Por Osvaldo Bertolino
As recorrentes citações pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do exemplo da mãe, dona Lindu, como fez ele ao falar da pressão da direita para taxar os pobres e ampliar os ganhos dos ricos de todas as escalas, vão além do sentido didático. Tem o componente social. Dona Lindu era a ministra da Fazenda da casa, a administradora dos envelopes de pagamentos dos filhos. Agia com rigor, destinando os poucos recursos para cada necessidade da família. Dona Lindu, de acordo com Lula, é o seu exemplo para compreender como funciona as finanças do Estado. Elas têm mais complexidades, mas, na essência, é isso mesmo.
A mídia deu grande destaque a essa máxima do presidente em entrevista após a cúpula do G7 na Itália, quando ele falou da pressão para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adote “corte de gastos”. Lula disse que está aberto a analisar propostas, mas não fará “ajustes fiscais” à custa dos pobres. E lembrou que a taxa de juros acima de 10% “num país com inflação de 4%” não faz sentido. “Fazem uma festa com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) em São Paulo. Novamente, os que foram na festa devem estar ganhando dinheiro com a taxa de juros”, agulhou.
Epicentro político
A “festa” foi uma homenagem ao presidente do Banco Central na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que posteriormente participou de um jantar oferecido pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas. Um ato político que vai além de reunir os que ganham dinheiro com a taxa de juros. Foi uma tentativa de sinalizar aos interessados no “ajuste fiscal” que aquele grupo da direita poderia abrir caminho para a organização política da oposição ao governo Lula. Sobretudo após o espocar de fogos da mídia para saudar o recente “ajuste fiscal” de Tarcísio.
A manobra não surtiu efeito e chegou a ser criticada pela própria mídia, que não gostou da exposição política de Roberto Campos Neto. A questão de fundo é a ligação de Tarcísio com Bolsonaro, um estorvo para eventuais pretensões à sucessão de Lula. Além da base social e política bolsonarista do governador, pesam as limitações organizativas em âmbito nacional, pressuposto básico para um projeto da direita capaz de se apresentar como viável politicamente para disputar a sucessão presidencial. Tarcísio teria de formar outro epicentro político, completamente divorciado de Bolsonaro, personagem desgastado pelos escândalos e desastres de seu governo.
Ataques sistemáticos
A direita mira em outra direção, a ideia de que governo Lula, que deveria ter trilhado o caminho do “ajuste fiscal” assim que saiu o resultado das urnas, já se mostrou inviável por ser um gastador inconsequente. E por não aceitar a imposição de que o presidente foi eleito não pelas ideias de esquerda, mas pelo projeto da direita contido na “frente ampla”. Trata-se de uma empulhação, presente diuturnamente na mídia, falsificação grosseira do movimento que se formou em 2022 para derrotar Bolsonaro. Era óbvio que Lula não adotaria a agenda da direita, embora soubesse das limitações conjunturais, sobretudo pela composição do Congresso Nacional.
Com o tempo, a diferença se transformou em ataques sistemáticos a Lula. A mídia adotou a linha de fazer oposição frontal, muitas vezes com apologia explícita ao golpismo. O “ajuste fiscal” passou a ser uma imposição implacável, espécie de tudo ou nada. Acionaram o sistema de projeção do mercado financeiro, chamado de Relatório Focus – segundo o Banco Central, as “expectativas” de mercado coletadas regularmente, na verdade manipulações de projeções de inflação e juros por agenciadores da especulação financeira –, para apresentar um futuro sombrio, o descontrole da dívida pública pela elevação da taxa de juros para “acalmar os investidores”. Surgiu até o fantasma da inflação alta pela demanda crescente com empregos, rendas, reajuste do salário-mínimo e outros investimentos públicos.
Tríade autocrática
Por trás de tudo está a política monetária, o controle da economia pela gestão do Banco Central dito “independente”, que administra uma “meta fiscal” draconiana, o chamado superávit primário, enormes recursos orçamentários abocanhados pelo mercado financeiro por decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre a taxa de juros. É um jogo bruto contra o povo e o país, sem que o governo ou qualquer outra instância de poder possam agir. A tríade Banco Central “independente”, Relatório Focus e Copom forma um poder paralelo, uma autocracia poderosa e inescrupulosa.
A mídia é a grande porta-voz desse autoritarismo. Em nome do “déficit” orçamentário, apresentado como o Armagedon, anunciam de forma peremptória que é preciso “cortar gastos”, mirando questões como o reajuste da aposentadoria, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência, além das verbas para a Saúde e a Educação. Tudo isso martelado em regime de monopólio midiático, sem espaço para o debate e sem a visão do conjunto da economia e da administração da política econômica.
Árvore mágica de dinheiro
O livro O mito do déficit, de Stephanie Kelton, professora de Economia e Políticas Públicas, explica bem a falácia do “ajuste fiscal”. Ela parte de uma citação da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 1983, segundo a qual o Estado “não tem fonte de dinheiro que não o dinheiro que as pessoas ganham”. “Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo se tomar emprestado as suas economias ou se tributá-lo ainda mais”, completou. Segundo Thatcher, “não existe dinheiro público”, mas “dinheiro do contribuinte”.
O mesmo discurso seria repetido mais adiante pela também primeira-ministra Theresa May. O governo não possui uma “árvore mágica de dinheiro”, disse ela. Para bancar investimentos ou políticas públicas o governo precisa pegar mais “do nosso dinheiro”. É a ideia de que se o governo gasta mais do que arrecada em impostos precisa emprestar recursos do “mercado”. Na verdade, taxar e fazer empréstimos vêm primeiro, explica a autora. É o modo convencional de pensar pelo que ela chama de (TE)G: Tributos e Empréstimos precedem os Gastos.
O resumo, de acordo com o que Stephanie Kelton denomina Teoria Monetária Moderna (TMM), é que existem o emissor de moedas (o Estado) e o usuário. Num sistema de controle autocrático da política monetária, o principal usuário é o mercado financeiro, destinatário de grandes somas de dinheiro – o mercado de títulos públicos – que empresta ao governo e cobra o juro determinado pelo Banco Central “independente”. Os demais destinatários, os serviços e investimentos públicos, ficam na dependência dos interesses do mercado financeiro para definir como gastar. Cumpre-se, assim, o ciclo da (TE)G.
Falsa imagem do Tio Sam
Stephanie Kelton relata projeções de aumento da dívida pública dos Estados Unidos de dezesseis trilhões de dólares em 2019 para vinte e oito trilhões em 2029. Enquanto isso, a repetição sistemática de que o governo não tem dinheiro se intensifica. Ela relata que a citação se espalhou pelo país, com a imagem do Tio Sam de bolsos das calças para fora, do avesso. “Muitas pessoas passaram a acreditar que nosso governo está totalmente falido, que seu orçamento não dá conta dos assuntos mais importantes da nossa atualidade.”
Essa falsa imagem do Tio Sam sem dinheiro é a ideia que a mídia tenta cravar como verdade absoluta no Brasil. O controle da economia por essa política monetária autoritária confronta o projeto de governo eleito em 2022 e vai se transformando em dilema. Há uma evidente tentativa de cooptar Haddad, amplificando declarações da ministra do Planejamento, Simone Tebet, numa clara manobra para isolar Lula e criar crises políticas para desestabilizar o governo, inviabilizando a aplicação do seu programa.