Por Osvaldo Bertolino – O outro lado da notícia – 24/11/2018
Hugo Studart anda se vangloriando no seu Facebook de que seu livro sobre a Guerrilha do Araguaia, Borboletas e lobisomens, continua fazendo sucesso. A prova seriam palestras dele e elogios à obra. Numa de suas palestras ele falou no Instituto Federal de São Paulo, campus Pirituba, e foi elogiado por um professor da instituição, Robson Barbosa. “Hoje tivemos a honra e o prazer de receber o professor Hugo Studart que nos brindou com excelente palestra (sobre) a guerrilha do Araguaia, trabalho de sua tese de doutoramento que resultou em seu livro Borboletas e Lobisomens, talvez a mais completa e fidedigna obra sobre o tema”, exagerou Barbosa em seu Face.
Studart falou também na “FlinkSampa Afroetnica — Festival de Literatura e Cultura Negra”, fato ilustrado no seu Face por uma foto com o “reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente (fazendo publicidade de livros), o historiador Luís Mir, a escritora Guiomar de Grammond, e o professor Thiago”. O convite, segundo Studart, foi do reitor e da curadora Francisca Rodrigues.
Jornalismo de esgoto
Em outro post, Studart agradece ao jornalista José Neumanne Pinto, conhecido demiurgo do jornalismo de esgoto do jornal O Estado de S. Paulo, que em um comentário no Youtube elogiou Borboletas e lobisomens, depois de afagos ao também jornalista de esgoto, José Roberto Guzzo, da revista Veja, “por conta de uma análise crítica sobre o Itamaraty do PT”. Neumanne Pinto disse que a obra de Studart é “um livro antológico, um livro importante que você tem que prestigiar”. “É a história verdadeira da guerrilha do Araguaia. Ele não poupa o PCdoB”, completou.
O demiurgo fez esse gancho para falar de um comentário do general Eduardo Villas-Boas, o comandante do Exército, que citou o livro, motivo de mais um comentário de Studart. “Descobri que o general Villas-Boas, comandante do Exército, leu meu livro Borboletas e Lobisomens. Durante a entrevista coletiva em Porto Alegre, 4ª feira, cita a obra como exemplo de ‘isenção’ e de busca da verdade histórica. Entre jornalistas e convidados, tinha umas 150 pessoas presentes. Aos 26 minutos da entrevista, perguntam-lhe sobre a Comissão da Verdade. Ele respondeu: ‘A gente deve preservar a verdade’”, escreveu ele.
Sobre o livro, o general disse: “Agora mesmo saiu um livro, Borboletas e lobisomens, escrito pelo Hugo Studart, sobre a Guerrilha do Araguaia. Ele é extremamente crítico em relação ao Exército. Mas também crítico, e relata as coisas que foram feitas pelo Partido, o PCdoB (…), coisas que eles fizeram lá, naquela região, naquela época, barbaridades, atrocidades que eles cometeram, e que, por exemplo, a Comissão da Verdade não relatou. Trouxe à tona. Tanto que a esquerda ficou atônita com esse livro. Então, a gente tem que produzir a verdade.” Segundo o general, tudo o que o Exército tinha sobre o assunto já foi liberado, o que leva à conclusão de que ele não leu o livro ou não conhece a verdade sobre essa história.
Mãos particulares
Outra citação do livro veio de Sergio Fausto, cientista político e superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso (FHC), em artigo publicado na revista Piauí, intitulado Os militares de volta ao time principal — O papel das Forças Armadas no governo Bolsonaro. Segundo ele, “nada incomoda mais os militares do que a prevalência, ao ver da corporação, de uma interpretação unilateral da história do regime autoritário em geral e das atividades repressivas do Estado naquele período, em particular”. “Os militares têm um ponto ao criticar a glorificação da luta armada. Está mais do que na hora de se reconhecer amplamente que a ideologia que animava os grupos clandestinos pouco ou nada tinha de democrática”, escreve.
Sergio Fausto faz uma digressão sobre o assunto, invocando o tempo como fator determinante para que a verdade apareça, e então cita Borboletas e lobisomens como um bom exemplo, segundo ele “um relato factual cuidadoso, baseado em extensa pesquisa, que não encobre as atrocidades feitas por militares na repressão e extermínio da guerrilha rural naquela região do país, nem sacraliza os guerrilheiros”. “Mostra-os como seres humanos, movidos por paixões generosas e uma ideologia totalitária, capazes de levá-los a cometer atos heroicos de sacrifício pessoal, mas também, em certos casos, a comportar-se com absoluta indiferença ante o sofrimento alheio”, divaga.
O cientista encerra citando que, “nos agradecimentos, Studart menciona ex-guerrilheiros e militares que se dispuseram a compartilhar com ele memórias e documentos”, uma evidência de que o general Villas-Boas desconhece — ou faz vistas grossas — a existência de documentos que deveriam ser públicos e que estão indevidamente em mãos particulares. “Está na hora de curar essa ferida de vez e não há outro modo de fazê-lo se não falar abertamente sobre ela. O melhor do Brasil está em ser muitos e ao mesmo tempo um só. Cuidemos de manter vivo o que temos de melhor, com a razão democrática e o afeto que se encerra em nosso peito já não tão juvenil”, conclui.
Essas versões prevalecem porque esse período de obscurantismo em que vivemos favorece a distorção dos fatos e a revisão oportunista da história. Faltam, nessas análises, o rigor da pesquisa, a fidelidade à verdade e o sentido do espírito democrático proclamado com o fim do regime militar. Nessa atmosfera turva, com o horizonte da democracia e da verdade histórica obnubilado pelo oportunismo de obras como essa de Studart — não por acaso vinda à luz nessa conjuntura —, prevalece a mistificação, a falsificação e a mentira pura e simples, como é o caso desse livro infame.
São Tomaz de Aquino
Como lembrou o cronista Humberto de Campos, contam os fatos da ordem de São Domingos que achando-se São Tomaz de Aquino na sua cela, no convento São Jacques, curvado sobre obscuros palimpsestos medievais, ali entrou, de repente, um frade folgazão, o qual foi exclamando com escândalo:
— Vinde ver, irmão Tomaz! Vinde ver um boi voando!
Tranquilamente, o grande doutor da Igreja ergueu-se do seu banco, deixou a cela, e, vindo para o átrio do mosteiro, pôs-se a olhar o céu, a mão sobre os olhos fatigados do estudo. Ao vê-lo assim, o frade jovial desatou a rir com estrépito.
— Ora, irmão Tomaz, então sois tão crédulo a ponto de acreditar que um boi pudesse voar?
E com a mesma singeleza, flor da sabedoria, irmão Tomaz respondeu:
— Eu preferi admitir que um boi voasse a acreditar que um religioso pudesse mentir.
Não conheço o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, assim como o general Eduardo Villas-Boas e o cientista Sergio Fausto. Mas conheço bem a obra de Hugo Studart e os motivos dos elogios a ela por seu séquito. Imagino — apenas imagino — que, com a responsabilidade das inteligências e da cultura de José Vicente, Eduardo Villas-Boas e Sergio Fausto, há, nos céus do Brasil, um boi de asas abertas, pastando entre as nuvens. E eu sairei para ver. Mas sairei, como se viu na história de São Tomaz de Aquino, em homenagem a eles, não em atenção ao boi.