazer a viagem de carro, chegou antes do anoitecer. Conversou demoradamente com Góis Monteiro, Dutra, o presidente da República Getúlio Vargas e o ministro da Marinha, almirante Aristides Guilhem. No mesmo dia, divulgou a mensagem solicitando autorização do Congresso Nacional para decretar o estado de guerra.

Levante de 1935

A perfídia do grupo vinha antecedida de palavras adocicadas. “Logo que assumi a pasta da Justiça e Negócios Interiores, e mercê de firme e sincera convicção formada pela evidência dos fatos que se apresentavam à observação, propus a vossa excelência, em exposição datada de 20 de junho, o levantamento do estado de guerra. Disse, então, que se abria novo período de funcionamento livre das instituições, numa atmosfera de tranquilidade sintomática de vitória da nação sobre seus inimigos, e que confiava na sabedoria do povo brasileiro, cumprindo a todos velar, com meios legais de ação, à preservação da ordem triunfante”. Em seguida, lia-se o que interessava: “Afirmam, entretanto, os excelentíssimos ministros da Guerra e da Marinha, em exposição dirigida a vossa excelência, que no momento atual, como em 1935, as ameaças do comunismo são evidentes e que não é possível que fiquemos inertes ante a catástrofe que se aproxima”.

Macedo Soares, alegando o disposto nos termos da Emenda Constitucional número 1, pediu que o presidente determinasse estado de guerra. A situação era grave, muito grave, segundo ele. O Estado-Maior do Exército havia desvendado o plano de ação dos comunistas, “um documento cuidadosamente arquitetado, cujo desenvolvimento meticuloso vem da preparação psicológica das massas ao desencadear do terrorismo sem peias”. Para ele, o diabo vermelho andava solto e para encontrá-lo não era preciso esforço. Macedo Soares disse que o plano incluía “a propaganda comunista”, que invadira “todos os setores da atividade pública e privada”. O comércio, a indústria, as classes laboriosas, a sociedade em geral e a própria família viviam em constante sobressalto.

Mas as portas teriam olhos e as paredes ouvidos, segundo a parola do ministro da Justiça. A polícia civil do Distrito Federal, mesmo após a vitória da lei sobre o Levante de 1935, não deixou nunca de acompanhar de perto a ação subversiva dos comunistas, garantiu ele. Apesar de toda vigilância, nenhuma prova foi apresentada. O debate no Congresso Nacional baseou-se somente na proverbial algazarra midiática e na declaração de Macedo Soares.

Em 10 de novembro de 1937, teve lugar o golpe de Estado que deu início ao chamado Estado Novo, com a promulgação da Constituição de 1937, elaborada e redigida em sua maior parte pelo ministro da Justiça, Francisco Campos (nomeado para o cargo por Getúlio Vargas dias antes do golpe e que mais tarde elaboraria também Atos Institucionais da ditadura de 1964), com a ajuda de líderes integralistas um ano antes. A Carta ficou conhecida como “Polaca” por ter sido baseada na Constituição da Polônia outorgada pelo marechal József Pilsudski, líder do golpe militar que o levou ao poder em 1921.

Hélio Silva constatou, amargamente, que “já se disse, mais de uma vez, que a história do Brasil tem sido assolada pela irrupção e pelas consequências de documentos falsos”. Lembrou que em 1921, por exemplo, a falsificação das famosas cartas do candidato presidencial Arthur Bernardes acabou capturando, por muitos anos, a indignação de grande parte dos atores políticos. “Os documentos falsos se notabilizaram exatamente quando produzem efeitos sensíveis, quando funcionam. Seria limitado demais, entretanto, restringir o estudo da história brasileira ao esquadrinhamento de papéis espúrios, à investigação de suas origens e de seu impacto”, afirmou.

Sociedade tecnológica

As similaridades dos motivos que deflagraram os golpes de 1937 e de 1964 se inserem naquilo que já foi chamado de “sociedade tecnológica”, conceito debatido desde que o capitalismo consolidou um patamar industrial desenvolvido. No Brasil ele chegou quando o povo já estava num estágio avançado de lutas sociais e políticas, processo iniciado em meados do século XIX quando a indústria começou a nascer efetivamente e, com ela, uma nova realidade social, dinamizada pelo desenvolvimento do comércio, dos bancos e do trabalho livre.

O fim do regime escravista foi fundamental para esse salto. As experiências industriais pioneiras de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, faliram exatamente porque surgiram quando ainda prevalecia o que Clóvis Moura chamou, em sua obra Dialética radical do Brasil negro, de “escravismo tardio”, que se deu após a abolição do tráfico internacional. Suas iniciativas não poderiam prosseguir em meio a um sistema de monopólio da terra – os grandes latifúndios –, que impedia a formação de um mercado interno. Mauá era a expressão da capacidade do povo brasileiro, mas não compreendeu que os escravos seriam a classe social capaz de superar aquele quadro de atraso, opressão e miséria.

Essa compreensão marcaria abolicionistas como André Rebouças, que via o latifúndio como o maior problema social brasileiro. Ela não poderia existir antes pelas características do “escravismo pleno”, na definição de Clóvis Moura, entre mais ou menos 1550 e 1850, precedido da escravidão indígena, que abrangeu todo o período colonial. Foram mais de trezentos anos que estruturaram e dinamizaram o modo de produção escravista no Brasil, determinando o comportamento básico das classes fundamentais da sua estrutura social – senhores e escravos.

Liberalismo escravista

A vinda de dom João VI para o Brasil em 1808 rompeu o monopólio colonial com medidas como a abertura dos portos, uma liberdade de comércio que fez crescer a importação de africanos, denominado por Caio Prado Júnior, em sua obra História econômica do Brasil, como “era do liberalismo”, sem acrescentar que era um “liberalismo escravista”, como observou Clóvis Moura. Para o autor de Dialética radical do Brasil negro, mesmo os movimentos contestadores que surgiram antes ou depois da Independência – como a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Sabinada de 1837 – não puseram em seus programas políticos a abolição da escravidão.

O “liberalismo escravista” satisfazia econômica e socialmente o sistema e ninguém pensava ou articulava um movimento que objetivasse substituí-lo por outro regime de trabalho. Clóvis Moura cita como exemplo José Bonifácio que, no processo da Independência, repelia qualquer ideia que criticasse, mesmo tangencialmente, a escravidão. Somente a Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de setembro de 1850 proibindo o tráfico de escravos – quase trinta anos após a Independência –, fez surgir o embrião de uma burguesia, que se consolidaria em 1889 com a proclamação da República, período denominado por Caio Prado Júnior como “o império escravocrata e a aurora burguesa”.

Em sua fase de “escravismo tardio”, a luta contra o sistema, após a Lei Eusébio de Queirós, começou a se ampliar, deixando de ser exclusiva do escravo negro. Na descrição de Clóvis Moura, logo após a Guerra do Paraguai, acontecimento que foi um modificador importantíssimo na desarticulação do “escravismo pleno”, as manifestações humanistas, emancipacionistas, sucederam-se e o silêncio foi rompido; a discussão sobre a substituição da escravidão pelo trabalho livre se dava à luz do dia.

Surgiram as primeiras medidas protetoras, como A “Lei do ventre livre” (1871), a “Lei dos sexagenários” (1885), a lei que extinguiu a pena de açoite (1886) e a lei que proibiu a venda separada de escravos casados. A evolução para a Abolição passou pela administração dos resultados econômicos da Guerra do Paraguai, que exauriu o país, obrigado a contrair dívidas e a entregar seu comércio exterior aos interesses do capitalismo britânico. Clóvis Moura relata que o escravismo em decomposição foi substituído pelo trabalho livre sob controle do bloco de poder que administrava dois problemas: a mão de obra e a terra.

Estrutura da sociedade

Sobre o trabalho, realizou-se um plano ideológico, interessado na vinda de imigrantes, e o latifúndio estava garantido pela Lei de Terras, de 1850, que regulamentou as grandes propriedades quando o tráfico de escravos foi proibido. Eram as estratégias de dominação daquelas classes que assistiram à “modernização” do sistema escravista no Brasil e procuravam, na transição, evitar mudanças na estrutura social, segundo Clóvis Moura. De acordo com ele, o surto imigrantista impediu o acesso da massa de ex-escravos, posta como sobrante no novo sistema.

Mas o modo de produção escravista, ao determinar o comportamento básico de senhores e escravos como classes fundamentais, legou contradições antagônicas nítidas, que perpassaram as etapas seguintes da estrutura social brasileira. A conjunção de acontecimentos que levaram à derrocada daquele sistema – a Independência, a Abolição e a proclamação da República – determinou o dilema que Clóvis Moura definiu como “revolução democrática-burguesa” e Nelson Werneck Sodré, em sua obra Introdução à revolução brasileira, chamou de revolução “sem o proletariado”, referindo-se à Revolução de 1930.

Clóvis Moura trata o conceito no âmbito da Abolição, segundo ele vista como “uma possível revolução democrática-burguesa”, o que seria “no mínimo ingenuidade”. O problema da revolução burguesa no Brasil, escreveu, era polêmico, “especialmente porque muitos dos que a abordam tomam como paradigma as revoluções burguesas europeias como se tivéssemos de repeti-las aqui, na época do imperialismo e no contexto de uma sociedade que tinha até cem anos atrás como forma fundamental de trabalho a escravidão e as instituições correspondentes”.

A Abolição, na análise de Clóvis Moura, não mudou qualitativamente a estrutura da sociedade. O senhor de escravos foi substituído pelo fazendeiro de café. Cristalizaram-se, também, as oligarquias do Norte e do Nordeste, igualmente apoiadas no monopólio da terra, como os antigos senhores de escravos. A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre não mudou as estratégias de dominação antecipadamente estabelecidas, impedindo que o antigo escravo entrasse como força de trabalho na dinâmica desse processo, mesmo como força secundária.

Ao escravismo que imperou até às barbas do século XX se somou o extermínio da população originária, o índígena, que, segundo Darcy Ribeiro, teve uma fase genocida entre 1900 e 1957 e que segue vítimas de garimpeiros e empresas transnacionais. Como lembra Clóvis Moura, os índios destribalizados se incorporaram aos camponeses pobres e são também perseguidos, expulsos das terras e assassinados. Aquilo que o jurista Dalmo de Abreu Dallari definiu como desenvolvimento econômico contra o índio, não com o índio.

Uma nova configuração social do povo trabalhador formou-se em meio a esse conjunto de transformações. Foi o período em que a acumulação cafeeira obteve lucros que superavam a capacidade de investimento no setor. Esse capital deslocou-se para a indústria, que se concentrou em São Paulo e Rio de Janeiro, facilitando a organização dos trabalhadores e suas lutas. Houve uma explosão de manifestações e uma evolução natural para níveis de organização mais elevados, como a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, que trouxe para o movimento sindical uma política de unidade classista.

Relações de trabalho

A Revolução de 1930 promoveu uma série de regulação das relações de trabalho, mas, quando o governo de Getúlio Vargas passou a flertar com o nazifascismo, começou-se a organizar um movimento amplo, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que liderou a Insurreição de 1935. A derrota e a repressão varguista levaram à escalada autoritária que se consolidou com o golpe de 1937. A política ampla dos comunistas fez o PCB reentrar como protagonista na cena política no combate ao nazifascismo, possibilitando o enterro do Estado Novo com a Constituinte de 1946.

Mas a “sociedade tecnológica” já era forte e uma nova onda anticomunista foi deflagrada pelo governo do general Eurico Gaspar Dura, eleito em 1945. O registro e os mandatos do PCB foram cassados em 1947 e 1948, respectivamente, em meio a mais uma gigantesca onda anticomunista puxada pela mídia.

O conceito de “sociedade tecnológica” já foi definido como “sociedade industrial”. Seria a influência do complexo científico-tecnológico na sociabilidade, uma mudança de paradigmas com base em novas tecnologias, que estariam servindo de instrumentos do capital contra as ideias emancipacionistas dos trabalhadores. Hoje ela é mais forte do que nunca.

O historiador Eric Hobsbawm diz que não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra começou. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, houve uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.

Direito à propriedade

Seus primórdios se encontram na formulação de Saint-Simon, pensador francês e socialista utópico, de que a industrialização como estágio mais recente da humanidade exigia uma nova organização social, tese depois acolhida por Auguste Comte, entre outros. A ideia de uma nova organização social ganhou cientificidade na teoria de Karl Marx e Friedrich Engels. Para o pensamento marxista, as liberdades políticas conforme enunciadas na doutrina francesa dos Direitos Humanos de 1789, apesar do seu valor histórico, constituem uma hierarquia de direitos.

De acordo com a Constituição Francesa de 1793, o direito à propriedade privada permite a cada cidadão o gozo e a disposição (…), conforme ele deseja, de seus bens e rendas, dos frutos de seu trabalho e atividade. Na expressão “conforme ele deseja” está implícita a ideia de que cada um deve ver o seu semelhante como inimigo, um objeto obstaculizando os meios de aquisição ou manutenção da propriedade. Alguém só pode defender o direito à propriedade se possuir propriedade, disse Karl Marx em O Capital. De outro modo, o direito se torna vazio e faccioso. Ou seja: cada indivíduo deve ter como objetivo assegurar a sua propriedade.

Cada um dos outros direitos, segundo a análise de Marx, deve ser compreendido como subserviente ao direito à propriedade. “Assim como os indivíduos expressam suas vidas, assim eles são. O que eles são coincide com sua produção, tanto o que eles produzem quanto como produzem”, escreveram Marx e Engels. Este relacionamento recíproco determina o estado do homem durante qualquer período histórico, porque é a partir de suas produções que ele transforma o mundo. No modo privado de produção, diz Marx, o homem é desumanizado mentalmente e fisicamente – síntese fundada na expressão “trabalho alienado”.

Combate ao comunismo

Há ainda a contradição da tecnologia com as relações de produção. “Sob sua forma máquina (…), o meio de trabalho se torna imediatamente o concorrente do trabalhador. A máquina cria uma população supérflua, isto é, inútil para as necessidades momentâneas da exploração capitalista. (…) Em determinado grau de desenvolvimento, um progresso extraordinário na produção pode ser acompanhado de uma diminuição não só relativa como absoluta do número de operários empregados”, escreveu Marx em O Capital.

No artigo Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels diz: “É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob a pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano (…). A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a produção. A colisão torna-se inevitável.”

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels escreveram: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção”. Essa contradição teria uma evolução para um sistema social, político e econômico mais avançado.

Engels, no prefácio ao livro A luta de Classes na França, de Karl Marx, disse: “A ironia da história põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘revoltosos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com os meios ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles mesmos se chamam, vão a pique com a legalidade criada por eles mesmos. Exclamam desesperados, como Odilon Barrot: ‘La legalité nous tue’ (A legalidade nos mata), enquanto nós ganhamos, com essa legalidade, músculos vigorosos e faces coradas. E parece que fomos tocados pelo sopro da eterna juventude e, se não somos tão loucos para nos deixarmos arrastar ao combate de rua simplesmente para satisfazê-los, não terão afinal outro caminho senão romper eles mesmos com a legalidade que lhe és tão fatal.”

O combate ao comunismo foi constatado por Marx e Engels já no que é considerado o primeiro documento programático do marxismo, o Manifesto do Partido Comunista. “Todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele (o espectro do comunismo): o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Qual partido de oposição não foi qualificado de comunista por seus adversários no poder? Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou de volta a acusação de comunista, tanto a outros opositores mais progressistas quanto a seus adversários reacionários?”, escreveram na abertura do texto.

Conceito de liberdade

Esse combate remete ao conceito de liberdade, o mais manipulado na guerra ideológica da direita. Além dos epítetos de baixa intensidade, há a indução ao senso comum de que a “sociedade tecnológica” satisfaz plenamente a liberdade, sem considerar a variedade de necessidades de cada grupo ou camada social. A definição filosófica de liberdade é antiga, sempre associada à igualdade. Para existir a liberdade, é preciso existir a igualdade. Aristóteles, o maior pensador da antiguidade, em seus estudos sobre a lei do valor, descobriu que as mercadorias têm dois valores – um de uso e outro de troca.

Mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, disse Aristóteles. Qual seria a medida dessa igualdade? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século XVIII, pelo estudo do economista clássico inglês David Ricardo – o que há de igualdade é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias. Marx diz em O Capital que Aristóteles era filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo. A compreensão da igualdade de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas. A partir do memento em que a igualdade política se afirmou.

Foi a Revolução Francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental: todos os homens são iguais. Adam Smith, outro economista clássico inglês, considerado o pai do pensamento liberal, também falou do assunto em sua obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, publicado em 1776, ao defender a mão invisível do mercado como meio para a livre concorrência de todos os capitalistas na busca do equilíbrio da sociedade. Ele recomendou que os empresários não frequentassem o mesmo clube para evitar a tentação de se associarem em monopólios. Adam Smith estava dizendo que a liberdade não é um conceito absoluto e precisa da igualdade.

É óbvio que essas ideias pouco têm a ver com o capitalismo em sua fase superior, o imperialismo, como bem demonstrou Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917. As estruturas de classes nas sociedades contemporâneas já não são nem sombra do que foram quando o capitalismo deu seus primeiros passos, como sistematizou Lênin na obra Imperialismo, fase superior do capitalismo. A liberdade nesse sistema é propagada como introjeção de necessidades que atendem mais à reprodução e à acumulação de capital do que ao bem-estar social.

Essa evidente contradição faz os cérebros que comandam a mão invisível do mercado, agora hipertrofiado pelo sistema financeiro, mobilizarem o aparato tecnológico – e todos os seus recursos disponíveis – que está em seu poder para manter as instituições a seu serviço. As formas de controle social se expandem com o caráter global dessa hipertrofia, mantendo a ideia de que existe um inimigo contra o qual é preciso mobilizar todas as forças. A imagem do adversário é inflada para que seja apresentado como inimigo total, uma ameaça à sociedade da “liberdade”.

A dilatação máxima dessa imagem cotidianamente, 24 horas por dia, é imposta de todas as formas e por todos os meios. Os prognósticos mais tenebrosos são atirados ao público de todas as formas possíveis — pela televisão, pelas rádios, pelos jornais, pelas revistas, pela internet e até por seitas religiosas, para não falar nas consultorias, departamentos de análise de bancos, institutos de pesquisa e por aí afora. A ideia é forjar razões para que o inimigo seja asfixiado e não conteste o status quo.

Autoridades coloniais e imperiais

As formas hoje são outras, mas o conteúdo e os objetivos são os mesmos de sempre. O livro de Suzanne Labin, por exemplo, foi largamente difundido quando Lacerda a trouxe para o Brasil. O convide do governador da Guanabara tinha uma extensa agenda de conferências sobre “as táticas de infiltração comunista no mundo livre”, segundo suas declarações aos jornais. Seu périplo incluía São Paulo e outros estados, em pregação “democrática e anticomunista”.

Circulou a informação de que a embaixada dos Estados Unidos teria mandado, junto com os convites para um coquetel aos 41 novos diplomatas formados pelo Curso Rio Branco, três livros, sendo dois deles de Suzanne Labin, um dos quais Em cima da hora. Os jovens recém-formados retribuíram a gentileza comparecendo ao coquetel na sede da embaixada dos Estados Unidos. O secretário-geral do Instituto Rio Branco, Hélio Scarabotolo, declarou não ser verdade que a embaixada tinha presenteado os diplomatas, mas confirmou que os livros foram distribuídos, sem saber quem os enviou ao Itamaraty.

Uma das conferências de Suzanne Labin foi na Escola Superior de Guerra, onde ela declarou que “os comunistas, no plano militar, ensinavam os soldados a conquista do espírito” e que, “ao contrário do que acontece com os democratas, quando querem empreender uma conquista, mandam antes seus agentes para minar a opinião pública, a fim de poderem, mais tarde, com grandes facilidades, fazer a conquista”. O livro foi um sucesso de vendas, a julgar por uma notícia do Jornal do Brasil de que Lacerda comprou um sítio com o dinheiro ganho com a tradução.

Segundo um anúncio comercial nos jornais, “tudo o que estava acontecendo no Brasil foi previsto neste livro admirável”. “Compreenda a que ponto chegou a infiltração comunista do governo (João) Goulart e para onde nos querem levar”, completava. A revista O Cruzeiro, do então poderoso grupo de mídia “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, publicou uma matéria de capa sob o título Suzanne Labin declara guerra ao comunismo. O golpismo fervilhava na mídia. A criação da “Cadeia da democracia” formalizou um cartel da conspiração, unindo as rádios Jornal do BrasilGlobo e Tupi.

Depois do golpe, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, falando ao jornal O Estado de S. Paulo, afirmou que “a revolução de 64” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coreia”. O primeiro ditador-presidente, Castello Branco, ofereceu um jantar ao adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Gordon e Walters organizaram uma rede de ativos conspiradores que criaram uma profusão de organizações e movimentos de extrema direita.

Meridiano primevo

O povo brasileiro sempre se insurgiu contra esses arbítrios. As autoridades coloniais imperiais — como os donos do poder hoje em dia —, ao punirem com tamanho rigor os combatentes do povo, sabiam quem estavam enfrentando. Os que até hoje perseguem e caluniam lideranças populares são os legatários dos governadores gerais, ou vice-reis, que pensavam a mesma coisa de Zumbi dos Palmares, de Tiradentes, de Felipe dos Santos, dos Alfaiates da Bahia de 1798, dos republicanos do Nordeste de 1817 e 1824, que lutaram movidos pelas ideias da Revolução Francesa e da Independência Americana.

A síntese do pensamento de ontem e de hoje dos algozes do povo brasileiro está na forma como o barão de Cotegipe (um dos líderes do Partido Conservador, eleito senador pela Província da Bahia e presidente do Senado de 1882 a 1885) se referiu às multidões entusiasmadas que assistiam às sessões do parlamento durante a votação da Abolição: o Império libertou uma “raça”. Essa “raça” teve ainda em suas fileiras os camponeses de Canudos, do Contestado e legou para a história do povo brasileiro vultos notáveis de líderes populares como Borges da Fonseca, Frei Caneca, Cipriano Barata e tantos outros, valentes, combativos e que tinham um norte definido. Todos odiados pelos inimigos do povo.

Na punição à “Inconfidência Mineira”, por exemplo, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer da execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade —, eles tinham perfeita consciência de que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas.

Esse protagonismo do povo sempre foi inaceitável para os que se consideram donos do poder. Todas as atrocidades praticadas por eles se deram em nome da lei e da ordem. ”Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe”, escreveu Karl Marx. A lei universal desses algozes foi bem traduzida pela fina ironia do escritor George Bernard Shaw referindo-se aos racistas do Sul dos Estados Unidos: primeiro, reduziam os negros à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. No Brasil, essa imagem aparece com nitidez nas gravuras de Jean Baptiste Debret e nas páginas de José Lins do Rego.

Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso. A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país.

Os donos do poder não aceitam outra posição do povo, senão a completa subordinação. Eles são movidos pelos mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre a larga porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela. A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis.

Por esse plano, a metrópole doou três milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento.

A dívida que o país acumulou com seu povo que ainda vive as sequelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas capitanias hereditárias, pelos donatários de dom João III, e mantidas por gerações de sucessores só poderá ser paga numa intervenção movida por espírito político radicalmente novo. Seria algo capaz de mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a brasileira.

A raiz das coisas

A realização do progresso social pressupõe a via democrática, o respeito às leis, especialmente as que contemplam os direitos dos trabalhadores tornados cidadãos. Da mesma forma, os movimentos e organizações sociais devem ser vistos como entes estruturais da dinâmica progressista do país. Mais ainda: não se pode falar em democracia quando a cidadania é afrontada no seu direito de votar e de ser votada. Isso quer dizer que todos devem ter as mesmas condições de exercer o poder, votando ou sendo votado, para estabelecer as conexões entre seus atos e as estruturas constituídas.

Esse conceito de democracia põe em evidência o exercício dos direitos legais, a prática das decisões de alcance político e a formação da consciência cidadã. Uma democracia de massas, com o povo se organizando em partidos políticos e entidades associativas, é a antítese da trama de golpes palacianos. A própria tradição republicana brasileira é essencialmente progressista — nenhum presidente da República elegeu-se com o voto popular prometendo claramente defender a plataforma ideológica da direita. Na história do Brasil, existem muitos exemplos de governos odiados pelo povo por prometer uma coisa e fazer outra.

Em contrapartida, todos os presidentes que cumpriram — ou tentaram cumprir — o que prometeram foram atacados pelas oligarquias. Os conflitos políticos surgem dessa dicotomia povo-elite. Toda a nossa história mostra que a República é vista pela ampla maioria da sociedade como a negação do poder oligárquico e sinônimo de independência nacional — um movimento que marcou profundamente o século XX no país.

Se há interesses antagônicos em uma sociedade, como é o caso brasileiro, há também a disputa política expressa por meio do embate entre os partidos, que refletem as concepções de um ou outro conjunto de forças sociais. Numa perspectiva republicana, portanto, governos democráticos levam a sério o papel dos partidos e respeitam o voto do cidadão. A negação dessa obviedade cerceia a manifestação democrática do povo e nega os ideais republicanos.

O regime dos golpistas de 1964 representou o anticlímax do processo de aceleração da industrialização do país, que ampliou a infraestrutura de serviços básicos orientada para a integração do mercado nacional nos anos 1950, um processo que nasceu com a Revolução de Getúlio Vargas, em 1930, quando o país entrou numa fase de desenvolvimento e de rápida urbanização. Uma onda de otimismo se espalhou com a criação de perspectiva e de esperança, mesmo com os maiores benefícios concentrados nas mãos de uma minoria.

Somente com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2003, o país voltou a ter a respeitabilidade que não tinha desde os tempos de Juscelino Kubitschek, Brasília e a Bossa Nova, substituídos pelas turbulências do governo Jânio Quadros e pelo golpismo contra João Goulart. A eleição de um projeto popular engendrado num curso histórico de enfrentamento com a ditadura militar, e que passou por movimentos como as Diretas Já!, a Frente Brasil Popular, o Fora, Collor! e o combate ao neoliberalismo, trouxe o Brasil de volta ao respeitável clube dos países que prezam seus interesses acima de tudo. Havia pelo menos três gerações de brasileiros que não sabiam o que era isso.

A eleição de Lula representou o resgate dos ideais de governos que combateram as injustiças brutais que sempre reinaram por aqui, um processo abortado pela marcha golpista e pelos desdobramentos do golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, agora com o desafio de ser restaurado com a eleição de Lula em 2022. Quase na virada para o século XX — apenas há pouco mais de 100 anos —, o país era monarquista e escravocrata, uma miscelânea de mazelas. Mesmo trocando a monarquia pela República, a estrutura social se manteve. Essa trajetória explica por que ainda uns detêm muito e muitos não têm coisa alguma. Só não está pior porque o Estado, em determinados períodos, preocupou-se com a industrialização do país.

Vil tristeza do jaburu

Assim o Brasil pôde entrar numa era de realização do ideal republicano, o processo de superação do conservadorismo constatado já nos primeiros anos de vida da República, como demostra a literatura dos explicadores do Brasil daquela época. O próprio Rui Barbosa, que participou da elaboração da Constituição de 1891, apontou os limites da República presidencial quando ela se afasta da vontade popular. Para ele, a onipotência do Congresso Nacional e o arbítrio do Poder Executivo, apoiados na irresponsabilidade das maiorias políticas, criavam uma situação autocrática. Somente “a majestade da Constituição escrita, interpretada, em última alçada, por uma magistratura independente”, poderia contrabalançar tal poderio perverso. Como lembrou Oliveira Vianna, Rui Barbosa, na defesa dos direitos do cidadão, pela doutrinação do habeas corpus, soube conter os poderes dentro dos limites da justiça e do respeito à lei.

Essa conquista, ainda nas palavras de Oliveira Vianna, muito vale em um país “sem tradição de respeito à lei e ao direito”, tese de Rui Barbosa, um dos fundadores e organizadores da República, que seria a base da ideologia do progresso nacional, desejo das novas camadas sociais que emergiram antes mesmo do fim do Império. Na contramão dessa ideologia, como atestou o militante republicano Alberto Sales em artigo intitulado Balanço político — necessidade de uma reforma política, publicado no jornal O Estado de S. Paulo nos dias 18 e 26 de junho de 1901, citado por Carlos Henrique Cardim no livro A raiz das coisas, estava o fracasso do ideal republicano.

Para ele, “ao cabo de uma experiência tão curta” já se via a República convertida, “para descrédito das instituições e a infelicidade de nossa pátria, na mais completa ditadura política”. Aplicava-se, já na época, o famoso “sorites” de Nabuco de Araújo sobre o Império: “O presidente da República faz os governadores dos estados, os governadores fazem as eleições, e as eleições fazem o presidente da República”. Segundo Alberto Sales, a consciência nacional deveria pronunciar o seu julgamento de que “a máquina política montada em 15 de novembro de 1889 já teve tempo preciso para fazer a sua experiência” e que era necessário “dizer com franqueza o que ela é, e o que deve ser”.

Confrontar o ideal republicano com a realidade, após dez anos de regime, disse, “é reconhecer com amargura que a estrutura política que levantamos, cheios de entusiasmo e fé, sobre os destroços do antigo regime, não tem sido mais que uma longa decepção, um desengano mortificante às nossas mais ardentes aspirações”, querendo dizer, como era voz corrente entre importantes figuras do republicanismo, segundo Carlos Henrique Cardim: “Essa não é a República de nossos sonhos”.

Contudo, cumpre observar que Alberto Sales era um analista de uma sociedade recém-saída do trabalho escravo. A compreensão mais exata do ideal republicano só pôde existir quando ele se firmou pelas experiências, embora esparsas, dos governos progressistas. E todas elas resultaram de movimentos de massas, acontecimentos que infundem consciência política e despertam amplos setores para a importância de ações políticas com objetivos bem definidos.

Mas nem por isso o pessimismo de Alberto Sales deixou de se manifestar; ele se deve à atualidade da visão de Capistrano de Abreu sobre o Brasil da negação das aspirações republicanas das duas primeiras décadas do século XX, mais presente do que nunca, traduzida em sua proposta de transformar o jaburu em símbolo nacional. “O jaburu (…), a ave que para mim simboliza a nossa terra, tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela austera e vil tristeza”, escreveu ele.

– Lula e os dilemas de Delfim Netto

Ì

Por Osvaldo Bertolino

Economista falecido nesta segunda-feira (12) transitou de feroz defensor do desastrado “milagre econômico”, surgido no âmbito do terrorista AI-5, para crítico da radicalidade neoliberal.  

Em sua coluna de 7 de maio de 2003 no jornal Folha de S. Paulo, Delfim Netto mencionou um seminário sobre “Economia socialista” promovido pela Fundação Perseu Abramo em 2000 no qual Luiz Inácio Lula da Silva teria dito, num depoimento espontâneo, que “o ser humano é eminentemente competitivo”. “À medida que se bloqueia a capacidade competitiva do ser humano e que se colocam todos para ganhar a mesma coisa dentro de uma fábrica, cortam-se as possibilidades de sucesso daquela fábrica. As pessoas são niveladas por baixo e não por cima. O socialismo não conseguiu resolver esse problema”, disse Lula, segundo Delfim.

Era uma simplificação vulgar do conceito de socialismo, mas a fala agradou aos ouvidos de Delfim. Lula teria dito ainda que “o mercado só funciona se houver um Estado muito forte regulando-o e obrigando-o a cumprir algumas cláusulas sociais”. “Só o mercado não resolve. Compatibilizá-lo com um Estado regulador, capaz de garantir que ele atenda a todas as necessidades das pessoas, seria o ideal. Como fazer isso é o desafio que está colocado para o PT”, prosseguiu Lula.

Delfim conclui: “Por que desconfiar que há 30 meses, num seminário acadêmico reservado, o futuro presidente estivesse escondendo o seu verdadeiro pensamento quando afirmava com todas as letras e até com certa rudeza na presença de intelectuais (…) que o PT não é um sonho, mas um instrumento político para construir, pragmaticamente, uma sociedade com liberdade, igualdade e justiça, combinando o ‘mercado’ com a ação do Estado? Por que, afinal, insistir na crítica a um suposto descumprimento de um programa abandonado? Todos os partidos querem uma sociedade eficiente, que utilize o mercado, garanta as liberdades individuais e reduza as desigualdades. Nós (os não-petistas) tivemos a nossa oportunidade de construí-la com resultados medíocres. É a vez de o PT tentar! Vamos criticá-lo quando errar nessa construção.”

Nova economia brasileira

Na essência, o PT não errou a ponto de receber críticas de Delfim, conforme prometera na condição de ungido por ele mesmo como oráculo da economia brasileira. Mas ele não deixou de avaliar criticamente o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Aparentemente, aquela certeza de que a sua política econômica dos tempos da ditadura militar salvaria o país não existia mais. O Brasil havia pagado um alto preço pela opção de receber os dólares empurrados pelas baixas taxas de juros internacionais para fazer o “milagre econômico” e pagá-los a juros exorbitantes, política que levou o país ao caos econômico e social no começo dos anos 1980.

O “milagre econômico” representou uma afluência excludente – a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de uma sociedade industrial e a outros apenas a cota de sacrifício necessária àquele salto econômico. Aquele modelo econômico colapsou preso às contradições de uma violenta concentração de capital, produzindo insuportáveis mazelas sociais. Um dado revelado em 1974 pelo senador de oposição do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de São Paulo, Franco Montoro, eleito em 1970, dava bem a medida das dimensões da crise – em dez anos, o Produto Interno Bruto (PIB) crescera 56% e o salário-mínimo caíra 55%. Ou seja: a riqueza nacional aumentou quase na mesma proporção do empobrecimento da classe trabalhadora.

A ideia daquela política econômica está no livro A Nova economia brasileira, de Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, que, com Delfim, comandaram a economia na ditadura militar. Os objetivos básicos eram o combate à inflação, o reequilíbrio do balanço de pagamentos e a criação de bases sobre as quais deveria ocorrer o desenvolvimento de longo prazo, tese que ficaria bem mais conhecida com o arcabouço do Plano Real, adotado em 1994 para dar forma e conteúdo ao projeto neoliberal. Ou seja: primeiro vem a “estabilidade monetária” para surgir o crescimento econômico impulsionado por investimentos privados e só então haveria as condições para se distribuir a produção.

O Brasil pós-milagre

O livro apresenta o dilema: produtivismo ou distribuitivismo? “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram. O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista – que se tornou popular quando Delfim afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. A forma seria, basicamente, o arrocho salarial. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, o economista desenvolvimentista Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”

Um caso emblemático ocorreu em meados de 1977 quando o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) descobriu que 120 mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP) haviam perdido 34,1% de poder aquisitivo nos salários em consequência da compressão nos índices de custo de vida, determinada em 1972, 1973 e nos primeiros meses de 1974 por Delfim, então ministro da Fazenda.

Outras categorias também foram atingidas. Mais de 10 mil jornalistas do estado de São Paulo foram lesados em 12% e cerca de 100 mil bancários viram seus salários reajustados em 17,8% a menos do que o índice de inflação. O estudo do Dieese desencadeou um movimento vigoroso para pressionar o governo pelo ressarcimento do prejuízo. Catorze sindicatos paulistas e outros tantos de outros estados iniciaram, em agosto de 1977, a campanha pela reposição daquelas perdas. Reuniões e assembleias se espalharam pelo país. Outros sindicatos também consultaram o Dieese.

Estopim para as greves

Tudo começou quando a revista Conjuntura Econômica, de julho daquele ano, divulgou a revisão das contas nacionais feita pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) — ligado à Fundação Getúlio Vargas. A revisão apontou um aumento de 20,5% no custo de vida de 1973, e não de 13,7% como fora divulgado.

O substituto de Delfim, Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério da Fazenda em março de 1974, reconheceu o erro em relatório enviado ao presidente da República, general Ernesto Geisel, e publicado pelo jornal Gazeta Mercantil. “Em 1973, o governo, procurando aproximar-se da meta de 12% de inflação, reprimiu ao máximo possível os aumentos de preços via tabelamento e controle (…). Assim, o índice, em dezembro de 1973, registrava a carne de primeira ao preço de 6,60 cruzeiros, quando o preço no mercado paralelo se situava em torno de 14 cruzeiros, ou seja, 112% a mais (…). Se os cálculos fossem corrigidos para tomar por base os preços reais do mercado e não os preços oficiais das tabelas, o aumento global do custo de vida em 1973 subiria 26,6%”, explicou o ministro.

Foi o estopim para as greves de 1978, retomadas dez anos após a ofensiva da ditadura contra os trabalhadores em 1968, a perseguição aos operários que desafiaram o regime com grandes paralisações em Contagem e Belo Horizonte, Minas Gerais, e em Osasco, São Paulo, na conjuntura da edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), o chamado golpe dentro golpe que desencadeou oficialmente o terrorismo de Estado, do qual Delfin foi um dos signatários. As greves ganharam volume e passaram a fazer parte da luta que levaria ao fim da ditadura em 1985.

Produtividade do trabalho  

Delfim foi um dos personagens centrais desse período. Com a disparada da inflação, os aumentos salariais acima do índice oficial do governo começavam a despertar a atenção dos trabalhadores. Segundo a lei salarial vigente à época, o item produtividade deveria ser solucionado entre as partes. Delfim, agora ministro do Planejamento depois de ter passado pelo Ministério da Agricultura, afirmara à revista IstoÉ que, após o reajuste automático dos salários previsto na lei, “eles poderão sentar à mesa e discutir à vontade o aumento da produtividade”. E acrescentou: “Há sérias dúvidas sobre como vai funcionar isto ou aquilo, as pessoas ficam preocupadas com a forma de calcular a produtividade sem deixar de entender que essa é a discussão verdadeira, que se trata de sentar-se à mesa para discutir a distribuição funcional da renda. E vai aprender, na minha opinião. Todos vão aprender.”

A questão era delicada para os empresários. A produtividade do trabalho – criação de mais valor por hora trabalhada – crescia verticalmente e eles temiam que esse mecanismo levasse os trabalhadores a autocontrolarem o processo por meio da organização nos locais de trabalho. A batalha por aumentos salariais acima do índice oficial ganhava volume rapidamente. Não demorou e o próprio Delfim disse que os aumentos reais dos salários eram as causas da disparada da inflação. Para ele, havia um “descalabro” salarial no país que precisava ser contido. Ele chegou a reunir-se com Lula e Arnaldo Gonçalves – presidentes dos sindicatos dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e de Santos – para propor uma trégua nas greves durante dois anos como instrumento de combate à inflação.

Membros do governo manifestaram “oficiosamente” a intenção de aceitar a concessão de um índice de produtividade de 10% e voltaram atrás. Um grupo de empresas multinacionais teria manifestado essa intenção, que foi prontamente rechaçada por Delfim. Obcecado com a ideia de “combate à inflação”, ele chegou a ameaçar deixar o governo se a proposta fosse adiante – ignorando sua definição, segundo a qual a distribuição “funcional” da renda estaria ligada ao ganho de produtividade por meio do “entendimento entre as partes”. A lógica do ministro se coadunava com os interesses dos empresários brasileiros, que julgavam o índice de 10% suportável apenas para as multinacionais.

Porta-voz do Parque Jurássico

Delfim estava diante do dilema apontado por Mário Henrique Simonsen que, em 1979, ao deixar o Ministério do Planejamento, recomendou a Delfim suas ideias sobre “estabilidade”, “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”, termos do projeto neoliberal que invadiria o noticiário econômico nos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Os problemas da economia brasileira se agravavam rapidamente. O país estava atado a um quadro macroeconômico internacional complexo, resultado do acentuado endividamento externo promovido para financiar o “milagre econômico”. A inflação acumulada em 1982 foi de 99,71%. Delfim recorreu a um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 4,4 bilhões, sob a regência de uma Carta de intenções assumindo compromissos com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial.

Após a ditadura, Delfim tornou-se um crítico da radicalidade neoliberal. O Brasil tornara-se um dos lugares em que a teoria de uma lógica do mercado financeiro funcionando como mão invisível impedindo distorções localizadas mais vicejou. Os “guardiões da moeda” da “era FHC” garantiam que o fluxo mirabolante de capital não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Eles diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico “competitivo”. Ao responder a críticas de Delfim a essa retórica, Gustavo Franco, o arrogante então presidente do Banco Central, disse que ele era “porta-voz do Parque Jurássico”.

No governo Lula, quando Palocci deu prosseguimento à política econômica de FHC, ele voltou a criticar a exacerbação do neoliberalismo. O novo ministro da Fazenda assumiu anunciando cortes no orçamento, aumento dos juros e “reformas” neoliberais. Delfim disse que o cenário imaginado por Palocci era irrealista. O “ajuste fiscal” sozinho não resolveria o problema da crise herdada. O governo corria o risco de promover um arrocho violento e ficar sem os resultados esperados. “É absolutamente impossível ter um ajuste com o país crescendo a uma taxa anual de 1% do PIB ou inferior a isso”, disse. “Não existem exemplos na história econômica do mundo de um equilíbrio construído com crescimento tão pífio”, ressaltou.

Burla do déficit nominal zero

Antes da Posse de Lula, Palocci bateu o pé até convencê-lo a fazer o anúncio por escrito dos compromissos da “era FHC” com o FMI – metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário, num documento chamado Carta ao Povo Brasileiro que Delfim passou a chamar de Carta de Ribeirão Preto, numa referência à cidade paulista da qual o ministro fora prefeito.

A equipe de Palocci, segundo Delfim, era de gente necolonizada. “Para eles, o desenvolvimento é a recompensa que desaba sobre a cabeça dos bem-aventurados que praticam as normas que (eles mesmos) supõem ser a boa e dura ‘ciência econômica’. É uma espécie de religião. Qualquer mobilização para o desenvolvimento econômico por parte do Estado é perda de tempo. Pior, é pecado! Contraria os princípios pelos quais se vai aos céus: a definitiva aceitação do deus mercado e a obediência estrita aos cânones da ‘ciência dura’. Quem ‘peca’ pode ter algum prazer no curto prazo, mas vai para o inferno no longo prazo”, escreveu ele na edição da revista CartaCapital de junho de 2003.

Ele mudaria de opinião quando Palocci se isolou no governo. Segundo a revista Veja, Delfim avaliava que Palocci deveria ser “indemissível” porque sua grande missão no governo era evitar que Lula voltasse a ser petista. A avaliação de Delfim se deu no contexto em que ele se aproximou do ministro com a proposta de “déficit nominal zero”, uma burla, segundo o economista Carlos Lessa, que acabara de ser demitido da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por não aceitar as imposições da política de Palocci. “Cortar gastos não faz a economia crescer. Cortar gastos faz a economia cair”, resumiu. Desde então, apesar da proximidade com Lula, Delfim manteve-se discreto tanto nas críticas quanto nos elogios às políticas econômicas.

– A Operação Lava Jato e a vida pregressa de Sérgio Moro

Na tarde do domingo 22 de novembro de 2015, um forte esquema de segurança fechou uma grande avenida no centro da cidade de Maringá, Paraná, em frente a um hotel de luxo. Policiais ocuparam todo o entorno e quem entrava no auditório passava por um detector de metal. Tanta segurança, conforme transmitiu a rádio CBN, era porque o juiz federal Sérgio Moro participava como convidado especial de um “ato interreligioso contra a corrupção”.

Ele comandava a força-tarefa da Operação Lava Jato, “a maior operação de combate à corrupção que já se viu no país”, conforme disse a repórter Luciana Penha. E prosseguiu informando que no evento estavam presentes seis religiões. “Sérgio Moro nasceu em Maringá e aqui se formou em Direito. A primeira experiência profissional foi no escritório do advogado Irivaldo Souza, idealizador do ato interreligioso contra a corrupção”, noticiou.

Irivaldo é tributarista e assessorou o ex-prefeito de Maringá Jairo Gianoto, do PSDB. Foi condenado em 2006 por desvio de dinheiro público (valor estimado em mais de um bilhão de reais), formação de quadrilha e sonegação fiscal. O advogado foi preso e só teria conseguido um habeas corpus depois que Moro testemunhou a seu favor. “Eu gosto muito do Sérgio, ele é um juiz justo, determinado, e tem cumprido a sua função, a sua missão, e nós, por isso, fizemos esse ato interreligioso em favor dele”, comentou o advogado em entrevista à CBN, ao lado dos “representantes de seis religiões reunidos para refletir sobre a corrupção”, conforme a repórter.

Assassinato de Paolicchi

Segundo Luciana Penha, o presidente da Ordem dos Pastores, Noel Cruz, disse que católicos, evangélicos e muçulmanos, todos concordavam que a corrupção é um mal que mata. “Porque a corrupção, ela está levando, na verdade, o dinheiro que ia para a saúde e também para as empresas. Então os jovens estão desempregados e as mães reclamando com os filhos nas portas dos hospitais e morrendo. Então eu creio que chegou a hora em que o povo de Deus está unido orando a Deus, e Deus ouviu o clamor. Chegou o momento de acabar com a corrupção”, falou o pastor, de viva voz.

O arcebispo, dom Anuar Battisti, afirmou que Sérgio Moro era para muitos a esperança de justiça, de acordo com a repórter. Com sua voz, a autoridade católica disse que “ele (Moro) hoje é o cabeça, é aquele que está dando a canetada final dentro desse processo de corrupção, do processo de julgamento da Lava Jato”. “Tudo passa pela mão dele. E ele está sendo extremamente rígido, extremamente decisivo, não tem medo, enfrentando situações muito complicadas. Nesta oração pedimos que ele continue sendo corajoso”, completou o arcebispo.

Luciana Penha disse que Sérgio Moro não deu entrevista, mas no evento falou por dezessete minutos. E explicou por que decidiu participar do ato interreligioso. Às tantas, ele disse que era um prazer estar ali naquela união de religião com combate à corrupção. A lei valia para todos, afirmou, antes de agradecer a Irivaldo Souza pelo evento. Os representantes das seis religiões que participaram do ato redigiram “A Carta de Maringá contra a corrupção”, que entregaram a Moro, finalizou Luciana Penha.

Ninguém mencionou o caso envolvendo Irivaldo Souza, que teve a participação do então secretário da Fazenda de Maringá, Luiz Antônio Paolicchi, assassinado em outubro de 2011. Seu corpo foi encontrado amarrado dentro do porta-malas de um carro e com dois tiros. Em entrevista ao O Diário, de Maringá, Vagner Eising Ferreira Pio, que se disse mentor do assassinato — segundo o jornal, orientado por seus advogados, que fizeram questão de acompanhar e gravar toda a entrevista —, afirmou que o advogado do Daniel Dantas (banqueiro) teria aconselhado o ex-secretário a firmar uma união estável entre eles por questões patrimoniais.

Acordo branco

O caso nunca foi esclarecido. O que se sabe é que no dia 7 de março de 2001 o ex-governador e senador do Paraná Álvaro Dias protocolou, na Vara Federal Criminal de Maringá, solicitação para que lhe fosse fornecida uma cópia do depoimento prestado à Justiça Federal por Paolicchi. O juiz federal substituto Anderson Furlan Freire da Silva deferiu o requerimento. Igual pedido havia sido encaminhado à Vara Criminal no dia 5 de março de 2001 pelo governador Jaime Lerner e também obteve resposta positiva do magistrado. O que o ex-secretário disse não foi revelado.

Sabe-se também que em 1994, na sucessão do governador Roberto Requião (PMDB), Lerner, o candidato da direita, enfrentava um franco favorito Álvaro Dias. Um esquema financeiro forte foi montado pelos empresários Mário Celso Petraglia e Atilano de Oms Sobrinho, da empresa paranaense Indústrias e Construções (INEPAR). Utilizando-se do prestígio nacional e internacional da empresa, e da reconhecida habilidade de Petraglia para construir operações financeiras intrincadas, levantaram um “papagaio” numa off-shore no Uruguai. Assim, com um caixa razoável, começou a campanha vitoriosa.

Petraglia foi uma das personagens centrais da CPI dos Precatórios, operação nascida de dentro do Banestado como incubadora de desvios do Bradesco e de alguns pequenos bancos liquidados pelo Banco Central (BC) no rastro das denúncias dos então senadores Vilson Kleinubing (PFL-SC) e Roberto Requião (PMDB-PR). Lerner entregara-lhe o Banestado. Em 1998, Lerner fez um “acordo branco” com Álvaro Dias. Candidato ao Senado, ele não apoiou Requião, adversário de Lerner que, buscando a reeleição, não lançou candidato ao Senado. Em 2002, no segundo turno, contra Requião, Lerner abriu seu voto em favor de Dias. Perderam ambos.

Prévia da Lava Jato

Esse caso praticamente não apareceu na mídia; ficou restrito ao noticiário local. O “caixa dois” não era tão visível como ficou após as farsas do “mensalão” e da Operação Lava Jato, apesar de ser público e notório — inclusive na Petrobrás, conforme relata um documento interno da empresa de 2000, mostrado no livro A mentira das urnas —, como demonstram os relatórios de várias CPIs da década de 1990.

Mas Sérgio Moro já estava atuando nesse meio. Antes da aprovação, em 2013, da lei que regulamentou a “delação premiada” ele se utilizou desse instrumento, em 2004, para reduzir a pena do doleiro Alberto Yousseff no caso envolvendo o empresário e ex-deputado estadual paranaense Antônio Celso Garcia, o Toni Garcia (do então PMDB), acusado de crime contra o Sistema Financeiro Nacional com a falência do Consórcio Nacional Garibaldi. Moro foi acusado de agir com arbitrariedade e abuso de autoridade com todos os advogados e de ter concedido imunidade a criminosos com a homologação de acordos de delação.

Ele usou esse instrumento também no caso Banestado, uma espécie de prévia da Operação Lava Jato. Foi ali que os procuradores e policiais aprenderam a usar os acordos de delação e a cooperação com outros países, sobretudo os Estados Unidos. Um deles, Carlos Fernando dos Santos Lima — que ficaria famoso na Lava Jato —, protagonizou, em 2003, uma cena descrita pela revista IstoÉ como um tour de force nos Estados Unidos para que a documentação da quebra de sigilo de várias contas, realizada pelo escritório da Procuradoria Distrital de Manhattan, não viesse à luz. Ele teria na gaveta um dossiê detalhadíssimo sobre o caso Banestado que recebera em 1998 — sua esposa, Vera Lúcia dos Santos Lima, trabalhava no Departamento de Abertura de Contas da filial do Banestado, em Foz do Iguaçu.

Em 2010, a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começou um julgamento só encerrado em 2013 em que foram contestados atos de Moro na Operação Banestado. As contestações foram encaminhadas ao Conselho Nacional de Justiça, onde a apuração foi arquivada. Gilmar Mendes disse, à época, que o caso mostrava um “conjunto de atos abusivos” e “excessos censuráveis” praticados por Moro. “São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior”, escreveu o ministro no acórdão da decisão, que resumiu o debate do julgamento.

Josef Mengele

O juiz federal Fausto Martin De Sanctis também criticou Moro por fazer, segundo ele, acordos de delação em que se fixava de antemão o benefício que o réu receberia. Um caso assim aconteceu com o megadoleiro Hélio Laniado, liberado após permanecer preso por 420 dias com a assinatura de acordo de delação premiada. Esse tipo de acordo já havia beneficiado também doleiros conhecidos pela Lava Jato, como Antônio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, e o próprio Alberto Youssef.

Delegados da Polícia Federal (PF) — muitos dos que atuaram na Lava Jato tiveram atuação político-partidária descarada — que conheciam os negócios de Laniado disseram que ele trabalhava para bancos e grandes empresas, segundo uma matéria do jornal Folha de S. Paulo. Laniado foi preso quando desembarcava no aeroporto de Praga, no dia 16 de agosto de 2005, de um voo vindo de Israel. Ele fugira para lá, onde havia obtido cidadania israelense após a Justiça Federal decretar a sua prisão. A Folha disse que foi o serviço secreto de Israel, o Mossad, que informou à Interpol que Laniado estava no avião, segundo dois delegados da PF.

Não se sabe bem por que o Mossad dedurou Laniado — um dos delegados levantou a hipótese de que poderia ser gratidão pelo esforço da PF brasileira em esclarecer o caso de Josef Mengele, o carrasco nazista cuja ossada foi descoberta em 1985 e posteriormente identificada, conforme a matéria. Moro, segundo a Folha, disse que não podia comentar o caso porque o processo e a decisão de liberar Laniado estavam sob segredo de Justiça.

Luzes da ribalta

Em 2010, cento e onze brasileiros foram investigados pela PF, acusados de enviar ilegalmente US$ 2,2 bilhões para uma agência do Israel Discount Bank, em Nova York, entre 2000 e 2005. O valor foi apurado pela promotoria de Nova York numa investigação sobre lavagem de dinheiro em decorrência dos casos do Banestado, Merchants Bank e Beacon Hill, todos usados por doleiros brasileiros.

Conforme informações da Folha de S. Paulo, a apuração demorou cinco anos para ouvir os suspeitos. Em 2006, a Justiça brasileira recebeu da promotoria de Nova York informações sobre 221 contas do Israel Discount Bank supostamente de brasileiros. Só em 30 de agosto de 2010 Moro mandou instaurar 111 inquéritos. Não há notícia, na mídia, dos seus resultados. No caso das delações e de depoimentos de muitos investigados na Operação Lava Jato que denunciaram esquemas de “caixa dois” — como o empresário Eike Batista e o “marketeiro do PT” João Santana —, nem inquéritos foram instaurados.

O jornal Público, de Portugal, publicou uma matéria sobre a Lava Jato, em 9 de agosto de 2015, e, às tantas, citou um artigo do então coordenador da Federação Nacional dos Petroleiros, Emanuel Cancella, dizendo que “a esposa do juiz Sérgio Moro, que está à frente da operação Lava Jato, advoga para o PSDB do Paraná e para multinacionais do petróleo”. “A denúncia foi publicada no Wikileaks”, teria dito o sindicalista. A matéria afirma, também, que Deltan Dallagnol, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, “é um evangélico engajado da Igreja Batista” e “busca as luzes da ribalta”.

– Lula, a Venezuela e as atas da discórdia da mídia fascista – NOTÍCIAS COMENTADAS

Levante mundial da direita contra a democracia na Venezuela demonstra a extensão nazifascista do projeto neoliberal, com sérias consequências para o projeto de governo do presidente Lula.

Força que cresce: o 22º Congresso da União da Juventude Socialista (UJS)

Giovana Mondarto, Leila Márcia, Jorge Panzera, Marcelo Gavião, Tiago Morbach, Bruna Brelaz, Luciana Santos, Rafael Leal e André Tokarski

Por Osvaldo Bertolino

A consigna “manhãs de sol e socialismo” se amoldou perfeitamente ao ato político do 22º Congresso da União da Juventude Socialista (UJS), no domingo 28 de julho de 2024. Depois de três dias de intensos debates na Universidade Paulista (Unip) da Vila Guilherme, zona Norte de São Paulo, os delegados foram para o Sonora Garden, espaço de show pertentente à Associação Portuguesa de Desportos, para as atividades de encerramento do Congresso. Sob o sol radiante, a juventude cantou e dançou até o início do ato, num clima de entusiasmo e de revigoramento do ideal socialista. Por todos os lados se via a diversidade brasileira, com suas caras e sotaques, sorrisos e esperanças.

Discursaram, antes de Luciana Santos, presidenta do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), os ex-presidentes da UJS Leila Márcia, Jorge Panzera, Wadson Ribeiro, André Tokarski, Ricardo Alemão Abreu, Marcelo Gavião e Tiago Morbach. Falaram também os vereadores da UJS, eleitos pelo PCdoB, Giovana Mondarto (Criciúma, Santa Catarina), Giovani Culau (Porto Alegre, Rio Grande do Sul) e Walkiria Nictheroy (Niterói, Rio de Janeiro). Todos destacaram o relevante espaço que a UJS conquistou nos seus quarenta anos de existência, uma organização que esteve presente em todos os eventos políticos desse período.

Leia tambpem:

As carinhas da UJS e o amanhã que canta

Segundo Luciana Santos, “a UJS, mais uma vez, revelou um vigor enorme”. “É com essa alegria que a gente pode fazer luta política à altura dos desafios do nosso tempo. Mais uma vez a juventude revela juízo e muita visão de perspectiva, reafirma o socialismo como perspectiva de sociedade e sabe que no momento precisamos lutar para garantir o êxito do governo Lula, com vistas a novamente derrotar a direita em 2026 e fazer a tarefa de casa de 2024, que é eleger muitos camaradas por esse país afora nas câmaras de vereadores.”

Rafael Leal, presidente da UJS, avaliou o Congresso como um momento privilegiado do debate político nacional. “Na abertura, relembramos a Guerrilha do Araguaia, lembrando os quarenta anos da UJS. Recarregamos as baterias e reajustamos a nossa linha para os próximos dois anos. Trouxemos todos os estados. Foi um grandioso Congresso dos quarenta anos da UJS”, afirmou. Segundo o ele, o Congresso tirou uma Resolução política, apontando o desafio central do próximo período: a luta contra o fascismo e pela reconstrução do Brasil. “Além disso, a gente tem apontado uma plataforma mínima dos jovens socialistas para ser defendida nas eleições municipais deste ano.”

Rodinhas    

Numa das muitas rodinhas, estava uma das caçulas da UJS, Luiza Castro de Jesus, da cidade de Santos, de catorze anos de idade. Ela disse que chegou à UJS por influência do pai, militante da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), e da mãe, sindicalista. “A UJS é legal. Eu gosto da sua proposta”, resumiu.

Ao seu lado, Julia Sacramento Monteiro, de dezoito anos de idade, também de Santos, militante da UJS há três anos, disse que o Congresso foi mais um momento de aprendizado. “Me interessei pela UJS na escola e no trabalho de bairro que seus militantes fazem. Abracei a causa e foi muito bom. O Congresso foi mais uma grande experiência. É muito bom a gente trazer novas pessoas para se apaixonar pela UJS, como eu me apaixonei. É conquistando mentes e corações que a gente constrói a revolução”.

Michele dos Santos Souza, de dezenove anos de idade, também de Santos, com quase três anos de militância na UJS, disse que militar na organização é “incrível”. “É uma juventude que me forma, desde que comecei a militar, na escola, que pensa na transformação da nossa sociedade. Então, ela tem muito a ensinar aos jovens. São quarenta anos de uma grande história, de mudanças. Conheci a UJS quando minha escola estava sendo militarizada e a gente impediu a militarização. Lembro que chorava quando se falava que a minha escola seria militar. E a UJS fez parte disso.”

Ao lado, João Vitor Padovezi, de dezenove anos de idade, disse que veio de Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, para participar do Congresso de “uma juventude literalmente revolucionária, que vai mudar o Brasil”. “Estou amando o Congresso, porque é tudo que eu imaginava e mais um pouco. O sonho de revolucionar o Brasil aumenta cada vez que eu participo de debates como os desse Congresso”, afirmou. Com ele estava Matheus Carrieri, de dezessete anos de idade, do Itaim Paulista, zona Leste paulistana. Disse que está chegando agora na UJS. “Estou muito empolgado, conhecendo gente nova, com ideias bacanas.”

Mais adiante, em outra rodinha, Pedro Diniz, de Salvador, Bahia, estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse que está na UJS desde 2016. “Me filiei na calada do golpe de Dilma, impulsionado pela necessidade de se organizar, enquanto juventude”. “Cada um com suas particularidades, mas compartilhando o sonho comum de mudar os rumos do nosso país. Fazer com que a juventude paute o seu futuro”, resumiu. “O Congresso é incrível, um momento em que a gente renova nossas esperanças e tem a certeza de que realmente a gente está construindo um projeto mais acertado, com a política mais alinhada, mais organizada, com mais potencial para conquistar corações e mentes pelo Brasil.”

Também de Salvador, Osni Guimarães, militante da UJS desde 2017, igualmente estudante de Direito da UFBA, disse que militar na organização é como estar numa escola de formação. “Quando vi a luta da UJS, me apaixonei de cara. Para mim é uma grande alegria e hoje sou coordenador de um núcleo na UFBA. Temos caminhos muito grandiosos pela frente. Esse Congresso é grandioso, com muito debate político.”

Maurício Borges Vieira, de vinte e um anos de idade, estudante de Biologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), milita na UJS há quatro anos. “A UJS é um movimento muito importante para a formação política. Ainda mais quando vejo que a sociedade faz questão de afirmar que eu sou um homem preto. E sempre lembro de vários escritores que também são pessoas negras e falam muito sobre isso. E nesse processo para entender como corpo político, entrei na UJS. Me encontro num processo de formação incrível, de poder discutir socialismo, comunismo, na percepção da juventude.”

Jamile Almeida dos Santos, de vinte e quatro anos de idade, membra da direção da UJS na UFRB, onde estuda Engenharia Sanitária, disse que a organização é importante para inserir a juventude no debate político e mudar os rumos do país.

Kauany Serra, de dezessete anos de idade, de São Luis, Maranhão, disse que a UJS é “um movimento muito bom”. “A partir do momento que entrei, me apaixonei”, resumiu. Com ela estava Ketllen Alves, de dezessete anos de idade, também de São Lauis. Ela disse que a UJS “é uma coisa muito boa, porque luta pelos direitos da juventude”.

As carinhas da UJS e o amanhã que canta

Por Osvaldo Bertolino

Na tarde da sexta-feira (26), palestrei numa sessão do XXII Congresso da União da Juventude Socialista (UJS) sobre os quarenta anos da entidade. Falei com base no livro que escrevi sobre seus trinta anos, que agora estou atualizando, numa edição revisada e complementada por mais dez anos. A previsão é de que até o final deste ano teremos o livro publicado. Comigo na mesa, mediada por Alinne Martins, estavam Leila Márcia e Ricardo Alemão Abreu, ex-presidentes da UJS.

Foi comovente ver a plateia atenta, puxando palavras de ordem, uma diversidade de carinhas que expressava a diversidade brasileira, imagens que me acompanharão vivamente pela vida. Disse a eles que em suas carinhas estava o futuro do mundo, a continuidade do ideal de emancipação da humanidade. Falei da história da juventude brasileira, que entrou na cena política quando o corsário francês Jean François Du Clerc foi expulso do Rio de Janeiro, em 1710, depois de aportar na cidade com seis navios e mil homens de guerra.

Lembrei o papel da juventude nas lutas independentistas, abolicionistas e republicanas, uma evolução que passou pelas mobilizações sindicais do início do século XX e o início de um novo ciclo com a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922. Naquela conjuntura, despontava no horizonte o nazifascismo sombrio, fazendo contraste com o raiar de um novo tempo pelo socialismo que emergiu na Revolução Russa de 1917. Era o auge da crise do capitalismo, que levaria à quebra da bolsa de Nova Iorque e mergulhou o mundo na mais sinistra depressão da era moderna.

Mundo de paz

De passagem, premido pelo tempo, falei que os comunistas deram forma e perspectiva às aspirações da juventude. Foi um resumo da formulação do Partido Comunista do Brasil de que a juventude era uma das principais vertentes da militância comunista, um movimento que crescia por conta das ameaças de guerra e do exemplo da Primeira Guerra Mundial, que ceifou a vida de milhões de jovens. No Brasil, havia um componente a mais: o carcomido regime da República Velha, que começava a ruir estrepitosamente, enfrentava movimentos de contestação, a exemplo dos levantes dos “tenentes” em 1922 e em 1924, que desaguariam na Coluna Prestes e na Revolução de 1930.

O confronto foi inevitável, levando a juventude a novamente se levantar para combater o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Daquela experiência sangrenta surgiu novas compreensões sobre a luta de classes em âmbito mundial e os perigos para a juventude, que logo seria desafiada por novas conflagrações geopolíticas do imperialismo, como foi a Guerra da Coreia, quando o Brasil esteve perto de se envolver diretamente em mais uma carnificina, com a campanha dos setores dominantes pelo envio de jovens para aquele conflito que dizimou mais de quatro milhões de vidas.

Falei disso resumidamente para lembrar que um mundo de paz exige a luta pelo socialismo. A juventude organizada daquele tempo tinha plena consciência disso e foi às ruas para combater o avanço da ideologia da violência. Quando os violentos triunfaram, com o golpe militar de 1964, encontraram pela frente os jovens combativos, animados pelas revoluções socialistas que cintilaram na China em 1949 e em Cuba em 1959. No meio, mais uma sangrenta guerra imperialista, agora no Vietnã. A resistência democrática, no Brasil, chegou à luta armada, com destaque para a Guerrilha do Araguaia.

Vigor da juventude

A UJS surgiu, em 1984, em meio ao vendaval que estava enterrando a ditadura militar. Consequentemente, legou as esperanças e o espírito de luta da juventude revolucionária. Com esse rumo, passou, de forma altiva, por jornadas memoráveis, atravessando o projeto neoliberal e seus intentos golpistas, inclusive na defesa do ciclo de governos democráticos e progressistas dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef. O processo de enfrentamento com os golpistas e o governo bolsonarista deu à UJS novas experiências e reforçou seu ideal socialista.

Ao fazer esse resumo, vi naquelas carinhas o vigor da juventude brasileira desde a expulsão do corsário francês Jean François Du Clerc. Mas vi, sobretudo, a certeza de que é a luta pelo futuro que move o mundo. Lembrei as últimas palavras de Gabriel Peri, do Partido Comunista Francês, antes de ser fuzilado pelos nazistas: “Se tivesse que recomeçar a vida, seguiria o mesmo caminho. Esta noite creio mais do que nunca que o meu camarada Vaillant-Couturier (fundador da Casa de Cultura da França) tinha razão ao dizer que o comunismo é a juventude do mundo. Vou para preparar esse amanhã que canta.”

ESPECIAL: Trinta anos do Plano Real – O outro lado da notícia

A herança maldita do Plano Real

Plano Real: Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa

O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia

O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

FHC: a face da corrupção do Plano Real

O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

A visão do PCdoB sobre o Plano Real

– A visão do PCdoB sobre o Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

O plano de “estabilização da inflação” de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Plano Real, era o “esboço prático” de um projeto global, definiu o então vice-presidente Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Renato Rabelo. “Significa que esse novo governo das elites não será diferente dos precedentes.” A tentativa de juntar duas correntes dos setores dominantes – o “liberalismo” e a “social-democracia” – era um jogo de palavras, demagogia para salvar as aparências e tinha o mesmo efeito “de apresentar um círculo como se fosse um quadrado”.

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O Plano Real contra a soberania nacional

Era a expressão da aliança do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), surgido das entranhas da estrutura partidária que apoiou a ditadura militar. Estava no cerne dessa configuração partidária a semente da “reforma política”, o controle autoritário do debate político, tese que ficaria conhecida como “Plano Real na política” para confinar a representação dos votos em poucos partidos, alijando a participação do povo, restringindo a democracia. Seria o fortalecimento de partidos sem cor e com programa descartável, conformado para eleições, a serviço dos donos do poder e do dinheiro.

A reunião do Comitê Central do PCdoB nos dias 12 e 13 de novembro de 1993 avaliou que a conjuntura das eleições presidenciais de 1994 exigia candidatura única do campo democrático e progressista para enfrentar mais uma dura ofensiva do neoliberalismo. O PCdoB procurava a unidade em torno de uma plataforma comum. Seria a maneira mais eficaz para enfrentar as classes dominantes e levar uma candidatura popular à vitória.

Ataques indiscriminados

FHC, nomeado ministro das Relações Exteriores pelo presidente Itamar Franco, assumiu o Ministério da Fazenda em maio de 1993 e unificava quase toda a direita, condição que afastou definitivamente o PCdoB do governo, do qual havia se aproximado diante das promessas de que o projeto neoliberal ostentado por Fernando Collor de Mello, deposto pelo impeachment de 1992, não teria continuidade. A relação vinha abalada desde a venda da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 2 de abril de 1993, inaugurando o ciclo das privatizações selvagens do projeto neoliberal, justificada por Itamar como inevitável por já estar programada.

Em nota, o PCdoB afirmou que o presidente dependia do Congresso, de maioria conservadora, devido à situação especial em que chegou ao Planalto, mas não concordava com as concessões à antiga política de Collor. Rejeitava ataques indiscriminados a Itamar, sem ceder na exigência de soluções dos problemas que afligiam o povo, da necessidade de união a fim de enfrentar a crise e conduzir o país no rumo da retomada do desenvolvimento, da soberania, da superação da miséria, da garantia das liberdades democráticas e da independência nacional.

Estava em curso um astuto jogo midiático que ocupou o espaço do debate político para derrubar o favoritismo de Lula, que vinha bem à frente nas pesquisas de intenções de votos. O PCdoB, que havia lançado um manifesto conclamando os partidos de esquerda e progressistas a se unificarem em torno de uma candidatura, passou a ser duramente atacado. FHC puxou o coro para se defender das consequências da aliança com o PFL, acusando os comunistas – com quem se aliara nas eleições para senador em 1978 e prefeito de São Paulo em 1985 – de “totalitários”.

As articulações oposicionistas resultaram na Frente Popular, Democrática e Nacional, lançada em 21 de abril de 1994, um passo para a ampliação da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Tratava-se de um processo eleitoral que refletia o quadro de crise multilateral que o Brasil atravessava e as dificuldades das classes dominantes para aplicar o projeto neoliberal.

Núcleo forte de esquerda

Segundo Renato, o susto que tomaram em 1989, quando Lula chegou perto da vitória, não se repetia em 1994, com o candidato da esquerda consolidado na liderança das pesquisas. “Atualmente, eles vão encontrando Fernando Henrique como alternativa para enfrentar a candidatura popular. Se utilizam dos tais predicados do Fernando Henrique, homem honesto, que veio da esquerda, um tipo ideal para as classes dominantes.”

Apesar do favoritismo de Lula, Renato entendia que a disputa seria muito difícil. “A candidatura popular vai encontrar dificuldades muito grandes, porque as elites vão fazer de tudo para barrar seu avanço. Não podemos pensar que será fácil a vitória ou que iremos facilmente ao segundo turno, conseguindo derrotar o candidato das forças reacionárias. Achamos que vai ser uma campanha muito dura. Eles vão investir pesado”, alertou.

Cabia às esquerdas e às forças progressistas se unirem, segundo Renato. “Nós pensamos que a candidatura popular deve ter um núcleo forte de esquerda, mas também audácia para ampliar e construir alianças com outras forças. Não temos a visão de que a candidatura popular deva ficar só nos marcos da candidatura de esquerda. Pelo contrário. Com base nesse núcleo, devemos buscar outras forças políticas e sociais. Não só partidos, mas também personalidades políticas de expressão.” A conclamação do PCdoB por candidatura única foi bem aceita. Apenas o PDT não deu resposta positiva, preferindo lançar Leonel Brizola.

Exclusão e marginalização

Renato chamou a atenção para o papel dos Estados Unidos como superpotência unipolar, centro do projeto neoliberal representado pela candidatura FHC. A reestruturação e o ajuste que o capitalismo procurava fazer determinavam a relação entre países dependentes e ricos como contradição mais importante.

Ele alertou para as consequências da política neoliberal, que trazia em seu bojo exclusão e marginalização de parcelas cada vez maiores da sociedade, como mostravam os exemplos do México e da Argentina, países que atravessavam graves crises econômicas e sociais. O Brasil também já vivia uma realidade social grave, com uma crescente parcela de desempregados e marginalizados, e teria uma situação explosiva caso o projeto neoliberal vencesse, alertou. O cerco e as pressões do imperialismo para enquadrar o Brasil em seus planos eram crescentes.

Aquele objetivo motivava a busca incessante da classe dominante brasileira por um novo “engate” internacional e chegava às submissões mais vergonhosas. “Tais reformas seguem receituário semelhante ao da Argentina, do México, do Chile etc. Em resumo, são assim definidas: diminuição do Estado, privatização das empresas estatais, liberalização e flexibilização das relações trabalho-capital (ou seja, a negação de importantes conquistas sociais), rápida liberalização do comércio exterior e ‘parcerias’ internacionais ou nova associação com o capital estrangeiro.”

O “ajuste” perseguido, continuou Renato, mantinha a trilha das deformações do capitalismo brasileiro, elevando e aprofundando a dependência do país. “Este tipo de ajuste gera um cenário de maior desigualdade social, com o aumento das camadas excluídas do processo econômico e a concentração ainda maior do poder de consumo. A fim de garantir os compromissos de uma dívida externa impagável, o país se submete às exigências de enormes reservas de moedas fortes (à custa de quem?) impostas pelo capital financeiro internacional, para dar garantias aos credores e lastro que possa estabilizar uma nova moeda.”

Grande susto

A formação de um bloco de forças que atualizasse as bandeiras democráticas, em defesa dos direitos das grandes massas, seria a resposta àquela situação, a continuidade do projeto de cunho popular, agora assentado em base social mais ampla e numerosa, prosseguiu Renato. Após o declínio do regime militar, boa parte dessas forças, antes amordaçadas e reprimidas violentamente, colocou-se em movimento, participando do processo de democratização política, da vitória da anistia, da convocação da Constituinte, dos êxitos na elaboração da Constituição de 1988, da grande mobilização pelas Diretas já! e da vitória da luta pelo impeachment de Collor.

Na sucessão presidencial de 1989, contando com um programa que começou a articular as bandeiras do campo popular e progressista, por meio da Frente Brasil Popular, as forças populares quase obtiveram a vitória, registrou. “As classes dirigentes foram tomadas de grande susto. Não esperavam tal desfecho e tiveram de convergir todo seu poder à candidatura Collor.”

Com aquele histórico, disse Renato, a sucessão presidencial de 1994 só podia ser compreendida a partir das raízes e características da evolução histórica do Brasil. Ela não estava desligada do processo de contradições políticas e econômico-sociais em curso, sobretudo após a Nova República. Havia uma nova crise conjuntural, marcada pelas particularidades daquele momento eleitoral. “A polarização político-econômica resulta de um processo de concentração de rendas cada vez maior”, analisou.

Era uma lógica do capitalismo, própria de sua essência, porque a globalização da economia só avançava com uma centralização financeira. “A grande oligarquia capitalista no Brasil acabou se enquadrando na nova fase e busca outras formas de associação, tornando-se, assim, centralizadora do capital, dos meios de comunicação, do poder. Nesta realidade interna, não se projetam mais os tempos da Guerra Fria, a contradição Leste-Oeste. Nela se reflete outra contradição, a Norte-Sul, como consequência das imposições reestruturantes fixadas pelos países centrais, imperialistas, aos países periféricos, dependentes, que têm de se submeter a relações cada vez mais desiguais.”

Credo neoliberal

Segundo Renato, o acirramento da polarização desencadeou o impasse. Havia uma encruzilhada, que se revelava, em termos gerais, na contraposição de dois projetos: ou prevalecia o caminho neoliberal, “que deteriora intensamente a grave situação social e submete o país à nova ordem mundial imperialista, ou a resistência na busca de um novo caminho, de base nacional, democrática e popular, que concretize, no plano interno, ampla coalizão de forças política e sociais, e, no plano externo, a formação de uma frente dos países e povos dependentes, pela retomada do desenvolvimento com independência e progresso social”.

Aquele quadro de crise e confronto de dois projetos definiria a sucessão presidencial, disse Renato. Depois do susto de 1989, as classes dominantes tudo faziam para amainar suas próprias desavenças políticas e regionais. “Articulam-se nervosamente na busca de um personagem contra Lula, esforçando-se para chegar a um candidato único, no qual pretendem concentrar todo o seu poderio”, afirmou.

As oligarquias mais poderosas encontraram seu escolhido na pessoa de FHC, que, convertido ao credo neoliberal, agia como um “cristão novo”, resumiu. “Tem de aprovar seu plano atual, que já encampa o artifício da dolarização, a última palavra em matéria de planos encomendados ao FMI para países da América Latina.”

Renato alertou que a candidatura de FHC, apresentada como de centro-esquerda pelas elites, moldada com a ênfase no seu passado de intelectual de prestígio e de esquerda, não deixava de ser burlesca. “Acabam admitindo o prestígio da esquerda, apesar da manipulação pela permanente propaganda em contrário. Dessa maneira, a fina flor dos setores mais ricos de nossa sociedade, em parceria com seus cupinchas externos (segundo o jornal Financial Times, FHC é o favorito dos ‘mercados’), monta um perfil farsante”, enfatizou.

Além de uma exclusão social sem precedente, continuou Renato, a propalada “modernidade” resumia-se à competição na era dos oligopólios, dos conglomerados gigantes. “A disputa está situada nessa escala”, disse. “A mídia internacional, porta-voz do capital, não esconde sua preferência por Fernando Henrique. E as viúvas da ditadura e os setores reacionários falam abertamente da necessidade de usar todos os meios para impedir ou ‘prevenir’ o êxito da esquerda”, disse.

A candidatura popular refletia o nível da polarização política e sintetizava a fisionomia da corrente histórica democrático-popular que vinha se construindo, principalmente após 1930. “A proposta defendida pelo Partido Comunista do Brasil de forjar uma ampla frente nacionalista, democrática e popular, que garanta e, ao mesmo tempo, vá além da vitória eleitoral, é justa e responde às necessidades atuais”, defendeu Renato. “Para alcançar o resultado favorável, é preciso ir além dos marcos de uma única força partidária. Precisamos aprender com a história”, concluiu.

Ameaça à democracia

O PCdoB avaliou a vitória de FHC como ameaça à democracia. A Resolução política do IX Congresso, de 1997, alertou para esse risco. As políticas neoliberais estavam no centro do diagnóstico da realidade mundial e brasileira. “Estas constituem flagrante ameaça à democracia, aos direitos dos trabalhadores e dos povos e à soberania nacional da grande maioria dos países, conformando um período histórico de regressão de todas as conquistas democráticas, sociais e culturais da civilização”, disse Renato

Segundo ele, o neoliberalismo tem nos Estados Unidos, precursores e principais beneficiários da política de flutuação da moeda desde 1973, o centro da liberalização e da desregulamentação financeira e cambial. “A política monetária estadunidense passou a ser, em última instância, a reguladora do mercado financeiro mundial instável e descontrolado, liquidando a possibilidade de uma política econômica e financeira autônoma para a maioria dos países do mundo.”

Cabia ao Partido, disse Renato, trabalhar por uma plataforma contra o neoliberalismo. “Lutamos, sim, pela definição de uma plataforma ampla e consequente. Neste momento, o esforço que empreendem os quatro partidos de esquerda (PCdoB, PT, PDT, PSB) na elaboração de uma plataforma comum antineoliberal é a justa conduta a trilhar”, afirmou. A ideia, segundo Renato, era formar uma frente que unisse os partidos de esquerda, intensificasse a luta política de massas e isolasse ao máximo os blocos aliados a FHC.

Denúncias de corrupção

Renato tomou a frente de um processo político que teria decisiva consequência nas eleições presidenciais de 1998 e de 2002. O PCdoB vinha conversando com os partidos de oposição para transformar os protestos que se levantaram contra o neoliberalismo num movimento unitário. Foi quando surgiu a ideia de formação da chapa com Lula candidato a presidente e Brizola, vice. “Eu e o Amazonas (João Amazonas, então presidente do PCdoB) conversamos com o Brizola, essa questão de ser o vice”, recorda Renato.

A chapa Lula-Brizola era uma opção real de poder, “um novo modelo para a sociedade e a economia brasileiras”. “Modelo que privilegia os trabalhadores, os setores produtivos e a ampla maioria da população. Modelo constituído por um governo pluripartidário, de base popular, apoiado pelos mais diversos segmentos da nação e na democratização crescente da vida nacional”, disse. “Devem ser consequentes nas denúncias e indignação com o entreguismo deslavado do governo FHC e a grave crise social por ele gerada. Desmascarar as falsidades divulgadas pela propaganda chapa branca do pensamento único.”

Enquanto a oposição se organizava, a direita se movimentava para manter FHC no poder. Num processo marcado por denúncias de corrupção, o Congresso Nacional aprovou a emenda constitucional que instituiu a reeleição para presidente da República e governador. Mas o agravamento da crise mundial jogava contra as ambições de FHC. A economia, dominada pela agenda neoliberal, enfrentava verdadeiros dramas na Ásia e na América Latina.

Em meados de 1998, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa do instituto Datafolha de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico. A mídia entrou em cena com ataques a Lula num ponto sensível: a política econômica. FHC seria reeleito no primeiro turno.

Logo depois, o governo fechou o primeiro acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mergulhando o país numa era de incertezas, inclusive institucional. Segundo Renato, as eleições tiveram uma característica forte de tentativa de despolitização e desideologização, feita pelas classes dominantes. “Contra essa tendência, houve um grande esforço de politização por parte do PCdoB, em especial das campanhas de nossos candidatos a deputado federal. Esse nosso esforço teve um resultado bastante favorável.”

FHC queria uma eleição silenciosa, sem mobilização e comícios, sem povo nas ruas, de acordo com Renato. Não houve sequer um debate nacional. “Foi uma eleição que decorreu em período extremamente curto, com um pequeno período de utilização de rádio e TV. Essa orientação governista nacional refletiu-se nas eleições estaduais, que também foram despolitizadas, abordando mais problemas localizados em cada área da Federação.”

Conto de duas cidades

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Renato lembrou a frase do romancista Charles Dickens, no livro Um conto de duas cidades, publicado em 1859 narrando uma história que se passa entre Londres e Paris no período da Revolução Francesa, para dizer que os resultados das urnas configuravam o “melhor” e o “pior” dos mundos para as distintas forças envolvidas. Ele avaliou que o resultado das urnas não fora de todo favorável ao governo.

Segundo Renato, as oposições registraram avanços no segundo turno para o governo de estados. “Um ‘terceiro turno’ vai mostrando seus contornos, com o aprofundamento da crise econômico-financeira, o início de um esgarçamento da base de apoio governista, gerando instabilidade que leva a um quadro de crise política, o ressurgimento das forças centristas com um discurso crítico ao governo FHC e as possibilidades de ampliação da frente oposicionista.”

Renato fez um minucioso relato do resultado geral das eleições e concluiu que a oposição tendia a se fortalecer. Era preciso localizar tendências e resultantes naquele quadro contraditório, observou. Tendo em conta a evolução da crise econômico-financeira, constatava-se o surgimento de um novo quadro político. “O segundo mandato de FHC já estará prenhe de ingrediente demolidor do primeiro, que se encerra. O cenário atual parece ser o de final de governo”, diagnosticou.

No fundo, delineava-se o crescimento da crise do sistema capitalista “globalizado” e seu impacto na crise em curso no Brasil, que já atingia a maioria da nação. “Esta realidade se reflete numa crise da própria concepção neoliberal, neste final de década”, avaliou Renato. “O resultado imediato será um processo depressivo de difícil reversão.”

Politicagem rasteira

Naquele cenário de rápida degradação econômica e social, FHC entregava-se à politicagem rasteira, desconsiderando a fronteira entre o público e o privado, segundo Renato. “Sobre ele se avolumam as suspeições acerca do processo de privatização, feito a toque de caixa. O governo usa todas as artimanhas para impedir que a sociedade comece a tomar conhecimento do que realmente acontece por trás dos rumorosos negócios das privatizações.”

Segundo Renato, o governo estava cada vez mais refém dos grandes magnatas financeiros e, mais uma vez, do FMI. “A sua lógica é pagar com presteza e em tempo aos investidores financeiros. Subsidiar banqueiros e, até mesmo, o capital especulativo”, falou. E mais: “Fernando Henrique rasgou a Constituição e torna-se cada vez mais autoritário. O presidente da República perde a credibilidade e vai predominando uma situação de ingovernabilidade.”

Colocava-se na ordem do dia a necessidade de fortalecer a unidade da frente oposicionista democrática e popular, consolidando “um amplo movimento em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho”. “Defendemos a substituição de FHC por um novo governo, de base democrática, patriótica e popular”, afirmou. “Vai ganhando convicção entre círculos cada vez maiores do povo de que é preciso Fernando Henrique estar fora do governo. Impõe-se a luta pelo fim mais rápido deste governo. Assim, é necessário mobilizar e conscientizar o povo para a denúncia contra o presidente da República por crime de responsabilidade, abrindo assim caminho para a vacância da Presidência e convocação de novas eleições através de medida constitucional.”

Regime ditatorial

Segundo Renato, para tornar realidade seu projeto antinacional e antipopular, o governo estava revogando, sucessivamente, em sua linha geral, a Constituição de 1988, como havia denunciado o renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Melo. “Toda Constituição tem, implícita ou explicitamente, uma linha geral. Na opinião de Bandeira de Melo, esse projeto neoliberal que foi adotado no Brasil é uma antítese dessa linha que constitui a espinha dorsal de nossa Constituição”, denunciou.

Além disso, prosseguiu Renato, FHC governava com medidas provisórias anticonstitucionais, “na opinião de parte dos juristas”. “Na realidade, o governo de Fernando Henrique vai edificando, progressivamente, o que vem sendo denominado por inúmeros juristas independentes de um regime ditatorial ‘constitucional’. As emendas constitucionais de FHC também são anticonstitucionais por ferirem o âmago da concepção de Estado subjacente à nossa Constituição de 1988.”

Com o aprofundamento da crise em todos os terrenos, FHC iniciou, na opinião de Renato, seu “novo” governo já envelhecido, numa situação de descrédito crescente diante da população e começo de erosão de sua base de sustentação política. “Não somente a crise desse modelo governista precipita as divergências entre os componentes de sua base, como também os objetivos próprios de cada setor que apoia o governo, por conquista de melhores posições e espaços políticos hoje, visando melhores condições de disputa nas eleições de 2002.”

A posição mais justa seria considerar que o governo tomara um rumo sem retorno, avaliou. “A política atual aprofunda o modelo neoliberal. A recessão imposta só vai agravar a crise social em curso, com o problema do desemprego, diminuição dos salários, aumento significativo da pobreza, falências de empresas. É preciso alertar a maioria do povo sobre a responsabilidade do governo federal por ter levado o Brasil à situação atual de retrocesso e de depressão econômico-social”, disse. “Hoje, FHC já não tem mais base de sustentação. Seu governo já nasceu morto. A base política dele entrou em erosão.”

Chantagem e intimidação

O Brasil precisava de novo rumo, de uma ruptura com aquela orientação política, de um projeto de mudanças que fosse capaz de promover a reconstrução nacional, a transformação social e a mais ampla liberdade política, indicou. “O país não aguentará mais uma metade de década de crescimento estancado e pode se tornar neocolonizado. Não se pode subestimar tamanho risco ao destino de nossa pátria. Agora, o governo FHC e seus cúmplices, apoiados em vastos recursos, sustentados por grandes interesses internos e externos, compram a cumplicidade e o apoio político, visando a manter sua base de sustentação, a retomar a iniciativa e a isolar a oposição.”

A subida de Lula nas pesquisas provocava verdadeiro sobressalto na seara do Planalto e dos grandes círculos financeiros internacionais. Começava a repetição da chantagem e da intimidação, a falácia de que a vitória da oposição traria o caos, afetando seriamente o investidor estrangeiro. “Tudo isso conduzido com grande estardalhaço pela mídia brasileira. As agências financeiras a serviço do grande capital transnacional decretaram que o Brasil aumentou de risco, rebaixaram a recomendação dos títulos brasileiros, pressionando assim para a retomada da alta dos juros já extremamente elevados”, denunciou Renato.

Eram as vozes do continuísmo, que passaram a pregar a surrada prédica do despreparo de Lula. “Porém, a verdade é que os dois governos de Fernando Henrique, com o acúmulo de seus desastres econômico e social, já não convencem a grande maioria do povo das ‘virtudes’ de sua estabilidade. Desta feita, o governo não conseguiu nem mesmo manter sua base política para o embate eleitoral de 2002. A candidatura Serra (José Serra, do PSDB) derrapa, vive uma crise de identidade, não sabendo como se apresentar: ou é continuidade ou é mudança.”

Carta entregue a FHC

O país enfrentava mais uma ameaça de crise cambial. “Essa orquestração continuou no mesmo diapasão num segundo momento, com o convite de FHC aos candidatos à Presidência da República para tentar comprometê-los com o acordo (com o FMI) e demonstrar que ainda governa”, disse.

No encontro, dia 19 de agosto, Lula entregou a FHC uma carta na qual dizia ser urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liquidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.

Renato denunciou que a mídia, como sempre comprometida com os grandes círculos financeiros, deitava loas sobre a “iniciativa democrática” do encontro dos presidenciáveis com FHC, afirmando que “a democracia está de parabéns”, que o evento foi uma demonstração de “maturidade política” e que o 19 de agosto foi um “dia histórico na vida republicana”, dentre outras coisas do gênero.

Segundo ele, a encenação, na prática, ficou restrita ao seguinte roteiro: FHC disse que todos os candidatos aceitaram o acordo; e todos os candidatos – evidentemente com a exceção do governista, José Serra – disseram que a responsabilidade pela situação atual é do governo e que é preciso outra política econômica. “Até mesmo Fernando Henrique confessou que mudaria também alguma coisa”, ironizou.

Por que aquele festival de fanfarronadas sobre “maturidade política”?, indagou Renato. “Na realidade, a crise que atravessa o país é muito, muito grave. FHC, com sua política neoliberal e seu profundo comprometimento com os grandes círculos financeiros internacionais e nacionais, levou o país a um grande impasse. O Brasil passou a viver uma situação de enorme vulnerabilidade externa, agravada com o quadro de crise financeira mundial, cujo centro hoje não é mais a periferia, mas a principal praça da economia e finanças mundial: os Estados Unidos.” A luta primordial era “pela busca de novo rumo para o Brasil”, resumiu.