Por Osvaldo Bertolino
Na madrugada de 24 de maio de 1995, trabalhadores de quatro refinarias da Petrobras foram surpreendidos por canhões de tanques do Exército apontados para eles. A ocupação militar, na calada da noite, foi uma resposta a uma greve que reivindicava o cumprimento de acordos assinados no governo Itamar Franco e descumpridos pelo seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC). As negociações salariais se arrastaram pelo ano anterior e resultaram em compromissos assumidos por Itamar e seu ministro da Minas e Energia, Delcídio Gomes. Até mesmo um acordo do presidente da Petrobrás, Joel Rennó, com a Federação Única dos Petroleiros (FUP) foi ignorado.
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Tropas militares ocuparam três refinarias em São Paulo e uma no Paraná. A decisão foi tomada na noite de 17 de maio numa reunião entre FHC e os ministros do Exército, general Zenildo Lucena, e das Minas e Energia, Raimundo Brito. Foi a segunda vez, após a ditadura militar, que tanques reprimiram trabalhadores – em 1988, três operários morreram na Companhia Siderurgica Nacional (CSN), numa invasão autorizada pelo então presidente da República, José Sarney.
A greve dos petroleiros havia sido julgada “abusiva” pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. A categoria ficou entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco de repressão. Ficaram com a segunda e receberam ampla solidariedade. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram em todo o país contra a ocupação militar das refinarias.
Racismo na Rede Globo
A revista Veja divulgou que, em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir os petroleiros em greve nas principais refinarias. As importações custaram à Petrobras US$ 700 milhões. Tudo isso gastando R$ 20 milhões por dia, quando o cumprimento dos acordos representava R$ 14 milhões. O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria os que divergissem de seu governo.
A mídia, mais uma vez, armou seu circo para difamar os trabalhadores. Paulo Francis, à época comentarista da Rede Globo de Televisão e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, disse: “Uma das falhas do governo FHC é sua boa educação. É preciso meter as mãos na cabeça raspada do Vicentinho (então presidente da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, da qual a FUP era filiada) língua-presa. Eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo.” Alexandre Garcia, que fora ligado à ditadura militar, também da Rede Globo, afirmou que a ocupação militar era uma medida necessária para evitar que os petroleiros ameaçassem o patrimônio físico das refinarias.
FHC havia investido contra a lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional, para ele uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. Na verdade, era uma investida contra a legislação trabalhista, a incompatibilidade do projeto neoliberal com a liberdade de organização dos trabalhadores, demonstrada no início dos anos 1980 pelo governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de voo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que estes retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.
A primeira-ministra da Inglaterra, Margareth Thatcher, outro símbolo do autoritarismo neoliberal, também fez o mesmo com as greves dos mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pelo neoliberalismo, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário – responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores ingleses. Apesar da solidariedade que se espalhou por todo o Reino Unido, da coesão entre trabalhadores mineiros e suas famílias – especialmente as mulheres – e da importante solidariedade internacional, a greve foi derrotada.
Ministro inoportuno
FHC assumiu com a promessa de implodir a estrutura sindical e a legislação trabalhista. A ideia começou a ser formada logo após a promulgação da Constituição de 1988, quando os principais executivos das empresas multinacionais instaladas no Brasil criaram um grupo permanente para organizar o lobby que atuaria no golpe fracassado da “revisão constitucional” de 1993. Em 1994, o presidente FHC foi buscar o economista Paulo de Tarso Almeida Paiva, que atuava no governo do Estado de Minas Gerais, para ocupar o Ministério do Trabalho com a função definida de comandar o ataque à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e à Constituição.
Quando o presidente apresentou seu ministério, fez uma menção especial a Paiva. “Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país”, disse, referindo-se à “era Vargas” como “apodrecida”. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro do Trabalho provocou uma tempestade ao defender, na sede da Força Sindical, em São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem “disponíveis para negociação”. “O ministro foi, no mínimo, inoportuno”, disse o então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros. O porta-voz da Presidência, Sérgio Amaral, anunciou que “o governo jamais cogitara de retirar da Constituição os sagrados direitos dos trabalhadores”. Era uma falácia.
Tudo virou barganha
Os trabalhadores iniciaram o combate ao Plano Real assim que ele surgiu. Em fevereiro de 1994, as centrais sindicais anunciaram uma greve geral contra as perdas da conversão dos salários pela média da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda, que chegavam a 36%. Para os preços, segundo FHC, não era preciso regras de conversão porque o próprio “mercado” se incumbiria de conter os abusos. Seu plano só atingia os salários. Greves e manifestações começaram a pipocar. Em 1º de março de 1994, as centrais sindicais definiram um plano de lutas e programaram um Dia nacional de lutas contra o arrocho da URV.
O passo seguinte foi uma manobra do governo para envolver as centrais na “reforma” da Previdência Social. Os termos previstos no acordo – substituição da aposentadoria por tempo de serviço por tempo de contribuição, fim da aposentadoria proporcional, fim da aposentadoria especial para os professores universitários e novas regras para aposentadoria integral no serviço público – foram duramente criticados. Em 21 de junho de 1996, uma greve geral, mesmo em meio àquele clima hostil, foi considerada um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve – ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação, mostraram o seu sucesso. Mas as condições para a ação sindical eram cada vez mais duras.
O governo havia editado uma Medida Provisória (MP) – chamada de MP da desindexação – que na prática proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho. As campanhas salariais muitas vezes se resumiam à luta para não perder direitos. No dia 25 de abril de 1997, os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do Plano Real. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país.
O primeiro golpe efetivo da “era FHC” na “era Vargas” ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1998, quando a “reforma” da Previdência foi aprovada no Congresso Nacional. Mas a direita pagou caro – na mesma data, ocorreu o Dia nacional de luta contra a reforma da Previdência. Nos bastidores da votação, a corrupção fervilhou. Tudo virou barganha. A obrigatoriedade do selo de controle colado no para-brisa dos carros tornou-se lei para atender a um lobby do sobrinho do deputado Delfim Netto, do Partido Progressista Brasileiro (PPB), uma das derivações das organizações partidárias que sustentaram a ditadura militar. A corrupção chegou a detalhes reles – um deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) negociou a transferência de sua mulher de São Paulo para Brasília. Um caminhão de dinheiro da Caixa Econômica Federal (CEF) foi liberado para a compra de votos.
A direita cooptava, mas também deixava o uso da força sempre ao alcance. “Se precisar bater, bata. Se precisar atirar, atire. Aqui não vai entrar ninguém. Eu estou aqui”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães, o ACM (PFL-BA), presidente do Congresso Nacional, aos seguranças chamados para reprimir os trabalhadores. O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ameaçou mandar a Polícia Militar atirar nos manifestantes se eles não se retirassem do plenário. FHC e a mídia abusaram da retórica para atacar os “baderneiros” que protestaram em todo o país.
Farsa de ACM
O país se arrastava e logo seria atingido de frente pelo furacão do ataque especulativo que começou na Ásia. O governo correu para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs duras condições para um socorro emergencial. Novas manifestações tomaram conta do país, puxadas pelo Fórum nacional de luta por trabalho, terra e cidadania, que lançou, em 1º de março de 1999, a Jornada nacional em defesa do Brasil. Em 26 do mesmo mês, sob a palavra de ordem Basta de FHC!, mais uma vez os trabalhadores foram às ruas.
O governo também agiu para amedrontar a Justiça do Trabalho. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas por ACM – um dos principais aliados de FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. A ordem era não conceder reajuste. ACM chegou a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho.
Em 26 de agosto de 1999, os trabalhadores promoveram a Marcha dos 100 mil, em Brasília, que representou uma grande vitória da unidade entre os partidos de oposição e o Fórum nacional de lutas. Aquela demonstração histórica de mobilização popular foi o resultado da consolidação da Frente de oposição democrática e popular, depois de sucessivas manifestações contra o projeto neoliberal. Representantes da Marcha dos 100 mil entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados 1 milhão e 300 mil assinaturas exigindo a instalação da CPI da Telebrás para apurar corrupção no processo de privatização do sistema telefônico brasileiro.
Índices de impopularidade
No ato da Marcha dos 100 mil em Brasília, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) expressou, em poucas palavras, o que representava aquele momento. “Estou gratificado. Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”, disse ele em resposta ao então presidente da República, que classificou a Marcha dos 100 mil como manifestação dos “sem rumo”. Dirigindo-se diretamente a FHC, Lula afirmou: “Quem não tem rumo é você”.
Os manifestantes deixaram claro que não pretendiam apenas uma mudança no governo, mas uma mudança de governo. Ou seja: a saída do presidente menos de oito meses após a sua posse no segundo mandato, traduzida no slogan Fora, FHC!. “Temos de fazer milhares de movimentos como este até tirar essa gente do poder”, discursou Lula, confirmando o que o presidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Leonel Brizola, dissera um pouco antes no mesmo palanque montado em frente ao Congresso Nacional. “Esse ato é apenas o começo de uma grande jornada que só vai parar no dia em que tivermos um governo em que o povo brasileiro confie”, afirmou Brizola.
O cumprimento das metas impostas pelo FMI corroía o governo. FHC, já abalado por altos índices de impopularidade, isolava-se cada vez mais. Uma nota assinada pelo Fórum nacional de lutas refletiu bem essa constatação. O documento defendeu emprego para todos, aumento geral de salários, redução da jornada de trabalho, fim das privatizações e auditoria nas empresas privatizadas, suspensão do pagamento da dívida externa e ampla reforma agrária. O texto também mencionou o pedido de impeachment de FHC e pediu a instalação da CPI das privatizações das empresas de telecomunicações.
FHC reagiu com mais ameaças. Questionado sobre a possível volta de uma lei para corrigir os salários automaticamente, disparou: “No limite, eu veto. Eu não vou deixar.” Para os neoliberais, cada empresa deveria definir sua política salarial. É o que chamavam de “livre negociação”. Em 2001, o país viveu o auge dos ataques à legislação trabalhista. FHC encaminhou ao Congresso um projeto de lei alterando o artigo 618 da CLT. “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de segurança e saúde do trabalho”, dizia a nova redação de FHC.
Hitler e o pastor Jim Jones
Era só o começo. O governo pretendia desregulamentar os 34 incisos do artigo 7° da Constituição – espécie de mini código do trabalho –, que tratam de direitos como jornada de 44 horas semanais, salário-mínimo, seguro-desemprego, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), aviso prévio, limites para a despedida arbitrária, piso salarial, irredutibilidade de salário e sua garantia, décimo-terceiro e remuneração do trabalho noturno. “Em que pese a pouca abrangência da reforma, o seu aspecto gratificante é saber que o governo atual está inspirado por uma nova mentalidade e uma nova determinação, tornando possível a reforma trabalhista em curso, que, até pouco tempo atrás, parecia impossível, empalidecendo as minorias vociferantes e conservadoras e as viúvas ideológicas”, disse o então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles.
A “reforma” da legislação e das práticas trabalhistas era uma das peças centrais do projeto neoliberal, um dos pilares do Plano Real. O projeto de lei de FHC, alterando o artigo 618 da CLT, fazia parte – em conjunto com a privatização da Previdência, da Saúde, da educação e do saneamento básico – das “reformas” de segunda geração previstas no pacote de exigências contidas no acordo com o FMI. FHC já havia conseguido a lei n. 9.601/1998, sobre o contrato por prazo determinado; editado a medida provisória n. 1.709, que instituiu o trabalho de tempo parcial; e o decreto n. 2.100, autorizando a demissão sem motivo.
A revista Época havia noticiado que ACM foi escalado por FHC para convencer os juízes trabalhistas a segurar os reajustes salariais. Em São Paulo, circulavam rumores de que FHC estaria articulando, por meio do secretário-geral da Presidência da República, Eduardo Jorge, e o juiz Nicolau dos Santos Neto – que mais tarde seria um foragido da Justiça –, a indicação de juízes pró-Plano Real em troca de dinheiro para a construção superfaturada do novo prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). ACM disse que estava recebendo apoios à ideia de acabar com a Justiça do Trabalho e provocou a seguinte resposta do então presidente do TST, Wagner Pimenta: “E daí? Hitler e o pastor Jim Jones também tiveram apoio às suas ideias.”