Gabriel Galípolo e os vendedores de “rabinho de coelho” no Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

A cadeira de presidente do Banco Central, nos moldes atuais, é lugar de autocrata. E o atual presidente, Gabriel Galípolo, incorporou essa prática, conforme tem se revelado numa série de entrevistas com próceres do Plano Real no Youtube para comemorar os sessenta anos do Banco Central e, segundo ele, trazer sorte para a sua gestão. Suas interações ultrapassam os limites da parcimônia e omitem as barbaridades daquela trupe contra o povo e o país.

Leia também:

A herança maldita do Plano Real

Plano Real: Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa

O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia

O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

FHC: a face da corrupção do Plano Real

O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

A visão do PCdoB sobre o Plano Real

Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa

Galípolo assume a “legitimidade” do cargo sem mandato constitucional e popular, apesar da controvertida decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a legalidade da “independência” do chamado “guardião dos valores do Brasil”, também designado como “autoridade monetária”, com a ressalva de que “é fato induvidoso que a questão da autonomia do Banco Central divide opiniões”.

Esse poder autocrático representa interesses muito bem definidos. Ele opera o principal mecanismo de controle da riqueza produzida, a circulação monetária. Quem controla o dinheiro, a mercadoria espelho de todas as outras, tem plenos poderes sobre as políticas do país, uma anomalia do Estado Democrático de Direito, que rege os programas de governo, inviabilizados quando sua essência são investimentos públicos em infraestrutura e políticas sociais.

Cenário sem horizonte

O controle do dinheiro é o cerne do poder capitalista, hoje na forma de remuneração por juros já chamados de pornográficos, parasitando o orçamento público e submetendo todos ao seu designo, inclusive o Estado e suas instituições. É o esteio do projeto neoliberal, a ideia de que o velho liberalismo de Adam Smith triunfou sobre as teorias que se apresentaram como alternativas às mazelas do capitalismo. Socialismo, socialdemocracia e keynesianismo teriam fracassado, dando razão aos dogmas liberais.

A tese não se sustenta diante dos fatos. O projeto neoliberal é uma alternativa ao próprio fracasso do liberalismo, liquidado quando os ideais de livre circulação de capitais e de mercadorias foram inviabilizadas pela corrida às matérias-primas e à força de trabalho, a competição entre grupos econômicos pelo controle de territórios, povos e países, traduzida pelas guerras, por genocídios e morticínios que marcam a história do capitalismo, teorizada como neocolonianismo e imperialismo.

No século XX e neste início do século XXI, a violência e a guerra midiática-ideológica se concentram, basicamente, no combate às ideias democráticas e patrióticas. A forma mais conhecida é o clássico anticomunismo, cada vez mais rude e primário, a plataforma que impulsiona a extrema-direita, a expressão mais pronunciada do poder político do capitalismo na contemporaneidade, com a diferença de que, ao contrário do seu passado, age num cenário de maior complexidade, com o desafio de se impor num cenário sem horizonte.

Nova fórmula do velho poder

Ou seja: o poder político com base nessa suposta ressurreição do liberalismo de Adam Smith só se viabiliza com o rompimento das regras do Estado Democrático de Direito, o direito constitucional que se formou com a Revolução Francesa e seus desdobramentos, o ideal republicano e humanista do projeto socialista. A evolução dessa contradição fundamental explica a agressividade do projeto neoliberal, em todas as suas nuances, cada vez mais extremista e hostil às ideias de democracia, soberania nacional, direitos sociais e humanos.

Esse é o arcabouço político e ideológico da autocracia no Banco Central, a nova fórmula do velho poder que precedeu a Revolução Francesa, fundado no absolutismo e no escravismo. Todos devem se submeter aos “guardiões da moeda”, que usam e abusam do dinheiro público como propriedade privada, distribuindo-o aos que alimentam a ciranda financeira, a fonte de remuneração do capital acumulado à base do trabalho excruciante, desumano e alijado das regras do Estado Democrático de Direito.

Os ideólogos desse projeto de “independência” do Banco Central proclamam essas ideias, abertamente, como um grande feito atribuído por eles a eles mesmos. Isso aparece na série de entrevistas realizadas por Galípolo com os autocratas que impuseram o arcabouço do Plano Real. Foi, na verdade, um festival de arbitrariedades confessado pelo principal deles, Pedro Malan, ao lembrar que pretendiam fazer uma revisão constitucional para, na prática, revogar a Constituição de 1998 como condição para os arbítrios do Plano Real.

Dedo no nariz

Pretendiam, à base de corrupção desbragada, fazer, de uma vez só, o que fariam, com dificuldade e autoritarismo, nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC). A ordem era tirar, com apenas um golpe de mão, as cores progressistas da Constituição. Manipularam o Artigo 3° do título constitucional das Disposições Transitórias, que determinava mudanças em alguns aspectos caso o sistema de governo fosse alterado num plebiscito que decidiu pela continuidade do presidencialismo, derrotando as propostas de parlamentarismo e monarquia.

Não houve mudança de sistema de governo. Portanto, não havia justificativa legal para a revisão constitucional. O pensamento neoliberal mostrava força, mas, nesse caso, não obteve sucesso. A vitória da legalidade democrática veio como resultado de uma ampla mobilização popular. O ponto alto foi a segunda Carta aos Brasileiros, redigida pelo jurista Goffedro da Silva Telles, histórico combatente dos desmandos da ditadura militar.

Ficaram famosas as cenas de resistência ao golpe pelas bancadas do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no dia em o projeto de resolução convocando a revisão constitucional seria votado no Congresso Nacional, numa sessão marcada por grosseira manipulação das regras parlamentares. Wilson Muller (PDT-RS) tomou o projeto das mãos do primeiro-secretário, deputado Wilson Campos (PMDB-PE), e transformou-o em papel picado. Haroldo Lima (PCdoB-BA) falou poucas e boas com o dedo a um palmo do nariz do senador Humberto Lucena (PMDB-PB), o presidente do Congresso.

Repetição goebbeliana

A “independência” é uma prática antiga, criada pela chamada “reforma bancária” da ditatura miliar, no começo de 1965, quando surgiu o mandato fixo para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), autarquia criada em 1945, em 1965 substituída pelo Banco Central, e o Conselho Monetário Nacional. A “reforma bancária” se deu com os mesmos argumentos que ecoaram pela mídia com o arcabouço do Plano Real e que, desde então, são enfiados goela abaixo do povo, numa repetição goebbeliana abusiva.

A trupe do Plano Real promoveu um festival de arbitrariedades já no início de suas atividades, com intervenções para centralizar o sistema bancário pelos ditames do Banco Central, uma operação que passou pelo Proer, mecanismo que despejou US$ 12,1 bilhões no “salvamento” de bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira, originando a clássica fórmula de instituições falidas e banqueiros riquíssimos.

A “independência” do Banco Central – existente na prática desde o lançamento do Plano Real – encampou também o papel do Conselho Monetário Nacional, transformado em instância com pouco poder.

Sobre cigarras e formigas

Já se dizia, na ditadura militar, que a “autoridade monetária” se sujeitava ao Poder Executivo, transformando a política monetária em apêndice, sem autonomia fiscal. A “independência” e o mandato fixo evitariam “injunções políticas” nas decisões monetárias, o mesmo argumento, sem tirar nem pôr, da ladainha dos “pais” do Plano Real, um léxico de tolices que serve para qualquer justificativa contra as críticas aos seus abusos, espécie de novilíngua capaz de reinventar a história, recurso que reapareceu com força nas comemorações dos trinta anos do Plano Real.

Os arautos desse léxico frequentam a mídia como salvadores da pátria – sobretudo no Grupo Globo, conforme sintetizou recentemente o apresentar Pedro Bial ao dizer que a trupe era o “genial grupo do Plano Real” –, tida por eles como um dos grandes trunfos da “estabilização da moeda”, transformado em pensamento único pelo que definiram como “eficaz meio de comunicação com a população”. Esse léxico alicerçou os crimes contra o povo e o país na “era FHC” e chegou ao governo Lula pelo macaquear do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, registrado em seu infame livro intitulado Sobre cigarras e formigas.

Rua do Ouvidor

O linguajar padronizado, medíocre e hipócrita, é repetido à exaustão, como se eles estivessem fazendo um grande favor ao país, a soberba do poder absoluto, o galo que pensa que o sol nasce porque ele canta, não sem motivos chamados de “ortodoxos de galinheiro”. Dizem que foram “convocados” para os cargos e que enfrentaram as resistências, ridicularizando quem não reza por sua ladainha, principalmente os presidentes da República que se opuseram a essa roubalheira no período neoliberal, Itamar Franco e Lula.

Não se pode negar que esse poder autoritário serve muito bem à plataforma política da direita, que não tem como se manifestar sem extremismo. São, a rigor, criminosos perante o direito constitucional. Antigamente seriam criminosos comuns. Como lembra o economista Ney Bassuino Dutra em artigo no Monitor Mercantil, na Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro, a polícia volta e meia corria procurando prender dois tipos de contraventores: um, que vendia “rabinho de coelho” para dar sorte; outro, que emprestava dinheiro a juros aos funcionários públicos a 14% ao ano.

– Gabriel Galípolo e o galinheiro do Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

Atual diretor de política monetária e provável futuro presidente do Banco Central assume discurso dogmático do projeto neoliberal. Resta saber se é recuo tático ou rendição.

Num evento da Warren Investimentos, organização do mundo da especulação financeira, na segunda-feira (12) em São Paulo, Galipolo disse que a alta da taxa básica de juros é uma possibilidade que está na mesa do Comitê de Política Monetária (Copom). “Enquanto diretores do Banco Central, nós vamos perseguir a meta, isso com custo maior ou custo menor, segundo variáveis que não temos controle”, afirmou. “Espero que daqui a alguns anos possamos falar que a política monetária do Brasil é muito mais em função do arcabouço legal e institucional desenhado para a política monetária do que da idiossincrasia de um diretor A ou B”, completou.

Arcabouço legal e institucional pressupõe regras bem mais amplas do que a famigerada Lei de Responsabilidade Fiscal – corretamente chamada por José Alencar, vice-presidente da República do primeiro governo Lula, de lei da “irresponsabilidade fiscal” –, espécie de camisa de força que molda fórmulas como essa proclamada por Galípolo e amarra o país à estagnação do crescimento econômico e à paralisa do desenvolvimento. Funciona como cortina de ferro que separa o arcabouço legal e institucional dos interesses privados governados de maneira autocrática pelo Banco Central “independente”, que opõe sérias resistências – ou mesmo impossibilidades – para o governo priorizar investimentos públicos e sociais.

O impasse vem da ditadura militar, com o fracasso do “milagre econômico”, agravado pelo projeto neoliberal, sobretudo após o arcabouço do Plano Real. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pouco lembrada atualmente, é a fonte desses dilemas e de patetices panfletárias, a exemplo do que disse Pedro Malan, ministro da Fazenda dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), também na segunda-feira (12), num evento do mundo financeiro chamado Finance Of Tomorrow: “A sociedade brasileira hoje não permitirá que nenhum governo tenha uma atitude excessivamente leniente e complacente acerca da inflação.”

Esfriamento da economia

Por trás dessa retórica vazia está a preservação dos privilégios conquistados pelo mundo das finanças na “era FHC”. Esse dogma  autoritáro e excludente é uma tendência que vem do golpe militar de 1964. Os economistas que assumiram o controle chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio”: produto de fantasia; devaneio, utopia. Gustavo Franco, presidente do Banco Central na “era FHC”, repetiu a ladainha ao dizer que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso.

Tempos depois, já no primeiro governo Lula, outro ideólogo do arcabouço neoliberal do Plano Real, Luiz Carlos Mendonça de Barros, criticou, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, “o consumo das famílias e os gastos do governo”, responsáveis pelo “nível de absorção interna de bens e serviços”, segundo ele indutores da inflação. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

Seguir à risca esses mandamentos é repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, atribuída a Delfim Netto. Aquela análise monetária-culinária já desconsiderava o princípio de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento nacional, de que conceitos monetários não podem determinar a política econômica de maneira absoluta. Era a linha que estava trocando a fase em que o Estado deu prioridade ao crescimento de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais), adotado sobretudo pela “era Vargas”, pela acumulação financeira.

As consequências foram um longo período de inflação alta, concentração de riqueza e crescimento econômico pífio, sem melhoria dos serviços básicos e sem integração dos milhões de brasileiros que viviam à margem da cidadania e do poder aquisitivo na dinâmica social e econômica do país. Passaram ao largo da premissa de que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento e da sua variada relação de causas e efeitos monetários e estruturais, a afirmação de teses ditas únicas que apresentaram resultados melancólicos.

O desmentido de promessas feitas em tom de profecias, fez crescer as evidências de que o país tomara o caminho errado, mesmo na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci enveredando pelo caminho neoliberal. Eram os “ortodoxos de galinheiro”, na definição do economista Paulo Batista Nogueira Júnior. E seguem incorrendo na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Para eles, a gestão da economia só pode dar resultados positivos se estiver submetida às suas elucubrações.

Ilha da fantasia

O reinado absoluto de Palocci repetiu o viés autoritário dos “ortodoxos” da ditadura militar e da “era FHC”, a ponto de bater de frente até com o vice-presidente da República, José Alencar, crítico ferrenho da acumulação financeira via elevação da taxa de juros pelo Banco Central a pretexto de combater a inflação. “A Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura de bater na taxa de juros. Essa censura existe, tenho sofrido e sido vítima dela”, disse ele numa palestra para empresários na Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Essa gestão macroeconômica é um mundo separado dos reais problemas do país, no qual a razão cede lugar à adivinhação, à cartomancia, uma ilha da fantasia. Ao longo de sua vigência, o que se viu foi uma elite ignorando completamente a racionalidade econômica para justificar, com argumentos matemáticos, a diminuição de suas obrigações diante do Estado e assim se eximir de suas responsabilidades perante a coletividade, abusando do caixa do Estado, principalmente por meio da alta taxa de juros.

A arrogância dos arautos dessa teoria, somada à monopolização dos meios de comunicação pela mídia cartelizada e corrompida, dificulta um debate às claras sobre qual seria o melhor caminho para o Brasil. Esse samba de uma nota só ganhou superpoder com a “independência” do Banco Central, um dos principais itens do programa do golpe do impeachment fraudulento contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, entregue à autocracia protegida pela impunidade garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, um mundo à parte, privado, regido pela farra financeira, com a tese farsesca da “despolitização da moeda”. Isso remete ao problema do Estado, que deve ser visto como instrumento para atender aos interesses da nação, e não atentar contra eles.

– Contubérnio de parasitas no Banco Central “independente”

Por Osvaldo Bertolino

Não existe Estado Democrático de Direito sem transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar a eficácia de suas medidas. Esse é um direito humano fundamental, sonegado pelo controle autoritário da comunicação por uma mídia cartelizada e corrupta à raiz do cabelo.

Nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, está claro, sob o risco de afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do processo deliberativo. O grau exato depende, portanto, do tipo de atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos. Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de regras claras sobre o tema.

Mas, com o controle do Estado por grupos privados, a essência da ditadura do projeto neoliberal, esse princípio básico da democracia fica inviabilizado. Consequentemente, o setor público passa a ser saqueado impiedosamente por grupos de interesses que põem o Estado a seu serviço para pagar-lhes as contas e garantir um fluxo contínuo de dinheiro a custo zero, saído do couro do povo.

Recentemente, o noticiário da mídia corrompida mostrou que o Banco Central “independente” anunciou novas regras para as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o agendamento. É uma espécie de contubérnio entre compadres, sócios do projeto de saque ao Orçamento e ao patrimônio públicos.

– A mãe de Lula e o tio da mídia

Por Osvaldo Bertolino

As recorrentes citações pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do exemplo da mãe, dona Lindu, como fez ele ao falar da pressão da direita para taxar os pobres e ampliar os ganhos dos ricos de todas as escalas, vão além do sentido didático. Tem o componente social. Dona Lindu era a ministra da Fazenda da casa, a administradora dos envelopes de pagamentos dos filhos. Agia com rigor, destinando os poucos recursos para cada necessidade da família. Dona Lindu, de acordo com Lula, é o seu exemplo para compreender como funciona as finanças do Estado. Elas têm mais complexidades, mas, na essência, é isso mesmo.

A mídia deu grande destaque a essa máxima do presidente em entrevista após a cúpula do G7 na Itália, quando ele falou da pressão para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adote “corte de gastos”. Lula disse que está aberto a analisar propostas, mas não fará “ajustes fiscais” à custa dos pobres. E lembrou que a taxa de juros acima de 10% “num país com inflação de 4%” não faz sentido. “Fazem uma festa com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) em São Paulo. Novamente, os que foram na festa devem estar ganhando dinheiro com a taxa de juros”, agulhou.

Epicentro político 

A “festa” foi uma homenagem ao presidente do Banco Central na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que posteriormente participou de um jantar oferecido pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas. Um ato político que vai além de reunir os que ganham dinheiro com a taxa de juros. Foi uma tentativa de sinalizar aos interessados no “ajuste fiscal” que aquele grupo da direita poderia abrir caminho para a organização política da oposição ao governo Lula. Sobretudo após o espocar de fogos da mídia para saudar o recente “ajuste fiscal” de Tarcísio.

A manobra não surtiu efeito e chegou a ser criticada pela própria mídia, que não gostou da exposição política de Roberto Campos Neto. A questão de fundo é a ligação de Tarcísio com Bolsonaro, um estorvo para eventuais pretensões à sucessão de Lula. Além da base social e política bolsonarista do governador, pesam as limitações organizativas em âmbito nacional, pressuposto básico para um projeto da direita capaz de se apresentar como viável politicamente para disputar a sucessão presidencial. Tarcísio teria de formar outro epicentro político, completamente divorciado de Bolsonaro, personagem desgastado pelos escândalos e desastres de seu governo.

Ataques sistemáticos

A direita mira em outra direção, a ideia de que governo Lula, que deveria ter trilhado o caminho do “ajuste fiscal” assim que saiu o resultado das urnas, já se mostrou inviável por ser um gastador inconsequente. E por não aceitar a imposição de que o presidente foi eleito não pelas ideias de esquerda, mas pelo projeto da direita contido na “frente ampla”. Trata-se de uma empulhação, presente diuturnamente na mídia, falsificação grosseira do movimento que se formou em 2022 para derrotar Bolsonaro. Era óbvio que Lula não adotaria a agenda da direita, embora soubesse das limitações conjunturais, sobretudo pela composição do Congresso Nacional.

Com o tempo, a diferença se transformou em ataques sistemáticos a Lula. A mídia adotou a linha de fazer oposição frontal, muitas vezes com apologia explícita ao golpismo. O “ajuste fiscal” passou a ser uma imposição implacável, espécie de tudo ou nada. Acionaram o sistema de projeção do mercado financeiro, chamado de Relatório Focus – segundo o Banco Central, as “expectativas” de mercado coletadas regularmente, na verdade manipulações de projeções de inflação e juros por agenciadores da especulação financeira –, para apresentar um futuro sombrio, o descontrole da dívida pública pela elevação da taxa de juros para “acalmar os investidores”. Surgiu até o fantasma da inflação alta pela demanda crescente com empregos, rendas, reajuste do salário-mínimo e outros investimentos públicos.

Tríade autocrática

Por trás de tudo está a política monetária, o controle da economia pela gestão do Banco Central dito “independente”, que administra uma “meta fiscal” draconiana, o chamado superávit primário, enormes recursos orçamentários abocanhados pelo mercado financeiro por decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre a taxa de juros. É um jogo bruto contra o povo e o país, sem que o governo ou qualquer outra instância de poder possam agir. A tríade Banco Central “independente”, Relatório Focus e Copom forma um poder paralelo, uma autocracia poderosa e inescrupulosa.

A mídia é a grande porta-voz desse autoritarismo. Em nome do “déficit” orçamentário, apresentado como o Armagedon, anunciam de forma peremptória que é preciso “cortar gastos”, mirando questões como o reajuste da aposentadoria, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência, além das verbas para a Saúde e a Educação. Tudo isso martelado em regime de monopólio midiático, sem espaço para o debate e sem a visão do conjunto da economia e da administração da política econômica.

Árvore mágica de dinheiro

O livro O mito do déficit, de Stephanie Kelton, professora de Economia e Políticas Públicas, explica bem a falácia do “ajuste fiscal”. Ela parte de uma citação da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 1983, segundo a qual o Estado “não tem fonte de dinheiro que não o dinheiro que as pessoas ganham”. “Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo se tomar emprestado as suas economias ou se tributá-lo ainda mais”, completou. Segundo Thatcher, “não existe dinheiro público”, mas “dinheiro do contribuinte”.

O mesmo discurso seria repetido mais adiante pela também primeira-ministra Theresa May. O governo não possui uma “árvore mágica de dinheiro”, disse ela. Para bancar investimentos ou políticas públicas o governo precisa pegar mais “do nosso dinheiro”. É a ideia de que se o governo gasta mais do que arrecada em impostos precisa emprestar recursos do “mercado”. Na verdade, taxar e fazer empréstimos vêm primeiro, explica a autora. É o modo convencional de pensar pelo que ela chama de (TE)G: Tributos e Empréstimos precedem os Gastos.

O resumo, de acordo com o que Stephanie Kelton denomina Teoria Monetária Moderna (TMM), é que existem o emissor de moedas (o Estado) e o usuário. Num sistema de controle autocrático da política monetária, o principal usuário é o mercado financeiro, destinatário de grandes somas de dinheiro – o mercado de títulos públicos – que empresta ao governo e cobra o juro determinado pelo Banco Central “independente”. Os demais destinatários, os serviços e investimentos públicos, ficam na dependência dos interesses do mercado financeiro para definir como gastar. Cumpre-se, assim, o ciclo da (TE)G.

Falsa imagem do Tio Sam

Stephanie Kelton relata projeções de aumento da dívida pública dos Estados Unidos de dezesseis trilhões de dólares em 2019 para vinte e oito trilhões em 2029. Enquanto isso, a repetição sistemática de que o governo não tem dinheiro se intensifica. Ela relata que a citação se espalhou pelo país, com a imagem do Tio Sam de bolsos das calças para fora, do avesso. “Muitas pessoas passaram a acreditar que nosso governo está totalmente falido, que seu orçamento não dá conta dos assuntos mais importantes da nossa atualidade.”

Essa falsa imagem do Tio Sam sem dinheiro é a ideia que a mídia tenta cravar como verdade absoluta no Brasil. O controle da economia por essa política monetária autoritária confronta o projeto de governo eleito em 2022 e vai se transformando em dilema. Há uma evidente tentativa de cooptar Haddad, amplificando declarações da ministra do Planejamento, Simone Tebet, numa clara manobra para isolar Lula e criar crises políticas para desestabilizar o governo, inviabilizando a aplicação do seu programa.

Saiba mais aqui