Ditadura militar: crônica de um longo 1º de abril

 

Por Osvaldo Bertolino

O golpe de 1964 foi resultado do conceito de poder militar moldado pela Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra, criada m 1949 como incubadora no Brasil das nascentes operações anticomunistas da Guerra Fria. O general César Obino, emissário do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), montou o projeto no National War College, sediado em Washington, criado em 1º de junho de 1946 para treinar oficiais.

O objetivo era conter os movimentos políticos que confrontavam o concerto que se formou sob a hegemonia dos Estados Unidos nos embates da Segunda Guerra Mundial. Na definição dos ideólogos dessa doutrina, isso se resumia a uma palavra: anticomunismo.

A Escola Superior de Guerra foi entregue ao comando do general Oswaldo Cordeiro de Farias, ex-comandante de artilharia da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou contra o nazifascismo na Itália na Segunda Guerra Mundial, um fanático anticomunista e obcecado pela Doutrina de Segurança Nacional, movida pela corrupção do subterrâneo do regime dos Estados Unidos.

Cordeiro de Farias foi um dos conspiradores contra o presidente da República Getúlio Vargas, eleito em 1950, trabalhando freneticamente pelo acordo militar Brasil-Estados Unidos – a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos –, criada em 1951, desencadeando um ciclo de prisões e torturas de comunistas, sobretudo na Base Aérea de Natal, Rio Grande do Norte, controlada por agentes norte-americano.

Na solenidade de conclusão do curso da Escola Superior de Guerra de 1952, no auditório da Escola Técnica do Exército, com a presença de Getúlio, Cordeiro de Farias proclamou, sem meias palavras, o projeto golpista da Guerra Fria, baseado na perseguição aos comunistas. “No exame de nossa atitude entre os mundos que se defrontam, patenteou-se, e devemos proclamar essa verdade para que não nos iludamos, a infiltração bolchevique (comunista) em todos os setores da vida brasileira”, discursou.

Com seu fanatismo, Cordeiro de Farias via comunistas “fomentando luta de classes” em todo lugar, segundo ele bolcheviques para associá-los à propaganda de que eram agentes da União Soviética. Os bolcheviques, disse, embora fossem minoria, eram dotados de técnica, disciplina e coesão, com enorme poder de penetração e exploração de todos os fatos e circunstâncias. “Sua luta é por alcançar lugares chaves, apesar de, muitas vezes, seu aparente pouco valor. Sem exageros, pode dizer-se, eles controlam, por meios indiretos, grande parte da atividade nacional.”

Para o general, os bolcheviques agiam de baixo para cima, “deturpando, mentindo, examinando unilateralmente todos os problemas do país, dos pequenos aos grandes”. Estavam criando “um clima que vai encontrar, conscientemente, ressonância e maior propaganda nos seus adeptos do grupo intelectual de todas as profissões e que vai aparecer, no final, embora falsamente, como representativa da mentalidade brasileira, contra a qual não encontram força para agir, dado o nosso regime democrático”.

Missão redentora      

As conspirações que chegaram ao golpe de 1964 tinham essa base ideológica. De acordo com a teoria da Doutrina de Segurança Nacional, havia uma subversão internacional contra a “ordem ocidental”. Em torno do grupo formou-se uma rede de alucinados, oportunistas, degenerados e sociopatas. Era com eles que o regime projetado teria de contar para conter o “comunismo” e difundir aos quatro ventos a tese de que o mundo se debatia contra a “guerra subversiva” desde que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia em 1917.

Diziam que no Brasil essa invenção diabólica chegou com o Levante da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935, alcunhado de “Intentona”. Era o “comunismo atuante”, conforme definiu um dos ideólogos da Escola Superior de Guerra, a vertente mais consistente da “guerra bolchevique” que tinha em seu espectro também o “comunismo folclórico”, mais afeito a palavras do que ações.

Os “consistentes” sentiram o baque em 1935 e optaram por infiltrar sua doutrina em postos-chaves da sociedade com um paciente trabalho de convencimento. Ganharam terreno nas décadas seguintes e chegaram às portas do poder no começo dos anos 1960, com a condescendência do presidente João Goulart.

A história tinha determinado àquele grupo, conforme suas interpretações, a missão redentora de manutenção da ordem. Ou, em outras palavras, cabia às Forças Armadas a contenção da “revolução comunista”, fosse na forma que fosse. Isso queria dizer que qualquer movimento contrário à “doutrina” daqueles militares estava a serviço do comunismo.

Eram dogmas com raízes no pensamento conservador brasileiro, moldados pelo esquadro da Guerra Fria, derivados da belicosa propaganda anticomunista turbinada no governo do presidente norte-americano Harry Truman, que assumiu o posto em abril de 1945 após a morte de Franklin Delano Roosevelt. Na Escola Superior de Guerra predominava o ponto de vista de que o mundo se dividira entre a ordem “democrática” e a desordem “comunista”, a repetição sistemática da retórica que marcou as hostilidades à União Soviética desde o seu nascimento.

O capitalismo norte-americano via um mundo a ganhar, mas precisava remover o obstáculo representado pelo socialismo que, mesmo num território ensanguentado, mostrava a força da vitória sobre o nazifascismo. A doutrina Truman pregava que o vazio criado com a derrota da “nova ordem” do líder nazista Adolf Hitler deveria ser ocupado com a “eterna vigilância” do “ocidente”, o “preço da liberdade”.

Ao passo que a obra hitlerista seria execrada como produto destruído pela “democracia ocidental”, o anticomunismo emergia para garantir que os “restos totalitários” seriam igualmente varridos da face da Terra. Na América Latina e na Ásia existiam fatores propícios ao florescimento do comunismo, o que exigia vigilância reforçada. A Conferência Interamericana de Chanceleres – também conhecida como Conferência de Petrópolis –, realizada no Brasil em 1947, com a presença de Truman, definiu os rumos daquela “doutrina” na região.

Estava rompida a linha que uniu o Brasil aos Estados Unidos nos combates ao nazifascismo na Europa com a política de boa vizinhança de Roosevelt para o estabelecimento de outra, agora fundada na doutrina da força militar como política de Estado. As bases militares que se expandiram no decorrer da Segunda Guerra Mundial deveriam ser reforçadas, sobretudo na América Latina e na Ásia. No Brasil, como casa de força da região, elas permaneceram intocadas e só foram removidas após uma campanha popular comandada pelo Partido Comunista do Brasil.

O Plano Truman, que determinava a padronização dos exércitos do Hemisfério Sul, trazia como subproduto a obrigação do Brasil de acompanhar os Estados Unidos na nova guerra que se armava. O governo do general Eurico Gaspar Dutra começou a moldar as Forças Armadas de acordo com essa doutrina, afastando os recalcitrantes, ao mesmo tempo em que desencadeou feroz repressão aos comunistas, promovendo a cassação do seu registro eleitoral – em maio de 1947 – e dos seus mandatos – em janeiro de 1948 – com manobras judiciárias e parlamentares.

Essa linha traçada pela cooperação militar do Plano Truman tumultuaria os governos seguintes – Getúlio Vargas suicidou-se; Juscelino Kubitscheck quase não tomou posse e enfrentou duas conspirações; Jânio Quadros renunciou e João Goulart, ameaçado antes de tomar posse, governou sob constante pressão, até ser deposto em 1964. Formou-se uma concepção política liberticida, materializada em ações do grupo militar golpista e seus aliados do Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional (UDN).

Esse condomínio golpista trabalhou freneticamente para instaurar a doutrina militar da Escola Superior de Guerra. Sem o Brasil, a estratégia do Plano Truman não daria certo, avaliaram os estrategistas do Departamento de Estado norte-americano. A resistência às ingerências dos Estados Unidos na região se espalhava e uma ação coordenada deveria ser urgentemente formulada.

Para onde pendesse o gigante sul-americano, penderia a região. A era dos golpes de Estado na América Latina, deflagrada em 1954 com a deposição do presidente da Guatemala, Jacobo Arbenz Guzmán, democraticamente eleito, acusado de adotar medidas de “tendências comunistas”, precisava ter no Brasil o principal ponto de apoio.

Aliança para o Progresso

A perseguição anticomunista se intensificou, se espalhou e se fantasiou com a retórica da “ameaça de Moscou”, gerando conflitos dentro das próprias Forças Armadas. A disputa entre militares nacionalistas e golpistas motivou a criação da “cruzada democrática”, capitaneada pelo que se chamava de “UDN fardada”, que exigia do ministro da Guerra do governo Vargas, Newton Estillac Leal, a expulsão dos “comunistas” do Exército”. O presidente, sob intenso ataque também da “UDN gráfica” – a mídia –, vacilou e a corrente nacionalista, que assegurou as condições para a sua eleição e posse, sofreu um verdadeiro massacre.

O suicídio de Vargas fez os golpistas recuarem temporariamente, mas a doutrina golpista continuou a ser propagada e se manifestou de maneira furiosa quando o presidente da República, Jânio Quadros, condecorou com a Ordem Cruzeiro do Sul Che Guevara, um dos principais líderes da Revolução Cubana de 1959. Logo em seguida, a Organização dos Estados Americanos (OEA), braço do regime norte-americano na América Latina, aprovou uma resolução pedindo aos governos locais mais controle da “subversão comunista no hemisfério”. Na crise da renúncia de Jânio Quadros e posse do vice-presidente João Goulart, a fúria anticomunista voltou a se manifestar com força.

Pululavam manchetes na mídia dando conta de “guerrilhas” e “subversão” com financiamentos do “comunismo internacional”, que rompeu a barreira “ocidental” com a Revolução Cubana. Polarizaram o discurso para fustigar o governo Goulart e fazer girar a usina anticomunista, propagando os ideais da “doutrina militar”, abertamente orientada pela Embaixada dos Estados Unidos.

Em março de 1963, o embaixador norte-americano, Lincoln Gordon, declarou na Comissão do Congresso do seu país que os comunistas se infiltraram no governo brasileiro e no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ao qual pertencia o presidente Goulart. A afirmação foi divulgada pela subcomissão de Assuntos Interamericanos da Câmara de Representação que investigava as “atividades comunistas” na América Latina.

A conspiração avançava a passos largos, impulsionada também pelos governadores Adhemar de Barros (São Paulo), Carlos Lacerda (Rio de Janeiro) e Magalhães Pinto (Minas Gerais), apoiada nos grandes proprietários de terra, no clero conservador, nos partidos políticos de direita e principalmente na mídia. O ex-presidente Juscelino Kubitscheck também se envolveu com o golpe, na esperança de que seria candidato a presidente da República em 1965, quando cessaria a intervenção militar.

O centro da trama estava na Embaixada norte-americana, comandada por Gordon e o general Vernon Walters, adido militar de Washington designado para posto pela Central de Inteligência Americana (CIA). Gordon recebera carta branca do presidente norte-americano, Lyndon Johnson, ao assumir a Embaixada brasileira em 1961, para tramar contra o governo Goulart. Sua missão fazia parte da Aliança para o progresso, projeto do governo dos Estados Unidos concebido durante a presidência de John Fitzgerald Kennedy para controlar a América nos aspectos político, econômico, social e cultural, conforme a Carta de Punta del Este, de agosto de 1961.

Em 1963, chegou o coronel Walters, um poliglota que na campanha da FEB na Segunda Guerra Mundial fora o interlocutor dos Estados Unidos com os militares brasileiros e se tornou amigo de Humberto Castello Branco, agora chefe do Estado-Maior do Exército, que deveria ser o primeiro ditador do regime golpista. O grupo que assumiu a missão de liderar a conspiração manteve, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ligações com a estrutura militar norte-americana.

Na Embaixada dos Estados Unidos foi elaborado o programa do golpe. Quando os golpistas assaltaram o poder, na virada de 31 de março para 1º de abril de 1964, o governo norte-americano estava minuciosamente informado – sete dias antes, Walters telegrafara a Washington dando detalhes da ação.

Quatro dias antes do início do golpe, Gordon detalhou ao governo dos Estados Unidos o tipo de apoio que ele julgava necessário aos militares conspiradores. No início da tarde de 31 de março, o Departamento de Estado mandou um telegrama informando que havia enviado um porta-aviões, seis destroieres, petroleiros abastecidos com cento e trinta mil litros de combustível, aviões, helicópteros e tropas para as proximidades da costa do Rio de Janeiro.

Campinas, cidade a pouco mais de cem quilômetros da capital paulista, recebeu seis aviões cargueiros com cem toneladas de armas. Era a Operação brother sam, uma prevenção a eventuais reações brasileiras.

Logo depois do golpe, Walter foi recebido em um jantar pelo presidente Castello Branco.

– Fiquei bastante preocupado com aquele comício do presidente Goulart (o “comício das reformas”, realizado dia 13 de março de 1964 em frente à estação ferroviária Dom Pedro II, também chamada de Central do Brasil, no Rio de Janeiro), com bandeiras vermelhas – declarou o general.

Gordon disse ao jornal O Estado de S. Paulo que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim e da derrota dos comunistas na Coréia. Eram variantes da “cortina de ferro”, proclamada nos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill.

O objetivo era isolar a União Soviética e liquidar a influência de suas ideias no “mundo ocidental”, um cerco militar que resultou na ocupação do Japão depois das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki, nas guerras da Coreia e do Vietnã, nos banhos de sangue anticomunistas na Indonésia e na Tailândia. A cadeia de golpes na América Latina fazia parte dessas variantes da militarização da “cortina de ferro”.

A CIA entre os civis

O movimento militar pró-Washington não teve um chefe, mas o chão do golpe estava riscado, separando os conspiradores em duas alas. Seus líderes se dividiram, basicamente, entre a linha dura e os moderados. Estabeleceu-se o que o general Arthur da Costa e Silva chamou de “briga de foices no escuro”. Todas as picuinhas não resolvidas na marcha golpista ganharam raízes e a cizânia se espalhou nas casernas.

Não havia uma fronteira demarcando precisamente a divisão, nem tampouco uma clara definição de linhas de atuação, mas, resumidamente, eles se dividiam entre os que defendiam o Estado de exceção como único regente do governo – a linha dura – e os que advogavam a devolução do poder aos civis, desde que blindado contra qualquer “ameaça comunista” – os moderados. No primeiro grupo estavam os jovens oficiais e no segundo a oficialidade mais antiga.

A linha dura tinha no presidente do Clube Militar, general Augusto Cesar de Castro Moniz de Aragão, uma espécie de porta-voz. Ele se pronunciou em nome do grupo quando houve uma insurgência de ex-aliados dos golpistas contra cassações de mandatos e a suspensão dos direitos políticos, previstas para 15 de junho de 1964.

Moniz Aragão se pronunciou também quando um Manifesto do ex-presidente João Goulart foi divulgado no Congresso Nacional, em agosto de 1964. Ele classificou o ato como tentativa de lançar a opinião pública contra o governo. Segundo a linha dura, aqueles fatos justificavam as medidas repressivas do Ato Institucional número 1 (AI-1).

A atuação da CIA entre os civis, especialmente com o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), era mais para destruir ou desconstruir as organizações populares do que com o sentido de organizar movimentos políticos. Tentaram algumas coisas, mas, ao contrário dos êxitos na mídia, os resultados não foram significativos.

De uma maneira geral, contudo, a CIA foi eficiente na campanha anticomunista. Mas o foco principal eram os militares. Lincoln Gordon e Vernon Walters decidiram que Castello Branco deveria ser o comandante do golpe, mas o homem forte do regime seria Costa e Silva, o “chefe supremo das forças militares em operação”, como ele mesmo se autointitulava.

Seu plano era a efetivação da linha dura, passando por cima de todas as dissidências e discordâncias, principalmente a de Cordeiro de Farias, que soltou o verbo quando soube que Castello Branco estava permitindo que o autointitulado “chefe supremo das forças militares em operação”, general de sua confiança, estava manipulando e corrompendo os golpistas para assumir as rédeas do regime.

Numa reunião de generais pouco antes do golpe, no Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, Cordeiro de Farias e Costa e Silva trocaram palavras ásperas. Segundo o ex-chefe da Escola Superior de Guerra, Castello Branco caiu no conto do vigário ao aceitar que Costa e Silva assumisse o Ministério da Guerra antes mesmo da oficialização do novo presidente da República, posto que lhe daria condições para se apossar do golpe.

Cordeiro de Farias via Costa e Silva como conspirador dentro da conspiração, cercado por um grupo de ambiciosos, chamado por ele de entourage, que se aproveitava de suas fortes ligações com Castello Branco para ocupar postos de comando no governo, entre eles Médici. Mesmo a candidatura de Castello estaria em risco, segundo o ex-chefe da Escola Superior de Guerra.

Três dias depois do golpe, Cordeiro de Farias se dirigiu ao Quartel-General do Exército, no Rio de Janeiro, onde haveria uma reunião decisiva para tratar da candidatura a presidente, para a qual não fora convidado. Chamou Castello Branco para uma conversa às pressas, acompanhado do governador paulista Adhemar de Barros. O Quartel General estava repleto e foram se reunir no banheiro. Cordeiro de Farias disse que se houvesse tentativa de impor outro nome – referia-se a Costa e Silva – faria um “barulho enorme”.

O plano do ministro da Guerra era mais ardiloso. Ele mesmo propôs, na reunião no Quartel-General, o nome de Castello e começou a trabalhar para que Cordeiro de Farias fosse afastado do poder, assumindo uma embaixada bem longe do Brasil. Sentindo os fios da trama sob os pés, Cordeiro de Farias não aceitou o convite de Castello e foi encostado no Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais.

No governo Costa e Silva, Cordeiro de Farias seria substituído no Ministério pelo general Afonso Albuquerque de Lima, tido como expoente do nacionalismo entre os militares, e ameaçado de prisão pelos coronéis responsáveis pelos famosos IPMs (Inquérito Policial Militar).

Operação Popeye

A semente da desavença surgiu na gênese do golpe. Cordeiro de Farias, que deixou a Escola Superior de Guerra três anos depois de sua criação para ser governador de Pernambuco e formar uma cidadela do plano golpista contra Getúlio Vargas, considerava-se o principal articulador da conspiração de 1964 e levou uma rasteira de Costa e Silva.

O ex-homem da Escola Superior de Guerra confrontou os operadores do golpe desde suas primeiras ações. Ele acusou o general Olympio Mourão Filho – um ex-integrante da Ação Integralista Brasileira, o movimento fascista brasileiro, que nos tempos de capitão foi autor do Plano Cohen, uma farsa sobre preparação de sublevação “comunista” que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo em 1937 – de se apossar da senha golpista com a Operação Popeye, a marcha das tropas que saiu de Juiz de Fora, Minas Gerais, para dar o golpe.

A questão de fundo era o aval da embaixada dos Estados Unidos. Mourão Filho havia atropelado conversas anteriores ao bater na porta de Vernon Walters sem consultar Cordeiro de Farias, que estava tratando do assunto. O ex-homem da Escola Superior de Guerra e o interlocutor de Washington eram amigos desde os tempos da FEB, condição que facilitou a montagem da Operação brother sam.

Havia, disse Cordeiro de Farias, uma combinação entre os conspiradores, de um comunicar o outro sobre as atitudes planejadas, que deveria ser levada em conta. O momento seria o pós-comício de João Goulart na Central do Brasil e a revolta dos marinheiros, de 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro, organizada pela Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, uma organização assistencial e sindical que se ligava a uma rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha em 12 de setembro de 1963, em Brasília.

Utilizando-se daqueles pretextos, Mourão Filho se precipitou e isolou a articulação de Cordeiro de Farias, que se dizia ser também o articulador da candidatura de Castello Branco para presidente da República por meio de um questionário enviado à tropa e a seus comandos para traçar o perfil do candidato que assumiria a Presidência quando o golpe triunfasse. Por ser um animal excessivamente político, segundo suas palavras, o grupo de Costa e Silva não confiava nele.

Consumado o golpe, cabia ao novo regime aplicar a Doutrina de Segurança Nacional, baseada num duplo conceito: a divisão do mundo em dois blocos antagônicos e a adesão do Brasil ao “bloco democrático e cristão”, sob a direção dos Estados Unidos, dos quais o país deveria considerar-se um “satélite privilegiado”. A doutrina do programa golpista dizia que o mundo marchava para a Terceira Guerra Mundial e o Brasil deveria alinhar-se incondicionalmente aos norte-americanos.

O Ato Institucional passou a ser o instrumento para a ditadura “legalizar” suas ações políticas não previstas na legislação e contrárias à Constituição. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transferiu o poder aos militares golpistas e suspendeu por dez anos os direitos políticos de centenas de pessoas. Em outubro de 1965, o AI-2 concedeu à Justiça Militar a competência de julgar “crimes contra a segurança nacional” e determinou que a eleição do presidente e do vice-presidente da República seria realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão pública e votação nominal.

A estrutura do poder ditatorial foi montada gradativamente, com o Executivo concentrando funções e sob controle do Estado-Maior das Forças Armadas e do Departamento de Administração da Polícia Civil (este último um organismo de consulta).

Foram criados também mais dois órgãos: o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações, o poderoso SNI. O poder legislativo foi restringido – e, posteriormente, com o AI-5, fechado – e o Poder Judiciário limitado à função de supervisionar os atos determinados pelo CSN. Todos os suspeitos de atividades contra a “segurança nacional” passaram a ser julgados por tribunais militares.

Assassinato em Canoas

Castello Branco deu uma demonstração de que poderia se equilibrar entre os dois barcos – a linha dura e os moderados – ao ordenar que seu sobrinho, o truculento coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa, acompanhasse o major-brigadeiro Nélson Freire Lavanère Vanderley, designado para enfrentar a resistência e assumir o 5º Comando Aéreo Regional, na cidade de Canoas, na região de Porto Alegre.

A dupla sabia que o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, o comandante do posto, resistiria. Ele evitara, em 1961, que militares golpistas bombardeassem o Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, onde João Goulart estava aquartelado após a renúncia de Jânio Quadros, e denunciou as manobras dos sediciosos no estado.

Ao resistir à voz de prisão, Alfeu foi atingido pelas costas por uma rajada de metralhadora disparada por Roberto Hipólito da Costa. Mesmo caído, o tenente-coronel tentou se defender e foi novamente alvejado. O assassinato ocorreu na noite de 4 de abril de 1964, um sábado, e a brutalidade foi amplamente divulgada nos meios militares para servir de alerta aos legalistas.

Para a linha dura, não havia alternativa à radicalização diante do inevitável crescimento de contestação ao golpe. Costa e Silva dizia abertamente que a “desordem” se reinstalara no país e que só a ampliação da “democracia” seria capaz de combater o “comunismo”, provocando uma reação irônica de Castello Branco.

– Ele promete ser o liberal que nunca será. É só esperar para ver – vaticinou.

A linha dura convenceu Castello Branco a fazer uma “reforma administrativa” para reforçar os poderes ministeriais dos militares, adotando, na parte da “segurança nacional”, medidas como pôr o SNI na área de assessoramento imediato do presidente da República – além de reforçá-lo substancialmente com verbas e uma grande quantidade de militares de alta patente. No topo estaria Médici, o novo chefe do SNI.

Golbery do Couto e Silva, o mentor do órgão criado em 13 de junho de 1964, tinha certa autonomia e desenvolvia um trabalho relativamente independente, o que desagradava o grupo de Costa e Silva. No seu discurso de posse, Golbery disse que assumia um órgão à margem da administração oficial. Não lhe cabia difundir noticiário na imprensa e só viria a público excepcionalmente, mediante comunicados, “para desfazer interpretações inexatas acerca de suas próprias atividades”.

– Será bem, como já o qualificam, como que um Ministério do Silêncio. Em compensação, buscará afirmar-se como órgão capaz de ver, de auscultar e interpretar com serenidade e isenção. Por isso mesmo, aberto sempre a quem desejar cooperar com ele, honestamente, nessa superior tarefa de informar, com oportunidade e justeza, o governo da República – discursou.

Apesar de serem do mesmo grupo de oficiais do Estado-Maior do Exército formado na Escola Superior de Guerra, doutrinados com a ideia de combate ao “comunismo”, Castello e Golbery não escondiam suas divergências. Isso ficou claro quando o coronel Mario Andreazza, porta-voz informal do grupo do ditador-presidente, reprovou a linha de atuação do SNI para justificar as mudanças que seriam adotadas.

– É um órgão de grande colaboração para a conduta do governo. Entretanto, necessita o SNI ser conduzido com seriedade e honestidade de propósitos. Uma das missões do SNI será acompanhar a opinião pública, de maneira a caracterizar suas aspirações – alfinetou.

Golbery chegou ao golpe ostentando a autoridade de dez anos de estudos sobre a “segurança nacional”. Era o precursor da arquitetura dessa ideia fundamental dos golpistas. Para ele, a “revolução” deveria assegurar a integração do território nacional e protegê-la das “influências externas”. Era uma concepção da Escola Superior de Guerra que trazia no âmago a necessidade da ditadura militar.

Mesmo com essa autoridade, saiu do SNI pelas portas dos fundos e ganhou como consolo o decorativo cargo de ministro do Tribunal de Contas da União, totalmente alheio à sua carreira, considerada brilhante, um oficial da Segunda Seção do Estado-Maior do Exército, o serviço de inteligência e informação.

Soco de Leonel Brizola

Costa e Silva chegou ao processo de sucessão de Castello Branco praticamente imbatível. Eleito presidente em 3 de outubro de 1966, foi empossado em 15 de março do ano seguinte, anunciando que faria um governo ainda mais repressivo, aumentando o poder dos corifeus da linha dura. Com a formação da Frente Ampla por Carlos Lacerda e os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, em 28 de outubro de 1966, a linha dura elevou o tom.

O caso evoluiu para uma dura polêmica entre Lacerda – o principal articulador da Frente Ampla – e Moniz de Aragão; o primeiro no jornal Tribuna da Imprensa, do jornalista Hélio Fernandes, e o segundo n’O Globo, de Roberto Marinho. Hélio Fernandes, que adquirira a Tribuna de Imprensa, fundada alguns anos antes por Lacerda e redigiu o Manifesto da Frente Ampla, chegou a ser deportado para a ilha de Fernando de Noronha por determinação de Costa e Silva.

A mídia brasileira estava envolvida numa dura luta interna, uma disputa feroz entre grupos por influência na ditadura, impulsionada pela corrupção do IBAD. Castello Branco encarregou Roberto Marinho de comunicar ao embaixador brasileiro nos Estados Unidos em Washington, Juraci Magalhães, que ele seria o ministro da Justiça e deveria arbitrar a guerra. Assim que assumiu, ele reuniu donos e representantes de jornais para cobrar autocensura e proibir “subversivos” nas redações – episódio que entrou para o folclore com a suposta resposta de Marinho de que ele mandava em seus “comunistas”.

A guerra começou, na verdade, antes do golpe, quando o grupo Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, tido como um gângster do setor, moveu uma violenta campanha contra o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que se destacara na resistência aos golpista quando eles tentaram impedir João Goulart de tomar posse, capitaneada pelo deputado federal João Calmon (PSD-ES), diretor do grupo e influente ator do cenário político brasileiro.

Brizola, também deputado (PTB-RS), foi ameaçado de assassinato por Calmon, que se jactava de ser bom atirador e de saber atingir zonas letais do corpo humano, a distância ou a queima-roupa. Mas quem pagou pela violência do grupo de Assis Chateaubriand foi o jornalista David Nasser, diretor da revista O Cruzeiro, ao ser atingido por um soco de Brizola no balcão de venda de passagens de uma empresa aérea no Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro, na manhã de 26 de dezembro de 1963. Brizola se aproximou por trás, pôs a mão no ombro direito do jornalista e, enquanto ele se virava, foi atingido na cabeça. Brizola estava com um recorte de uma matéria da revista que o atava violentamente.

Nasser reagiu com mais ameaças. “A luta não terminou, principalmente agora, que o adversário começa a apresentar sintomas de desespero”, disse, alertando que o regime democrático estava no fim. “É a luta desesperada de quem não quer ir para o exílio ou para a cadeia”, praguejou. Nasser alegou que foi agredido pelas costas, versão negada por Brizola. “Aproximei-me dele, que estava de costas para mim, e bati-lhe levemente no ombro para mostrar-lhe o recorte com as aleivosias contra mim. Quando o vi de frente, cara a cara, não resisti a enfrentar um canalha”, afirmou o deputado do PTB.

A contenda gerou um livro de bolso, escrito por Nasser, com o título João sem medo o homem que derrotou Brizola e Prefácio da escritora Raquel de Queirós.

Jornalistas anticomunistas

A projeção de Calmon na briga com Brizola e João Goulart o levou à presidência da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Quando o presidente Castello Branco exigiu que a mídia trabalhasse para “unir o povo em torno da revolução”, o deputado capixaba foi designado para liderar uma “campanha continental” com essa finalidade.

Falando na instalação da assembleia extraordinária da Associação Interamericana de Radiodifusão, no luxuoso hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, Calmon prometeu, olhando para Castello, um combate sem trégua no rádio à televisão ao “comunismo”.

– A estatização é o caminho mais rápido para o comunismo e a liquidação da propriedade privada – discursou.

O evento pretendia unir as ações da mídia na linha da FIOPP que, apesar dos protestos, vencera as eleições na Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais.

– Unidos pelo ideal de democracia, enquanto numerosas áreas, comunistas ou não, promovem avassaladora estatização, vamos demonstrar que o controle do rádio e da televisão pela iniciativa particular pode transformá-los nas mais poderosas forças da civilização contemporânea – disse Calmon.

A Abert aprovou duas propostas na assembleia: a constituição da Comissão Internacional para executar as campanhas em defesa da “iniciativa privada” e combate ao “comunismo”, e a criação da “central de produção” de notícias. Uma série de consultas precedeu a redação final. Eram proposições baseadas no documento do American Newspaper Guild, um sindicato de jornalistas dos Estados Unidos, e da União de Jornalistas Livres, formada por exilados dos países do Leste Europeu, chamando os jornalistas do continente americano para uma reunião no Panamá para criar a Sociedade interamericana de organizações jornalísticas profissionais.

Um dossiê que circulou entre os jornalistas relatou atividades no Brasil de William Doherty Jr., agente da CIA e diretor do Departamento de Projetos Sociais do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre – American Institute for Free Labor Development (AIFLD) –, desde antes do golpe. O documento revelou que o agente norte-americano elaborou o relatório ao II Fórum Sindical Interamericano sobre Problemas econômicos e sociais para o progresso, realizado no México entre 10 e 15 de junho de 1964.

– No Brasil, sob o regime de João Goulart não tivemos oportunidade de trabalhar e por essa razão começamos somente no mês de abril de 1964 – escreveu William Doherty Jr.

Ele fora enviado pela AIFLD – instituída no governo do presidente Kennedy por meio da Direção de Planificação da CIA para cercar a influência da Revolução Cubana na América Latina – com a missão de “contribuir com o desenvolvimento dos sindicatos livres na América Latina”. Isso queria dizer formar uma corrente sindical pela AIFLD. Muitos receberiam “capacitação especial” no “instituto de formação”, o Front Royal School, no Estado da Virginia.

Os sindicalistas recebiam aulas sobre comércio exterior norte-americano e propaganda anticomunista. Um de seus braços, a Federação Interamericana de Organizações de Periodistas Profissionais (FIOPP), havia se apoderado da entidade sindical máxima dos jornalistas no Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais, com o apoio da ditadura. O secretário da FIOPP, o jornalista argentino Artur Scthirbu, esteve no Brasil por dois anos para cooptar o movimento sindical jornalístico brasileiro.

O assunto chegou a ser noticiado no Jornal do Brasil de 13 de julho de 1966, quando as eleições na Federação entraram na ordem do dia e dois grupos (um deles apoiado pela FIOPP) disputavam o comando da entidade.

– Agora, e é o mais grave, uma estranha organização norte-americana, a FIOPP, a pretexto de fazer anticomunismo, está despejando muito dinheiro nos meios sindicais, prejudicando o andamento natural das eleições na Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais – disse o jornal.

A interlocução geralmente era feita com o argentino Artur Scthirbu, secretário-geral da FIOPP, que montou residência no Brasil para acompanhar o golpe de perto. De vez em quando, algum de seus emissários falava pela entidade. O objetivo era anular qualquer influência da Federação latino-americana de jornalistas profissionais, que se pronunciou contra o golpe. As propostas da Abert seriam apoiadas por uma vasta rede de corrupção mantida pela CIA e operada pela FIOPP. Diante da iminência da sua implosão, uma nova rede de corrupção seria reforçada.

Fígado do grupo Folha

Havia uma denúncia de presença de estrangeiros em grupos de mídia brasileira, tendência que vinha de antes do golpe. Um deles era a Editora Abril, comandada pelo ítalo-americano Victor Civita, em desacordo com Constituição, que vedava o acesso de estrangeiros ao controle de meios de comunicação. Civita seria um testa-de-ferro do grupo norte-americano Time-Life e intermediou o acordo firmado com o empresário Roberto Marinho para criar a TV Globo em 26 de abril de 1965.

Calmon pediu um estudo detalhado do caso. Em poucos dias recebeu um minucioso relatório, com o título Time-Life e a ampliação do setor de mass comunication, mostrando que outros grupos de mídia também estavam em negociações com estrangeiros. O documento seria a base para ele promover uma intensa campanha contra Roberto Marinho, revelando seu esquema de corrupção, expondo o racha na cúpula midiática do golpe.

Cópias do documento foram distribuídas a membros do governo, o que motivou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança Nacional. O presidente Castello Branco determinou ao ministro da Justiça, Mem de Azambuja Sá – que substituíra Juraci Magalhães –, a formação de uma “comissão de investigação” para apurar as denúncias “com o maior rigor possível”. De acordo com o presidente, Calmon era “um homem merecedor de respeito e consideração”, não levantaria suspeitas infundadas.

Lacerda havia denunciado a negociata de Roberto Marinho, o que motivou o Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel), que abriu um processo para investigar o caso. A apuração concluiu que havia marmeladas, além da já revelada na Editora Abril – o maior conglomerado de mídia com dezoito publicações e dois milhões de exemplares mensais –, envolvendo também o Grupo Folha, que estaria em negociação com o Grupo Rockfeller; e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, em processo de venda para estrangeiros.

Em entrevista à TV Rio, Calmon disse que Roberto Marinho havia encaminhado uma consulta de empréstimo à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), aumentando ainda mais a suspeita do grupo do presidente da República Castello Branco de conluio de setores do governo com o negócio ilegal.

As revelações causaram um reboliço nos bastidores do governo e nos grupos de mídia, que deflagraram uma troca de acusações pesadas. O Jornal do Brasil atacou o presidente da Abert em editorial intitulado Jacobinismo provinciano, acusando-o de xenofobismo e de agir para abolir a “competição democrática” entre os grupos midiáticos.

O grupo O Estado de S. Paulo, ao responder em tom agressivo a um leitor que questionou a presença de capitais estrangeiros na mídia em carta ao Jornal da Tarde – uma de suas publicações –, abriu fogo contra o grupo Folha, que editava os jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Última Hora e Notícias Populares. O leitor, que assinou como Newton Proença Cavalcanti, terminou a carta com uma pergunta incisiva.

– É verdade que as seguintes empresas brasileiras estariam sob controle acionário dos seguintes grupos estrangeiros? Rockefeller: Folha, Última Hora, Notícias Populares, Diário Carioca, TV Excelsior, Correio da Manhã (arrendado por cinco anos); Time-Life: O Globo, TV Paulista, Editora Abril Limitada, NBC (Mórmons), Rádio Piratininga e rádio e TV Bandeirantes (em negociações).

A resposta do JT, como o jornal era conhecido, foi violenta. Disse que o leitor era “um desses esquerdinhas que alimentam seus espíritos pouco cultivados com slogans enlatados”, que não liam e nem viam televisão, e que ele ganharia uma gorda recompensa se conseguisse demonstrar o que acusava.

– Se lesse jornais ou visse televisão saberia que o deputado João Calmon respondeu, há poucos dias, pela televisão, a todas essas perguntas, denunciando a existência de empresas jornalísticas financiadas por capital estrangeiro – atacou.

A resposta atingiu o fígado do grupo Folha, que reagiu à altura. A Folha de S. Paulo, em editorial intitulado Nossa moeda é o trabalho, lembrou que o jornal havia publicado na primeira página um comunicado desfazendo “de maneira cabal” as “insinuações” de João Calmon na entrevista à TV Rio e afirmou que mesmo assim o grupo O Estado de S. Paulo alimentou a mentira. A Folha duvidou da autenticidade do leitor e acusou o concorrente de possuir “força econômica” de duvidosa procedência.

A polêmica se desdobrou em novas acusações, mas o foco principal, para o governo, era o negócio do Grupo Time-Life com o grupo Globo. Calmon passou a acompanhar a evolução do caso a partir de contatos com o tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, membro do Conselho de Segurança Nacional, integrante da “comissão de investigação”.

Ele foi indicado por influência de aliados militares do presidente da Abert, sobretudo o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel. Também compunham a “comissão” Gildo Correia Ferraz (procurador da República) e Celso Luiz Silva (gerente de Fiscalização dos Créditos Estrangeiros do Banco Central).

O caso se desdobrou em pedido de abertura de uma Comissão parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados por Eurico de Oliveira (PTB-Guanabara). Depois de muita pressão contrária, a CPI foi constituída em 19 de outubro de 1965.

Emergência da TV Globo

Roberto Marinho convenceu uma ala do governo e da mídia a isolar, acatar e desmoralizar Calmon. O homem do grupo Globo visitou o ministro da Justiça, Mem de Azambuja Sá, num lance ousado para mostrar que ele estava disposto a brigar por suas posições. Roberto Marinho lamentou o momento da visita, logo após a instalação da “comissão de investigação”, pensando que isso poderia dar margem a interpretações dúbias. Mas o próprio ministro esclareceu que não havia motivo para esse receio por se tratar de uma conversa “entre amigos”. Ele fez também uma série de visitas a veículos da mídia de seus aliados.

Em declaração ao Jornal do Brasil, Roberto Marinho disse que Calmon estava interessado em deter apenas a entrada de dólares na imprensa brasileira, ignorando o ingresso de francos, pesetas ou rublos, referindo-se ao presidente da Abert ironicamente como “velho amigo”. Ele atacou o grupo Diários Associados, sem citar o nome, dizendo que Calmon cometia injustiças ao “terçar armas” contra qualquer outro monopólio privado contrário ao monopólio “dos outros”.

– De qualquer modo, folgo em verificar que o meu amigo Calmon, mesmo cometendo algumas injustiças, está desencadeando forças que podem, afinal, contribuir poderosamente para a moralização da imprensa no país. Não seria crível que o governo revolucionário, tão atuante em outros setores, perdesse a oportunidade para acabar com as empresas jornalísticas que há muito sobrevivem graças apenas aos odiosos privilégios que lhes foram concedidos – agulhou.

Novamente ironizando Calmon, Roberto Marinho disse que o presidente da Abert não agia de má-fé mesmo sendo diretor de uma organização de jornais, de rádio, de revistas e de televisão com notórias dificuldades financeiras, que procurava com seus ruidosos pronunciamentos uma maneira de eliminar ou criar embaraços para seus mais fortes concorrentes.

O passo seguinte seria o desligamento do grupo Globo da Abert, anunciado em carta de Roberto Marinho à entidade, logo seguido pela Rádio Jornal do Brasil. Calmon reagiu com novas denúncias, dizendo que fora procurado pelo diretor no Brasil da petrolífera multinacional Esso, Paulo Carvalho Barbosa, que, em tom de ameaça, exigiu o fim da campanha contra o acordo do grupo Globo com o grupo Time-Life. O presidente da Abert mostrou um relatório, produzido por Albuquerque, com informações do tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, dando conta da compra de ações do grupo Globo pela Esso por meio de empresas intermediárias.

Calmon chegou a defender, na Câmara dos Deputados, a estatização da mídia para conter a investida estrangeira. A proposta contundente surgiu depois que Albuquerque apurou informações na Justiça do Trabalho contidas na reclamação trabalhista do ex-diretor geral da TV Globo, Rubens Amaral, que demostravam a intervenção do grupo Time-Life na emissora.

O grupo Globo respondeu com comunicados em vários jornais, lidos em suas emissoras de rádio e TV, dizendo que o Diários Associados, em tempos passados, se beneficiou de acordos de Assis Chateaubriand com o magnata norte-americano David Rockfeller. A mídia ligada a Roberto Marinho também intensificou os ataques a Calmon – chegaram a dizer que ele deveria mudar o nome para João “Calmão”, mais adequado ao seu “nacionalismo”.

A tentativa de esvaziar a Abert atingiu também a “comissão de investigação”. Além do bombardeio de Roberto Marinho e seus aliados, acusando a iniciativa de “autoritária” e “invasiva”, não havia local para ela trabalhar. No dia da sua instalação, o ministro Mem de Sá disse que o Ministério da Justiça era pobre e sugeriu o seu funcionamento na sede do Conselho de Segurança Nacional, onde existiam salas, “embora sem móveis”. Ele também comunicou a imprensa que a “comissão” não daria nenhuma notícia durante o andamento dos trabalhos.

Em agosto de 1966, a “comissão”, que nunca obteve um lugar definitivo para trabalhar – reunia-se esparsamente e ouviu poucas pessoas –, entregou seu relatório final ao novo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. O documento, recheado de informações artificiais, anteriormente tornadas públicas em notas dos grupos estrangeiros, foi para alguma gaveta do Ministério.

As movimentações políticas para a substituição do presidente Castello Branco ganharam ritmo frenético e havia interesses de todos em um período de trégua. A paz temporária foi selada num almoço promovido por Castello Branco no Palácio das Laranjeiras, sede do governo do estado da Guanabara, em 22 de março de 1966, com a presença de diretores de jornais do Rio de Janeiro, entre eles Roberto Marinho e João Calmon.

Costa e Silva sugeriu o nome do presidente da Abert, agora um influente líder do partido político que dava sustentação à ditadura, a Aliança Nacional Renovadora, a Arena, para a vice-Presidência da República. Na acirrada disputa que se estabeleceu, saiu vitorioso o grupo de defendia o ministro da Educação, Pedro Aleixo, e a guerra Roberto Marinho-Pedro Calmon voltou a pegar fogo. O Grupo Globo foi incitado por seus apoiadores do governo a atirar para matar.

Em nota publicada nos jornais, assinada pela TV Globo, Calmon foi acusado de pedir dinheiro à Embaixada norte-americana. Quem fez a denúncia, de acordo com o jornal O Globo, foi a correspondente do jornal Washington Post, Georgie Anne Geyer.

– Autorizadas fontes norte-americanas daqui salientam que Calmon, cujo império está mergulhado em dívidas, procurou a Embaixada americana, no outono passado, a fim de obter dinheiro para livrar os Diários das dificuldades. Ante a negativa do então embaixador Lincoln Gordon, ele, ao que informa, jurou vingar-se – teria escrito a jornalista.

Seguiu-se mais uma violenta troca de acusações, com Lincoln Gordon e Georgie Anne Geyer dando declarações desencontradas, um autêntico duelo nas páginas dos jornais O Globo e O Jornal – este, o líder dos Diários Associados. Calmon também usou a tribuna da Câmara dos Deputados para desancar Roberto Marinho. E declarou-se vitorioso com o resultado da CPI, que encerrou seus trabalhos em 22 de agosto de 1966 concluindo pela inconstitucionalidade dos acordos do grupo Globo com o Grupo Time-Life.

– Os contratos firmados entre a TV Globo e o Grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional – defendeu o parecer do relator, deputado Djalma Marinho, que pertencia à Arena.

O relatório das investigações apontou que a TV Globo, inequivocamente, fora financiada pelo Grupo Time-Life sob a cobertura de um contrato regulamentando a prestação de assessoria técnica. Outra infração grave foi a compra de equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado em vigor.

O contrato principal estabelecia que o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da TV Globo, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava que o Grupo Time-Life teria de “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários – mais uma prática proibida, uma violação do Código Brasileiro de Telecomunicações. O acordo sequer foi apreciado pelo Contel. Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a TV Globo enviou um deles – o de assistência técnica – para a Sumoc, assim mesmo por ordem do Contel.

Em nova burla às leis, a TV Globo, atingida pela campanha de Calmon, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. No contrato constava que a TV Globo seria locatária de um prédio vendido ao Grupo Time-Life, feito antes da venda do local aos norte-americanos. O grupo de Roberto Marinho alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somado aos 5% do lucro líquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da TV Globo. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram.

Roberto Marinho, apesar de baleado, saíra fortalecido. Havia uma lógica na sua conduta, ditada pela tendência de moldar a mídia com o alinhamento incondicional do golpe ao regime norte-americano no âmbito da Guerra Fria. O decadente grupo de Assis Chateaubriand estava tão avariado que não responderia aos estímulos do Pentágono. A segunda opção, a Editora Abril – intermediária da negociata de Roberto Marinho com o Grupo Time-Life –, também estava descartada pelo flagrante ilegalidade constitucional. A emergência de um novo grupo seria a saída óbvia.

Assuntos geopolíticos

Costa e Silva assumiu com a refrega resolvida e a Rede Globo de Televisão reinando absoluta como porta-voz informal do regime. Com um Decreto-Lei, o ditador reforçou o poder do seu entourage ao promover uma reestruturação do Conselho de Segurança Nacional, manobra da linha dura para se assenhorar de todos os instrumentos de poder.

Estava em andamento uma leva de promoções no Exército, entre elas a do coronel Carlos de Meira Mattos, que, como general, assumiria a chefia da Casa Militar da Presidência da República com status e ministro. No posto, ele seria o titular da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional. A notícia caiu como uma bomba no Congresso Nacional.

Meira Mattos também foi integrante da FEB, atuando como oficial de ligação com o 4º Corpo de Exército dos Estados Unidos – uma espécie de braço direito do então marechal Mascarenhas de Morais, o líder daquela missão – e um dos primeiros a entrar no clube dos golpistas que se formou tão logo a democracia voltou a reger as atividades políticas no Brasil com a Constituição de 1946, apesar de não ser do ninho da Escola Superior de Guerra; ele só fez o curso daquela instituição em 1967.

As ligações com o subterrâneo do Departamento de Estado norte-americano faziam dele uma espécie de intocável entre os golpistas. Meira Mattos também era apontado como uma das principais cabeças políticas do sistema militar do governo. Logo seria adjunto da Divisão de Assuntos Militares e professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra, da Escola de Guerra Naval e da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, além de subchefe da Casa Militar – o chefe era o general Ernesto Geisel – de Castello Branco.

Como um dos articuladores da Emenda Constitucional que prorrogou os mandatos para impedir as eleições de 1965, junto com os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, se destacou pelo nível intelectual superior à média dos seus pares golpistas. Gostava de comentar com jornalistas assuntos geopolíticos, defendendo a tese de que o Brasil não tinha como se eximir de um conflito mundial caso o “comunismo” atacasse o “ocidente”. A imensa costa brasileira no Oceano Atlântico, especialmente no Norte e Nordeste, certamente fazia do país peça-chave na geopolítica da Guerra Fria, segundo ele.

Como ativo operador político, assumiu o governo de Goiás quando a ditadura interveio no estado, afastando o governador Mauro Borges, apesar de ter nascido e vivido em Mato Grosso. Pregador do que chamava de “ideais da revolução”, atirava verbos chulos, sem medir o nível, contra os que agiam com tibieza no combate aos “focos de agitação e subversão”. Sua concepção de “revolução” incluía a premissa de que os “políticos” deveriam ser gradativamente afastados de postos importantes e substituídos por militares. “Políticos não entendem o povo”, repetia.

Quando a ditadura decidiu enviar tropas para integrar o corpo da Organização dos Estados Americanos na República Dominicana, ele liderou as negociações e foi designado chefe da operação e comandante da chamada Brigada Latino-Americana. Na volta, sua candidatura a governador de São Paulo chegou a ser cogitada, mas acabou assumindo a chefia da Polícia do Exército da 11ª Região Militar, sediada em Brasília. Na cassação dos mandatos, em 1966, comandou uma violenta ocupação do Congresso Nacional, com cenas de agressões a parlamentares, jornalistas e fotógrafos. Ganhou a antipatia dos “políticos”.

A rejeição a Meira Mattos aumentou quando a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional detalhou a reestruturação numa nota divulgada dia 11 de janeiro de 1968. A reestruturação reuniria as medidas que vinham da criação do Conselho de Defesa Nacional, em 1927. Após o golpe, o órgão, transformado em Conselho de Segurança Nacional, expandiu seus tentáculos, que seriam reforçados consideravelmente com o Decreto-Lei de Costa e Silva.

Havia também a denúncia de que a Secretaria-Geral do Conselho teria poderes para se intrometer em todos os ministérios, transpondo a fronteira de suas atribuições. A reestruturação era vista como camisa de força imposta ao governo e ao Estado. Diante da reação dos “políticos”, Costa e Silva foi obrigado a recuar e não indicou Meira Mattos.

Força contra Lacerda

Seguindo os ditames daquela nova fase, o regime advertiu Lacerda, acusado de, “num crescendo”, estar em “processo de agitar politicamente o país”. A advertência partiu do brigadeiro Antônio Guedes Muniz, em discurso no Clube Militar, num ato com a presença de Costa e Silva. Haveria um “enrijecimento do ponto de vista militar”, disse. A tendência governamental era de “voltar-se para dentro e militarizar-se”. A fala de Guedes Muniz foi reforçada pelo general Afonso de Albuquerque Lima, em entrevista coletiva. Cada ação de Lacerda corresponderia, da parte do governo, uma reação maior “e em sentido contrário”, disse.

O ex-governador da Guanabara havia discursado numa reunião da Frente Ampla em Belo horizonte, com a presença do ex-comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel José Geraldo de Oliveira, o primeiro insurgente do movimento golpista de 1964. Ele havia assumido a chefia da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab) no estado e renunciado, acusando a “revolução” de se comportar com indiferença diante da fome que assolava o país.

Havia também uma crise política no Congresso Nacional, com a Arena acusando o governo de dar as costas para as atividades políticas. Seus líderes cobravam de Costa e Silva uma presença mais regular nas relações do governo com a bancada governista. Só ele poderia estancar uma crise de consequências imprevisíveis.

A Frente Ampla poderia se aproveitar da situação, advertiu o senador Dinarte Mariz (Arena-RN), um dos mais íntimos colaboradores políticos de Costa e Silva. O presidente deveria assumir o comando da Arena, como fazia nos Estados Unidos o presidente Lyndon Johnson com o Partido Democrata, recomendou. Havia mais de seis meses que a Frente Ampla agia como movimento de caráter subversivo, com o objetivo de solapar as instituições.

A fala de Lacerda em São Paulo despertou rumores de que ele fermentou a Força Pública e teria sido a senha para a eclosão de um movimento conspiratório, que contaria com apoio da Polícia Militar mineira. O Exército determinou prontidão nas guarnições do Rio de Janeiro e de São Paulo, após o general Afonso Albuquerque Lima agir como portador de um ultimato da linha dura exigindo repressão a Lacerda e à Frente Ampla.

Seria uma demonstração de força contra Lacerda e um texto dos dispositivos tendo em vista as leis e outros atos que seriam adotados pela ditadura. A ditadura anunciou também que enquadraria uma grande quantidade de municípios em áreas de segurança nacional, agravando a crise política com a Arena, que perderia parcelas de sua base eleitoral, ideia do ministro do Interior (o novo nome do Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais), general Afonso Albuquerque Lima.

A crise se agravou quando líderes da Arena cogitaram pedir ajuda a Cordeiro de Faria, que no governo Castello Branco auxiliava na aprovação de matérias do interesse do governo, circulando pelos corredores da Congresso, cabalando votos. Foi dele, inclusive, a ideia extinguir os partidos, que levaria à formação do bipartidarismo Arena-MDB. A ideia não foi adiante, mas a ameaça da ditadura fez a Frente Ampla recuar.

Ataques e contra-ataques

O governo Costa e Silva editou oito Atos Institucionais e vinte e quatro atos complementares. O mais sinistro deles foi o AI-5, anunciado em 13 de dezembro de 1968 – ano das mais intensas manifestações contra a ditadura, com gigantes protestos estudantis e as greves operárias em Minas Gerais e Osasco (SP).

Quando o ditador encaminhou a proposta de reabrir o Congresso Nacional, fechado com o AI-5, os moderados viram uma oportunidade de aumentar seus poderes, se apoiando nos “políticos” e abrindo outra estrada para a sucessão de Costa e Silva. Na prática, era um paralelismo de autoridade, ideia que contrariou profundamente o ditador.

A linha dura reagiu expulsando do Exército o coronel Francisco Boaventura Cavalcanti, irmão do ministro do Interior, José Costa Cavalcanti, com direito à execração pública e carimbo de “traidor da pátria” na testa. A acusação se baseava num inquérito sigiloso revelando ligações do execrado com Carlos Lacerda. O ministro do Exército, general Lira Tavares, foi o articulador da expulsão, que na verdade expressava mais um capítulo da guerra entre os dois grupos, a “briga de foices no escuro” de que falara Costa e Silva. Mesmo na linha dura houve fissura.

Em carta entregue a Costa e Silva pelas mãos de Lira Tavares, o general Moniz Aragão, que chefiava o Departamento de Provisão Geral do Exército (DPG), protestou contra a expulsão de Francisco Boaventura Cavalcanti.

– A publicidade consentida do governo das razões da pena aplicada ao coronel Boaventura, que embora possam assentar-se sobre realidades, contém apreciações e conceitos desprimorosos e hostis, impróprios à serenidade que deve revestir os atos de justiça, que se feriram a honra daquele oficial também respingaram o brio da classe, emocionando-a e revoltando-a – dizia um trecho.

Moniz Aragão também se queixou das restrições impostas a oficiais-generais para o acesso ao processo, que colidiam com o zelo do ministro na divulgação dos motivos da punição. A própria disciplina do Exército estaria em causa com o repúdio à publicidade da sanção imposta ao coronel.

A escalada de ataques e contra-ataques chegou a um documento de Aragão, divulgado no governo e nas casernas, com acusações pesadas ao próprio Costa e Silva. O rosário abrangia desde culto à personalidade a nepotismo – o que incluía a indicação de um cunhado do presidente para a direção da Legião Brasileira de Assistência (LBA), definido pelo missivista como “conhecido traficante” – e uma série de casos de corrupção.

Lira Tavares reagiu à altura, demitindo Aragão da chefia do DPG e divulgando uma carta-resposta. Defendeu a punição ao coronel Boaventura e censurou Aragão por reunir-se com oficiais a ele subordinados para atacar o governo. Disse que Costa e Silva repelia terminantemente as acusações. Aragão não se intimidou e respondeu que havia se reunido novamente com generais a ele subordinados para analisar a contenta. A carta-tréplica era ainda mais virulenta e acusou Lira Tavares de selecionar tópicos do seu documento para deformá-lo.

Havia um ponto central naquela troca de desaforos – a menção de Aragão, na primeira carta, ao direito que oficiais teriam de afastar o presidente. Lira Tavares tomou aquela questão como hostilidade, uma provocação de alto teor explosivo.

– É inaceitável e flagrantemente incompatível com os propósitos democráticos da revolução e as próprias tradições do Exército e da nação – escreveu em sua réplica.

Na tréplica, Aragão acusou o ministro de deturpador sua afirmação ao truncar criminosamente esse trecho da carta. Seria, em sua versão, uma citação hipotética, apenas para exemplificar os limites da ação do presidente. Indignado, ele deu o assunto por encerrado e classificou Lira Tavares de dissimulado por ter omitido de Costa e Silva a íntegra do seu documento. Não havia mais condições para que eles mantivessem qualquer tipo de contato.

– Agradeço a Deus ter-me dado a oportunidade de conhecer melhor a personalidade de vossa excelência – decretou.

Comunistas, padres e bispos

O general Albuquerque Lima surfou naquela onda de endurecimento do regime com a esperança de ser indicado sucessor de Costa e Silva. A “revolução”, de acordo com sua concepção, não deveria tolerar a “subversão”, naquele momento concentrada nos estudantes. Para combatê-la, deveria recorrer ao estado de sítio e outros recursos excepcionais.

Uma nota do Conselho de Segurança Nacional manifestou apoio à declaração de Costa e Silva de que os fins e propósitos revolucionários seriam atingidos somente pela atuação decisiva da Forças Armadas.  Era um problema para a sucessão presidencial. A Arena se movimentava em outra direção e recorreu a Costa e Silva para que tomasse pulso do processo. Os bastidores do regime fervilhavam com os movimentos de potenciais candidatos.

No afã de se mostrar o mais preparado para assumir o comando da ditadura, numa entrevista coletiva Albuquerque Lima deitou falação sobre como entendia a natureza da “revolução”.

Em uma palestra no Círculo Militar, em São Paulo, dirigindo-se aos “comunistas, aos padres e aos bispos da esquerda festiva, aos que se intitulam de estudantes e fazem o jogo de poderosos grupos econômicos, enfim, que não querem a nova que se tenta impor pela revolução”, ele disse que o regime era duro “pela sua própria natureza”. Nenhum país “amolecido” podia progredir, afirmou. Havia no país, disse, uma sucessão de atos terroristas que obedeciam “a comando de fora e para dentro do país”, exercidos “por Moscou, pela China ou qualquer outra entidade comunista”.

Os atentados terroristas, disse, tinham como alvo, principalmente, os militares. Depois vinham a Igreja Católica, “a qual, infelizmente, conseguiram, em parte, dividir, fazendo padres e bispos participarem desse processo comunizante”, chegando “à própria família, levando para nossas filhas problemas que nunca tiveram, de ordem sexual”. Albuquerque Lima atirava para todos os lados, reafirmando suas proclamações nacionalistas.

Ele disse ser contra qualquer tipo de “extremismo”, que deveria ser combatido com “ações positivas e enérgicas”, efetivando um programa de realizações “para atender a tudo aquilo que o povo espera da revolução”. Segundo ele, toda ação violenta deveria ser respondida com um ato enérgico do governo. A “revolução” deveria “prosseguir no tempo, seja por cinco, dez ou quinze anos”, para implantar as reformas de que o país necessitava, “seja a agrária, a administrativa ou a econômica”. “As Forças Armadas, sempre irmanadas com o povo brasileiro, jamais permitirão a volta ao passado ou o estabelecimento de um regime antidemocrático, de esquerda ou de direita”, ameaçou.

Albuquerque Lima ao assunto numa palestra na Faculdade de Higiene e Saúde Pública de São Paulo. Disse que padres e freiras incutiam “na cabeça de jovens de doze a treze anos determinados problemas para acabar com a família brasileira”. Viviam dizendo que que a geração passada não fez nada, a fim de incompatibilizar os filhos com os pais, despertando “o sentimento sexual nas moças, não para resolver esses problemas, que elas nunca tiveram, mas para criar indagações e desagregar a família”.

Ele deixou o Ministério do Interior e voltou ao Exército para articular a sua candidatura. Em sua carta de demissão, endereçada a Costa e Silva, disse que sua decisão se devia “a graves motivos que foram” expostas pessoalmente ao presidente sobre decisões do “campo econômico-financeiro”. O ditador respondeu que agradecia “ a lealdade, a eficácia, e a alta colaboração dada ao governo” e lamentou que Albuquerque Lima houvesse “levado a divergência pessoal em relação a certos itens da política econômico-financeira a tal extremo”.

O entrevero não afastou Albuquerque Lima da corrida sucessória. Quando Costa e Silva teve trombose cerebral, ele apareceu como seu substituto imediato, mas já havia a articulação pela junta militar, constituída pelos ministros militares – o general Aurélio Lira Tavares (Exército), o brigadeiro Márcio de Sousa Melo (Aeronáutica) e o almirante Augusto Rademaker Grünewald (Marinha) –, que assumiria interinamente a presidência da República.

Albuquerque Lima acabou assumido o Departamento de Material Bélico do Exército. Médici foi escolhido e se instalou no Rio de Janeiro para acertar a sua candidatura em conversas com os ministros militares e o presidente da Arena, Filinto Muller.

Estrada para a Guanabara

Mais habilidoso politicamente, Médici havia conquistado uma posição relevante no entourage de Costa e Silva. Sua projeção no grupo teve início no dia do golpe. Às três horas da madrugada de 31 de março de 1964, Costa e Silva lhe telefonou para acertar os últimos detalhes de sua participação no ato final da conspiração.

– Diga quais são as ordens, general. Estou à sua disposição – disse Médici.

Então comandante da Academia Militar das Agulhas Negras, sediada na cidade de Resende, ele prendeu três oficiais suspeitos de lealdade ao presidente João Goulart e deslocou uma guarnição para reforçar a marcha das tropas do general Olympio Mourão Filho na Operação Popeye.

A decisão de Mourão e Médici foi estratégica. A estrada até a Guanabara era quase toda em forma de desfiladeiro, o que permitiria a uma tropa relativamente pequena ocupar toda sua extensão e resistir indefinidamente. Como retribuição e reconhecimento ao papel de Médici, na posse de Castello Branco vinte cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras desfilaram entre os três mil e quinhentos militares que homenagearam o presidente.

Apesar do posto-chave de Médici na conspiração, antes de sua candidatura à sucessão de Costa e Silva pouco se ouvia falar dele. Era tido como reservado e detestava falar dele mesmo. Gostava de dizer que Garrastazu não era um nome índio, mas espanhol, e queria dizer “teimosia”. Se vangloriava também de não ter inimigos e proclamava que nem pretendia tê-los. Nascera em 4 de dezembro de 1905, estudou no Colégio Militar de Porto Alegre e foi completar os estudos preliminares na Escola Militar de Realengo, Rio de Janeiro.

Em 1927, foi servir no Rio Grande do Sul e logo voltou ao Rio de Janeiro para fazer os cursos do Estado-Maior do Exército. Retornou à sua cidade natal, Bagé, para chefiar a 3ª Divisão de Cavalaria e mais tarde, em Porto Alegre, foi chefe da 2ª Seção (Serviço Secreto) da 2ª Região Militar. Comandou também o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) na capital gaúcha. Três anos e meio depois, deixou o posto para ser chefe do Estado-Maior do general Costa e Silva, o comandante da 3ª Região Militar (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná).

Como general, sua primeira função foi a de comandantes da 4 ª Divisão de Cavalaria, em Mato Grosso. Em seguida, assumiu o comando da Academia Militar das Agulhas Negras, onde ficou entre 1963-1964. Saiu para assumir o cargo de adido militar em Washington, acompanhando o novo embaixador, Juraci Magalhães, ex-governador da Bahia, udenista e anticomunista ferrenho.

Médici já era o delegado brasileiro na Junta Interamericana de Defesa e passaria a representar o país na Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos. Logo seria eleito também para a Comissão Especial Consultiva de Segurança da OEA. Voltou ao Brasil, em 1965, promovido a general-de-divisão, como operador do programa de cooperação entre os dois países. Assumiu o comando da 3ª Região Militar, cargo que acumularia com o de subchefe do Estado-Maior do Exército.

A acelerada escalada de funções e promoções fazia parte dos planos do grupo de Costa e Silva para lançá-lo candidato a presidente. Quando eles decidiram reformular o SNI, Médici surgiu como candidato natural para assumir o seu comando; era tido como preparado intelectualmente e plenamente identificado com a tropa.

Ele assumiu o novo cargo em 15 de março de 1967, substituindo o general Golbery do Couto e Silva. Sua missão era transformar o órgão numa máquina poderosa, um monstro, como seria nominado pelo próprio Golbery, com vários tentáculos que vasculhavam todos os escaninhos do país. Cabia a Médici implementar as regras da Lei de Segurança Nacional decretada por Castello Branco, um de seus últimos atos na Presidência da República.

Antes mesmo da posse, disse que seu gabinete estaria aberto aos jornalistas, cumprindo o preceito de que um homem público deve exercer suas funções dialogando com a imprensa, “o termômetro da opinião pública”. Em sua primeira entrevista após ser confirmado no cargo, deixou claro como seria sua gestão.

– Se você fantasiar minhas informações ou publicar o que eu não disse, não precisa me procurar nunca mais – avisou, antes de começar.

Disse que tinha curso de informação e contrainformação e que se preocuparia diariamente com a “verdade das notícias”. Sentia-se contente em chefiar o SNI, que não era um órgão “policial ou político”, e pretendia ampliar os serviços, fornecendo ao governo um noticiário completo das críticas à administração, aspirações e anseios do povo. Não permitiu que as perguntas fossem publicadas e se negou a falar das mudanças que seriam implementadas em sua administração.

Pouco mais de dois meses após a posse, no entanto, um escândalo deu as dimensões do que seria o SNI de Médici. Mário Monteiro, escriturário da Caixa Econômica Federal, que atuava como “agente secreto” – era agente do SNI e da Polícia Federal – foi flagrado por jornalistas praticando violências contra presos políticos e criminosos comuns em salas do Palácio do Catete, antiga residência presidencial da República, local em que Getúlio Vargas se suicidou.

O caso ganhou dimensões de escândalo quando surgiu a informação de que o filho de um general do Exército havia sido preso e torturado. Médici disse que as denúncias seriam apuradas imediatamente, mas o estrago já estava feito. Com o aparecimento das denúncias nos jornais, Monteiro mandou limpar as salas-prisão que funcionavam no segundo andar do Palácio do Catete e transferiu dois presos para outros estados e os demais para o seu sítio em Marquês de Valença, a mais de cento e cinquenta quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, usado como centro de torturas. As duas salas usadas por Monteiro eram guarnecidas por guardas civis a serviço da Polícia Federal.

O disfarce de Monteiro na Caixa Econômica Federal servia também para ocultar seu patrimônio obtido em ações criminosas. O “escriturário” foi designado chefe do Setor Administrativo do Departamento Federal da Segurança Pública (DFSP) – precursor da Polícia Federal – pelo Coronel Leitão, diretor-geral e ex-homem de confiança do general Golbery do Couto e Silva que se aliou a Médici, que funcionava anexo ao Palácio do Catete, com a missão de montar a estrutura que serviria às prisões e torturas.

Mais tarde, Monteiro foi designado para o cargo de chefe do Serviço de Diligências Especiais do Gabinete do coronel Leitão, controlando, na prática, toda todo o sistema de policiamento federal existente na Guanabara. Era o super-homem do coronel Leitão, que respondia diretamente a Médici. Passava por ele a administração das viaturas, das armas – inclusive de uso privativo do Exército – e do contingente de policiais. Desfilava com uma pistola 45 à mostra e mantinha à vista, ao lado da sua mesa de trabalho, uma metralhadora.

O protegido do coronel Leitão formou um grupo de apaniguados que fazia razias para arrastar inimigos do regime ao Palácio do Catete. Usavam carros que diziam ser deles, com chapas frias, e agiam com brutalidade desmedida. Monteiro era o mais selvagem do grupo. Comandava as torturas com sadismo e gritava para quem quisesse ouvir que estava a serviço do comandante-general Emílio Garrastazu Médici. Até o major Lair Andrade de Almeida, responsável pela administração do Palácio do Catete e integrante da equipe de relações públicas do presidente Costa e Silva, se submetia às práticas de Monteiro.

A repercussão do caso fez Médici exigir do coronel Leitão medidas duras contra a presença de jornalistas nas imediações dos órgãos públicos. Alguns foram detidos e avisados que, em caso de reincidência, o Monteiro e sua equipe tinham carta branca para agir. A nova Lei de Imprensa dava respaldo “legal” a eles.

Preocupado com as contestações ao regime de casos como aquele, o chefe do SNI decidiu correr o país para expor as novas regras da Lei de Segurança Nacional. Em Porto Alegre, Médici reuniu-se com o governador gaúcho, Peracchi Barcelos, e deu ordens para que fosse evitada a fuga de “subversivos” pela fronteira com o Uruguai.

Médici também estava preocupado com as inquietações dos trabalhadores, motivada pelo brutal arrocho salarial imposto com a política econômica do regime. Ele falou do assunto quando tomou posse no Conselho de Segurança Nacional, agora predominantemente ocupado por militares, conforme determinava a nova Constituição outorgada e a Lei da Reforma Administrativa. Disse também que a escolha do coronel Jarbas Passarinho para o Ministério do Trabalho, “um militar de pulso firme”, não poderia vir em melhor hora.

O chefe do SNI já era a principal referência daquele grupo de militares. Qualquer crítica a ele resultava em Inquérito Policial Militar e todos os críticos eram devidamente fichados. Uma festa para celebrar o aniversário dos seus sessenta e dois anos de idade reuniu militares de alto patente, incluindo Costa e Silva. Em um almoço realizado no Quartel General do 3º Exército, em Porto Alegre, com a presença do governador e militares de alta patente – entre eles, Médici – e do presidente Costa e Silva, o comandante daquela Região, o general Álvaro da Silva Braga, disse que que as Forças Armadas estavam “unidas como uma família”.

Havia circulado boatos de que Médici seria exonerado, fato negado por ele mesmo.

– Não tomo conhecimento de boato divulgado por uma colunista social – respondeu, ao ser questionado por jornalistas.

O boato originou-se dos preparativos da promoção de três generais-de-exército para generais-de-divisão, entre eles Médici. Nessa função, ele assumiria o posto de comandante do 3º Exército, da Região Sul, de onde sairia para ser presidente da República, assunto que começou a ser decidido em reunião do Alto Comando das Forças Armadas dia 21 de julho de 1967. Circularam informações de uma lista tríplice, mas o martelo foi batido por unanimidade, várias reuniões depois. Era, na verdade, uma manobra para aniquilar as pretensões do grupo do general Albuquerque Lima.

O caminho estava aberto para Médici comandar a máquina terrorista do Estado, uma engrenagem que pretendia moer definitivamente a resistência democrática. As torturas, assassinatos e desaparecimentos foram intensificadas. Seu sucessor, general Ernesto Geisel, anunciou a abertura lenta, gradual e segura, uma nova fase da ditadura e da resistência ao regime, que se intensificaria no governo de João Baptista Figueiredo e enterraria a ditadura em 1985.

PCdoB cento e três anos: as lideranças das gerações comunistas

Prólogo do livro Renato Rabelo – vida, ideias e rumos

O sorriso largo não deixava dúvida. João Amazonas estava feliz ao receber uma placa homenageando seus quase sessenta e sete anos de militância comunista, perto de completar quarenta anos como principal dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Pouco antes, estivera na tribuna do X Congresso do Partido, realizado entre 9 e 12 de dezembro de 2001 no Centro de Convenções Riocentro, Rio de Janeiro, para apontar, com voz serena e embargada, Renato Rabelo, então vice-presidente, como seu substituto. A quarta geração de dirigentes estava assumindo o comando do Partido.

Os mais de oitocentos delegados, representando em torno de duzentos mil filiados, além dos convidados e trinta e duas delegações estrangeiras, ouviram, em silêncio absoluto, Amazonas dizer que Renato era um bom camarada, que vinha se destacando no Partido e procurando seguir suas tradições de luta.

Em pé, trajando terno e gravata, com as mãos apoiadas na mesa, Amazonas falou, num breve discurso, que completaria noventa anos de idade em 1º de janeiro de 2002 e não tinha mais condições físicas para ocupar o cargo máximo da direção partidária. Pediu aos seus camaradas dispensa da função. Não havia cargo vitalício no PCdoB, mas não estava pedindo aposentadoria, comunicou. Queria morrer em sua banca de trabalho, continuando a luta pelos ideais que procurou defender durante a vida. Seguiria membro do Comitê Central, agora no simbólico posto de presidente de honra.

Agradeceu pelo apoio que sempre teve “nas fileiras do glorioso e heroico Partido Comunista do Brasil” e virou-se para a esquerda, onde estava sua companheira de jornada, Elza Monnerat. Sentou-se lentamente. Com o gesto, retirou-se simbolicamente do posto que ocupava desde 1962, quando o Partido foi reorganizado. Às suas costas, um painel do Congresso ostentava as imagens de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lênin.

Em cem anos de atividades do Partido Comunista do Brasil, passaram por sua direção, antes de Renato, à frente de gerações de dirigentes, Astrojildo Pereira – que liderou a fundação e os primeiros anos do Partido –, Luiz Carlos Prestes – que assumiu na Conferência da Mantiqueira, de 1943, na reconstrução após a ditadura do Estado Novo – e Amazonas, uma das lideranças da reorganização na Conferência extraordinária de 1962.

Nas duas conferências – de 1943 e de 1962 –, os comunistas recomeçavam praticamente do zero, uma atividade de construção e reconstrução do Partido que Amazonas comparava à mitológica Fênix, a ave da literatura grega que renasce de suas cinzas.

Passagem para Renato Rabelo

Na passagem de comando para Renato, Amazonas destacou o papel dos camaradas da direção coletiva na sua geração, dos quais lembrava com saudades e respeito pela sua combatividade. Citou Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luís Guilhardini e outros tantos que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade – a ditadura militar – para defender os interesses do povo.

Com os assassinatos daqueles camaradas, coube a ele maiores responsabilidades. O ingresso de Renato e outros dirigentes da Ação Popular (AP) no Partido, no começo da década de 1970, reforçou a direção. Foram recebidos com entusiasmo. Estavam entrando para o PCdoB em um momento de alto risco, quando a repressão atacava ferozmente os comunistas. A caçada aos que, de uma forma ou de outra, estavam ligados à Guerrilha do Araguaia era uma obsessão da ditadura militar.

Começava ali o trajeto que levaria à quarta geração de dirigentes, reunindo remanescentes da incorporação da Ação Popular e novas lideranças. Quando Renato ingressou no PCdoB, encontrou na direção quadros experientes, marcados por combates que vinham dos anos 1930. Não conheceu Grabois, morto em ação armada na Guerrilha do Araguaia, mas foi recebido por Amazonas, Pedro Pomar e Elza Monnerat, sobreviventes das matanças promovidas pela ditadura e antigos dirigentes comunistas.

Amazonas ingressou no Partido em Belém do Pará, sua terra Natal, onde fora preso em atividades da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que organizava o Levante de 1935, assim como Pomar. Elza Monnerat viera do Rio de Janeiro. Ingressara no Partido em 1945. Foram lideranças da reorganização de 1962, quando o Partido enfrentou um surto revisionista e reformista, processo iniciado em 1956 sob o influxo do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Com o golpe de 1964, diante da quase impossibilidade da luta revolucionária nas cidades, foram para o campo organizar a guerra popular, o caminho da luta armada, a resistência à ditadura. Amazonas e Elza sobreviveram à repressão à Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará. Pomar esteve em diferentes regiões do Norte e do Nordeste. Fixou-se no Vale do Ribeira, organizando bases da guerra popular nas montanhas do Sul do estado de São Paulo, e seria morto na Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976.

Liderança de João Amazonas

Amazonas assumiu a liderança da terceira geração de dirigentes, em 1962 – ao lado de Maurício Grabois, Pedro Pomar e outros –, com a experiência de membro do Comitê Central desde a Conferência da Mantiqueira, de 1943, assim chamada por ter sido realizada nas proximidades da serra com esse nome, numa casa de taipa, moradia de uma propriedade rural que pertencia a um militante comunista, no meio da mata, em Engenheiro Passos, distrito de Resende, Sul Fluminense, entre 28 e 30 de agosto de 1943. Nela, o Partido foi reconstruído após a feroz perseguição do Estado Novo, instaurado com o golpe de 1937.

Sua militância política começou na “Ala Moça” da União Popular do Pará (UPP), uma frente única organizada para participar das eleições municipais de Belém em 30 de novembro de 1935. O passo seguinte seria o ingresso no Partido Comunista do Brasil, tendo como caminho a ANL, organizadora do Levante de 1935, liderada por Luiz Carlos Prestes. Ingressou também na União dos Proletários.

Quando a ANL surgiu com força no país, Amazonas participou de uma ação ousada ao içar, à noite, uma bandeira da organização nos mastros dos reservatórios de água da Lauro Sodré, local com ampla visibilidade na cidade, com vinte metros de altura. O jornal Folha do Norte de 19 de dezembro de 1935 noticiou o fato notado pelo público desde a manhã do dia anterior. Os participantes do protesto escreveram, segundo a Folha do Norte, com tinta arroxeada, várias inscrições – como Viva Luiz Carlos Prestes, Viva a ANL e Viva o comunismo.

Na repressão que se instalou no país após o Levante, Amazonas foi preso na Cadeia de São José, descrita pela Folha do Norte como “um antigo e inqualificável pardieiro, uma ignomínia”. Um ano depois, a Justiça mandou soltá-lo, quando terminou o estado de guerra. Mergulhou na clandestinidade, mas logo seria preso novamente.

Segundo o inquérito que determinou a sua prisão, nas palavras da Folha do Norte, “João Amazonas agia no preparo de matrizes e boletins subversivos da propaganda moscovita, matrizes que eram entregues a Pedro de Araújo Pomar, detido há dias passados”, encarregado “de mimeografá-los em grande quantidade para os espalhar sorrateiramente pelos bairros da cidade”. Eram “pouquinhos, mas teimosos os adeptos do credo sinistro”.

Foram para a prisão de Umarizal, em Belém, de onde fugiram e, numa longa e penosa viagem, chegaram ao Rio de Janeiro para se juntar aos comunistas que reconstruíam o Partido, ainda na vigência do Estado Novo, liderados por Maurício Grabois. A decisão foi tomada após a informação de que a Alemanha nazista invadira a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 22 de junho de 1941. Fugiram em 5 de agosto. Chegaram ao Rio de Janeiro e se integraram à Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), criada por Maurício Grabois e outros comunistas para reestruturar o Partido desarticulado pelo Estado Novo.

Amazonas empregou-se como auxiliar de contabilidade, no centro da cidade. Era uma forma de fazer algum recurso enquanto a CNOP pavimentava os caminhos para o início de uma nova jornada. Logo foi para Minas Gerais. Recebeu alguns mil-réis e a passagem de trem que o levaria para as terras onde deveria fazer rebrotar as raízes comunistas. Outro ponto visitado por Amazonas foi a Bahia, de onde partiu o dirigente Diógenes Arruda Câmara para se integrar à CNOP. O objetivo era realizar uma Conferência Nacional e eleger um Comitê Central.

Os comunistas ressurgiam com força, presentes em organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), além da Liga de Defesa Nacional – uma frente com vários departamentos, entre eles o sindical, assumido por Amazonas, embrião do Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT). O Partido priorizava a organização de células nas empresas, formando uma grande base de trabalhadores.

De 1941 a 1945 foram anos de luta aguda contra o liquidacionismo – os que pretendiam liquidar o Partido, dissolvendo-o numa frente contra o nazifascismo –, disse Amazonas. “É preciso dizer que a desvantagem era grande. Vencemos porque a verdade estava do nosso lado”, afirmou. A nova equipe que assumia a defesa do Partido – registrou Amazonas – eram pessoas desconhecidas quase completamente. “Afinal, essa nova equipe – Arruda, Grabois, Pomar, eu etc. – eram pessoas que não tinham nenhuma posição no Partido, na época, a não ser locais, naqueles lugares onde tínhamos atuado.”

Na Conferência da Mantiqueira Amazonas assumiu a Secretaria Sindical e de Massas. A direção eleita contava também com Grabois, Pomar, Arruda, José Medina Filho, Álvaro Ventura, Jorge Herlein, Francisco Campos, Agostinho Dias de Oliveira e Lindolfo Hill.

Naquele processo, o encontro de Amazonas, Pomar, Grabois e Arruda representou as fundações de uma nova fase do Partido Comunista do Brasil. A meta era enterrar a ditadura do Estado Novo e liquidar o nazifascismo. Em 9 de agosto de 1943, o governo do presidente Getúlio Vargas decidiu organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Segundo Amazonas, os comunistas foram os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil na Segunda Guerra Mundial. “E o fizemos de maneira consequente”, constatou.

Os comunistas lideraram grandes manifestações para redemocratizar o país, defendendo uma Assembleia Nacional Constituinte, principalmente após a legalidade, em meados de 1945. Amazonas foi eleito deputado constituinte, o mais votado do Distrito Federal, sediado então no Rio de Janeiro. Depois da cassação do registro do Partido – em 1947 – e dos mandatos comunistas – em 1948 –, voltou à clandestinidade.

No debate deflagrado pelas mudanças do PCUS, Amazonas foi um dos primeiros a se pronunciar. Seu primeiro artigo, intitulado As massas, o indivíduo e a história, publicado no jornal Voz Operária em 26 de janeiro de 1957, contestou duramente a base dos argumentos daqueles que iniciaram os ataques ao Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB. Disse que eram as massas que faziam a história, mas “não se pode concluir que seja nulo ou insignificante o papel das personalidades”.

Amazonas voltaria a escrever em 2 de fevereiro de 1957 para defender a ideia de que “o Partido Comunista elabora sua orientação e enriquece seus princípios coletivamente”. “Isso dá ao Partido do proletariado uma grande vantagem sobre os partidos burgueses”, asseverou.

Nos debates do V Congresso, em 1960, também inovou ao abordar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil pela via prussiana (as análises de Marx e Engels sobre o desenvolvimento capitalista no espaço da Prússia e do que viria a ser a Alemanha sem alterações na propriedade da terra).

Segundo ele, as Teses do Congresso se equivocavam ao definir “que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas”. “O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio. Pode também o capitalismo crescer, substituindo a dependência do país ao imperialismo”, escreveu. “Não é o crescimento do capitalismo que leva à independência e às transformações democráticas, como se afirma implicitamente nas Teses.”

Os debates do V Congresso evoluíram para o “racha” e a reorganização. No jornal do Partido A Classe Operária, Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização, revelando nuances daquela batalha. Os que assumiram o controle partidário elaboraram um novo Programa e novo Estatuto para a criação de outro partido, o Partido Comunista Brasileiro, que assumiu a sigla PCB. Segundo Pomar, toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

A atitude revoltou os comunistas que combateram a linha vitoriosa no V Congresso. Imediatamente enviaram à nova direção um documento denominado Em defesa do Partido, com cem assinaturas – que ficaria conhecido como Carta dos cem –, solicitando a revogação das mudanças anunciadas. O documento classificava as medidas como uma “violação frontal dos princípios partidários, aberta infração das decisões do V Congresso (que) ferem a disciplina e atingem a própria unidade do Partido”.

De acordo com o documento, “as mudanças feitas no nome, no Programa e nos Estatutos objetivam o registro de um novo partido e, por isto, se suprime tudo que possa ser identificado com o Partido Comunista do Brasil, de tão gloriosas tradições”. “Ora, precisamente o partido que deve conquistar a legalidade é o Partido Comunista do Brasil e não um arremedo de partido de vanguarda do proletariado”, asseverava.

A resposta do Comitê Central foi, como destaca Pomar, de intolerância a toda prova. “Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisionismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

Após o golpe militar de 1964, o Partido, agora com a sigla PCdoB, começou a estudar o caminho da guerra popular. “Em toda parte, em especial no campo, é preciso discutir os problemas da luta armada e, guardadas as normas de trabalho conspirativo, tomar medidas visando à sua preparação prática”, diz o texto da VI Conferência, de 1966. O PCdoB saiu a campo à procura dos melhores lugares para instalar a guerrilha, com três grupos de trabalho – um dirigido por Amazonas e Grabois, outro por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, e um terceiro por Carlos Danielli.

Amazonas se integraria ao Araguaia, Sul do Pará, onde Grabois e outros militantes do PCdoB desenvolviam o trabalho da guerra popular. Na ocasião, Amazonas e Grabois escreveram dois importantes documentos: A atualidade do pensamento de Lênin e Cinquenta anos de luta, sobre a história do Partido Comunista do Brasil.

Liderança de Luiz Carlos Prestes

Luiz Carlos Prestes assumiu a liderança da segunda geração de dirigentes comunistas na Conferência da Mantiqueira. Ainda nos cárceres da ditadura do Estado Novo, preso por ter liderado a ANL no Levante de 1935, foi eleito secretário-geral. Seu prestígio decorria da liderança na Coluna Invicta, um movimento nunca derrotado que percorreu o Brasil no final da década de 1920 combatendo os desmandos da República Velha e fermentando as condições para a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

Prestes desembarcou clandestinamente no Brasil em 15 de abril de 1935, vindo da União Soviética, onde estava exilado, para liderar o Levante. O governo Vargas baniu a ANL da legalidade e, após o malogro do movimento rebelde, desencadeou uma violenta onda repressiva.

Prestes foi preso em 5 de março de 1936, depois de uma caçada comandada pelo chefe da polícia política, Filinto Müller, que esquadrinhou o bairro do Méier e revistou casa por casa. Estava com a esposa, a alemã Olga Benário, deportada grávida para a Alemanha nazista onde morreu em uma câmara de gás, na cidade de Bernburg, pouco depois de dar à luz Anita Leocádia Benário Prestes.

Com a reviravolta na Segunda Guerra Mundial, quando os soviéticos começaram a empurrar os nazistas de volta para Berlim, o presidente da República foi para o lado dos Aliados – a aliança de países que combateram o Eixo nazifascista formado por Alemanha, Itália e Japão – e recebeu o reconhecimento dos comunistas. O diplomata Orlando Leite Ribeiro foi designado para ser o elo com Prestes, ainda encarcerado. Em 18 de abril de 1945, Vargas concedeu a anistia aos presos e exilados. Prestes deixou a prisão.

Tempos depois, Prestes avaliaria que o presidente da República precisava dos comunistas, uma força política à época com grande apoio popular. Havia um setor do governo que agia abertamente contra o avanço das medidas democráticas, logo transformado em conspiradores.

Prestes só assumiria de fato a função de secretário-geral no final do “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional, depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto de 1945. O Partido Comunista do Brasil puxava grandes manifestações populares, numa campanha vitoriosa pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte.

A eleição dos constituintes ocorreu em 2 de dezembro de 1945, quando também foi eleito o presidente da República. Compareceram às urnas cerca de seis milhões de eleitores. O candidato a presidente do Partido Comunista do Brasil, Yeddo Fiúza, obteve 569.818 votos, 9,7% do total de votantes. O general Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático (PSD), foi eleito com 55% dos votos e Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), obteve 35%. Os comunistas elegeram catorze deputados federais e Prestes senador.

As perseguições anticomunistas, no entanto, recomeçaram já no início de 1946, quando dois pedidos de cassação do registro eleitoral do Partido Comunista do Brasil foram apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Prestes seguiu na liderança do Partido até 1961, quando assumiu a chefia do Partido Comunista Brasileiro.

Liderança de Astrojildo Pereira

O líder da primeira geração de dirigentes comunistas, Astrojildo Pereira, foi o fundador do Partido. Prestes entrou em contato com os comunistas por seu intermédio. Foi em dezembro de 1927, na Bolívia. Lá estavam os remanescentes da Coluna Invicta. Prestes já era conhecido como o lendário Cavaleiro da Esperança e deixaria seu nome como marca da Coluna, inicialmente chamada de Miguel Costa-Prestes, uma referência ao general que também comandou os revoltosos.

Astrojildo viajou como repórter do jornal A Esquerda, dirigido por Pedro Motta Lima – que comandaria alguns dos jornais do Partido –, levando uma mala carregada de livros de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin e outros, publicações da editora L’Humanité, do Partido Comunista Francês – no Brasil, poucas obras marxistas em português haviam sido publicadas –, possivelmente trazidas quando estivera na União Soviética, em 1924, ou recebidas pelo correio naval. O encontro ocorreu em Porto Suarez, ao lado de Corumbá, a cidade brasileira de Mato Grosso do Sul na fronteira boliviana.

Foi recebido por Prestes e dois oficiais na Coluna, vindos possivelmente da cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, conforme a memória de Astrojildo. Há versões de que os remanescentes da Coluna se instalaram numa localidade chamada La Guaíba. Em Porto Suarez, conversaram por quase dois dias, instalados numa casa simples. O dirigente do Partido Comunista do Brasil transmitiu-lhe o pensamento dos comunistas e as questões que o levaram a procurá-lo.

Segundo Astrojildo, o motivo da conversa era, em suma, o problema político da aliança entre os comunistas e os combatentes da Coluna Prestes, a união do proletariado revolucionário, sob a influência dos comunistas, e as massas populares – especialmente os camponeses – influenciadas pela Coluna e seu comandante.

O PCB estava saindo de um período de clandestinidade, iniciado logo após a sua fundação com a adoção do estado de sítio em julho de 1922, uma resposta do governo Epitácio Pessoa ao movimento tenentista que entrou para a história como a “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, e extinto em 15 de novembro de 1926, já no governo de Washington Luís.

De janeiro a agosto de 1927, o PCB liderou um ciclo de greves operárias. O jornal A Nação, em cuja redação trabalhavam três ou quatro membros do Comitê Central, segundo Astrojildo, divulgava amplamente as ações dos comunistas. Com a chamada “Lei Celerada”, editada em 12 de agosto de 1927, os comunistas voltaram à ilegalidade e tiveram seu jornal fechado.

Nos meses seguintes, o Comitê Central chegou à conclusão de que a derrota sofrida se devia basicamente às posições sectárias do Partido, relatou Astrojildo. Era preciso buscar aliados. Essa era a missão na Bolívia. A essência da conversa, publicada como entrevista em janeiro de 1928 no jornal A Esquerda, alinhava os pontos principais de um programa de frente única, democrática e nacionalista.

Prestes, contudo, foi para a Argentina, onde trabalhou como engenheiro e participou de atividades políticas. Em 1930, lançou um manifesto apontando o caminho da revolução agrária e anti-imperialista, sob a hegemonia da classe operária. Expulso da Argentina, exilou-se na União Soviética e, em 1º de agosto de 1934, foi oficialmente aceito como membro do Partido Comunista do Brasil. No VII Congresso da Internacional Comunista, em agosto de 1935, passou a integrar o seu Comitê Executivo.

A militância anarquista de Astrojildo começou em 1910, no movimento sindical. Trabalhou como tipógrafo de jornal, linotipista, revisor, repórter e redator. Como um dos líderes das greves de 1918 e redator do jornal Voz do Povo, foi preso e processado. Recebia informações da III Internacional Comunista antes mesmo da fundação do PCB, segundo ele pela “correspondência internacional”.

A revista Movimento Comunista, sob sua direção, começou a circular em 1º de janeiro de 1922 com notícias vindas da União Soviética. Em 1924 viajou para a pátria do socialismo. Tomou o navio na Praça Mauá, Rio de Janeiro, precisamente no dia da morte de Lênin, em 21 de janeiro. Como a partida seria à noite, pôde ler a notícia nos jornais vespertinos. De Moscou, enviou matérias para os jornais O Paiz e Correio da Manhã, relatando aspectos do nascente socialismo e comentando como a imprensa anarquista no Brasil distorcia os propósitos da Revolução.

Ele mesmo egresso do anarquismo, via aquele movimento como superado pelo marxismo, compreensão que o havia levado a organizar as primeiras ações visando à fundação do Partido Comunista do Brasil, um movimento conhecido como “os doze astrojildistas”, nominação recebida de Octávio Brandão, outro importante dirigente do PCB daquela geração. De acordo com Astrojildo, em 1921 já havia “acalorados debates nos sindicatos operários” que resultaram na fundação, em 7 de novembro daquele ano – aniversário da Revolução Russa de 2017 –, de um grupo chamado “Centro Comunista”.

A primeira ideia de criar o Partido Comunista do Brasil, diz Astrojildo, havia sido lançada cerca de três anos antes, mas não estava ainda madura e “gorou no nascedouro”. De 1917 em diante, a influência da Revolução Russa tornou-se decisiva, sobrepondo-se pouco a pouco à hegemonia anarquista. Uma onda de greves iniciada naquele ano ficou marcada por manifestação de apoio aos comunistas russos.

Intelectuais também se manifestaram, entre eles Lima Barreto, que, em 1919, publicou um artigo intitulado Manifesto maximalista, com grande repercussão. Segundo Astrojildo, tudo levava a crer que o escritor, falecido em 1º de novembro de 1922, tomaria posição a favor do Partido.

Naquele clima de debates, houve a cisão no anarquismo e a criação do “Centro Comunista”. Os “doze astrojildistas” entraram em contato com comunistas de outras regiões do país e lançaram a revista mensal Movimento Comunista, importante veículo de ligação e preparação política entre os grupos que elegeram delegados para o Congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil.

Depois de seis meses de preparação, nove delegados reuniram-se dias 25 e 26 de março de 1922 no Rio de Janeiro. A reunião final ocorreu dia 27 na pequena sala de visitas da residência de Astrojildo, na Rua Visconde de Rio Branco, número 651, Niterói. Terminados os trabalhos, os delegados levantaram-se e cantaram a Internacional Comunista.

De acordo com Astrojildo, a formação do Partido se deu em pleno fogo da luta de classes e, ao mesmo tempo, sob o fogo de uma dura luta ideológica, reflexo, no Brasil, e segundo as condições brasileiras, da luta ideológica travada no plano mundial pela III Internacional Comunista. Em 1º de maio de 1925, circulou pela primeira vez o lendário jornal do Partido A Classe Operária, do qual Astrojildo era o principal redator.

O jornal surgiu após o ingresso do PCB na Internacional, no seu V Congresso, em 1924. Astrojildo, mesmo ausente, foi eleito para a Comissão de Controle do Comitê Executivo e o PCB passou a ser reconhecido como membro efetivo da organização.

Astrojildo tornou-se um escritor refinado, descrito pelo analista Sylvio Rabello, num texto publicado nos jornais do grupo Diários Associados, como “de uma simplicidade ideal, uma simplicidade que está em boa correspondência com as suas doutrinas e com o curso de sua argumentação, ao mesmo tempo de um virtuosismo do escritor preocupado com a disciplina e o rigor de sua arte”.

Especializou-se na obra de Machado de Assis, com quem esteve pouco antes de sua morte. O encontro foi descrito por Euclides da Cunha em uma homenagem ao escritor no Jornal do Comércio de 30 de setembro de 1908: “Chegou, não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois de algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.” Machado de Assis, disse Astrojildo, foi “o escritor que melhor refletiu em sua obra a vida social e o espírito da sociedade brasileira do seu tempo”.

Astrojildo voltou à União Soviética em 1929, onde permaneceu de março até o final de dezembro. Os acontecimentos no pós-contato com Prestes na Bolívia, segundo ele, “puseram à prova o que havia de tremendamente falso” na concepção da direção do PCB, “que levou o Partido a uma completa e criminosa passividade diante dos acontecimentos de outubro de 1930 (a Revolução liderada por Getúlio Vargas) e às terríveis oscilações da direita para a esquerda e da esquerda para a direita que se seguiram durante meses e anos”.

Naquele ziguezague tático, a direção acusou o Partido de seguir a linha política do “astrojildismo menchevista”. Com a chegada de Prestes, o Partido Comunista do Brasil iniciou nova fase. Astrojildo estava afastado e só voltaria na década de 1940. Sobreviveu do comércio de bananas, numa quitanda do Rio de Janeiro, condição que mereceu de Manuel Bandeira o seguinte poema:

Bananeiras – Astrojildo esbofa-se –
Plantai-a às centenas, às mil:
Musa paradisíaca, a única
Que dá dinheiro neste Brasil.

Em 1945, Astrojildo descreveu o Partido com essas palavras: “O fio d’água desceu minguadinho por entre as pedras, seguiu o seu destino por montes e vales, cresceu de vulto passo a passo, com a afluência de novas águas, engrossando por efeito mesmo das tempestades que sobre ele se formaram, e ei-lo hoje, o grande rio brasileiro, sulco profundo na terra do Brasil, artéria vital no sistema político do nosso país – o Partido Comunista do Brasil.”

Coletivo dirigente

Renato assumiu o comando desse “grande rio brasileiro”, liderando a quarta geração de dirigentes comunistas, no curso natural das águas. Anunciou que o faria ainda mais caudaloso. Os que bebem nessa fonte de interpretações marxistas e progressistas desde 1922 teriam agora uma nova fase de desafios, representados por mudanças de largo espectro nas conjunturas nacional e internacional. “Tentarei dar desenvolvimento ao pensamento político do nosso Partido na nova situação e reunir as inteligências e os meios necessários para enfrentar os novos desafios que nos apresentam. Manteremos a linha revolucionária e flexível que nos possibilitará conquistas ainda maiores”, resumiu.

Amazonas trabalhou a sua sucessão com a dedicação de sempre. Envolveu o coletivo dirigente no processo e fez a transição seguro de que seus métodos como principal liderança do Partido garantiriam a continuidade da marcha revolucionária iniciada em 1922.

Uma de suas principais preocupações, naquele momento, era a tática para as eleições presidenciais de 2002. João Amazonas defendia, desde a campanha de 1989, quando se formou a Frente Brasil Popular (PT, PCdoB e PSB) liderada pelo candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, que, nas condições brasileiras, inseridas na conjuntura da América Latina e do mundo, seria muito difícil a esquerda sozinha ganhar eleições presidenciais.

Amazonas ficou contente quando soube que Lula, na articulação de sua quarta campanha, procurava ampliar a frente. Disse-lhe pessoalmente, na sede do PCdoB, em São Paulo – a última vez que se encontraram –, que a escolha de José Alencar para seu vice era uma boa decisão. Amazonas não chegou a ver a vitória de Lula nas eleições de 2002 – faleceu, cinco meses antes, de causas naturais, no dia 27 de maio de 2002.

Amélia, mulher comunista de verdade

Por Osvaldo Bertolino

Ninguém fazia a menor ideia de quem era aquele casal andando pelas ruas de Mossoró, Oeste do Rio Grande do Norte. Ele um cego e ela sua guia, uma mulher de barriga volumosa, aparentemente perto de dar à luz. Os disfarces escondiam o professor Raimundo Reginaldo da Rocha e sua filha, Amélia Gomes Reginaldo, de dezoito anos de idade, com a roupa com enchimento de pano, fingindo-se grávida. Fugiam das perseguições desencadeadas em Natal, onde participaram do Levante da Aliança Libertadora Nacional (ANL), deflagrado em 23 de novembro de 1935, de armas nas mãos.

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As ideias marxista-leninistas foram lançadas no Rio Grande do Norte por Raimundo, que iniciou a organização do Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB, em 1928. Em Mossoró, incentivou os irmãos a entrarem para o Partido, formando o grupo que ficou conhecido como irmãos Reginaldo. Ingressaram, além de Raimundo, Lauro Reginaldo – que ficaria conhecido como Bangu e seria importante personagem nos primeiros anos do Partido em âmbito nacional –, Jonas Reginaldo, Antônio Reginaldo e Glicério Reginaldo.

O Levante teve importante ponto de apoio na União Feminina Brasileira (UFB), à época organizada clandestinamente em várias cidades do país, que chegou a Natal também sob orientação do professor Raimundo, incumbência que teria recebido de representantes da ANL que foram ao Rio Grande do Norte tomar pulso da situação e incentivar a organização aliancista. Núcleos da UFB se espalharam pela cidade, organizados por homens e mulheres comunistas. Na residência de Raimundo, ocorreram as primeiras reuniões, quando foram debatidas as ideias da ANL. Conhecido por Tomé – seu nome clandestino –, ele foi auxiliado pela esposa, Luiza Gomes, e a filha, Amélia, com o nome clandestino de Clotilde.

Em panfleto com o título Convite, o diretório da União Feminina do Brasil, com “seção no Rio Grande do Norte”, convidou as excelentíssimas famílias “a tomarem parte na União Feminina, a única que luta por Pão, Terra e Liberdade”, o lema da Insurreição. Como todos os boletins, o Convite terminou com proclamações de “viva” a Luiz Carlos Prestes, à Aliança Nacional Libertadora, ao 21º Batalhão de Caçadores – o epicentro do Levante – “e ao povo em armas” – além, claro, à União Feminina.

Amélia assumiu a importante função de coordenadora da correspondência com as demais cidades insurretas – Rio de Janeiro e Recife –, falando em nome do Comitê Revolucionário, que havia se instalado na Vila Cincinato, sede do governo. De acordo com a denúncia do procurador criminal da República no Rio Grande do Norte, Carlos Gomes de Freitas, Amélia e outras mulheres invadiram o 21º Batalhão de Caçadores fardadas e portando armas pesadas. Como secretária do Comitê Popular Revolucionário, contribuiu na edição do jornal A Liberdade, o órgão oficial do Levante. Foi a única condenada, das mulheres que participaram do Levante, e recebeu pena de cinco anos de reclusão. Sua prisão foi decretada em 4 de setembro de 1936.

Além de Amélia, Leonila Felix – segundo Graciliano Ramos, no livro Memórias do cárcere, uma mulher branca, nova, bonita –, esposa de Epifânio Guilhermino, motorista de táxi responsável por reunir carros e caminhões para os revoltosos, se destacou por participar do Levante fardada e portando arma.

Raimundo Reginaldo e Amélia dirigiram-se à cidade de Picos, no Piauí. Havia, por parte do governador Rafael Fernandes, uma particular sede de vingança contra ele. Também originário de Mossoró, o governador tentara cooptá-lo, oferecendo-lhe a inclusão do seu nome numa chapa eleitoral pela qual seria eleito deputado estadual. Diante da recusa, foi transferido para lecionar na Casa de Detenção, em Natal, posto que lhe possibilitou a soltura dos presos para ajudar no Levante.

A fuga de Raimundo e Amélia começou antes do amanhecer de 27 de novembro de 1935. Com eles estava um garoto, chamado Eucário, que morava com a família, segundo Amélia em carta enviada ao tio Lauro, o Bangu. Passaram pela casa de um simpatizante do Partido, onde ficaram por certo tempo, ela escondida num quarto e eles no mato. Chegou a informação de que as residências de suspeitos estavam sendo revistadas e Amélia se juntou a Raimundo e Eucário. Alimentavam-se de frutas e do que o menino conseguia comprar.

Três meses depois, voltaram à casa do simpatizante, que comprou roupas e alimentos para que prosseguissem na fuga. Conseguiram tomar um trem com destino a Recife, viajando um distante do outro, até perceberem que estavam sendo observados por policiais. Numa parada, saltaram e se refugiaram num matagal. Decidiram caminhar na direção contrária, rumo a Natal, para despistar a polícia, onde foram recebidos por simpatizantes do Partido.

Raimundo foi trabalhar com um grupo de madeireiros. Comprou uma casa de palha e lá ficou até ser reconhecido. A polícia montou um cerco, mas, percebendo a movimentação estranha, ele fugiu pouco antes do ataque. Passou na casa onde estava Amélia e partiram, com destino a Juazeiro, no Ceará. Foi quando cruzaram Mossoró.

O menino Eucário possivelmente ficou em Natal. Seu destino não consta da carta de Amélia ao tio, mas em seu relato ele deixa de acompanhá-los. Com a polícia no encalço, que prendera e torturara parentes, chegaram a Juazeiro e fixaram residência. Raimundo montou uma “bodega” e Amélia foi morar na casa de um parente em Crato, cidade vizinha a Juazeiro.

A esposa, Luiza, ficara em Mossoró e Reginaldo decidiu visitá-la. Mesmo com toda cautela, a informação chegou à polícia, que divulgou a informação de que ele estaria por lá à frente de um grupo de bandidos, ameaçando assaltar fazendeiros. Mas foi e voltou sem incidente. Logo chegou a informação de que a caçada a eles se estendia por toda a região e decidiram rumar para o Piauí. E por lá ficaram.

Algum tempo depois, Raimundo faleceu de ataque cardíaco. Amélia relata que, quando ele começou a se sentir mal, pediu para ela cantar A Internacional Comunista, o hino de sua paixão, que relembrava suas lutas, seus ideais de redenção do povo brasileiro. “Notando que ele estava muito comovido, eu não quis cantar. Ele insistiu e eu não pude continuar me esquivando. Comecei a cantar. Aí as lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Eu parei de cantar e procurei mais uma vez reanimá-lo. Passado algum tempo, ele começou a passar mal. A agonia de que vinha se queixando, voltou forte, violenta”, detalha.

Amélia casou-se – passou a se chamar Amélia Nogueira Feitosa –, teve filhos e não se apartou da sua biblioteca, que começou a montar assim que se estabeleceu no Piauí. Renato Duarte, no livro Picos – os verdes anos cinquenta, diz que Amélia singularizava-se como pessoa simples e recatada, ao mesmo tempo culta. “Leitora ávida de livros e revistas, possuía uma das poucas bibliotecas particulares da cidade”, uma “mulher diferente dos padrões de comportamento feminino de então”.

O hábito da leitura vinha de quando fora líder estudantil na Escola Normal de Mossoró. Recebeu inicialmente o nome de Rosa de Luxemburgo e cresceu em meio às lutas populares. Entre suas leituras, estavam Victor Hugo, Euclides da Cunha, Jorge Amado, Karl Marx e Vladimir Lênin. À frente da União Feminina do Brasil, foi a principal protagonista do Levante. Amélia faleceu em 11 de novembro de 1978, de problemas causados por hipertensão e diabetes.

Adaptado do livro Rio Vermelho – raízes potiguares do Brasil democrático e progressista desde o Levante de 1935  

Biografia de Renato Rabelo retrata frondosa árvore da notável floresta socialista

Biografia de Renato Rabelo: Frondosa árvore de uma notável floresta

Por Adalberto Monteiro

Quando uma árvore, por seu porte, por suas raízes profundas, por inúmeras floradas e iguais colheitas proporcionadas, por tantas sementes dela germinadas, desponta-se em uma alta floresta, vem de quem a enxerga a indagação de quanto disso e daquilo ela teve de enfrentar e vencer para adquirir aquela presença destacada, valorizada, naquela paisagem por si só rica e diversa.

A biografia de Renato Rabelo, pelo trabalho arguto e meticuloso do historiador e biógrafo Osvaldo Bertolino, dá-nos acesso às páginas da vida deste destacado dirigente do PCdoB e ao mapa de uma longa e realizadora militância revolucionária. O livro é uma realização da Fundação Maurício Grabois, da qual Renato é, hoje, o presidente de honra.

Trata-se de um trabalho de mais de três anos, alicerçado em pesquisas, apoiado em fontes, muitas até então inéditas; além, é claro, de horas e horas de gravação com o biografado. Osvaldo, não fosse historiador, biógrafo, poderia ter sido roteirista de cinema. Por vezes, leitor, leitora, a fluência do texto nos faz ver, enxergar, assistir, sentir fatos vividos por Renato. Riqueza de detalhes, reconstituição de cenários e circunstâncias, mas sempre marcando o significado de cada episódio.

As minúcias são na verdade chaves através das quais somos transportados aos portais do tempo. Quais a senha e a contrassenha que os/as estudantes delegados/as tinham que pronunciar para ter acesso ao clandestino XXVIII Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE)? Quem é o personagem da palavra de ordem entoada pelas passeatas estudantis de meados dos anos 1960: Osso, osso, abaixo o sem-pescoço?

A biografia de Renato flui, pela maestria de Bertolino, carne e unha com a história do Brasil, entrelaçada com as histórias da Ação Popular (AP), da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, também, do movimento comunista internacional. Vê-se a presença destacada de Renato em batalhas e confrontos decisivos para o Brasil e para o proletariado, a luta pelo socialismo nas últimas seis décadas e um rol de feitos e realizações de sua militância.

O Índice Onomástico da obra evidencia um conjunto numeroso de nomes de quadros e lideranças da AP e do PCdoB, que torna patente o trabalho coletivo que Renato sempre valorizou como método de trabalho; e, também, de personalidades dos campos democrático e popular do país que, por sua vez, refletem a política de alianças amplas do PCdoB da qual Renato é um dos elaboradores e protagonistas na aplicação. Os textos, neste livro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidente Dilma Rousseff bem simbolizam a dimensão destas relações de aliança, bem como a estatura do legado político de Renato.

Um dos méritos da obra de Bertolino, aliás um dos traços também presentes em biografias anteriores, é não circundar nenhuma auréola em torno da cabeça do biografado. Movimenta-se, então, um Renato substantivamente humano, terrestre, como você, ele, ela e eu, que tem família, que se diverte, que se embevece com uma taça de vinho, que se entristece, que tem saúde, que adoece, que trabalha muito, acerta e erra. A vida sempre modesta, por vezes, duramente difícil, de Renato e da família.

Em diferentes circunstâncias, a biografia ressalta duas características dominantes da personalidade de Renato: a empatia e a imensa capacidade de ouvir e de, assertivamente, interagir com a ideias a ele apresentadas, mesmo que delas tenha divergência; e a coragem política, a firmeza de tomar decisões.

Uma essência transborda da biografia de Renato: sua maior obra e legado é ter aportado, ao acervo teórico, político e ideológico do Partido Comunista do Brasil, importantes contribuições teóricas e políticas que enriqueceram o pensamento tático, estratégico e programático da legenda comunista, como também a práxis de sua edificação e atuação na arena da luta de classes. A isso se soma um elenco de quadros comunistas em relação aos quais o papel de Renato foi destacado para formá-los, seja na Escola Nacional João Amazonas, seja na estrutura do Partido, seja nas frentes de atuação, notadamente no movimento estudantil.

E este aporte alinhava o fluxo da biografia, revelando-nos em que circunstâncias, no curso de quais confrontos da luta de classes, no Brasil e no mundo, o legado de Renato foi se erguendo.

E, temporalmente, isso se dá ao longo de mais de sessenta anos de militância. O marco zero deste itinerário é o final dos anos 1950, quando, no interior da Bahia, no último ano do colégio, assumiu a secretaria geral do grêmio estudantil. Segundo Osvaldo Bertolino, Renato “queria conhecer Salvador, ver o Brasil, tomar pulso do mundo”. Sonho que, como se sabe, concretizou-se.

A sua jornada de lutas se inicia no âmbito da juventude católica, orientada pela Teologia da Libertação. E, logo a seguir, nas fileiras revolucionárias da Ação Popular, e, a partir de 1973, após incorporação desta organização à legenda comunista, no núcleo dirigente do PCdoB. Trajetória essa que chega ao ápice no período de dezembro de 2001 a maio de 2015, quando, por indicação de João Amazonas, liderança histórica dos comunistas, Renato é eleito pelo Comitê Central para exercer a presidência do Partido Comunista do Brasil.

Uma vida longa é a um só tempo privilégio e desafio. Desafio, pois que, quaisquer que sejam as vicissitudes, a liderança comunista é chamada a descrever uma linha de coerência. Da primeira página até a última do livro, o que costura o itinerário de lutas de Renato são três palavras: coerência, convicção e compromisso, com ideais do comunismo, com um projeto de nação, de um Brasil democrático, soberano, socialista, que abraçou com ardor e consciência desde a juventude.

A maturação da têmpera revolucionária de Renato, o processo cumulativo de suas qualidades respondendo às responsabilidades cada vez mais elevadas de mandatos oriundos do coletivo, deram-se consoante, sobretudo, à dinâmica da luta política do país, mas também sob os impactos dos conflitos e confrontos que se irromperam na realidade mundial e, é claro, das vicissitudes do movimento comunista brasileiro e internacional com suas vitórias, mas, também, com suas divisões e seus reveses.

O retrato de Renato, pelos traços de sua biografia, revela uma liderança de ação, de combate, de verdadeira gana por intervir nas principais lutas sociais, políticas, ideológicas, travadas no país nas últimas seis décadas. E, ao mesmo tempo, sistematiza e generaliza a prática transformadora, estuda, elabora, a partir do marxismo, formulações que buscam responder aos nexos principais da luta de classes em cada momento histórico, jamais se deixando aprisionar por verdades pétreas.

E sempre que a prática e o curso da história revelam erros ou insuficiências, com base no método leninista da crítica e da autocrítica, abraça ou participa da gênese do novo, que faz a teoria e a prática avançarem.

Para completar, o terceiro traço do retrato se avulta: construtor do Partido Comunista do Brasil, com a seiva da luta política e de massas, com a teoria marxista-leninista a toda carga, com sua essência transformadora iluminando a prática revolucionária.
Finalmente, a biografia de Renato é um acervo vivo e pulsante de ideias e práticas transformadoras, de convicções e de energia revolucionárias que nos convidam, nos convocam, a prosseguir as jornadas de lutas pela construção do socialismo em nosso país.

Adalberto Monteiro é jornalista e poeta, secretário nacional de Formação e Propaganda do PCdoB

________

Serviço:

Título: Renato Rabelo – vida, ideias e rumos
Autor: Osvaldo Bertolino
ISBN: 978-65980456-4-7
Publicação: Fundação Maurício Grabois
Ano de publicação: 2025
Páginas: 848

Fonte: www.gradois.org.br

Diário de Maurício Grabois: espírito de Armando Falcão paira sobre a revista CartaCapital

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 09/07/2011

Já se passaram mais de dois meses desde que formalizei o pedido de resposta ao uso indevido do meu nome na farsa do jornalista Lucas Figueiredo publicada pela revista CartaCapital durante a polêmica sobre o suposto diário de Maurício Grabois.

Até agora tem prevalecido, possivelmente encarnado no redator-chefe da revista, Sergio Lírio, o espírito de Armando Falcão — o porta-voz da linha-dura nos tempos da censura da ditadura que tinha “nada a declarar” como expressão predileta.

Além da adulteração do meu texto pelo jornalista, a revista publicou que ele estava respondendo a um “funcionário da Fundação Maurício Grabois”, ignorando que escrevi como pessoa física, no meu blog particular, O outro lado da notícia. O Portal Vermelho e o blog Luis Nassif Online reproduziram meu texto — o segundo a meu pedido — e indicaram devidamente a fonte.

O redator-chefe de CartaCapital, Sérgio Lírio, respondeu ao meu pedido de resposta em tom agressivo e fez duas ameaças: que poderia ignorar meu pleito ou publicar o texto que enviei com respostas do Lucas Figueiredo e dele próprio. Cumpriu a primeira. Disse, cinicamente, que “Lucas Figueiredo apenas respondeu a um texto seu (meu)”. “Portanto, cabia a ele um ‘direito de resposta’, delirou, sem considerar que a revista não publicou nenhuma palavra dos meus vários pedidos.

Mais adiante, CartaCapital publicou um texto do presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, com link no rodapé para a falsificação do Lucas Figueiredo.

Diário de Maurício Grabois: resposta de Lucas Figueiredo tem pernas curtas

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 29/04/2011

Quem jacta-se de si mesmo pouco tem do que jactar-se. A frase atribuída a Honoré de Balzac cai como uma luva para o título Quando o jornalismo incomoda da resposta do jornalista Lucas Figueiredo em seu blog aos comentários que fiz sobre sua matéria na revista CartaCapital comentando o suposto diário de Maurício Grabois. O que menos existe em sua argumentação é jornalismo.

Já de saída ele recorre a uma manobra diversionista ao declarar que, “vinda de dois flancos que se abrigam numa mesma trincheira”, recebeu “uma saraivada de críticas”. (Segundo o dicionário Houaiss, “diversionismo” é, entre outras coisas, um estratagema usado para impedir que se discuta algo ocupando todo o tempo ou desviando-se a atenção dos participantes para assunto diferente do que está sendo tratado.) Refere-se ao editorial do Portal Vermelho sobre o tema e aos meus comentários, misturando alhos com bugalhos.

Com sua habitual modéstia, Lucas Figueiredo informa que em sua matéria destrincha “o até então inédito diário que o comandante da Guerrilha do Araguaia, Maurício Grabois, escreveu entre abril de 1972 e dezembro de 1973 em seus esconderijos (sic) na mata”. “O diário é um documento histórico de grande importância pois cobre 605 dias de luta no Araguaia”, complementa. Em seguida parte para o ataque ao Portal Vermelho, “ponta de lança do PCdoB na internet” — assunto que, tenho absoluta certeza, será muito bem respondido pelo veículo atacado.

Não trabalho no Portal Vermelho já há algum tempo. Fico só na resposta à parte em que o jornalista se refere ao meu texto. Como desinformação é a sua arma, ele começa ignorando que escrevi os comentários para o blog O outro lado da notícia, que publico desde maio de 2008 e está sob a minha exclusiva responsabilidade. Não recebe nem paga uma moeda para ser publicado. Tampouco possui qualquer vinculação com instituições ou veículo de comunicação. “O outro texto que me ataca (Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista da CartaCapital), publicado no mesmo Vermelho.org e no blog do Luis Nassif é assinado por Osvaldo Bertolino, que se apresenta como jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois, editor do portal Grabois.org.br e biógrafo de Maurício Grabois”, escreve Lucas Figueiredo.

Tanto o Portal Vermelho como o blog do Luis Nassif transcreveram — o segundo a meu pedido — o texto. Bastaria um clique para saber onde estava a publicação original. Mas, para Lucas Figueiredo, ignorar O outro lado da notícia foi mais conveniente. Escrevi em tom pessoal, com informações pessoais. O Portal Vermelho transcreveu e, dignamente, citou a fonte. O blog do Luis Nassif disponibilizou o acesso para o original. Forçar a barra para institucionalizar, como sendo do PCdoB, o que escrevi não passa de desfaçatez. Como diz o povo, tentou matar dois coelhos com uma só cajadada ao atribui a “saraivada de críticas” a “dois flancos que se abrigam numa mesma trincheira”. A trincheira — sabemos, mas é bom ressaltar — é o PCdoB.

Depois ele usa o velho recurso de atacar o mensageiro para evitar a mensagem. Se fosse jornalismo mesmo, Lucas Figueiredo não teria dito que o texto foi “assinado por Osvaldo Bertolino”. Quem teria escrito? Vai saber… O jornalista também poderia constatar quem sou e o que faço para evitar uma agressão gratuita ao dizer que me apresento “como jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois, editor do portal Grabois.org.br e biógrafo de Maurício Grabois”. É o famoso tiro pela culatra.

Depois ele diz que começo “tentando desqualificar o furo (sic) de CartaCapital ao dizer que o assunto do diário ‘não é novo’”. “Ele mesmo, antes de mim, já teria recebido anonimamente trechos do diário, mas não os utilizara dada a ‘impossibilidade de verificar a veracidade do documento’, escreve. “Pois eu consegui verificar a veracidade do documento e fui o primeiro a torná-lo público, na íntegra, no site de CartaCapital”, complementa. Como, não explica. E nada fala da versão do jornalista Hugo Studart, em artigo publicado pela revista Brasil História na edição de março de 2007.

(Segundo Studart, o diário foi encontrado pelas tropas que mataram Grabois, dentro de suas roupas, já estufado pela umidade. O documento chegou a Marabá no final da tarde de 25 de dezembro de 1973 para ser encaminhado na primeira hora do dia seguinte ao Centro de Informações do Exército (CIE),em Brasília. Umcapitão da área de informações pediu o material emprestado aos colegas para examiná-lo e, sem consultar os superiores, convocou cinco soldados para que atravessassem a madrugada copiando o conteúdo à mão. Pela manhã devolveu o documento. O diário original desapareceu dos arquivos do CIE, provavelmente destruído no crematório ocorrido em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel para ocultar os combates no Araguaia. Restou a cópia (mais tarde datilografada), preservada nos arquivos pessoais daquele capitão. Três oficiais superiores, antigos membros da Comunidade de Informações que tiveram acesso aos originais antes da cremação, atestam a autenticidade do conteúdo que consta na cópia.)

Os ataques ao mensageiro continuam. “Em seu texto, Bertolino se revela um apaixonado por seu objeto de estudo, condição perigosa para um pesquisador. O comandante da guerrilha seria ‘um homem à frente do seu tempo’ e que vivia ‘totalmente envolvido’ na ‘luta pelo futuro’. Para Bertolino, Grabois fazia parte de uma casta especial, a dos ‘verdadeiros heróis’”. De novo, Lucas Figueiredo apela para as citações descontextualizadas para fugir da essência da polêmica. Inventa citações.

Transcrevo a íntegra do parágrafo para comprovar a falta de rigor do jornalista:

Para escrever a biografia (de Grabois), consultei muitas fontes, conversei demoradamente com pessoas que conviveram com Grabois e mergulhei fundo em seus escritos. A impressão que fiquei é de um homem à frente do seu tempo, de rara capacidade intelectual, de caráter sólido e totalmente envolvido com a causa que embala a humanidade desde tempos imemoriais: a luta pelo futuro. É daqueles que, como disse o escritor Monteiro Lobato na carta enviada a Caio Prado Júnior quando este estava na prisão, quanto mais a gente conhece, mais admira. “A regra é ao contrário: à proporção que a gente vai conhecendo um homem, vai se decepcionando — vendo-lhe as falhinhas…”, disse.

Outra rata: quando o meu texto fala em “verdadeiros heróis”, a citação está entre aspas, atribuída a João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz. Transcrevo o Parágrafo na íntegra:

Grabois escreveu até o dia do seu último combate, em 25 de dezembro de 1973, quando, segundo João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz, o Brasil vivia o tempo dos assassinos, dos curiós, dos sérgios fleury e congêneres. Era “também o tempo dos verdadeiros heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de pé, olhando a morte na cara”. Grabois morreu no grande combate que ficou conhecido como o “Chafurdo de Natal”.

Considero, sim, Maurício Grabois um “verdadeiro herói”. Reafirmo que ele “morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras”. Concordo, portanto, integralmente com o que disse João Quartim de Moraes. Mas Lucas Figueiredo não tem o direito, como jornalista, de atribuir, com aspas e tudo, a um o que outro escreveu. É o mau jornalismo escancarado, flagrante.

Em seguida ele se faz de vítima. “Desinformação, descaso, preconceito, artificialismo, confusão primária, devaneio… Tudo isso está em mim e na minha reportagem, segundo ele”, escreve. As palavras são pinçadas e alinhadas como se nada mais, antes ou depois, fora escrito. Mais um flagrante de mau jornalismo.

Depois Lucas Figueiredo volta a jactar-se. “Não importa o fato – fato, repito – de que, nas 150 páginas datilografadas de seu diário, Grabois tenha feito 113 menções a comida (e não apenas quando ela faltava, mas também quando raleava, empobrecia, enriquecia ou sustentava um banquete). Para Bertolino, escrever o óbvio – Grabois se mostrou um obcecado por comida – significa ‘atacar’ o mito do PCdoB.”

Aqui parece que o desespero tomou conta do jornalista. Em nenhuma das “113 menções” Maurício Grabois refere-se a comida fora do contexto em que os guerrilheiros viviam. É triste ver como Lucas Figueiredo insiste em uma farsa, em uma tese que tem a consistência de uma bolha de sabão. Mais: é um desrespeito ao comandante da Guerrilha tratá-lo como um glutão, um obcecado por comida. Isso não é “atacar”. É desrespeitar não o comandante, mas a pessoa.

Nessa passagem, há outro detalhe relevante, que revela mais um caso de mau jornalismo. Em nenhum momento escrevi que mostrar Grabois como um “obcecado por comida” significa “atacar” o mito do PCdoB. Mais uma vez, transcrevo o parágrafo na íntegra:

O texto (de Lucas Figueiredo) se lança em outros devaneios de menor intensidade, como as descrições de Grabois sobre as dificuldades enfrentadas na mata e a busca incessante por comida. Aí Lucas Figueiredo voa tão baixo que é impossível alcançá-lo. “O diário revela um guerrilheiro obcecado por comida”, diz ele. Depois dessa triste passagem, ele volta a atacar Grabois, “um comandante rigoroso, sobretudo com os outros”.

Há uma diferença oceânica, amazônica, entre o que escrevi e que ele diz que escrevi. A mesma diferença aparece na passagem em que Lucas Figueiredo diz que, “ainda de acordo com Bertolino, é um ‘descaso’ de minha parte relatar que, de seu esconderijo (sic) na mata, Grabois ouvia a propaganda comunista da Rádio Tirana, da Albânia, e a tomava por ‘melhor fonte de informações’ sobre a Guerrilha do Araguaia. Não sei como poderia ter feito diferente se foi o próprio Grabois quem escreveu que a Tirana era sua ‘melhor fonte de informações’.

Não sou professor de ninguém. Procuro apenas cumprir minhas obrigações. Uma delas é ser rigoroso com os fatos. Nesse caso, creio que o assunto ficou bem claro. Vejamos:

Lucas Figueiredo descreve Grabois como um ser tão incapacitado intelectualmente que passava horas de seu dia a ouvir as transmissões da Rádio Tirana e acreditava nas notícias que chegavam “da distante e fechada Albânia comunista”. “Grabois chega a acreditar que não só ele e seus companheiros ouvem a propaganda vermelha da Tirana (sic), a ‘melhor fonte de informações’”, escreve. Aqui a desinformação assusta. Bastaria uma rápida busca na internet para saber que o PCdoB montara um sofisticado sistema de transmissão de informações, via Rádio Tirana, que vinham exatamente de onde Grabois estava.  Dizer, como faz Lucas Figueiredo, que Grabois tomava propaganda como informação é o cúmulo do descaso.

Tomado pelo raciocínio turvo, Lucas Figueiredo passa a me chamar de “apaixonado biógrafo” e puxa uma polêmica que não se sustenta. Diz ele que o acusei “de cair em devaneio ao dizer que o veterano dirigente do PCdoB se revelava um iludido em relação às ‘massas’ (expressão de Grabois) que pretendia recrutar no Araguaia”. “Deixemos que o diário fale por si. No dia 21 de maio de 1972, Maurício Grabois escreveu o seguinte: “Aqui <no Araguaia>, temos que intensificar a propaganda revolucionária, recrutar novos co <combatentes> para as Forças Guerrilheiras e amigos para a nossa causa. E isso não é difícil de realizar. As condições parecem favoráveis”, escreve ele.

Repetio o que disse no primeiro texto:

Já no início da matéria ele (Lucas Figueiredo) deduz que Grabois ilude-se sobre o ânimo das “massas”, que seriam “a miserável população local que quer cooptar para fazer a revolução comunista no Brasil”. Devaneio maior, impossível. Bastaria raciocinar não mais que cinco minutos para saber que uma “revolução comunista” era o que menos estava em questão naquele movimento. Se for para ser mais rigoroso, é possível dizer que Lucas Figueiredo não se deu sequer ao trabalho de evitar chutes teóricos para qualificar a luta armada no Sul do Pará. Seria o caso de perguntar: onde ele leu, ouviu ou obteve tal informação? Se diz que Grabois e seus camaradas queriam “fazer a revolução comunista”, deveria explicar o que vem a ser isso. É o velho vício da mídia, de disparar preconceitos sem a menor preocupação.

É óbvio que a Guerrilha trabalhava para recrutar novos “combatentes” e “amigos” para a sua causa. Só faltava ser o contrário. Daí a dizer que os guerrilheiros pretendiam cooptar “a miserável população local (…) para fazer a revolução comunista no Brasil” há muito devaneio.

Transcrevo, como prova, um trecho de um dos documentos da Guerrilha:

Coloca-se na ordem do dia para todos os patriotas, democratas e revolucionários a tarefa de (…) intensificar a luta contra a ditadura. A derrubada desse regime — eis aquilo de que o povo brasileiro mais necessita. O seu aperfeiçoamento e institucionalização é (sic) grave ameaça ao futuro do Brasil e aos interesses populares.

Lucas Figueiredo fecha a resposta com chave de ouro. “O último parágrafo do texto de Bertolino, transcrito abaixo em negrito, talvez seja o mais revelador de sua real intenção: 

Morreu <Maurício Grabois> por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui, da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido – como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.”

O mau jornalismo não poderia deixar de dar as caras nesse encerramento.

Veja o que escrevi:

Grabois não merecia isso tudo. Se pudesse dizer algo para o comandante da Guerrilha do Araguaia, utilizaria idéias e palavras de Monteiro Lobato na carta a Caio Prado Júnior. Cada ato seu o eleva mais. Morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido — como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.

A última frase é dirigida diretamente a mim. “Se sua intenção, Bertolino, é pintar um deus onde há apenas um homem, não conte mesmo comigo”, finaliza. Não contarei, Lucas Figueiredo. Mas informo que essa não é a minha intenção. Seu chute, mais uma vez, atingiu a bandeirinha de escanteio.

Diz o axioma que dois erros nunca se anulam. Aliás, geralmente somam-se para dar um resultado ainda pior. A enorme massa de invencionices dos textos de Lucas Figueiredo sobre Maurício Grabois, submetida ao crivo dos fatos, foi se dissolvendo e, de tudo o que escreveu, quase nada ficou de concreto. Se sobram teorias, faltam fatos — matéria-prima indispensável a qualquer jornalista que se preze.

Esse jornalismo rarefeito é bem conhecido no Brasil. Ataques pessoais, intrigas, falsidades, invenções, erros de fato e mentiras, puras e simples, são a sua base. Quem aprecia esse estilo de fazer jornalismo pode até reencenar, irresponsavelmente, aquele juvenil orgulho dos tempos da adolescência. Mas isso não passa de demagogia barata, conluio com a desinformação e falta de seriedade.

O diário de Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista de CartaCapital

Por Osvaldo Bertolino, Portal Vermelho,  22/04/2011

Por coincidência, acabo de ler o que seria o diário de Maurício Garbois, no exato momento em que a revista CartaCapital chega às bancas com este tema como matéria de capa. O texto, intitulado Devaneio na selva e assinado por Lucas Figueiredo, comenta “O diário do Araguaia”, tema anunciado como “exclusivo”. O assunto, no entanto, não é novo. Quando escrevi a biografia de Maurício Grabois, publicada em 2004 pela editora Anita Garibaldi, deparei com informações que davam conta desse diário.

Recebi, anonimamente, trechos do que seriam as anotações do comandante militar da Guerrilha do Araguaia, mas, impossibilitado de verificar a veracidade do documento, não usei as informações.

Segundo o jornalista Hugo Studart, que escreveu o livro A Lei da Selva, trata-se uma cópia preservada por um militar. Em artigo publicado pela revista Brasil História, edição de março de 2007, ele diz que o destino e principalmente o teor do diário ficaram ocultos por três décadas. “O diário foi encontrado pelas tropas que mataram Grabois, dentro de suas roupas, já estufado pela umidade. O documento chegou a Marabá no final da tarde de 25 de dezembro de 1973, para ser encaminhado na primeira hora do dia seguinte ao Centro de Informações do Exército (CIE), em Brasília”, diz ele.

Segundo Studart, um capitão da área de informações pediu o material emprestado aos colegas para examiná-lo e, sem consultar os superiores, convocou cinco soldados para que atravessassem a madrugada copiando o conteúdo a mão. Pela manhã devolveu o documento. O diário original desapareceu dos arquivos do CIE, provavelmente destruído no crematório ocorrido em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel, para ocultar os combates no Araguaia. Restou a cópia (mais tarde datilografada), preservada nos arquivos pessoais daquele capitão. Três oficiais superiores, antigos membros da Comunidade de Informações que tiveram acesso aos originais antes da cremação, atestam a autenticidade do conteúdo que consta na cópia.

O último combate

O jornalista diz que Grabois começou o diário três semanas após a chegada do Exército. Ele esmerou-se nos detalhes dos crimes cometidos pela repressão no Araguaia, a principal razão que levou os generais do regime militar a mandar destruir a maior parte dos documentos sobre a Guerrilha, incluindo o diário do seu comandante militar. Studart descreveu o documento como rico em relatos de receitas de alimentos e de medicamentos utilizadas pelos guerrilheiros, assim como na transcrição de poemas e letras de canções invocadas no cotidiano das selvas.

Grabois escreveu até dia do seu último combate, em 25 de dezembro de 1973, quando, segundo escreveu João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz, o Brasil vivia o tempo dos assassinos, dos curiós, dos sérgios fleury e congêneres. Era “também o tempo dos verdadeiros heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de pé, olhando a morte na cara”. Grabois morreu no grande combate que ficou conhecido como o “Chafurdo de Natal”.

Descrevi, no livro, a cena nestes termos:

“No início da operação, batizada de ‘Sucuri’, instalou-se na região um sujeito chamado Marco Antônio Luchini, enviado como engenheiro do Incra. Era na verdade o major Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, ferrenho anticomunista que em 1961, como tenente, foi preso por participar da trama que tentou impedir a posse presidencial de João Goulart. No golpe de 1964, ele participou ativamente da conspiração e chegou ao CIEx. Frio e sanguinário, ficou famoso na região por receber de pistoleiros as cabeças, mãos e dedos decepados dos guerrilheiros para os quais pagava de 10 a 50 mil cruzeiros – dependendo da importância política da vítima.

Por trás da operação estava o general Antônio Bandeira. Curió foi, possivelmente, a figura que mais encarnou o espírito da “guerra suja”, que rasgou todas as leis e princípios que regem os conflitos militares e os direitos básicos do ser humano. Curió ainda iria participar de outras atrocidades praticadas pela ditadura – como a “chacina da Lapa”, quando em 1976 a repressão assassinou dirigentes do PCdoB em São Paulo – e se estabelecer na região, onde foi eleito deputado, dominou o garimpo de Serra Pelada à força e fundou uma cidade em homenagem ao seu nome – Curionópolis.

No dia 25 de dezembro de 1973, Curió comandava a patrulha que, no final daquela manhã chuvosa, por volta das onze horas e vinte cinco minutos, encontrou o grupo de guerrilheiros. O major viu entre eles aquele que o relatório do CIEx classificou como o comandante militar da Guerrilha, que destacava-se dos demais pela idade – estava com 61 anos. Maurício Grabois recebeu um tiro de fuzil no braço esquerdo, abaixou-se, puxou o revólver e de joelhos atirou até ser atingido mortalmente na cabeça. Apropriadamente, o oficial que presenciou a cena proclamou: ‘Foi a morte de um lutador’.

No início do dia 25 de dezembro de 1973, exatamente seis anos depois do desembarque de Maurício Grabois no Araguaia, dos 69 guerrilheiros enviados à região 41 estavam vivos, 20 mortos, 7 presos e um – João Carlos Borgeth, o “Paulo Paquetá” – havia fugido. No tiroteio contra a Comissão Militar naquela manhã de Natal, dos 15 que estavam no grupo dez sobreviveram. Os mortos foram, além de Maurício Grabois, seu genro Gilberto Olímpio Maria, Líbero Giancarlo Castiglia, o “Joca” – que chegou com ele e Elza Monnerat à região em 1967, e possivelmente foi preso ainda com vida –, Paulo Mendes Rodrigues e Guilherme Gomes Lund. Os demais guerrilheiros estavam acampados num local mais abaixo ou realizando tarefas nas redondezas.”

Para escrever a biografia, consultei muitas fontes, conversei demoradamente com pessoas que conviveram com Grabois e mergulhei fundo em seus escritos. A impressão que fiquei é de um homem à frente do seu tempo, de rara capacidade intelectual, de caráter sólido e totalmente envolvido com a causa que embala a humanidade desde tempos imemoriais: a luta pelo futuro. É daqueles que, como disse o escritor Monteiro Lobato na carta enviada a Caio Prado Júnior quando este estava na prisão, quanto mais a gente conhece, mais admira. “A regra é ao contrário: à proporção que a gente vai conhecendo um homem, vai se decepcionando – vendo-lhe as falhinhas…”, disse.

Formulação de Karl Marx

No caso de Grabois e de seus contemporâneos que reorganizaram o Partido Comunista do Brasil em 1943, na Conferência da Mantiqueira, e em 1962, aplica-se muito bem a formulação de Karl Marx, na obra O dezoito brumário de Luis Bonaparte, de que a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”, diz ele.

Esse é ponto: Grabois se destaca nos noticiários por ter participado até à morte naquela que é considerada a mais dura linha de resistência à ditadura de 1964, a Guerrilha do Araguaia, mas o seu legado oprime o cérebro dos que procuram esvaziar as suas ideias. O conjunto da sua obra nem sempre é devidamente valorizado – uma opção da mídia que, sabemos muito bem, não tem o menor interesse em retratar o alcance da Guerrilha do Araguaia.

Chutes teóricos de Lucas Figueiredo

O que causa estranheza é a opção de CartaCapital de entregar esse assunto ao jornalista Lucas Figueiredo, que se revelou um desconhecedor das elementares informações que possibilitariam um juízo mais em conformidade com os fatos descritos no diário. Já no início da matéria, ele deduz que Grabois ilude-se sobre o ânimo das “massas”, que seriam “a miserável população local que quer cooptar para fazer a revolução comunista no Brasil”. Devaneio maior, impossível.

Bastaria raciocinar não mais que cinco minutos para saber que uma “revolução comunista” era o que menos estava em questão naquele movimento. Se for para ser mais rigoroso, é possível dizer que Lucas Figueiredo não se deu sequer ao trabalho de evitar chutes teóricos para qualificar a luta armada no Sul do Pará. Seria o caso de perguntar: onde ele leu, ouviu ou obteve tal informação? Se diz que Grabois e seus camaradas queriam “fazer a revolução comunista”, deveria explicar o que vem a ser isso. É o velho vício da mídia, de disparar preconceitos sem a menor preocupação.

O esperto jornalista

Para Lucas Figueiredo, “tudo conspirava contra os guerrilheiros”, mas o ingênuo Grabois “julgava que a situação era ‘favorável’”. O esperto jornalista diz que “fica patente” no diário “que, entre o sonho e a realidade, Grabois abraça o primeiro e renega a segunda, um gesto bonito para um idealista, mas fatal para um comandante militar”. Bem, quando o assunto chega a esse tom professoral, é preciso tomar cuidado. Como sabemos, professores nem sempre gostam de ser contestados. Mas alguns pontos são tão falseados que, mesmo com esse risco, não dá para não comentar.

Lucas Figueiredo descreve Grabois como um ser tão incapacitado intelectualmente que passava horas de seu dia a ouvir as transmissões da Rádio Tirana e acreditava nas notícias que chegavam “da distante e fechada Albânia comunista”. “Grabois chega a acreditar que não só ele e seus companheiros ouvem a propaganda vermelha da Tirana (sic), a ‘melhor fonte de informações’”, escreve. Aqui a desinformação assusta. Bastaria um rápida busca na internet para saber que o PCdoB montara um sofisticado sistema de transmissão de informações, via Rádio Tirana, que vinham exatamente de onde Grabois estava. Dizer, como faz Lucas Figueiredo, que Grabois tomava propaganda como informação é o cúmulo do descaso.

Uma confusão primária

Para o jornalista, a capacidade do comandante “de se entregar ao autoengano parece infinita”. “O diário mostra que ele confundia o apoio logístico dado pela população local, que realmente existiu durante um tempo, com a nunca efetivada adesão à luta”, diz ele. Lucas Figueiredo poderia ter assistido ao documentário Camponeses do Araguaia – a Guerrilha vista por dentro (veja no canal O outro lado da notícia, no Youtube), do qual participei como responsável pelas entrevistas, para ver que Grabois tinha razão. Deveria também ler os documentos sobre o caráter daquela resistência para saber que ninguém, muito menos o comandante, queria que a população aderisse “efetivamente” à luta. É uma confusão primária, sabe-se lá com qual propósito.

O texto se lança em outros devaneios de menor intensidade, como as descrições de Grabois sobre as dificuldades enfrentadas na mata e a busca incessante por comida. Aí Lucas Figueiredo voa tão baixo que é impossível alcançá-lo. “O diário revela um guerrilheiro obcecado por comida”, diz ele. Depois dessa triste passagem, ele volta a atacar Grabois, “um comandante rigoroso, sobretudo com os outros”.

Palavreado rasteiro, chulo

Aparece novamente um ser ingênuo e incapacitado a ponto de escrever regras como “garantir o autoabastecimento” e “levar a cabo ações armadas contra o inimigo”. “Espera que os estudantes e profissionais liberais de pouca idade levados pelo PCdoB para a mata sejam verdadeiros Rambos”, escreve. “E quando não o são, Grabois os chama de ‘problema’, ‘acovardado’, ‘pouco desenvolto’ ‘ingênuo’ e ‘um tanto lerdo de raciocínio’”, diz o jornalista, fazendo citações descontextualizadas e demonstrando que leu o diário de forma artificial.

Mas, segundo Lucas Figueiredo, Garbois era tão estulto que “quando se tratava de analisar a si próprio como comandante e o PCdoB como Estado-Maior da guerrilha, era generoso”. O palavreado é rasteiro, chulo. “Se os 69 combatentes ‘inexperientes’ – pelo menos isso ele admitia – seguissem à risca as ordens emanadas da cúpula vermelha e da inspiração do ‘mestre da guerra popular’ Mao Tse Tung, seria ‘impossível’ perder a luta contra o rolo compressor liderado pelo Exército e apoiado pela Aeronáutica, Marinha, Polícia Federal e as PMs (Polícia Miitar) de três estados”, escreve. Quantos devaneios!

Dignidade humana personalizada

Para finalizar, Lucas Figueiredo atribui às chuvas as derrotas sofridas pela repressão em suas duas primeiras campanhas. E na operação final fica-se com a impressão de que os bandos comandados por Curió estavam certos. “Em fevereiro de 1973, às vésperas do início da campanha definitiva dos militares, (Grabois) aceita em sua mente (sic) o jogo do tudo ou nada. ‘No final, como nos filmes de mocinho, tudo acabará bem. Se não acabar… azar nosso’”, escreve ele.

Grabois não merecia isso tudo. Se pudesse dizer algo para o comandante da Guerrilha do Araguaia, utilizaria ideias e palavras de Monteiro Lobato na carta a Caio Prado Júnior. Cada ato seu o eleva mais. Morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui, da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido – como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.

Parabéns, Renato Rabelo, por seus 83 anos de vida bem vivida

Por Osvaldo Bertolino

Da biografia que escrevi dele recentemente:

Acomodado na mesa da pequena sala do seu apartamento, em São Paulo, com uma pilha de livros ao lado, Renato começou a falar. Parecia incansável. De meados da tarde até a noite avançada, lembrou detalhes de sua vida e do seu pensamento. Era muita coisa. Foi preciso retomar em outro dia. Novamente faltou coisa. E assim a cena se repetiu, até que tudo fosse falado.

Renato se define como pessoa reservada, que não gosta de aparecer, o mais tímido dos irmãos. “Quando comecei a assumir o trabalho político, tive de fazer um esforço muito grande para ser uma pessoa com capacidade pública maior. Era essencial para a minha atividade. Acho que consegui não só por intervenções públicas como na relação política com grandes lideranças, como presidentes da República, presidentes da Câmara e do Senado, gente como o José Alencar, ministros. Todos me atendiam com muito respeito.”

Essa relação de confiança se devia ao prestígio do PCdoB, segundo Renato. “Então, eu ia sentindo que estava fazendo o papel necessário. Compreendi que estava fazendo um papel importante. Isso me deu muita segurança. Tinha certa autoridade.”

Um dos momentos mais decisivos de sua vida foi a indicação de Luciana Santos para assumir a presidência do PCdoB. “Foi uma das atitudes mais serenas e mais justas que tomei. Não foi uma corrida de revezamento”, comenta ao falar das pacientes consultas e dos debates no âmbito da direção do Partido. Para ele, esse processo guarda semelhança com a sua indicação para presidente do Partido por João Amazonas.

Renato recorda de seus camaradas com emoção, especialmente Haroldo Lima. “Haroldo teve também um papel importante para eu ingressar na luta. Eu poderia ficar por ali mesmo, em Salvador, estudando, ser um médico. Foi um ponto importante na minha vida”, relata, mostrando a foto da capa do livro autobiográfico de Haroldo, inconformado com a sua morte por uma causa que poderia ser evitada, a Covid-19.

Falou também da relação com os filhos, muito atenciosos. “Sempre foram muito compreensivos, pelo que eles passaram. A relação conosco mostra a grandeza deles.”

Renato cita a experiência vivida na China, quando jovem, como fundamental para a sua militância. “Uma experiência da envergadura da Revolução Chinesa ensina muito”, afirma. As visitas ao Vietnã também lhe causaram forte impressão. “Fiquei impressionado com o povo vietnamita. Não é por acaso que expulsaram três imperialismos. Essa ideia de nova luta pelo socialismo é deles.”

Segundo Renato, foram conhecimentos que ajudaram muito na sua compreensão sobre a tática e a estratégia. “O tempo que passei na França foi também importante, porque o exílio é uma escola. O povo francês é muito testado. É a terra das revoluções. Eles têm uma tradição de luta gigantesca. A vivência com um povo desse ensina muito para a gente”, afirma.

Mulheres heroínas nas biografias do PCdoB

Por Osvaldo Bertolino

Escrevi oito biografias de lideranças do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – Carlos Nicolau Danielli, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Aurélio Peres, Vital Nolasco, Antônio Almeida Soares (Tom), Péricles de Souza e Renato Rabelo. Nelas, adotei como método situar a vida dos biografados nas dimensões pessoais e familiares, nas conjunturas por eles vividas e nas circunstâncias das organizações nas quais atuaram. Em todas, aparecem mulheres como importantes alicerces da história, em geral pouco notadas. No PCdoB, foram elos essenciais, sem os quais as histórias narradas não existiriam ou teriam tomado outros caminhos.

Procurei dar a elas o espaço devido, mostrando como, muitas vezes, seguraram a barra na retaguarda, além de, em alguns casos, militarem na linha de frente. Com as que convivi, criei laços de amizade e camaradagem. Com as que não tive o privilégio de conviver, fiquei com a sensação de que também teriam a mesma atitude.

Marilda Costa Danielli

A primeira delas foi Marilda Costa, esposa de Carlos Nicolau Danielli, com quem convivi, em 2001, por aproximadamente quinze dias, em Niterói, Rio de Janeiro. Mulher de gestos cordiais, memória privilegiada e de convicção sólida, ajudou muito para que na biografia do marido constasse o máximo de informações. Mãe de três filhos – Wladimir, Waldenir e Wladir –, Marilda se viu só, de uma hora para outra, com o brutal assassinato de Danielli no Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, em 31 de dezembro de 1972.

Recebi dela, em reconhecimento pela biografia, uma comovente carta me considerando membro da família. Uma grande honra, que comentei em artigo no Portal Vermelho, dia 24 de março de 2006, para homenageá-la quando soube de sua morte, intitulado A perda de uma guerreira: morre Marilda Costa Danielli. Escrevi:

“Os vizinhos gostavam daquela família solidária e unida. Na casa em frente, duas jovens estudantes sempre se socorriam da presteza de Danielli para os trabalhos escolares. Na manhã do dia 27 de dezembro de 1972, ele tomou o café da manhã e fumou um cigarro. Marilda já estava no tanque lavando roupa quando ele se despediu e avisou que possivelmente voltaria dali a um ou dois dias. Não voltou. (…) No dia 5 de janeiro de 1973, uma sexta-feira, ela fazia crochê na sala quando ouviu Sérgio Chapelin (um dos apresentadores do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão) anunciar com voz grave: “Morto em São Paulo o terrorista Carlos Nicolau Danielli”. (…) Sem parentes, sem conhecidos e com três crianças, Marilda resolveu procurar as vizinhas estudantes. Ao saber da verdadeira história, uma delas se dispôs a levá-la com as crianças para o Rio de Janeiro.”

Marilda foi presa em São Gonçalo, na casa de uma irmã, onde estava com os filhos. Algemada e encapuzada, foi levada para algum lugar no Rio de Janeiro. Dois dias depois, foi encaminhada para o DOI-Codi paulista, onde ficou por dez dias. Ao voltar para a casa da família, no bairro Jabaquara, viu, desolada, que praticamente nada restava. Voltou para o Rio de Janeiro para recomeçar a vida como revendedora de cosméticos. Para as crianças, o pai estava viajando e um dia voltaria.

Alzira da Costa Reis Grabois

A esposa de Maurício Grabois, Alzira da Costa Reis, também atuou intensamente no Partido. No começo da noite de 28 de dezembro de 1972, Danielli deu a ela notícias de Maurício Grabois e de seu filho, André, trazidas pela guerrilheira Criméia Alice Schmidt de Almeida, em um “ponto” na Rua Marselhesa, na Vila Clementino, próximo à Vila Mariana, antes de se dirigir  à Rua Loefgreen, onde foi preso. A operação fazia parte do restabelecimento de contatos entre os dois dirigentes do PCdoB, após o ataque da repressão à Guerrilha do Araguaia em 12 de abril de 1972. Danielli era o secretário de Organização do Partido, responsável pela infraestrutura da Guerrilha.

Alzira militava no Partido antes de conhecer Grabois. O casal teve os filhos Victória e André (também morto no Araguaia). No dia que Maurício Grabois teve o seu mandato de deputado federal cassado, em 1948, ela enfrentou a repressão, que estava pronta para prendê-lo. Ele saiu da Câmara direto para a cama, acometido de mononucleose, doença provocada por vírus que causa dores nas articulações e ínguas pelo pescoço. O estado de saúde do agora ex-líder da bancada do Partido era considerado muito grave pelo médico que o atendeu, José Sarmento Barata.

Mas a situação não impediu que ele fosse levado para a delegacia, detido por policiais que invadiram a sua residência. Na frente dos agentes do delegado José Piccoreli, Alzira telefonou para José Sarmento Barata, que comunicou a eles que o paciente estava proibido de sair de casa. Mas de nada adiantou. Maurício Grabois foi arrastado, de pijama, sem poder andar e escorado por policiais, protestando contra aquela atitude arbitrária.

O vandalismo policial atraiu a vizinhança, que se aglomerou em frente à residência. Alzira, acompanhada dos filhos de quatro e dois anos de idade, fez um discurso contra o autoritarismo do governo do general Eurico Gaspar Dutra. Em seguida, dirigiu-se à Câmara dos Deputados para denunciar a prisão. Lá protestou veementemente e foi recebida pelo deputado Flores da Cunha (UDN-RS), que localizou Maurício Grabois na Delegacia de Segurança Política, levado para prestar “esclarecimentos” sobre o Partido. O parlamentar gaúcho telefonou para o ministro da Justiça e exigiu sua libertação.

Alzira também foi atingida pela repressão. Ela participava da Associação Feminina da Gávea, com forte influência do Partido, e, em uma atividade na favela da Praia do Pinto, foi presa com outras quatro pessoas. Na hora, ela se pôs a protestar, mas o grupo foi levado, fichado e posto à disposição do delegado, que mandou recolher todos ao xadrez, onde passaram a noite. Alzira também seria demitida sumariamente do cargo que ocupava, havia mais de cinco anos, no Serviço Florestal do Ministério da Agricultura.

Pouco depois, a polícia voltou à residência de Maurício Grabois, onde também estava o ex-senador do Partido, Luiz Carlos Prestes. Percebendo a aproximação da repressão, os dois pularam o muro dos fundos e fugiram. Quando a polícia entrou na casa, encontrou Alzira revoltada, segurando André, chorando, no colo. Maurício Grabois e Prestes foram parar no Hotel Glória, no apartamento do ex-deputado e governador da Bahia Octávio Mangabeira que, por telefone, exigiu do presidente da República o fim da perseguição policial aos ex-parlamentares comunistas.

Alzira participou da Federação de Mulheres do Brasil, foi advogada trabalhista e dirigente do Partido no estado do Rio de Janeiro. No desdobramento da crise do movimento comunistas na segunda metade da década de 1950, quando grupos revisionistas tentaram liquidar o Partido, Alzira foi “expulsa” do Parido Comunista Brasileiro (PCB), criado por eles em 1961. O jornal Novos Rumos publicou a seguinte nota: “Os comunistas de Niterói, capital do Estado do Rio, comunicam aos trabalhadores e ao povo que Lincoln Cordeiro Oest (que também seria morto na operação que assassinou Danielli) e Alzira Reis Grabois não mais pertencem às fileiras do movimento comunista, das quais foram expulsos em virtude de suas atividades fracionistas e contrárias aos interesses da classe operária e do povo.”

Catharina Patrocínia Torres Pomar

Pedro Pomar igualmente teve na esposa, Catharina Patrocínia Torres, também militante do Partido desde antes de se conhecerem, um apoio decisivo. O casal teve os filhos Wladimir, Eduardo, Jonas e Carlos Alberto. Ainda no Pará, quando o marido e outros dirigentes locais do Partido foram presos ela encaminhava cartas para serem distribuídas pelo país afora denunciando os abusos da repressão.

Era uma mulher de reconhecida coragem. Quando o presidente Getúlio Vargas visitou Belém, ela entregou-lhe um documento de protesto. A ousadia custou-lhe uma queda do bonde, quando estava nos últimos meses da gravidez do segundo filho, Eduardo. Catharina foi também um elo importante no estabelecimento de contatos entre Grabois – que estava reorganizando o Partido no Rio de Janeiro, após a repressão do Estado Novo – e Pomar e Amazonas. “Já conhecia a Catharina (…) antes mesmo de eles se casarem, pessoa também muito amiga, muito estimada”, disse Amazonas ao jornal Tribuna da Luta Operária.

Na fuga da prisão, liderada, entre outros, por Pomar e Amazonas, Catharina foi um elo fundamental. Ela se encarregou de falar com o médico Raimundo Silas de Andrade, amigo dos comunistas, que seria outro ponto-chave do plano. Faria uma receita para adormecer os guardas. Catharina providenciou carteiras de trabalho com nomes falsos para todos e comprou duas passagens para Marabá, uma para Monte Alegre, duas para São Benedito, em Faro, no Baixo Amazonas. Cada um sabia o destino a tomar depois da fuga. Pomar e Amazonas foram para o Rio de Janeiro. A data da fuga coincidiu com a partida dos barcos – 5 de agosto de 1941.

O escritor comunista Dalcídio Jurandir conta que, em meados de setembro de 1945, quando se dirigia ao Paraná para representar a direção nacional na instalação do Comitê Estadual, passou por São Paulo e foi recebido por dirigentes locais, entre eles Jorge Amado. “Uma grande amiga corre para abraçar-me. É Catharina Pomar. Que alegria na sua voz e a recordo, no Pará, quando a via carregando papéis ilegais, quando foi jogada no chão pelo policial, quando levava horas e horas no Umarizal (onde estavam presos Pomar, Amazonas e outros) à espera de que os policiais lhe trouxessem o companheiro”, disse.

Pomar era amigo dos  escritores Jorge Amado e Zélia Gattai e lhes disse que gostaria que Catharina e as crianças fossem passar uma temporada no sítio do casal, entre São João de Meriti e Caxias. “Catharina está precisando descansar, os meninos andam pálidos… Vão te fazer companhia”, teria dito ele, segundo Zélia em seu livro Um chapéu para viagem. Ela conta que a família de Pomar era unida. O amor reinava entre marido e mulher, pais e filhos. Zélia Gattai diz que concordou com satisfação. Gostava de Catharina e sua presença seria bem-vinda.

Durante três ou quatro semanas que passou no sítio, a “sofrida” mulher de Pomar contou-lhe sua vida. Os momentos de amor, as horas terríveis que vivera, como esposa de um dirigente comunista perseguido, preso várias vezes, condenado. Desde que haviam se casado, somente após a anistia aos presos políticos conseguiram viver juntos, em uma vida estável, em paz.

Uma das distrações de Catharina era conversar com o papagaio do sítio. Segundo Zélia Gattai, nem sempre ela entendia o que o louro dizia. Certa vez, achou que ouvira pirarucu. Mas a conversa nada tinha a ver com peixe. Tratava-se de uma frase indecente, grosseira. Recordações dos tempos em que o papagaio convivia com mulheres da vida e boêmios. Diante da gargalhada de Zélia Gattai, Catharina prestou mais atenção e entendeu: ofendeu-se até o fundo da alma. “Vai você, seu louro vagabundo!”, teria respondido. Foi a última vez que Catharina se dirigiu ao papagaio. Cortou relações com ele, conta Zélia Gattai.

Antes da Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, quando Pomar foi assassinado pela repressão, ele estava de viagem marcada para o exterior, em missão do Partido. Mas Catharina foi diagnosticada com aneurisma cerebral e precisava passar por uma delicada cirurgia. Pomar trocou a viagem com Amazonas. Catharina faleceu em 1984, em decorrência do agravamento do aneurisma.

Maria da Conceição Peres

Maria da Conceição, esposa de Aurélio Peres, iniciou a militância política no trabalho de formação de lideranças populares nos bairros mais afastados da zona Sul paulistana, uma iniciativa da ala progressista da Igreja Católica. O casal teve os filhos Leni e Marco Aurélio. O trabalho começou em 1970 e evoluiu para os clubes de mães e o Movimento do Custo de Vida, mais tarde transformado em Movimento Contra a Carestia, sob a liderança de Aurélio Peres.

Quando ele foi preso em sua residência por agentes do DOI-Codi, em 1974, Conceição foi para a rua e gritou denunciando o ocorrido e saiu a procura de ajuda de advogados ligados ao movimento de resistência organizado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Foi uma heroína, nas palavras de Aurélio. Ao relatar esses fatos, Aurélio fez esforço para segurar as lágrimas, que insistiam em avermelhar seus olhos. Os músculos da face crisparam e o olhar se perdeu no infinito. Ao seu lado, Conceição mexia as mãos, com olhos marejados, revelando a mesma angústia e impotência de quando o marido foi arrancado de casa por agentes da repressão.

Maria Ester Nolasco

Maria Ester também já era militante política quando conheceu Vital Nolasco. O casal teve os filhos Patrícia, Daniel e Iara. Ester foi comerciária e ingressou numa empresa metalúrgica, como operária, seguindo a diretriz da Ação Popular (AP), a organização a qual pertenciam, de integração à produção. Vital diz que faziam os chamados comícios relâmpagos: subiam em um banquinho num lugar de concentração popular, como o Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, São Paulo, e metiam o pau na ditadura e na carestia. Falavam rápido e sumiam. Ester, como é chamada, só soube o nome completo de Vital no dia do casamento civil. Até então, era somente Vicente (nome clandestino) ou Vital, conforme a ocasião.

Quando ele estava preso no DOI-Codi paulista, recebeu a visita da mãe, Diva Zanandreis Nolasco, e soube que Ester e a filha, Patrícia, estavam com seus familiares em Belo Horizonte. Para que ela não visse as marcas da tortura, os agentes da ditadura montaram uma farsa: providenciaram uma camisa de mangas compridas.

Para não ficar exposta à repressão, Ester pegou a filha, passou a mão nas coisas que pôde levar e se mandou para a casa de um padre amigo da família. Dali, foram levadas para um convento de freiras. A Patrícia tinha um ano e pouco e foi para uma creche. Depois de certo tempo, arrumaram um esquema para dona Diva pegá-las e levá-las para Belo Horizonte. Foram no mesmo ônibus, mas não se falaram por razões de segurança.

Assim que saiu da prisão, Vital foi reencontrá-las em Belo Horizonte. Quando nasceu o filho, homenagearam Danielli, de quem Vital ouviu falar muito na prisão por sua postura de enfrentar os torturadores, com o nome de Daniel. Vital voltou a trabalhar como operário e Ester ficou em casa para cuidar dos filhos e se reaproximou do Movimento do Custo de Vida. Ester continua na militância do PCdoB.

Anna Martins

Anna Martins também era militante da AP quando conheceu Antônio Almeida Soares, o Tom. Tiveram os filhos Juliana e Pedro. Foi operária e o casal se integrou à produção como camponeses em Livramento de Nossa Senhora, Bahia, logo após o casamento. De volta a São Paulo, trabalhou como operária e liderou lutas sociais históricas nas periferias paulistanas. Ela e Tom foram essenciais para a reestruturação do PCdoB, na luta contra a ditadura militar, na organização e formação dos comunistas.

Filha de agricultores, se integrou à Juventude Operária Católica (JOC), uma das vertentes que criaram a AP. Como estudante, participou também da Juventude Estudantil Católica (JEC). Na década de 1970, integrou-se aos movimentos comunitários e participou dos clubes de mães e do Movimento Contra a Carestia. Foi diretora da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam) e presidente da Federação Estadual das Associações Comunitárias de São Paulo. Pelo PCdoB, cumpriu três mandatos de vereadora em São Paulo e elegeu-se deputada estadual.

Carmilce Miriam Carneiro de Souza

Carmilce Míriam Brito Carneiro e Péricles de Souza se conheceram na militância estudantil. Algum tempo após o golpe militar de 1964, já militantes da AP, foram se integrar à produção na região do Bico do Papagaio – confluência dos estados do Pará, Maranhão e Norte de Goiás (atualmente pertencente ao estado de Tocantins) – e fixaram residência no município maranhense de Imperatriz. Carmilce assumiu o nome de Clea, atuando como professora num projeto de alfabetização de adultos e crianças.

No processo de incorporação da AP ao PCdoB, o casal se estabeleceu em São Paulo. Carmilce se integrou à equipe de “serviços” – os bastidores do trabalho organizativo – da direção nacional. Era também responsável pelo trânsito da produção e distribuição do jornal da AP, Libertação. Cumpria a ela levar os pacotes do jornal impresso a um ponto, onde era recolhido pelo sistema de organização para a distribuição.

Nesse sistema, Carmilce também se tornou um elo importante com os militantes que chegavam em São Paulo, fazendo o controle dos “pontos” de rua e da rede que garantia a segurança da organização. Os contatos não eram estabelecidos diretamente. Havia um sistema de senhas e símbolos, como a cor da camisa, o tipo de jornal ou revista embaixo do braço, o gesto de tomar café numa padaria e assim por diante.

Após a anistia, com a família de volta a Salvador, Carmilce foi trabalhar na Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba), como instrutora de ensino. Antes, trabalhou como auxiliar administrativa na rede de supermercados Paes Mendonça, de 1º de dezembro de 1979 a 9 de agosto de 1980, e passou dois meses na Secretaria de Educação do estado. Na Coelba, fez parte do sistema de direção do Sindicato dos Eletricitários. Se aposentou no começo dos anos 2000 e continuou participando da Associação dos Aposentados da empresa e de atividades sindicais da categoria.

Conceição Leiro Vilan (Conchita)

Conceição Leiro Vilan, a Conchita, e Renato Rabelo também se conheceram no movimento estudantil. Juntos, enfrentaram a investida da ditadura militar e foram, clandestinos, para Belo Horizonte, em 1966, organizar o 28º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), no qual Renato foi eleito vice-presidente. Casaram-se em 1967 e foram morar no Rio de Janeiro. Tiveram os filhos André e Nina. Ela também se integrou ao “serviço” da AP após uma dura experiência de integração à produção na região de Formoso e Trombas, em Goiás.

No episódio da Chacina da Lapa, em 1976, quando Renato estava fora do país e não pôde retornar, Conchita se viu só, com duas crianças. A família havia se estabelecido em Belém, Pará, numa operação montada pelo Partido para que Renato tentasse contato com eventuais sobreviventes da Guerrilha do Araguaia. A residência era precária, vizinha a um local em que porcos eram criados ao ar livre. Não raro apareciam ratos em profusão nos arreadores. Poucos dias após a mudança para Belém, de coração partido – diria Renato mais tarde – ele deixou a esposa com as crianças e os ratos para participar de reuniões da direção do Partido, em 1976, e viajar ao exterior.

Conchita tomou conhecimento da Chacina da Lapa andando pelo centro de Belém. Avistou, numa banca de jornais e revistas, as manchetes sobre o caso. Na busca por notícias de Renato, soube que ele estava na França. Com ajuda de familiares e de entidades solidárias aos perseguidos políticos conseguiu se juntar ao marido em Paris. As crianças foram em seguida. Lá, enfrentou também a dura situação da prisão de Renato, acusado de portar documentos falsos. Ficaram no exílio até a anistia, em 1979.

Assim como Renato e outros militantes da resistência democrática, Conchita continuou vigiada pela ditadura. Nos arquivos da repressão consta que em 1982 ela esteve entre as pessoas que contribuíram para o “agravamento do processo subversivo e contestatório ao regime vigente”. Os espiões relataram sua participação em uma reunião de mulheres, em 1984, num curso de “capacitação política” organizado pelo PCdoB em Campos do Jordão, São Paulo, e a citação do seu nome em uma reportagem intitulada Desempregados invadem prefeitura de Embu, onde ela trabalhava. Cita também sua participação em diversas atividades do PCdoB.

Em 4 de abril de 2014, Renato participou da sessão da Comissão de Anistia que anistiou filhos de presos políticos durante a ditadura militar, na Câmara Municipal de São Paulo. Entre eles estavam os filhos e Conchita, homenageada “pela destacada atuação na luta em prol da democracia e contra a opressão promovida pelo golpe de 1º de abril de 1964”, conforme descreve um certificado assinado pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.

Edíria Carneiro Amazonas

Na França, Conchita fez amizade com Edíria Carneiro, esposa de João Amazonas, sempre visitada por ela. A amizade se fortaleceu quando Conchita se aposentou como assistente social da prefeitura de São Paulo e passou a visitá-la semanalmente. “Nos tornamos muito amigas. Ela ficava numa alegria grande quando eu chegava. A gente papeava a tarde inteira. Ela servia Chá e a conversa continuava”, lembra Conchita.

A biografia de Amazonas foi escrita por Augusto Buoinicore, mas fiz uma bela amizade com Edíria na busca de informações para escrever as biografias de Danielli, Grabois e Pomar. Na biografia de Pomar, escrevi:

“Foi uma paciente consultora quando minhas limitações eram desafiadas pela história. Conheci essa figura generosa e simpática na manhã fria e ensolarada de 5 de agosto de 2002, quando preparava a biografia de Carlos Danielli. Desde então, tornou-se, além de consultora, uma amiga carinhosa. As conversas com ela eram sempre agradáveis, permeadas por suas tiradas de humor e olhares no espaço, buscando recordações que em seus olhos apareciam como doces lembranças.

Ela se foi sem cumprir uma promessa que me fez quando iniciei a redação final deste livro. Em uma agradável noite de verão, dona Ediria me recebeu em sua casa para trocarmos ideias sobre alguns detalhes que surgiram no curso das pesquisas. Conversamos longamente. Sempre revelava algo novo em nossos contatos. Falou da admiração de Catharina por Pedro Pomar, comentou alguns episódios em que o aqui biografado agiu com exagerado rigor moral e falou da generosa cordialidade do casal.

Deixei com ela cópias da revista Seiva (ligada ao Partido, na Bahia), na qual trabalhou como ilustradora nos anos 1940, gentilmente cedidas por João Falcão, seu diretor, com quem estive em sua residência na cidade de Salvador. Fiquei imaginando como reagiria ao ver seus trabalhos muitos anos depois. Pedi para ela ler os originais deste livro, como fez com as duas primeiras biografias que escrevi (de Danielli e de Grabois). Aceitou de pronto e com indisfarçável satisfação.

Seus olhinhos vivos, seu sorriso discreto quase permanente, sua voz pausada e suas ideias compunham uma doce criatura. Estive com ela pela última vez em 25 de agosto de 2011, no lançamento da sua exposição – era uma refinada artista plástica – no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Pouco mais de dois meses depois, recebi a notícia de que estava internada. Travou uma dura batalha pela vida, foi vencida e faleceu na noite de Natal de 2011. Perdi uma colaboradora e, mais que tudo, uma amiga que me cativou profundamente. O Brasil perdeu uma lutadora, uma socialista de raro brilho intelectual e artístico. Este livro ficou menos completo sem as suas preciosas observações.”

Tenho de todas elas as melhores recordações e os mais elevados sentimentos, assim como de irmãs, filhas ou mulheres de outros graus de parentesco dos biografados. As que convivi foram de um carinho imenso. Com as que continuo me comunicando, sempre me emociono com suas mensagens transbordantes de generosidade, graça e delicadeza. E, acima de tudo, o reconhecimento pelo esforço para retratá-las nas biografias, método que adoto para dar visibilidade a essas personagens invisibilizadas pelas durezas da vida e, sobretudo, pela estrutura social que esconde essas maravilhosas mulheres heroínas. Um beijo carinhoso em cada uma delas.

Motivos e fatos da reorganização do PCdoB em 1962

Passados 63 anos da Conferência extraordinária que reorganizou o PCdoB, ocorrida em 18 de fevereiro de 1962, a versão de que o Partido foi “fundado” nessa data já não reina em regime de monopólio, superada pela força dos fatos.

Por Osvaldo Bertolino

Carlos Nicolau Danielli, um dos primeiros dirigentes comunistas a opinar sobre o cisma ocorrido com os impactos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), escreveu que naquele processo estava em questão a defesa dos princípios do Partido Comunista do Brasil. Segundo ele, os princípios deveriam ser defendidos sob pena de o Partido perder suas características essenciais de um partido revolucionário.

Outros dirigentes comunistas – principalmente João Amazonas – também rejeitaram com ênfase a tese superficial daquela primeira vertente revisionista. Pode-se afirmar com segurança que havia naquele primeiro embate uma manipulação dos fatos com uma finalidade mal escondida – a liquidação do Partido Comunista do Brasil.

Maurício Grabois escreveu, em 1960, durante o debate do V Congresso do PCdoB, que nas discussões de 1956/57 surgiram entre os comunistas ideias antipartidárias. Seus porta-vozes eram basicamente militantes que atuavam na imprensa do Partido.

Grabois conta que ideias reformistas e revisionistas do debate de 1956/57 acabaram se impondo no Partido. Mas no debate do V Congresso elas ganharam uma formulação claramente mais sofisticada.

O antológico texto de Grabois Duas concepções, duas orientações políticas resume a questão. Para ele, a nova orientação traçada pelo Comitê Central em março de 1958, com a Declaração de Março, defendia uma linha “oportunista de direita”. A polêmica evoluiu para o “racha”.

Já no V Congresso, doze dos vinte e cinco membros do Comitê Central – além de vários suplentes – não foram reeleitos. Entre eles estavam Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara.

Mais tarde, foram afastados também Pedro Pomar, Danielli e Ângelo Arroyo. E, mais adiante, uma nova leva de dirigentes – Lincoln Oest, José Duarte, Walter Martins e Calil Chade – também seria destituída.

Era a consolidação da direção que defendeu a nova linha política pós-XX Congresso do PCUS. No dia 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos publicou um suplemento com o programa e os estatutos do Partido Comunista Brasileiro, de inspiração visivelmente revisionista. A direção eleita no V Congresso pretendia, com os novos documentos e a mudança de nome, obter a legalidade da nova agremiação.

O problema é que esse ato contrariava o artigo 32 dos Estatutos do Partido. “As decisões do Congresso são obrigatórias para todo o Partido e não podem ser revogadas, no todo ou em parte, senão por outro Congresso”, dizia o documento.

Em resposta, os comunistas que combateram a linha política da Declaração de Março organizaram um abaixo-assinado – Carta dos Cem – pedindo à nova direção a revogação das medidas anunciadas. Na Carta, eles disseram que a mudança de nome do Partido era “uma séria concessão às forças reacionárias”.

De fato, quando a repressão lançou os comunistas na ilegalidade, em 1947, o principal pretexto foi o de que o nome deixava claro que o Partido Comunista do Brasil era um instrumento da política externa da União Soviética. “Na realidade, essa alteração tem sentido mais grave – procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista”, diz a Carta.

No encerramento do debate do V Congresso, Pedro Pomar escreveu que ele tinha esperanças de que a defesa feita por Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral, no único artigo por ele publicado, de uma “justa linha política revolucionária para o Partido”, viesse a se concretizar.

O texto da Carta dos Cem termina com esta conclamação: “Ao adotar essa posição, confiamos que nas fileiras do próprio Partido existam forças suficientes para derrotar as tendências errôneas e encontrar o acertado caminho para resolver as dificuldades que o Partido enfrenta”.

No longo debate interno – iniciado em 1956/57 e encerrado em 1960 – fica facilmente perceptível que os principais fatores que levaram à cisão eram de fato predominantemente internos.

O problema é que no curso do processo do V Congresso solidificou a tendência revisionista, culminando na criação do novo PCB – o que não deixou aos antigos dirigentes alternativas à reorganização do Partido.

Pedro Pomar afirmou que a Conferência de 1962 fora convocada para debater e enfrentar graves problemas do movimento comunista no Brasil, decorrente de um longo processo que culminara na formação de um novo partido.

Outra missão seria a discussão da necessidade de reorganizar “o nosso velho e glorioso Partido e de indicar o caminho da luta capaz de conduzir o proletariado e povo à sua emancipação nacional e social”.

Segundo Pedro Pomar, em comentário no jornal A Classe Operária, não seria possível compreender o significado da Conferência sem estabelecer conexão com os acontecimentos anteriores, sobretudo os dos anos 1950.

Fora um período difícil para país, constatou ele, que exigiu dos comunistas esforços para vencer os obstáculos “que o Partido teve de transpor para cumprir sua missão revolucionária”.

Fora também uma fase rica de ensinamentos, na qual muitos militantes manifestaram grande abnegação, “mas a direção do Partido não teve a capacidade de encontrar o melhor caminho da revolução e deixou que se perdessem magníficas oportunidades para elevar o nível da ação combativa das massas”.

Naquela época já se podia observar certo desalento nas fileiras comunistas e perceber que a linha política claudicava diante dos acontecimentos que se precipitavam, como os de 24 de agosto de 1954 e os de 11 de novembro de 1955, analisou.

O Programa do Partido, aprovado no IV Congresso, na opinião de Pedro Pomar passou a ter uma interpretação sui generis, que não afinava com as diretrizes essenciais nele contidas. “Nessas condições é que nos surpreendeu a ofensiva da reação imperialista e o surto revisonista”, afirmou.

Pedro Pomar constatou que nas fileiras comunistas propagou-se rapidamente uma sensação de frustração, sobretudo nos setores da intelectualidade ligada aos comunistas ou sob a influência do Partido. “Cresceu a confusão ideológica em face das enormes vacilações da direção partidária e da sua impotência para enfrentar os ataques dos revisionistas”, comentou ele.

Pedro Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização do Partido Comunista do Brasil, revelando nuances que permitem visualizar as entranhas da batalha desenvolvida no processo do V Congresso.

Segundo ele, o debate no “movimento comunista” começou por iniciativa dos revisionistas e, “embora contivesse aspectos positivos e revelasse o sentimento internacionalista e revolucionário de diversos camaradas, não contribuiu para esclarecer devidamente os problemas controvertidos”.

Ao contrário, gerou mais desorientação, disse ele. “Tudo isso contribuiu para que fosse declinando a influência dos comunistas no movimento operário e democrático. As forças populares, sem liderança efetiva, se tornaram objeto da traficância dos demagogos burgueses e pequeno-burgueses. O movimento de massas ia sendo empolgado, cada vez mais, pelo nacionalismo. As publicações comunistas de massa despareceram e o próprio nome do Partido Comunista do Brasil passou a ser omitido, sendo substituído pela expressão ‘movimento comunista’ ou pela assinatura de um único dirigente”, escreveu.

Toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria, disse Pedro Pomar. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

“O Programa do Partido foi considerado superado em sua totalidade pelos corifeus do revisionismo, sob a acusação de que não refletia as novas condições do mundo e do Brasil. No que se refere à situação internacional, os revisonistas afirmavam que, na base de uma falsa apreciação, havíamos exagerado o perigo de guerra, que o poderio do socialismo era de tal magnitude que todas as reformas sob o capitalismo favoreciam o socialismo e que, portanto, a ditadura do proletariado e a revolução proletária deixaram de ser indispensáveis.”

O culto à personalidade de Prestes, que segundo Pedro Pomar os comunistas estimularam durante muitos anos, tornou-se um fator primordial para que as ideias revisionistas acabassem se impondo.

“Por ironia, um dos aspectos negativos da atividade do Partido e que os revisionistas diziam combater é que lhes propiciou a arma mais poderosa para empolgar a direção e depois o conjunto do Partido. Justamente graças à adesão de Prestes ao grupo revisionista, em 1957, é que este passou a predominar no Partido.”

Pedro Pomar revelou que os dirigentes do grupo revisionista, de acordo com Prestes na reunião do Comitê Central em agosto de 1957, acusaram quatro integrantes do antigo Presidium de serem os principais responsáveis pelos erros do Partido.

“Embora em conversas privadas confessassem outra coisa, consideraram Prestes como vítima de uma conspiração, como um homem não informado. Os ‘cabeça de turco’ (locução de uso popular que significa teimoso, obstinado, resistente) foram apontados no Partido e alijados de seus postos e aquele que era de fato o maior responsável, não só como decorrência do posto que ocupava, mas, sobretudo, pelo sistema de culto à personalidade, foi inocentado, ou considerado capaz de recuperação”, detalhou.

Apelando para a esperteza e utilizando sofismas, disse Pedro Pomar, os revisionistas continuavam rendendo o mesmo culto à personalidade, acusando, entretanto, os que se mantinham fiéis às tradições revolucionárias do Partido como “saudosistas desejosos da volta do passado”.

“Com esses estribilhos monótonos, aplicavam a torto e a direito o método mandonista por eles tão condenado. Velhos quadros e militantes foram vítimas de uma política discriminatória mais absurda e hipócrita. Empregando tais processos, os revisonistas conseguiram impor no 5º Congresso a linha reformista, apesar da vigilância dos elementos revolucionários e de sua crescente resistência diante do que ocorria no Partido. Tanto assim que os Estatutos então aprovados ainda conservaram, no fundamental, os princípios e as normas leninistas consagrados pelo movimento comunista internacional.”

Era preciso ressaltar a resistência aos revisionistas para se apreciar de modo correto o que aconteceu quando o Comitê Central eleito no V Congresso resolveu alterar o nome do Partido e criar um novo partido, que não se regeria mais pelos princípios do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário, ponderou Pedro Pomar.

“Nessa ocasião, grande número de militantes se dirigiu ao Comitê Central para condenar essa tentativa de formar um novo partido, sob o pretexto de obter seu registro eleitoral. Simultaneamente, esses militantes solicitaram a convocação de um novo Congresso, única instância que podia decidir a questão caso a direção não quisesse voltar atrás de seus propósito liquidacionista.”

A resposta do Comitê Central a essa petição dos que divergiam de sua conduta foi de uma intolerância a toda prova.

“Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisonismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”