Por Osvaldo Bertolino
Talvez nunca o nome de Jean-Luc Mélenchon tenha sido lido e ouvido no Brasil como nesse pós-eleições legislativa na França, encerradas no domingo (7). Tampouco se sabe exatamente quais são suas ideias e projeto político. Líder do partido França insubmissa, a possibilidade de sua indicação para o posto de primeiro-ministro vem gerando controvérsias à direita e à esquerda. Para o establishment constituído no período mais recente na França, Mélenchon está descartado.
O fundo da questão é a política monetária e econômica do presidente Emmanuel Macron, eleito sem apoio dos partidos políticos tradicionais, um representante do sistema financeiro internacional e, segundo dizem, do inteiro agrado do governo alemão. Contudo, suas políticas de “austeridade fiscal” são altamente rejeitadas e estão associadas ao percurso da ofensiva neoliberal que leva, frequentemente, multidões às ruas, demonstrando a combatividade sobretudo dos trabalhadores.
Um caso clássico se iniciou em 1988, quando Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, antecipou as dificuldades para o projeto neoliberal. “’A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros’”, afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira.
Termômetro social
A “reforma” da previdência, encaminhada pela maioria dos vizinhos europeus na década de 1990, virou a grande prioridade do segundo governo do presidente Jacques Chirac, reeleito em 2002. Ele quis aproveitar a maioria parlamentar para mexer num vespeiro, que faria o termômetro social atingir elevadas temperaturas: milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando as expectativas iniciais.
A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. ”As ruas não governam o país”, reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Europeia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a “reforma” da previdência voltou para a gaveta e seria aprovada somente no governo Macron, por meio de uma manobra legislativa, elevando significativamente a idade para a aposentadoria.
Para aprová-la, a primeira-ministra Elisabeth Borne, do mesmo partido de Macron, invocou um artigo da Constituição que permite ao líder do governo dispensar a votação de um projeto de lei em situações limite. Ou seja: por meio de uma “canetada” a “reforma” foi aprovada. Membros da oposição na Assembleia Nacional apresentaram duas moções de desconfiança contra o governo, que poderiam levar o gabinete de Borne à queda e a novas eleições, ambas derrotadas.
Déficit de democracia
O dilema francês é o mesmo de todos os países capitalistas – a “austeridade fiscal” que castiga o povo, essência do projeto neoliberal. Na Europa, as transmutações da social-democracia deram sobrevida a projetos políticos de direita, como o governo Macron, e abriram espaços para a galopante ascensão da extrema-direita. A região vive um clima de tesão com o ressurgimento de variadas formas de conflitos políticos.
O exemplo mais destacado são os programas de resgate financeiro, condicionados a “ajustes fiscais” rigorosos, despertando reações como a da Grécia, que voltou a exigir reparações da Alemanha pela destruição do país na Segunda Guerra Mundial. “Há um déficit de democracia e tecnocracia em excesso na Europa”, comentou recentemente André Freire, professor de Sociologia Política e de Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa, no jornal Público, de Portugal.
Ele argumenta que as organizações europeias não têm pedigree democrático. “A própria Comissão Europeia tem uma legitimidade democrática limitada, indireta, não eleita, que advém dos governos nacionais que, contudo, não são eleitos com um programa para a Europa”, sustenta. “A única instituição com legitimidade democrática é o Parlamento Europeu, que não tem iniciativa legislativa, não forma governo nem tem poder de censura sobre a Comissão”, avalia.
André Freire diz que os “populismos” são “como as dores para o organismo”. Ou seja: um sintoma da doença. “Não é por acaso que na Europa os mais desprotegidos são os mais céticos, porque são os perdedores”, sintetiza. “Os social-democratas abandonaram de algum modo as classes baixas, falam para nichos eleitorais das classes médias e para as elites urbanas”, diagnostica.
O Público cita o recrudescimento dos ataques do Norte ao Sul, como fez o ministro das finanças holandês, Jeroen Dijsselbloem, então presidente do Eurogrupo, ao dizer para o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung: “Não posso gastar o meu dinheiro todo em bebida e mulheres e depois disso ir pedir a vossa ajuda.” Esse estereótipo de um Sul preguiçoso vivendo às custas dos contribuintes do Norte emergiu quando as ajudas financeiras, primeiro para a Grécia e depois para a Irlanda, se sucederam em poucos meses em 2010.
A ideia de que nos países do Sul se trabalha pouco e se vive à custa dos contribuintes do Norte foi alimentada de forma agressiva na Alemanha, desde 2010, pelo tablóide de maior circulação, o Bild, informa a Agência France Press. Os “gregos falidos” foram, durante o período dos resgates, o alvo do jornal, que apresentava a questão de forma simplista: de um lado, estavam os gregos “que bebem grandes quantidades de ouzo (um tipo de bebida alcoólica), vivem com reformas douradas ou cometem fraudes fiscais nas suas ilhas soalheiras”; do outro, “os alemães, ‘que se levantam todas as manhãs, trabalham o dia todo” e têm sido durante anos a vaca que fornece leite à Europa, devido aos impostos que pagam”.
Vacas ordenhadas
Na imprensa grega, segundo o Público, a resposta passou por evocar o passado nazista da Alemanha e a sua ambição de dominar a Europa. A então chanceler Ângela Merkel e seu ministro das finanças, Wolfgang Schäuble, foram retratados em caricaturas envergando o uniforme nazista. Uma pesquisa divulgada pela revista Epikaira revelou que 77% dos gregos acreditavam que a Alemanha pretendia instituir um IV Reich.
Na Finlândia também houve manifestação semelhante à da extrema-direita alemã. Na campanha para as eleições legislativas de 2011, a obrigatoriedade de aprovação no parlamento de Helsinque de qualquer pacote de ajuda aos países da Zona Euro catapultou o tema para o centro do debate político e polarizou os discursos.
O aumento exponencial da base de apoio do partido de extrema-direita “Verdadeiros finlandeses” era um sinal de que o discurso preconceituoso pegara. “Aqui, no Norte, consideram-nos vacas que devem ser ordenhadas, mas temos algo a dizer e não vamos jogar dinheiro fora”, afirmou o líder do partido de extrema-direita, Timo Soini, que fez campanha sob o slogan Os finlandeses primeiro.
O diagnóstico preconceituoso de um Sul preguiçoso contaminou o discurso de figuras centrais da política europeia. “Em países como a Grécia, Espanha e Portugal, as pessoas não devem se aposentar mais cedo do que na Alemanha”, defendeu Ângela Merkel na campanha eleitoral em maio de 2011. “Todos temos de fazer esforço, isso é importante, não podemos ter a mesma moeda, e uns terem muitas férias e outros poucas”, comentou.
Guinada à esquerda
A tensão ganhou um tom mais acintoso em 2015, no processo de um novo acordo com a Grécia, nesta altura já liderado pelo Syriza de Alexis Tsipras, de esquerda, que acusara a Comissão Europeia de “terrorismo” e de “chantagem” sobre a população grega. A maioria dos alemães defendia a saída da Grécia do Euro e havia notícias de que o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble Schäuble, tinha proposto, no Eurogrupo, um Grexit – saída da Grécia da Zona Euro – temporário. Um acordo acabou por ser atingido, mas condicionado por um reforço das medidas de “austeridade fiscal” e uma lista de garantias adicionais para satisfazer os credores, incluindo um polêmico fundo de privatizações no valor de 50 bilhões de euros.
O acordo foi visto como “humilhação” do povo grego. O economista norte-americano Paul Krugman apelidou-o de “pura vingança” e, nas redes sociais, a hashtag #This is a Coup (Isto é um golpe de Estado) ganhou força no Twitter. O mal-estar estendia-se à oposição interna alemã, como ficou patente nas palavras de Reinhard Bütikofer, eurodeputado do Grupo dos Verdes: “A Alemanha cruel, ditatorial e feia volta a ter um rosto e esse é o de Schäuble”.
Esse debate está muito presente na França. Jean-Luc Mélenchon é um duro oponente do projeto neoliberal, mas algumas de suas atitudes têm despertado controvérsias, inclusive a recusa em caracterizar o grupo palestino Hamas como “terrorista”, posição que causou polêmica até no Partido Comunista Francês (PCF). Mas a questão principal tem sido suas atitudes divisionistas no campo da esquerda.
De passagem pelo Brasil em março de 2017, o filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo disse, em evento de lançamento do seu livro A Esquerda ausente, que havia um despertar da esquerda na Europa, mas ainda permeada de limitações teóricas. “A acho que, em todos os casos, ainda não compreenderam a fortaleza do ataque contra o Estado de bem-estar social. É um ataque furibundo, que requer uma resposta coordenada”, disse. Resta agora saber qual será o alcance dessa compreensão na França e o poder de unidade para enfrentar a poderosa onda neoliberal que se levanta no mundo capitalista contra a possibilidade de uma guinada à esquerda, que teria efeitos em escala planetária.