Ditadura militar: crônica de um longo 1º de abril

 

Por Osvaldo Bertolino

O golpe de 1964 foi resultado do conceito de poder militar moldado pela Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra, criada m 1949 como incubadora no Brasil das nascentes operações anticomunistas da Guerra Fria. O general César Obino, emissário do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), montou o projeto no National War College, sediado em Washington, criado em 1º de junho de 1946 para treinar oficiais.

O objetivo era conter os movimentos políticos que confrontavam o concerto que se formou sob a hegemonia dos Estados Unidos nos embates da Segunda Guerra Mundial. Na definição dos ideólogos dessa doutrina, isso se resumia a uma palavra: anticomunismo.

A Escola Superior de Guerra foi entregue ao comando do general Oswaldo Cordeiro de Farias, ex-comandante de artilharia da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou contra o nazifascismo na Itália na Segunda Guerra Mundial, um fanático anticomunista e obcecado pela Doutrina de Segurança Nacional, movida pela corrupção do subterrâneo do regime dos Estados Unidos.

Cordeiro de Farias foi um dos conspiradores contra o presidente da República Getúlio Vargas, eleito em 1950, trabalhando freneticamente pelo acordo militar Brasil-Estados Unidos – a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos –, criada em 1951, desencadeando um ciclo de prisões e torturas de comunistas, sobretudo na Base Aérea de Natal, Rio Grande do Norte, controlada por agentes norte-americano.

Na solenidade de conclusão do curso da Escola Superior de Guerra de 1952, no auditório da Escola Técnica do Exército, com a presença de Getúlio, Cordeiro de Farias proclamou, sem meias palavras, o projeto golpista da Guerra Fria, baseado na perseguição aos comunistas. “No exame de nossa atitude entre os mundos que se defrontam, patenteou-se, e devemos proclamar essa verdade para que não nos iludamos, a infiltração bolchevique (comunista) em todos os setores da vida brasileira”, discursou.

Com seu fanatismo, Cordeiro de Farias via comunistas “fomentando luta de classes” em todo lugar, segundo ele bolcheviques para associá-los à propaganda de que eram agentes da União Soviética. Os bolcheviques, disse, embora fossem minoria, eram dotados de técnica, disciplina e coesão, com enorme poder de penetração e exploração de todos os fatos e circunstâncias. “Sua luta é por alcançar lugares chaves, apesar de, muitas vezes, seu aparente pouco valor. Sem exageros, pode dizer-se, eles controlam, por meios indiretos, grande parte da atividade nacional.”

Para o general, os bolcheviques agiam de baixo para cima, “deturpando, mentindo, examinando unilateralmente todos os problemas do país, dos pequenos aos grandes”. Estavam criando “um clima que vai encontrar, conscientemente, ressonância e maior propaganda nos seus adeptos do grupo intelectual de todas as profissões e que vai aparecer, no final, embora falsamente, como representativa da mentalidade brasileira, contra a qual não encontram força para agir, dado o nosso regime democrático”.

Missão redentora      

As conspirações que chegaram ao golpe de 1964 tinham essa base ideológica. De acordo com a teoria da Doutrina de Segurança Nacional, havia uma subversão internacional contra a “ordem ocidental”. Em torno do grupo formou-se uma rede de alucinados, oportunistas, degenerados e sociopatas. Era com eles que o regime projetado teria de contar para conter o “comunismo” e difundir aos quatro ventos a tese de que o mundo se debatia contra a “guerra subversiva” desde que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia em 1917.

Diziam que no Brasil essa invenção diabólica chegou com o Levante da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935, alcunhado de “Intentona”. Era o “comunismo atuante”, conforme definiu um dos ideólogos da Escola Superior de Guerra, a vertente mais consistente da “guerra bolchevique” que tinha em seu espectro também o “comunismo folclórico”, mais afeito a palavras do que a ações.

Os “consistentes” sentiram o baque em 1935 e optaram por infiltrar sua doutrina em postos-chaves da sociedade com um paciente trabalho de convencimento. Ganharam terreno nas décadas seguintes e chegaram às portas do poder no começo dos anos 1960, com a condescendência do presidente João Goulart.

A história tinha determinado àquele grupo, conforme suas interpretações, a missão redentora de manutenção da ordem. Ou, em outras palavras, cabia às Forças Armadas a contenção da “revolução comunista”, fosse na forma que fosse. Isso queria dizer que qualquer movimento contrário à “doutrina” daqueles militares estava a serviço do comunismo.

Eram dogmas com raízes no pensamento conservador brasileiro, moldados pelo esquadro da Guerra Fria, derivados da belicosa propaganda anticomunista turbinada no governo do presidente norte-americano Harry Truman, que assumiu o posto em abril de 1945 após a morte de Franklin Delano Roosevelt. Na Escola Superior de Guerra predominava o ponto de vista de que o mundo se dividira entre a ordem “democrática” e a desordem “comunista”, a repetição sistemática da retórica que marcou as hostilidades à União Soviética desde o seu nascimento.

O capitalismo norte-americano via um mundo a ganhar, mas precisava remover o obstáculo representado pelo socialismo que, mesmo num território ensanguentado, mostrava a força da vitória sobre o nazifascismo. A doutrina Truman pregava que o vazio criado com a derrota da “nova ordem” do líder nazista Adolf Hitler deveria ser ocupado com a “eterna vigilância” do “ocidente”, o “preço da liberdade”.

Ao passo que a obra hitlerista seria execrada como produto destruído pela “democracia ocidental”, o anticomunismo emergia para garantir que os “restos totalitários” seriam igualmente varridos da face da Terra. Na América Latina e na Ásia existiam fatores propícios ao florescimento do comunismo, o que exigia vigilância reforçada. A Conferência Interamericana de Chanceleres – também conhecida como Conferência de Petrópolis –, realizada no Brasil em 1947, com a presença de Truman, definiu os rumos daquela “doutrina” na região.

Estava rompida a linha que uniu o Brasil aos Estados Unidos nos combates ao nazifascismo na Europa com a política de boa vizinhança de Roosevelt para o estabelecimento de outra, agora fundada na doutrina da força militar como política de Estado. As bases militares que se expandiram no decorrer da Segunda Guerra Mundial deveriam ser reforçadas, sobretudo na América Latina e na Ásia. No Brasil, como casa de força da região, elas permaneceram intocadas e só foram removidas após uma campanha popular comandada pelo Partido Comunista do Brasil.

O Plano Truman, que determinava a padronização dos exércitos do Hemisfério Sul, trazia como subproduto a obrigação do Brasil de acompanhar os Estados Unidos na nova guerra que se armava. O governo do general Eurico Gaspar Dutra começou a moldar as Forças Armadas de acordo com essa doutrina, afastando os recalcitrantes, ao mesmo tempo em que desencadeou feroz repressão aos comunistas, promovendo a cassação do seu registro eleitoral – em maio de 1947 – e dos seus mandatos – em janeiro de 1948 – com manobras judiciárias e parlamentares.

Essa linha traçada pela cooperação militar do Plano Truman tumultuaria os governos seguintes – Getúlio Vargas suicidou-se; Juscelino Kubitscheck quase não tomou posse e enfrentou duas conspirações; Jânio Quadros renunciou e João Goulart, ameaçado antes de tomar posse, governou sob constante pressão, até ser deposto em 1964. Formou-se uma concepção política liberticida, materializada em ações do grupo militar golpista e seus aliados do Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional (UDN).

Esse condomínio golpista trabalhou freneticamente para instaurar a doutrina militar da Escola Superior de Guerra. Sem o Brasil, a estratégia do Plano Truman não daria certo, avaliaram os estrategistas do Departamento de Estado norte-americano. A resistência às ingerências dos Estados Unidos na região se espalhava e uma ação coordenada deveria ser urgentemente formulada.

Para onde pendesse o gigante sul-americano, penderia a região. A era dos golpes de Estado na América Latina, deflagrada em 1954 com a deposição do presidente da Guatemala, Jacobo Arbenz Guzmán, democraticamente eleito, acusado de adotar medidas de “tendências comunistas”, precisava ter no Brasil o principal ponto de apoio.

Aliança para o Progresso

A perseguição anticomunista se intensificou, se espalhou e se fantasiou com a retórica da “ameaça de Moscou”, gerando conflitos dentro das próprias Forças Armadas. A disputa entre militares nacionalistas e golpistas motivou a criação da “cruzada democrática”, capitaneada pelo que se chamava de “UDN fardada”, que exigia do ministro da Guerra do governo Vargas, Newton Estillac Leal, a expulsão dos “comunistas” do Exército”. O presidente, sob intenso ataque também da “UDN gráfica” – a mídia –, vacilou e a corrente nacionalista, que assegurou as condições para a sua eleição e posse, sofreu um verdadeiro massacre.

O suicídio de Vargas fez os golpistas recuarem, mas a doutrina golpista continuou a ser propagada e se manifestou de maneira furiosa quando Jânio Quadros condecorou com a Ordem Cruzeiro do Sul Che Guevara, um dos principais líderes da Revolução Cubana de 1959. Logo em seguida, a Organização dos Estados Americanos (OEA), braço do regime norte-americano na América Latina, aprovou uma resolução pedindo aos governos locais mais controle da “subversão comunista no hemisfério”. Na crise da renúncia de Jânio Quadros e posse do vice-presidente João Goulart, a fúria anticomunista voltou a se manifestar com força.

Pululavam manchetes na mídia dando conta de “guerrilhas” e “subversão” com financiamentos do “comunismo internacional”, que rompeu a barreira “ocidental” com a Revolução Cubana. Polarizaram o discurso para fustigar o governo Goulart e fazer girar a usina anticomunista, propagando os ideais da “doutrina militar”, abertamente orientada pela Embaixada dos Estados Unidos.

Em março de 1963, o embaixador norte-americano, Lincoln Gordon, declarou na Comissão do Congresso do seu país que os comunistas se infiltraram no governo brasileiro e no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ao qual pertencia o presidente Goulart. A afirmação foi divulgada pela subcomissão de Assuntos Interamericanos da Câmara de Representação que investigava as “atividades comunistas” na América Latina.

A conspiração avançava a passos largos, impulsionada também pelos governadores Adhemar de Barros (São Paulo), Carlos Lacerda (Rio de Janeiro) e Magalhães Pinto (Minas Gerais), apoiada nos grandes proprietários de terra, no clero conservador, nos partidos políticos de direita e principalmente na mídia. O ex-presidente Juscelino Kubitscheck também se envolveu com o golpe, na esperança de que seria candidato a presidente da República em 1965, quando cessaria a intervenção militar.

O centro da trama estava na Embaixada norte-americana, comandada por Gordon e o general Vernon Walters, adido militar de Washington designado para posto pela Central de Inteligência Americana (CIA). Gordon recebera carta branca do presidente norte-americano, Lyndon Johnson, ao assumir a Embaixada brasileira em 1961, para tramar contra o governo Goulart. Sua missão fazia parte da Aliança para o progresso, projeto do governo dos Estados Unidos concebido durante a presidência de John Fitzgerald Kennedy para controlar a América nos aspectos político, econômico, social e cultural, conforme a Carta de Punta del Este, de agosto de 1961.

Em 1963, chegou o coronel Walters, um poliglota que na campanha da FEB na Segunda Guerra Mundial fora o interlocutor dos Estados Unidos com os militares brasileiros e se tornou amigo de Humberto Castello Branco, agora chefe do Estado-Maior do Exército, que deveria ser o primeiro ditador do regime golpista. O grupo que assumiu a missão de liderar a conspiração manteve, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ligações com a estrutura militar norte-americana.

Na Embaixada dos Estados Unidos foi elaborado o programa do golpe. Quando os golpistas assaltaram o poder, na virada de 31 de março para 1º de abril de 1964, o governo norte-americano estava minuciosamente informado – sete dias antes, Walters telegrafara a Washington dando detalhes da ação.

Quatro dias antes do início do golpe, Gordon detalhou ao governo dos Estados Unidos o tipo de apoio que ele julgava necessário aos militares conspiradores. No início da tarde de 31 de março, o Departamento de Estado mandou um telegrama informando que havia enviado um porta-aviões, seis destroieres, petroleiros abastecidos com cento e trinta mil litros de combustível, aviões, helicópteros e tropas para as proximidades da costa do Rio de Janeiro.

Campinas, cidade a pouco mais de cem quilômetros da capital paulista, recebeu seis aviões cargueiros com cem toneladas de armas. Era a Operação brother sam, uma prevenção a eventuais reações brasileiras.

Logo depois do golpe, Walters foi recebido em um jantar pelo presidente Castello Branco.

– Fiquei bastante preocupado com aquele comício do presidente Goulart (o “comício das reformas”, realizado dia 13 de março de 1964 em frente à estação ferroviária Dom Pedro II, também chamada de Central do Brasil, no Rio de Janeiro), com bandeiras vermelhas – declarou o general.

Gordon disse ao jornal O Estado de S. Paulo que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim e da derrota dos comunistas na Coréia. Eram variantes da “cortina de ferro”, proclamada nos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill.

O objetivo era isolar a União Soviética e liquidar a influência de suas ideias no “mundo ocidental”, um cerco militar que resultou na ocupação do Japão depois das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki, nas guerras da Coreia e do Vietnã, nos banhos de sangue anticomunistas na Indonésia e na Tailândia. A cadeia de golpes na América Latina fazia parte dessas variantes da militarização da “cortina de ferro”.

A CIA entre os civis

O movimento militar pró-Washington não teve um chefe, mas o chão do golpe estava riscado, separando os conspiradores em duas alas. Seus líderes se dividiram, basicamente, entre a linha dura e os moderados. Estabeleceu-se o que o general Arthur da Costa e Silva chamou de “briga de foices no escuro”. Todas as picuinhas não resolvidas na marcha golpista ganharam raízes e a cizânia se espalhou nas casernas.

Não havia uma fronteira demarcando precisamente a divisão, nem tampouco uma clara definição de linhas de atuação, mas, resumidamente, eles se dividiam entre os que defendiam o Estado de exceção como único regente do governo – a linha dura – e os que advogavam a devolução do poder aos civis, desde que blindado contra qualquer “ameaça comunista” – os moderados. No primeiro grupo estavam os jovens oficiais e no segundo a oficialidade mais antiga.

A linha dura tinha no presidente do Clube Militar, general Augusto Cesar de Castro Moniz de Aragão, uma espécie de porta-voz. Ele se pronunciou em nome do grupo quando houve uma insurgência de ex-aliados dos golpistas contra cassações de mandatos e a suspensão dos direitos políticos, que ocorreriam em 15 de junho de 1964.

Moniz Aragão se pronunciou também quando um Manifesto do ex-presidente João Goulart foi divulgado no Congresso Nacional, em agosto de 1964. Ele classificou o ato como tentativa de lançar a opinião pública contra o governo. Segundo a linha dura, aqueles fatos justificavam as medidas repressivas do Ato Institucional número 1 (AI-1).

A atuação da CIA entre os civis, especialmente com o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), era mais para destruir ou desconstruir as organizações populares do que para organizar movimentos políticos. Tentaram algumas coisas, mas, ao contrário dos êxitos na mídia, os resultados não foram significativos.

De uma maneira geral, contudo, a CIA foi eficiente na campanha anticomunista. Mas o foco principal eram os militares. Lincoln Gordon e Vernon Walters decidiram que Castello Branco deveria ser o comandante do golpe, mas o homem forte do regime seria Costa e Silva, o “chefe supremo das forças militares em operação”, como ele mesmo se autointitulava.

Seu plano era a efetivação da linha dura, passando por cima de todas as dissidências e discordâncias, principalmente a de Cordeiro de Farias, que soltou o verbo quando soube que Castello Branco estava permitindo que o autointitulado “chefe supremo das forças militares em operação”, general de sua confiança, manipulasse e corrompesse os golpistas para assumir as rédeas do regime.

Numa reunião de generais pouco antes do golpe, no Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, Cordeiro de Farias e Costa e Silva trocaram palavras ásperas. Segundo o ex-chefe da Escola Superior de Guerra, Castello Branco caiu no conto do vigário ao aceitar que Costa e Silva assumisse o Ministério da Guerra antes mesmo da oficialização do novo presidente da República, posto que lhe daria condições para se apossar do golpe.

Cordeiro de Farias via Costa e Silva como conspirador dentro da conspiração, cercado por um grupo de ambiciosos, chamado por ele de entourage, que se aproveitava de suas fortes ligações com Castello Branco para ocupar postos de comando no governo, entre eles Emílio Garrastazu Médici. Mesmo a candidatura de Castello estaria em risco, segundo o ex-chefe da Escola Superior de Guerra.

Três dias depois do golpe, Cordeiro de Farias se dirigiu ao Quartel-General do Exército, no Rio de Janeiro, onde haveria uma reunião decisiva para tratar da candidatura a presidente, para a qual não fora convidado. Chamou Castello Branco para uma conversa às pressas, acompanhado do governador paulista Adhemar de Barros. O Quartel-General estava repleto e foram se reunir no banheiro. Cordeiro de Farias disse que se houvesse tentativa de impor outro nome – referia-se a Costa e Silva – faria um “barulho enorme”.

O plano do ministro da Guerra era mais ardiloso. Ele mesmo propôs, na reunião no Quartel-General, o nome de Castello e começou a trabalhar para que Cordeiro de Farias fosse afastado do poder, assumindo uma embaixada bem longe do Brasil. Sentindo os fios da trama sob os pés, Cordeiro de Farias não aceitou o convite de Castello e foi encostado no Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais.

No governo Costa e Silva, Cordeiro de Farias seria substituído no Ministério pelo general Afonso Albuquerque de Lima, tido como expoente do nacionalismo entre os militares, e ameaçado de prisão pelos coronéis responsáveis pelos famosos IPMs (Inquéritos Policial Militar).

Operação Popeye

A semente da desavença surgiu na gênese do golpe. Cordeiro de Farias, que deixou a Escola Superior de Guerra três anos depois de sua criação para ser governador de Pernambuco e formar uma cidadela do plano golpista contra Getúlio Vargas, considerava-se o principal articulador da conspiração de 1964 e levou uma rasteira de Costa e Silva.

O ex-homem da Escola Superior de Guerra confrontou os operadores do golpe desde suas primeiras ações. Ele acusou o general Olympio Mourão Filho – um ex-integrante da Ação Integralista Brasileira, o movimento fascista brasileiro, que nos tempos de capitão foi autor do Plano Cohen, uma farsa sobre preparação de sublevação “comunista” que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo em 1937 – de se apossar da senha golpista com a Operação Popeye, a marcha das tropas que saiu de Juiz de Fora, Minas Gerais, para dar o golpe.

A questão de fundo era o aval da embaixada dos Estados Unidos. Mourão Filho havia atropelado conversas anteriores ao bater na porta de Vernon Walters sem consultar Cordeiro de Farias, que estava tratando do assunto. O ex-homem da Escola Superior de Guerra e o interlocutor de Washington eram amigos desde os tempos da FEB, condição que facilitou a montagem da Operação brother sam.

Havia, disse Cordeiro de Farias, uma combinação entre os conspiradores de um comunicar o outro sobre as atitudes planejadas, que deveria ser levada em conta. O momento seria o pós-comício de João Goulart na Central do Brasil e a revolta dos marinheiros, de 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro, organizada pela Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, uma organização assistencial e sindical que se ligava a uma rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha em 12 de setembro de 1963, em Brasília.

Utilizando-se daqueles pretextos, Mourão Filho se precipitou e isolou a articulação de Cordeiro de Farias, que se dizia ser também o articulador da candidatura de Castello Branco para presidente da República por meio de um questionário enviado à tropa e a seus comandos para traçar o perfil do candidato que assumiria a Presidência quando o golpe triunfasse. Por ser um animal excessivamente político, segundo suas palavras, o grupo de Costa e Silva não confiava nele.

Duplo conceito

Consumado o golpe, cabia ao novo regime aplicar a Doutrina de Segurança Nacional, baseada num duplo conceito: a divisão do mundo em dois blocos antagônicos e a adesão do Brasil ao “bloco democrático e cristão”, sob a direção dos Estados Unidos, dos quais o país deveria considerar-se um “satélite privilegiado”. A doutrina do programa golpista dizia que o mundo marchava para a Terceira Guerra Mundial e o Brasil deveria alinhar-se incondicionalmente aos norte-americanos.

O Ato Institucional passou a ser o instrumento para a ditadura “legalizar” suas ações políticas não previstas na legislação e contrárias à Constituição. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transferiu o poder aos militares golpistas e suspendeu por dez anos os direitos políticos de centenas de pessoas. Em outubro de 1965, o AI-2 concedeu à Justiça Militar a competência de julgar “crimes contra a segurança nacional” e determinou que a eleição do presidente e do vice-presidente da República seria realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão pública e votação nominal.

A estrutura do poder ditatorial foi montada gradativamente, com o Executivo concentrando funções e sob controle do Estado-Maior das Forças Armadas e do Departamento de Administração da Polícia Civil (este último um organismo de consulta).

Foram criados também mais dois órgãos: o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações, o poderoso SNI. O poder legislativo foi restringido – e, posteriormente, com o AI-5, fechado – e o Poder Judiciário limitado à função de supervisionar os atos determinados pelo CSN. Todos os suspeitos de atividades contra a “segurança nacional” passaram a ser julgados por tribunais militares.

Assassinato em Canoas

Castello Branco deu uma demonstração de que poderia se equilibrar entre os dois barcos – a linha dura e os moderados – ao ordenar que seu sobrinho, o truculento coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa, acompanhasse o major-brigadeiro Nélson Freire Lavanère Vanderley, designado para enfrentar a resistência e assumir o 5º Comando Aéreo Regional, na cidade de Canoas, na região de Porto Alegre.

A dupla sabia que o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, o comandante do posto, resistiria. Ele evitara, em 1961, que militares golpistas bombardeassem o Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, onde João Goulart estava aquartelado após a renúncia de Jânio Quadros, e denunciou as manobras dos sediciosos no estado.

Ao resistir à voz de prisão, Alfeu foi atingido pelas costas por uma rajada de metralhadora disparada por Roberto Hipólito da Costa. Mesmo caído, o tenente-coronel tentou se defender e foi novamente alvejado. O assassinato ocorreu na noite de 4 de abril de 1964, um sábado, e a brutalidade foi amplamente divulgada nos meios militares para servir de alerta aos legalistas.

Para a linha dura, não havia alternativa à radicalização diante do inevitável crescimento de contestação ao golpe. Costa e Silva dizia abertamente que a “desordem” se reinstalara no país e que só a ampliação da “democracia” seria capaz de combater o “comunismo”, provocando uma reação irônica de Castello Branco.

– Ele promete ser o liberal que nunca será. É só esperar para ver – vaticinou.

A linha dura convenceu Castello Branco a fazer uma “reforma administrativa” para reforçar os poderes ministeriais dos militares, adotando, na parte da “segurança nacional”, medidas como pôr o SNI na área de assessoramento imediato do presidente da República – além de reforçá-lo substancialmente com verbas e uma grande quantidade de militares de alta patente. No topo estaria Médici, o novo chefe do SNI.

Golbery do Couto e Silva, o mentor do órgão criado em 13 de junho de 1964, tinha certa autonomia e desenvolvia um trabalho relativamente independente, o que desagradava o grupo de Costa e Silva. No seu discurso de posse, Golbery disse que assumia um órgão à margem da administração oficial. Não lhe cabia difundir noticiário na imprensa e só viria a público excepcionalmente, mediante comunicados, “para desfazer interpretações inexatas acerca de suas próprias atividades”.

– Será bem, como já o qualificam, como que um Ministério do Silêncio. Em compensação, buscará afirmar-se como órgão capaz de ver, de auscultar e interpretar com serenidade e isenção. Por isso mesmo, aberto sempre a quem desejar cooperar com ele, honestamente, nessa superior tarefa de informar, com oportunidade e justeza, o governo da República – discursou.

Apesar de serem do mesmo grupo de oficiais do Estado-Maior do Exército formado na Escola Superior de Guerra, doutrinados com a ideia de combate ao “comunismo”, Castello e Golbery não escondiam suas divergências. Isso ficou claro quando o coronel Mario Andreazza, porta-voz informal do grupo do ditador-presidente, reprovou a linha de atuação do SNI para justificar as mudanças que seriam adotadas.

– É um órgão de grande colaboração para a conduta do governo. Entretanto, necessita o SNI ser conduzido com seriedade e honestidade de propósitos. Uma das missões do SNI será acompanhar a opinião pública, de maneira a caracterizar suas aspirações – alfinetou.

Golbery chegou ao golpe ostentando a autoridade de dez anos de estudos sobre a “segurança nacional”. Era o precursor da arquitetura dessa ideia fundamental dos golpistas. Para ele, a “revolução” deveria assegurar a integração do território nacional e protegê-la das “influências externas”. Era uma concepção da Escola Superior de Guerra que trazia no âmago a necessidade da ditadura militar.

Mesmo com essa autoridade, saiu do SNI pelas portas dos fundos e ganhou como consolo o decorativo cargo de ministro do Tribunal de Contas da União, totalmente alheio à sua carreira, considerada brilhante, um oficial da Segunda Seção do Estado-Maior do Exército, o serviço de inteligência e informação.

Soco de Leonel Brizola

Costa e Silva chegou ao processo de sucessão de Castello Branco praticamente imbatível. Eleito presidente em 3 de outubro de 1966, foi empossado em 15 de março do ano seguinte, anunciando que faria um governo ainda mais repressivo, aumentando o poder dos corifeus da linha dura. Com a formação da Frente Ampla por Carlos Lacerda e os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, em 28 de outubro de 1966, a linha dura elevou o tom.

O caso evoluiu para uma dura polêmica entre Lacerda – o principal articulador da Frente Ampla – e Moniz de Aragão; o primeiro no jornal Tribuna da Imprensa, do jornalista Hélio Fernandes, e o segundo n’O Globo, de Roberto Marinho. Hélio Fernandes, que adquirira a Tribuna de Imprensa, fundada alguns anos antes por Lacerda e redigiu o Manifesto da Frente Ampla, chegou a ser deportado para a ilha de Fernando de Noronha por determinação de Costa e Silva.

A mídia brasileira estava envolvida numa dura luta interna, uma disputa feroz entre grupos por influência na ditadura, impulsionada pela corrupção do IBAD. Castello Branco encarregou Roberto Marinho de comunicar ao embaixador brasileiro nos Estados Unidos em Washington, Juraci Magalhães, que ele seria o ministro da Justiça e deveria arbitrar a guerra. Assim que assumiu, Juraci reuniu donos e representantes de jornais para cobrar autocensura e proibir “subversivos” nas redações – episódio que entrou para o folclore com a suposta resposta de Roberto Marinho de que ele mandava em seus “comunistas”.

A guerra começou, na verdade, antes do golpe, quando o grupo Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, tido como um gângster do setor, moveu uma violenta campanha contra o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que se destacara na resistência aos golpista quando eles tentaram impedir João Goulart de tomar posse, capitaneada pelo deputado federal João Calmon (PSD-ES), diretor do grupo e influente ator do cenário político brasileiro.

Brizola, já deputado (PTB-RS), foi ameaçado de assassinato por Calmon, que se jactava de ser bom atirador e de saber atingir zonas letais do corpo humano, a distância ou a queima-roupa. Mas quem pagou pela violência do grupo de Assis Chateaubriand foi o jornalista David Nasser, diretor da revista O Cruzeiro, ao ser atingido por um soco de Brizola no balcão de venda de passagens de uma empresa aérea no Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro, na manhã de 26 de dezembro de 1963. Brizola se aproximou por trás, pôs a mão no ombro direito do jornalista e, enquanto ele se virava, foi atingido na cabeça. Brizola estava com um recorte de uma matéria da revista que o atacava violentamente.

Nasser reagiu com mais ameaças. “A luta não terminou, principalmente agora, que o adversário começa a apresentar sintomas de desespero”, disse, alertando que o regime democrático estava no fim. “É a luta desesperada de quem não quer ir para o exílio ou para a cadeia”, praguejou. Nasser alegou que foi agredido pelas costas, versão negada por Brizola. “Aproximei-me dele, que estava de costas para mim, e bati-lhe levemente no ombro para mostrar-lhe o recorte com as aleivosias contra mim. Quando o vi de frente, cara a cara, não resisti a enfrentar um canalha”, afirmou o deputado do PTB.

A contenda gerou um livro de bolso, escrito por Nasser, com o título João sem medo o homem que derrotou Brizola e Prefácio da escritora Raquel de Queirós.

Jornalistas anticomunistas

A projeção de Calmon na briga com Brizola e João Goulart o levou à presidência da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Quando o presidente Castello Branco exigiu que a mídia trabalhasse para “unir o povo em torno da revolução”, o deputado capixaba foi designado para liderar uma “campanha continental” com essa finalidade.

Falando na instalação da assembleia extraordinária da Associação Interamericana de Radiodifusão, no luxuoso hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, Calmon prometeu, olhando para Castello, um combate sem trégua no rádio e televisão ao “comunismo”.

– A estatização é o caminho mais rápido para o comunismo e a liquidação da propriedade privada – discursou.

– Unidos pelo ideal de democracia, enquanto numerosas áreas, comunistas ou não, promovem avassaladora estatização, vamos demonstrar que o controle do rádio e da televisão pela iniciativa particular pode transformá-los nas mais poderosas forças da civilização contemporânea – disse Calmon.

A Abert aprovou duas propostas na assembleia: a constituição da Comissão Internacional para executar as campanhas em defesa da “iniciativa privada” e combate ao “comunismo”, e a criação da “central de produção” de notícias. Uma série de consultas precedeu a redação final. Eram proposições baseadas no documento do American Newspaper Guild, um sindicato de jornalistas dos Estados Unidos, e da União de Jornalistas Livres, formada por exilados dos países do Leste Europeu, chamando os jornalistas do continente americano para uma reunião no Panamá para criar a Sociedade interamericana de organizações jornalísticas profissionais.

Um dossiê que circulou entre os jornalistas relatou atividades no Brasil de William Doherty Jr., agente da CIA e diretor do Departamento de Projetos Sociais do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre – American Institute for Free Labor Development (AIFLD) –, desde antes do golpe. O documento revelou que o agente norte-americano elaborou o relatório ao II Fórum Sindical Interamericano sobre Problemas econômicos e sociais para o progresso, realizado no México entre 10 e 15 de junho de 1964.

– No Brasil, sob o regime de João Goulart não tivemos oportunidade de trabalhar e por essa razão começamos somente no mês de abril de 1964 – escreveu William Doherty Jr.

Ele fora enviado pela AIFLD – instituída no governo do presidente Kennedy por meio da Direção de Planificação da CIA para cercar a influência da Revolução Cubana na América Latina – com a missão de “contribuir com o desenvolvimento dos sindicatos livres na América Latina”. Isso queria dizer formar uma corrente sindical pela AIFLD. Muitos receberiam “capacitação especial” no “instituto de formação”, o Front Royal School, no Estado da Virginia.

Os sindicalistas recebiam aulas sobre comércio exterior norte-americano e propaganda anticomunista. Um de seus braços, a Federação Interamericana de Organizações de Periodistas Profissionais (FIOPP), havia se apoderado da entidade sindical máxima dos jornalistas no Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais, com o apoio da ditadura. O secretário da FIOPP, o jornalista argentino Artur Scthirbu, esteve no Brasil por dois anos para cooptar o movimento sindical jornalístico brasileiro.

O assunto chegou a ser noticiado no Jornal do Brasil de 13 de julho de 1966, quando as eleições na Federação entraram na ordem do dia e dois grupos (um deles apoiado pela FIOPP) disputavam o comando da entidade.

– Agora, e é o mais grave, uma estranha organização norte-americana, a FIOPP, a pretexto de fazer anticomunismo, está despejando muito dinheiro nos meios sindicais, prejudicando o andamento natural das eleições na Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais – disse o jornal.

A interlocução geralmente era com o argentino Artur Scthirbu, secretário-geral da FIOPP, que montou residência no Brasil para acompanhar o golpe de perto. De vez em quando, algum de seus emissários falava pela entidade. O objetivo era anular qualquer influência da Federação latino-americana de jornalistas profissionais, que se pronunciou contra o golpe. As propostas da Abert seriam apoiadas por uma vasta rede de corrupção mantida pela CIA e operada pela FIOPP. Diante da iminência da sua implosão, uma nova rede de corrupção seria reforçada.

Fígado do grupo Folha

Havia uma denúncia de presença de estrangeiros em grupos de mídia brasileira, tendência que vinha de antes do golpe. Um deles era a Editora Abril, comandada pelo ítalo-americano Victor Civita, em desacordo com Constituição, que vedava o acesso de estrangeiros ao controle de meios de comunicação. Civita seria um testa-de-ferro do grupo norte-americano Time-Life e intermediou o acordo firmado com o empresário Roberto Marinho para criar a TV Globo em 26 de abril de 1965.

Calmon pediu um estudo detalhado do caso. Em poucos dias recebeu um minucioso relatório, com o título Time-Life e a ampliação do setor de mass comunication, mostrando que outros grupos de mídia também estavam em negociações com estrangeiros. O documento seria a base para ele promover uma intensa campanha contra Roberto Marinho, revelando seu esquema de corrupção, expondo o racha na cúpula midiática do golpe.

Cópias do documento foram distribuídas a membros do governo, o que motivou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança Nacional. O presidente Castello Branco determinou ao ministro da Justiça, Mem de Azambuja Sá – que substituíra Juraci Magalhães –, a formação de uma “comissão de investigação” para apurar as denúncias “com o maior rigor possível”. De acordo com o presidente, Calmon era “um homem merecedor de respeito e consideração”, não levantaria suspeitas infundadas.

Lacerda havia denunciado a negociata de Roberto Marinho, o que motivou o Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) a abrir processo para investigar o caso. A apuração concluiu que existia marmeladas, além da já revelada na Editora Abril – o maior conglomerado de mídia com dezoito publicações e dois milhões de exemplares mensais –, envolvendo também o grupo Folha, que estaria em negociação com o grupo Rockfeller; e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em processo de venda para estrangeiros.

Em entrevista à TV Rio, Calmon disse que Roberto Marinho havia encaminhado uma consulta de empréstimo à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) – em 1965 substituída pelo Banco Central (BC) -, aumentando ainda mais a suspeita do grupo do presidente da República Castello Branco de conluio de setores do governo com o negócio ilegal.

As revelações causaram um reboliço nos bastidores do governo e nos grupos de mídia, que deflagraram uma troca de acusações pesadas. O Jornal do Brasil atacou o presidente da Abert em editorial intitulado Jacobinismo provinciano, acusando-o de xenofobismo e de agir para abolir a “competição democrática” entre os grupos midiáticos.

O grupo O Estado de S. Paulo, ao responder em tom agressivo a um leitor que questionou a presença de capitais estrangeiros na mídia em carta ao Jornal da Tarde – uma de suas publicações –, abriu fogo contra o grupo Folha, que editava os jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Última Hora e Notícias Populares. O leitor, que assinou como Newton Proença Cavalcanti, terminou a carta com uma pergunta incisiva.

– É verdade que as seguintes empresas brasileiras estariam sob controle acionário dos seguintes grupos estrangeiros? Rockefeller: Folha, Última Hora, Notícias Populares, Diário Carioca, TV Excelsior, Correio da Manhã (arrendado por cinco anos); Time-Life: O Globo, TV Paulista, Editora Abril Limitada, NBC (Mórmons), Rádio Piratininga e rádio e TV Bandeirantes (em negociações).

A resposta do JT, como o jornal era conhecido, foi violenta. Disse que o leitor era “um desses esquerdinhas que alimentam seus espíritos pouco cultivados com slogans enlatados”, que não liam e nem viam televisão, e que ele ganharia uma gorda recompensa se conseguisse demonstrar o que acusava.

– Se lesse jornais ou visse televisão saberia que o deputado João Calmon respondeu, há poucos dias, pela televisão, a todas essas perguntas, denunciando a existência de empresas jornalísticas financiadas por capital estrangeiro – atacou.

A resposta atingiu o fígado do grupo Folha, que reagiu à altura. A Folha de S. Paulo, em editorial intitulado Nossa moeda é o trabalho, lembrou que o jornal havia publicado na primeira página um comunicado desfazendo “de maneira cabal” as “insinuações” de João Calmon na entrevista à TV Rio e afirmou que mesmo assim o grupo O Estado de S. Paulo alimentou a mentira. A Folha duvidou da autenticidade do leitor e acusou o concorrente de possuir “força econômica” de duvidosa procedência.

A polêmica se desdobrou em novas acusações, mas o foco principal, para o governo, era o negócio do grupo Time-Life com o grupo Globo. Calmon passou a acompanhar a evolução do caso a partir de contatos com o tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, membro do Conselho de Segurança Nacional, integrante da “comissão de investigação”.

Ele foi indicado por influência de aliados militares do presidente da Abert, sobretudo o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel. Também compunham a “comissão” Gildo Correia Ferraz (procurador da República) e Celso Luiz Silva (gerente de Fiscalização dos Créditos Estrangeiros do Banco Central).

O caso se desdobrou em pedido de abertura de uma Comissão parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados por Eurico de Oliveira (PTB-Guanabara). Depois de muita pressão contrária, a CPI foi constituída em 19 de outubro de 1965.

Emergência da TV Globo

Roberto Marinho convenceu uma ala do governo e da mídia a isolar, acatar e desmoralizar Calmon. O homem do grupo Globo visitou o ministro da Justiça, Mem de Azambuja Sá, num lance ousado para mostrar que ele estava disposto a brigar por suas posições. Roberto Marinho lamentou o momento da visita, logo após a instalação da “comissão de investigação”, pensando que isso poderia dar margem a interpretações dúbias. Mas o próprio ministro esclareceu que não havia motivo para esse receio por se tratar de uma conversa “entre amigos”. Ele fez também uma série de visitas a veículos da mídia de seus aliados.

Em declaração ao Jornal do Brasil, Roberto Marinho disse que Calmon estava interessado em deter apenas a entrada de dólares na imprensa brasileira, ignorando o ingresso de francos, pesetas ou rublos, referindo-se ao presidente da Abert ironicamente como “velho amigo”. Ele atacou o grupo Diários Associados, sem citar o nome, dizendo que Calmon cometia injustiças ao “terçar armas” contra qualquer outro monopólio privado contrário ao monopólio “dos outros”.

– De qualquer modo, folgo em verificar que o meu amigo Calmon, mesmo cometendo algumas injustiças, está desencadeando forças que podem, afinal, contribuir poderosamente para a moralização da imprensa no país. Não seria crível que o governo revolucionário, tão atuante em outros setores, perdesse a oportunidade para acabar com as empresas jornalísticas que há muito sobrevivem graças apenas aos odiosos privilégios que lhes foram concedidos – agulhou.

Novamente ironizando Calmon, Roberto Marinho disse que o presidente da Abert não agia de má-fé mesmo sendo diretor de uma organização de jornais, de rádio, de revistas e de televisão com notórias dificuldades financeiras, que procurava com seus ruidosos pronunciamentos uma maneira de eliminar ou criar embaraços para seus mais fortes concorrentes.

O passo seguinte seria o desligamento do grupo Globo da Abert, anunciado em carta de Roberto Marinho à entidade, logo seguido pela Rádio Jornal do Brasil. Calmon reagiu com novas denúncias, dizendo que fora procurado pelo diretor no Brasil da petrolífera multinacional Esso, Paulo Carvalho Barbosa, que, em tom de ameaça, exigiu o fim da campanha contra o acordo do grupo Globo com o grupo Time-Life. O presidente da Abert mostrou um relatório com informações do tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, dando conta da compra de ações do grupo Globo pela Esso por meio de empresas intermediárias.

Calmon chegou a defender, na Câmara dos Deputados, a estatização da mídia para conter a investida estrangeira. A proposta contundente surgiu depois de informações na Justiça do Trabalho contidas na reclamação trabalhista do ex-diretor geral da TV Globo, Rubens Amaral, que demostravam a intervenção do grupo Time-Life na emissora.

O grupo Globo respondeu com comunicados em vários jornais, lidos em suas emissoras de rádio e TV, dizendo que o Diários Associados, em tempos passados, se beneficiou de acordos de Assis Chateaubriand com o magnata norte-americano David Rockfeller. A mídia ligada a Roberto Marinho também intensificou os ataques a Calmon – chegaram a dizer que ele deveria mudar o nome para João “Calmão”, mais adequado ao seu “nacionalismo”.

A tentativa de esvaziar a Abert atingiu também a “comissão de investigação”. Além do bombardeio de Roberto Marinho e seus aliados, acusando a iniciativa de “autoritária” e “invasiva”, não havia local para ela trabalhar. No dia da sua instalação, o ministro Mem de  Azambuja Sá disse que o Ministério da Justiça era pobre e sugeriu o seu funcionamento na sede do Conselho de Segurança Nacional, onde existiam salas, “embora sem móveis”. Ele também comunicou a imprensa que a “comissão” não daria nenhuma notícia durante o andamento dos trabalhos.

Em agosto de 1966, a “comissão”, que nunca obteve um lugar definitivo para trabalhar – reunia-se esparsamente e ouviu poucas pessoas –, entregou seu relatório final ao novo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. O documento, recheado de informações artificiais, anteriormente tornadas públicas em notas dos grupos estrangeiros, foi para alguma gaveta do Ministério.

As movimentações políticas para a substituição do presidente Castello Branco ganharam ritmo frenético e havia interesses de todos em um período de trégua. A paz temporária foi selada num almoço promovido por Castello Branco no Palácio das Laranjeiras, sede do governo do estado da Guanabara, em 22 de março de 1966, com a presença de diretores de jornais do Rio de Janeiro, entre eles Roberto Marinho e João Calmon.

Costa e Silva sugeriu o nome do presidente da Abert, agora um influente líder do partido político que dava sustentação à ditadura, a Aliança Nacional Renovadora (Arena), para a vice-Presidência da República. Na acirrada disputa que se estabeleceu, saiu vitorioso o grupo de defendia o ministro da Educação, Pedro Aleixo, e a guerra Roberto Marinho-Pedro Calmon voltou a pegar fogo. O grupo Globo foi incitado por seus apoiadores do governo a atirar para matar.

Em nota publicada nos jornais, assinada pela TV Globo, Calmon foi acusado de pedir dinheiro à Embaixada norte-americana. Quem fez a denúncia, de acordo com o jornal O Globo, foi a correspondente do jornal Washington Post, Georgie Anne Geyer.

– Autorizadas fontes norte-americanas daqui salientam que Calmon, cujo império está mergulhado em dívidas, procurou a Embaixada americana, no outono passado, a fim de obter dinheiro para livrar os Diários das dificuldades. Ante a negativa do então embaixador Lincoln Gordon, ele, ao que informa, jurou vingar-se – teria escrito a jornalista.

Seguiu-se mais uma violenta troca de acusações, com Lincoln Gordon e Georgie Anne Geyer dando declarações desencontradas, um autêntico duelo nas páginas dos jornais O Globo e O Jornal – este, o líder dos Diários Associados. Calmon também usou a tribuna da Câmara dos Deputados para desancar Roberto Marinho. E declarou-se vitorioso com o resultado da CPI, que encerrou seus trabalhos em 22 de agosto de 1966 concluindo pela inconstitucionalidade dos acordos do grupo Globo com o grupo Time-Life.

– Os contratos firmados entre a TV Globo e o grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional – defendeu o parecer do relator, deputado Djalma Marinho (Arena-RN).

O relatório das investigações apontou que a TV Globo, inequivocamente, fora financiada pelo grupo Time-Life sob a cobertura de um contrato regulamentando a prestação de assessoria técnica. Outra infração grave foi a compra de equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado.

O contrato principal estabelecia que o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da TV Globo, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava que o grupo Time-Life teria de “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários – mais uma prática proibida, uma violação do Código Brasileiro de Telecomunicações. O acordo sequer foi apreciado pelo Contel. Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a TV Globo enviou um deles – o de assistência técnica – para a Sumoc, assim mesmo por ordem do Contel.

Em nova burla às leis, a TV Globo, atingida pela campanha de Calmon, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. No contrato constava que a TV Globo seria locatária de um prédio vendido ao grupo Time-Life, feito antes da venda do local aos norte-americanos. O grupo de Roberto Marinho alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somado aos 5% do lucro líquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da TV Globo. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram.

Roberto Marinho, apesar de baleado, saíra fortalecido da contenda. Havia uma lógica na sua conduta, ditada pela tendência de moldar a mídia com o alinhamento incondicional do golpe ao regime norte-americano no âmbito da Guerra Fria. O decadente grupo de Assis Chateaubriand estava tão avariado que não responderia aos estímulos do Pentágono. A segunda opção, a Editora Abril – intermediária da negociata de Roberto Marinho com o Grupo Time-Life –, também estava descartada pela flagrante ilegalidade constitucional. A emergência de um novo grupo seria a saída óbvia.

Assuntos geopolíticos

Costa e Silva assumiu com a refrega resolvida e a Rede Globo de Televisão reinando absoluta como porta-voz informal do regime. Com um Decreto-Lei, o ditador reforçou o poder do seu entourage ao promover uma reestruturação do Conselho de Segurança Nacional, manobra da linha dura para se assenhorar de todos os instrumentos de poder.

Estava em andamento uma leva de promoções no Exército, entre elas a do coronel Carlos de Meira Mattos, que, como general, assumiria a chefia da Casa Militar da Presidência da República com status e ministro. No posto, ele seria o titular da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional. A notícia caiu como uma bomba no Congresso Nacional.

Meira Mattos também foi integrante da FEB, atuando como oficial de ligação com o 4º Corpo de Exército dos Estados Unidos – uma espécie de braço direito do então marechal Mascarenhas de Morais, o líder daquela missão – e um dos primeiros a entrar no clube dos golpistas que se formou tão logo a democracia voltou a reger as atividades políticas no Brasil com a Constituição de 1946, apesar de não ser do ninho da Escola Superior de Guerra; ele só fez o curso daquela instituição em 1967.

As ligações com o subterrâneo do Departamento de Estado norte-americano faziam dele uma espécie de intocável entre os golpistas. Meira Mattos também era apontado como uma das principais cabeças políticas do sistema militar do governo. Logo seria adjunto da Divisão de Assuntos Militares e professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra, da Escola de Guerra Naval e da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, além de subchefe da Casa Militar – o chefe era o general Ernesto Geisel – de Castello Branco.

Como um dos articuladores da Emenda Constitucional que prorrogou os mandatos para impedir as eleições de 1965, junto com os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, se destacou pelo nível intelectual superior à média dos seus pares golpistas. Gostava de comentar com jornalistas assuntos geopolíticos, defendendo a tese de que o Brasil não tinha como se eximir de um conflito mundial caso o “comunismo” atacasse o “ocidente”. A imensa costa brasileira no Oceano Atlântico, especialmente no Norte e Nordeste, certamente fazia do país peça-chave na geopolítica da Guerra Fria, segundo ele.

Como ativo operador político, assumiu o governo de Goiás quando a ditadura interveio no estado, afastando o governador Mauro Borges, apesar de ter nascido e vivido em Mato Grosso. Pregador do que chamava de “ideais da revolução”, atirava verbos chulos, sem medir o nível, contra os que agiam com tibieza no combate aos “focos de agitação e subversão”. Sua concepção de “revolução” incluía a premissa de que os “políticos” deveriam ser gradativamente afastados de postos importantes e substituídos por militares. “Políticos não entendem o povo”, repetia.

Quando a ditadura decidiu enviar tropas para integrar o corpo da Organização dos Estados Americanos na República Dominicana, ele liderou as negociações e foi designado chefe da operação e comandante da chamada Brigada Latino-Americana. Na volta, sua candidatura a governador de São Paulo chegou a ser cogitada, mas acabou assumindo a chefia da Polícia do Exército da 11ª Região Militar, sediada em Brasília. Na cassação dos mandatos, em 1966, comandou uma violenta ocupação do Congresso Nacional, com cenas de agressões a parlamentares, jornalistas e fotógrafos. Ganhou a antipatia dos “políticos”.

A rejeição a Meira Mattos aumentou quando a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional detalhou a reestruturação numa nota divulgada dia 11 de janeiro de 1968. A reestruturação reuniria as medidas que vinham da criação do Conselho de Defesa Nacional, em 1927. Após o golpe, o órgão, transformado em Conselho de Segurança Nacional, expandiu seus tentáculos, que seriam reforçados consideravelmente com o Decreto-Lei de Costa e Silva.

Havia também a denúncia de que a Secretaria-Geral do Conselho teria poderes para se intrometer em todos os ministérios, transpondo a fronteira de suas atribuições. A reestruturação era vista como camisa de força imposta ao governo e ao Estado. Diante da reação dos “políticos”, Costa e Silva foi obrigado a recuar e não indicou Meira Mattos.

Força contra Lacerda

Seguindo os ditames daquela nova fase, o regime advertiu Lacerda, acusado de, “num crescendo”, estar em “processo de agitar politicamente o país”. A advertência partiu do brigadeiro Antônio Guedes Muniz, em discurso no Clube Militar, num ato com a presença de Costa e Silva. Haveria um “enrijecimento do ponto de vista militar”, disse. A tendência governamental era de “voltar-se para dentro e militarizar-se”. A fala de Guedes Muniz foi reforçada pelo general Afonso de Albuquerque Lima, em entrevista coletiva. Cada ação de Lacerda corresponderia, da parte do governo, uma reação maior “e em sentido contrário”, disse.

O ex-governador da Guanabara havia discursado numa reunião da Frente Ampla em Belo horizonte, com a presença do ex-comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel José Geraldo de Oliveira, o primeiro insurgente do movimento golpista de 1964. Ele havia assumido a chefia da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab) no estado e renunciado, acusando a “revolução” de se comportar com indiferença diante da fome que assolava o país.

Havia também uma crise política no Congresso Nacional, com a Arena acusando o governo de dar as costas para as atividades políticas. Seus líderes cobravam de Costa e Silva uma presença mais regular nas relações do governo com a bancada governista. Só ele poderia estancar uma crise de consequências imprevisíveis.

A Frente Ampla poderia se aproveitar da situação, advertiu o senador Dinarte Mariz (Arena-RN), um dos mais íntimos colaboradores políticos de Costa e Silva. O presidente deveria assumir o comando da Arena, como fazia nos Estados Unidos o presidente Lyndon Johnson com o Partido Democrata, recomendou. Havia mais de seis meses que a Frente Ampla agia como movimento de caráter subversivo, com o objetivo de solapar as instituições.

A fala de Lacerda em São Paulo despertou rumores de que ele fermentou a Força Pública e teria sido a senha para a eclosão de um movimento conspiratório, que contaria com apoio da Polícia Militar mineira. O Exército determinou prontidão nas guarnições do Rio de Janeiro e de São Paulo, após o general Afonso Albuquerque Lima agir como portador de um ultimato da linha dura exigindo repressão a Lacerda e à Frente Ampla.

A ditadura anunciou também que enquadraria uma grande quantidade de municípios em áreas de segurança nacional, agravando a crise política com a Arena, que perderia parcelas de sua base eleitoral, ideia do ministro do Interior (o novo nome do Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais), general Afonso Albuquerque Lima.

A crise se agravou quando líderes da Arena cogitaram pedir ajuda a Cordeiro de Faria, que no governo Castello Branco auxiliava na aprovação de matérias do interesse do governo, circulando pelos corredores da Congresso, cabalando votos. Foi dele, inclusive, a ideia de extinguir os partidos, que levaria à formação do bipartidarismo Arena-MDB. A manobra dos líderes da Arena não foi adiante, mas a ameaça da ditadura fez a Frente Ampla recuar.

Ataques e contra-ataques

O governo Costa e Silva editou oito Atos Institucionais e vinte e quatro atos complementares. O mais sinistro deles foi o AI-5, anunciado em 13 de dezembro de 1968 – ano das mais intensas manifestações contra a ditadura, com gigantes protestos estudantis e as greves operárias em Minas Gerais e Osasco (SP).

Quando o ditador encaminhou a proposta de reabrir o Congresso Nacional, fechado com o AI-5, os moderados viram uma oportunidade de aumentar seus poderes, se apoiando nos “políticos” e abrindo outra estrada para a sucessão de Costa e Silva. Na prática, era um paralelismo de autoridade, ideia que contrariou profundamente o ditador.

A linha dura reagiu expulsando do Exército o coronel Francisco Boaventura Cavalcanti, irmão do ministro do Interior, José Costa Cavalcanti, com direito à execração pública e carimbo de “traidor da pátria” na testa. A acusação se baseava num inquérito sigiloso revelando ligações do execrado com Carlos Lacerda. O ministro do Exército, general Lira Tavares, foi o articulador da expulsão, que na verdade expressava mais um capítulo da guerra entre os dois grupos, a “briga de foices no escuro” de que falara Costa e Silva. Mesmo na linha dura houve fissura.

Em carta entregue a Costa e Silva pelas mãos de Lira Tavares, o general Moniz Aragão, que chefiava o Departamento de Provisão Geral do Exército (DPG), protestou contra a expulsão de Francisco Boaventura Cavalcanti.

– A publicidade consentida do governo das razões da pena aplicada ao coronel Boaventura, que embora possam assentar-se sobre realidades, contém apreciações e conceitos desprimorosos e hostis, impróprios à serenidade que deve revestir os atos de justiça, que se feriram a honra daquele oficial também respingaram o brio da classe, emocionando-a e revoltando-a – dizia um trecho.

Moniz Aragão também se queixou das restrições impostas a oficiais-generais para o acesso ao processo, que colidiam com o zelo do ministro na divulgação dos motivos da punição. A própria disciplina do Exército estaria em causa com o repúdio à publicidade da sanção imposta ao coronel.

A escalada de ataques e contra-ataques chegou a um documento de Aragão, divulgado no governo e nas casernas, com acusações pesadas ao próprio Costa e Silva. O rosário abrangia desde culto à personalidade a nepotismo – o que incluía a indicação de um cunhado do presidente para a direção da Legião Brasileira de Assistência (LBA), definido pelo missivista como “conhecido traficante” – e uma série de casos de corrupção.

Lira Tavares reagiu à altura, demitindo Aragão da chefia do DPG e divulgando uma carta-resposta. Defendeu a punição ao coronel Boaventura e censurou Aragão por reunir-se com oficiais a ele subordinados para atacar o governo. Disse que Costa e Silva repelia terminantemente as acusações. Aragão não se intimidou e respondeu que havia se reunido novamente com generais a ele subordinados para analisar a contenta. A carta-tréplica era ainda mais virulenta e acusou Lira Tavares de selecionar tópicos do seu documento para deformá-lo.

Havia um ponto central naquela troca de desaforos – a menção de Aragão, na primeira carta, ao direito que oficiais teriam de afastar o presidente. Lira Tavares tomou aquela questão como hostilidade, uma provocação de alto teor explosivo.

– É inaceitável e flagrantemente incompatível com os propósitos democráticos da revolução e as próprias tradições do Exército e da nação – escreveu em sua réplica.

Na tréplica, Aragão acusou o ministro de deturpador sua afirmação ao truncar criminosamente esse trecho da carta. Seria, em sua versão, uma citação hipotética, apenas para exemplificar os limites da ação do presidente. Indignado, ele deu o assunto por encerrado e classificou Lira Tavares de dissimulado por ter omitido de Costa e Silva a íntegra do seu documento. Não havia mais condições para que eles mantivessem qualquer tipo de contato.

– Agradeço a Deus ter-me dado a oportunidade de conhecer melhor a personalidade de vossa excelência – decretou.

Comunistas, padres e bispos

O general Albuquerque Lima surfou naquela onda de endurecimento do regime com a esperança de ser indicado sucessor de Costa e Silva. A “revolução”, de acordo com sua concepção, não deveria tolerar a “subversão”, naquele momento concentrada nos estudantes. Para combatê-la, deveria recorrer ao estado de sítio e outros recursos excepcionais.

Uma nota do Conselho de Segurança Nacional manifestou apoio à declaração de Costa e Silva de que os fins e propósitos revolucionários seriam atingidos somente pela atuação decisiva das Forças Armadas. Era um problema para a sucessão presidencial. A Arena se movimentava em outra direção e recorreu a Costa e Silva para que tomasse pulso do processo. Os bastidores do regime fervilhavam com os movimentos de potenciais candidatos.

No afã de se mostrar o mais preparado para assumir o comando da ditadura, numa entrevista coletiva Albuquerque Lima deitou falação sobre como entendia a natureza da “revolução”.

Em uma palestra no Círculo Militar, em São Paulo, dirigindo-se aos “comunistas, aos padres e aos bispos da esquerda festiva, aos que se intitulam de estudantes e fazem o jogo de poderosos grupos econômicos, enfim, que não querem a nova ordem que se tenta impor pela revolução”, ele disse que o regime era duro “pela sua própria natureza”. Nenhum país “amolecido” podia progredir, afirmou. Havia no país, disse, uma sucessão de atos terroristas que obedeciam “a comando de fora e para dentro do país”, exercidos “por Moscou, pela China ou qualquer outra entidade comunista”.

Os “atentados terroristas”, disse, tinham como alvo, principalmente, os militares. Depois vinham a Igreja Católica, “a qual, infelizmente, conseguiram, em parte, dividir, fazendo padres e bispos participarem desse processo comunizante”, chegando “à própria família, levando para nossas filhas problemas que nunca tiveram, de ordem sexual”. Albuquerque Lima atirava para todos os lados, reafirmando suas proclamações nacionalistas.

Ele disse ser contra qualquer tipo de “extremismo”, que deveria ser combatido com “ações positivas e enérgicas”, efetivando um programa de realizações “para atender a tudo aquilo que o povo espera da revolução”. Segundo ele, toda ação violenta deveria ser respondida com um ato enérgico do governo. A “revolução” deveria “prosseguir no tempo, seja por cinco, dez ou quinze anos”, para implantar as reformas de que o país necessitava, “seja a agrária, a administrativa ou a econômica”. “As Forças Armadas, sempre irmanadas com o povo brasileiro, jamais permitirão a volta ao passado ou o estabelecimento de um regime antidemocrático, de esquerda ou de direita”, ameaçou.

Albuquerque Lima voltou ao assunto numa palestra na Faculdade de Higiene e Saúde Pública de São Paulo. Disse que padres e freiras incutiam “na cabeça de jovens de doze a treze anos determinados problemas para acabar com a família brasileira”. Viviam dizendo que que a geração passada não fez nada, a fim de incompatibilizar os filhos com os pais, despertando “o sentimento sexual nas moças, não para resolver esses problemas, que elas nunca tiveram, mas para criar indagações e desagregar a família”.

Ele deixou o Ministério do Interior e voltou ao Exército para articular a sua candidatura. Em sua carta de demissão, endereçada a Costa e Silva, disse que sua decisão se devia a graves motivos que foram expostas pessoalmente ao presidente sobre decisões do “campo econômico-financeiro”. O ditador respondeu que agradecia “a lealdade, a eficácia, e a alta colaboração dada ao governo” e lamentou que Albuquerque Lima houvesse “levado a divergência pessoal em relação a certos itens da política econômico-financeira a tal extremo”.

O entrevero não afastou Albuquerque Lima da corrida sucessória. Quando Costa e Silva teve trombose cerebral, ele apareceu como seu substituto imediato, mas já havia uma articulação pela junta constituída pelos ministros militares – o general Aurélio Lira Tavares (Exército), o brigadeiro Márcio de Sousa Melo (Aeronáutica) e o almirante Augusto Rademaker Grünewald (Marinha) –, que assumiria interinamente a presidência da República.

Albuquerque Lima acabou assumindo o Departamento de Material Bélico do Exército. Médici foi escolhido e se instalou no Rio de Janeiro para acertar a sua candidatura em conversas com os ministros militares e o presidente da Arena, Filinto Muller.

Estrada para a Guanabara

Mais habilidoso politicamente, Médici havia conquistado uma posição relevante no entourage de Costa e Silva. Sua projeção no grupo teve início no dia do golpe. Às três horas da madrugada de 31 de março de 1964, Costa e Silva lhe telefonou para acertar os últimos detalhes de sua participação no ato final da conspiração.

– Diga quais são as ordens, general. Estou à sua disposição – disse Médici.

Então comandante da Academia Militar das Agulhas Negras, sediada na cidade de Resende, Médici prendeu três oficiais suspeitos de lealdade ao presidente João Goulart e deslocou uma guarnição para reforçar a marcha das tropas do general Olympio Mourão Filho na Operação Popeye.

A decisão de Mourão e Médici foi estratégica. A estrada até a Guanabara era quase toda em forma de desfiladeiro, o que permitiria a uma tropa relativamente pequena ocupar toda sua extensão e resistir indefinidamente. Como retribuição e reconhecimento ao papel de Médici, na posse de Castello Branco vinte cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras desfilaram entre os três mil e quinhentos militares que homenagearam o presidente.

Apesar do posto-chave de Médici na conspiração, antes de sua candidatura à sucessão de Costa e Silva pouco se ouvia falar dele. Era tido como reservado e detestava falar dele mesmo. Gostava de dizer que Garrastazu não era um nome índio, mas espanhol, e queria dizer “teimosia”. Se vangloriava também de não ter inimigos e proclamava que nem pretendia tê-los. Nascera em 4 de dezembro de 1905, estudou no Colégio Militar de Porto Alegre e foi completar os estudos preliminares na Escola Militar de Realengo, Rio de Janeiro.

Em 1927, foi servir no Rio Grande do Sul e logo voltou ao Rio de Janeiro para fazer os cursos do Estado-Maior do Exército. Retornou à sua cidade natal, Bagé, para chefiar a 3ª Divisão de Cavalaria e mais tarde, em Porto Alegre, foi chefe da 2ª Seção (Serviço Secreto) da 2ª Região Militar. Comandou também o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) na capital gaúcha. Três anos e meio depois, deixou o posto para ser chefe do Estado-Maior do general Costa e Silva, o comandante da 3ª Região Militar (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná).

Como general, sua primeira função foi a de comandantes da 4 ª Divisão de Cavalaria, em Mato Grosso. Em seguida, assumiu o comando da Academia Militar das Agulhas Negras, onde ficou entre 1963-1964. Saiu para assumir o cargo de adido militar em Washington, acompanhando o novo embaixador, Juraci Magalhães, ex-governador da Bahia, udenista e anticomunista ferrenho.

Médici já era o delegado brasileiro na Junta Interamericana de Defesa e passaria a representar o país na Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos. Logo seria eleito também para a Comissão Especial Consultiva de Segurança da OEA. Voltou ao Brasil, em 1965, promovido a general-de-divisão, como operador do programa de cooperação entre os dois países. Assumiu o comando da 3ª Região Militar, cargo que acumularia com o de subchefe do Estado-Maior do Exército.

A acelerada escalada de funções e promoções fazia parte dos planos do grupo de Costa e Silva para lançá-lo candidato a presidente. Quando eles decidiram reformular o SNI, Médici surgiu como candidato natural para assumir o seu comando; era tido como preparado intelectualmente e plenamente identificado com a tropa.

Ele assumiu o novo cargo em 15 de março de 1967, substituindo o general Golbery do Couto e Silva. Sua missão era transformar o órgão numa máquina poderosa, um monstro, como seria nominado pelo próprio Golbery, com vários tentáculos que vasculhavam todos os escaninhos do país. Cabia a Médici implementar as regras da Lei de Segurança Nacional decretada por Castello Branco, um de seus últimos atos na Presidência da República.

Antes mesmo da posse, disse que seu gabinete estaria aberto aos jornalistas, cumprindo o preceito de que um homem público deve exercer suas funções dialogando com a imprensa, “o termômetro da opinião pública”. Em sua primeira entrevista após ser confirmado no cargo, deixou claro como seria sua gestão.

– Se você fantasiar minhas informações ou publicar o que eu não disse, não precisa me procurar nunca mais – avisou, antes de começar.

Disse que tinha curso de informação e contrainformação e que se preocuparia diariamente com a “verdade das notícias”. Sentia-se contente em chefiar o SNI, que não era um órgão “policial ou político”, e pretendia ampliar os serviços, fornecendo ao governo um noticiário completo das críticas à administração, aspirações e anseios do povo. Não permitiu que as perguntas fossem publicadas e se negou a falar das mudanças que seriam implementadas em sua administração.

Pouco mais de dois meses após a posse, no entanto, um escândalo deu as dimensões do que seria o SNI de Médici. Mário Monteiro, escriturário da Caixa Econômica Federal, que atuava como “agente secreto” – era agente do SNI e da Polícia Federal – foi flagrado por jornalistas praticando violências contra presos políticos e criminosos comuns em salas do Palácio do Catete, antiga residência presidencial da República, local em que Getúlio Vargas se suicidou.

O caso ganhou dimensões de escândalo quando surgiu a informação de que o filho de um general do Exército havia sido preso e torturado. Médici disse que as denúncias seriam apuradas imediatamente, mas o estrago já estava feito. Com o aparecimento das denúncias nos jornais, Monteiro mandou limpar as salas-prisão que funcionavam no segundo andar do Palácio do Catete e transferiu dois presos para outros estados e os demais para o seu sítio em Marquês de Valença, a mais de cento e cinquenta quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, usado como centro de torturas. As duas salas usadas por Monteiro eram guarnecidas por guardas civis a serviço da Polícia Federal.

O disfarce de Monteiro na Caixa Econômica Federal servia também para ocultar seu patrimônio obtido em ações criminosas. O “escriturário” foi designado chefe do Setor Administrativo do Departamento Federal da Segurança Pública (DFSP) – precursor da Polícia Federal – pelo Coronel Leitão, diretor-geral e ex-homem de confiança do general Golbery do Couto e Silva que se aliou a Médici, que funcionava anexo ao Palácio do Catete, com a missão de montar a estrutura que serviria às prisões e torturas.

Mais tarde, Monteiro foi designado para o cargo de chefe do Serviço de Diligências Especiais do Gabinete do coronel Leitão, controlando, na prática, todo o sistema de policiamento federal existente na Guanabara. Era o super-homem do coronel Leitão, que respondia diretamente a Médici. Passava por ele a administração das viaturas, das armas – inclusive de uso privativo do Exército – e do contingente de policiais. Desfilava com uma pistola 45 à mostra e mantinha à vista, ao lado de sua mesa de trabalho, uma metralhadora.

O protegido do coronel Leitão formou um grupo de apaniguados que fazia razias para arrastar inimigos do regime ao Palácio do Catete. Usavam carros que diziam ser deles, com chapas frias, e agiam com brutalidade desmedida. Monteiro era o mais selvagem do grupo. Comandava as torturas com sadismo e gritava para quem quisesse ouvir que estava a serviço do comandante-general Emílio Garrastazu Médici. Até o major Lair Andrade de Almeida, responsável pela administração do Palácio do Catete e integrante da equipe de relações públicas do presidente Costa e Silva, se submetia às práticas de Monteiro.

A repercussão do caso fez Médici exigir do coronel Leitão medidas duras contra a presença de jornalistas nas imediações dos órgãos públicos. Alguns foram detidos e avisados que, em caso de reincidência, o Monteiro e sua equipe tinham carta branca para agir. A nova Lei de Imprensa dava respaldo “legal” a eles.

Para tentar frear as contestações ao regime, o chefe do SNI decidiu correr o país para expor as novas regras da Lei de Segurança Nacional. Em Porto Alegre, Médici reuniu-se com o governador gaúcho, Peracchi Barcelos, e deu ordens para que fosse evitada a fuga de “subversivos” pela fronteira com o Uruguai.

Médici também estava preocupado com as inquietações dos trabalhadores, motivada pelo brutal arrocho salarial imposto com a política econômica do regime. Ele falou do assunto quando tomou posse no Conselho de Segurança Nacional, agora predominantemente ocupado por militares, conforme determinava a nova Constituição outorgada e a Lei da Reforma Administrativa. Disse também que a escolha do coronel Jarbas Passarinho para o Ministério do Trabalho, “um militar de pulso firme”, não poderia vir em melhor hora. O chefe do SNI já era a principal referência daquele grupo de militares, formado basicamente por coronéis. Qualquer crítica a ele resultava em Inquérito Policial Militar e todos os críticos eram devidamente fichados.

O entourage de Costa e Silva fazia questão de demonstrar que estava no auge do poder. Uma festa para celebrar os sessenta e dois anos de idade de Médici reuniu militares de alto patente, incluindo Costa e Silva. Em um almoço realizado no Quartel-General do 3º Exército, em Porto Alegre, com a presença do governador e militares de alta patente – entre eles Médici e Costa e Silva -, o comandante daquela Região, general Álvaro da Silva Braga, disse que que as Forças Armadas estavam “unidas como uma família”.

Havia circulado boatos de que Médici seria exonerado, fato negado por ele mesmo.

– Não tomo conhecimento de boato divulgado por uma colunista social – respondeu, ao ser questionado por jornalistas.

O boato originou-se dos preparativos para a promoção de três generais-de-exército para generais-de-divisão, entre eles Médici. Nessa função, ele assumiria o posto de comandante do 3º Exército, da Região Sul, de onde sairia para ser presidente da República, assunto que começou a ser decidido em reunião do Alto Comando das Forças Armadas dia 21 de julho de 1967. Circularam informações de uma lista tríplice, mas o martelo foi batido por unanimidade, várias reuniões depois. Era, na verdade, uma manobra para aniquilar as pretensões do grupo do general Albuquerque Lima.

O caminho estava aberto para Médici comandar a máquina terrorista do Estado, uma engrenagem que pretendia moer definitivamente a resistência democrática. As torturas, assassinatos e desaparecimentos foram intensificadas. Seu sucessor, general Ernesto Geisel, anunciou a abertura lenta, gradual e segura, uma nova fase da ditadura e, ao mesmo tempo, da resistência ao regime, que se intensificaria no governo de João Baptista Figueiredo e enterraria a ditadura em 1985.

A guerra violenta pela hegemonia midiática na ditadura militar

Por Osvaldo Bertolino

Como atores de primeira linha no golpe militar de 1964, os grupos de mídia desencadearam entre eles uma verdadeira guerra por espaço no regime autoritário que nascia. Os grupos de Assis Chateaubriand (Diários Associados) e de Roberto Marinho (Globo) lideraram as facções que disputavam a posição de porta-voz oficioso do regime.

Em 1965, o deputado federal João Calmon, do Partido Social Democrático (PSD) do estado do Espírito Santo, diretor do poderoso grupo de mídia Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, influente ator do cenário político brasileiro, ganhou destaque com uma campanha de difamação contra o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, também deputado federal, que acabou em ameaça de assassinato. O deputado capixaba, veemente contestado pelo agredido, disse que aprendera a atirar de maneira a atingir zonas letais do corpo humano a distância ou a queima-roupa.

A contenda gerou um livro de bolso, escrito pelo jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro, pertencente aos Diários Associados, com o título João sem medo — o homem que derrotou Brizola e Prefácio da  escritora Raquel de Queirós. A projeção de Calmon o levou à presidência da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Quando o presidente da República, o golpista Castelo Branco, exigiu que a mídia trabalhasse para “unir o povo em torno da revolução”, o deputado capixaba foi designado para liderar uma “campanha continental” com essa finalidade.

Falando na instalação da assembleia extraordinária da Associação Interamericana de Radiodifusão, no luxuoso hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, Calmon prometeu, olhando para Castelo, um combate sem trégua no rádio à televisão ao “comunismo” e em defesa da “livre iniciativa”.

— A estatização é o caminho mais rápido para o comunismo e a liquidação da propriedade privada – discursou.

— Unidos pelo ideal de democracia, enquanto numerosas áreas, comunistas ou não, promovem avassaladora estatização, vamos demonstrar que o controle do rádio e da televisão pela iniciativa particular pode transformá-los nas mais poderosas forças da civilização contemporânea – disse Calmon.

Duas propostas da Abert foram aprovadas na assembleia: uma constituiu a Comissão Internacional para executar as campanhas em defesa da “iniciativa privada” e combate ao “comunismo”, e outra criou a “central de produção” de notícias.

Calmon logo se notabilizaria também pelo combate à presença de grupos estrangeiros de mídia, uma tendência que vinha desde antes do golpe. Ele denunciou, inicialmente, a Editora Abril, comandada pelo ítalo-americano Victor Civita, flagrantemente em desacordo com Constituição, que vedava o acesso de estrangeiros a ao controle de meios de comunicação. Civita seria um testa-de-ferro do grupo norte-americano Time-Life e intermediou o acordo firmado com o empresário Roberto Marinho para criar a TV Globo, inaugurada em 26 de abril de 1965.

A briga do representante do Diários Associados com Roberto Marinho expôs o primeiro racha na cúpula do golpe. O presidente Castelo Branco determinou que o ministro da Justiça, Mem de Sá, constituísse uma “comissão de investigação” para apurar as denúncias “com o maior rigor possível”. De acordo com o presidente, Calmon era “um homem merecedor de respeito e consideração”, não levantaria suspeitas infundadas.

A denúncia da negociata de Roberto Marinho ganhou a adesão de Carlos Lacerda, dono do jornal Tribuna da Imprensa e governador do estado da Guanabara, e motivou o Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) a abrir um processo para investigar o caso. A apuração concluiu que havia marmeladas, além da já revelada na Editora Abril — o maior conglomerado de mídia estrangeiro, com dezoito publicações e dois milhões de exemplares mensais —, envolvendo também o grupo Folha, que estaria em negociação com o grupo Rockfeller; e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul.

Em entrevista à TV Rio, Calmon disse que Roberto Marinho havia encaminhado uma consulta de empréstimo à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), aumentando ainda mais a suspeita do grupo do presidente da República Castelo Branco de conluio de setores do governo com o negócio ilegal, e motivou o deputado Eurico de Oliveira (PTB-Guanabara) a pedir a abertura de uma Comissão parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados — depois de muita pressão contrária, a CPI foi constituída em 19 de outubro de 1965.

As revelações causaram um reboliço nos bastidores do governo e nos grupos de mídia, que deflagraram uma troca de acusações pesadas. O Jornal do Brasil atacou o presidente da Abert em editorial intitulado “Jacobinismo provinciano”, acusando-o de xenofobismo e de agir para abolir a “competição democrática” entre os grupos midiáticos. O grupo O Estado de S. Paulo, ao responder em tom agressivo a um leitor que questionou a presença de capitais estrangeiros na mídia em carta ao Jornal da Tarde — uma de suas publicações —, abriu fogo contra o grupo Folha, que editava os jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Última Hora e Notícias Populares. O leitor, que assinou como Newton Proença Cavalcanti, terminou a carta com uma pergunta incisiva.

— É verdade que as seguintes empresas brasileiras estariam sob controle acionário dos seguintes grupos estrangeiros? Rockefeller: Folha, Última Hora, Notícias Populares, Diário Carioca, TV Excelsior, Correio da Manhã (arrendado por cinco anos); Time-Life: O Globo, TV Paulista, Editora Abril Limitada, NBC (Mórmons), Rádio Piratininga e rádio e TV Bandeirantes (em negociações).

A resposta do JT, como o jornal era conhecido, foi violenta. Disse que o leitor era “um desses “esquerdinhas que alimentam seus espíritos pouco cultivados com slogans enlatados”, que não liam e nem viam televisão, e que ele ganharia uma gorda recompensa se conseguisse demonstrar o que acusava.

— Se lesse jornais ou visse televisão saberia que o deputado João Calmon respondeu, há poucos dias, pela televisão, a todas essas perguntas, denunciando a existência de empresas jornalísticas financiadas por capital estrangeiro – atacou.

A resposta atingiu o fígado do grupo Folha, que reagiu à altura. A Folha de S. Paulo, em editorial intitulado “Nossa moeda é o trabalho”, lembrou que o jornal havia publicado na primeira página um comunicado desfazendo “de maneira cabal” as “insinuações” de João Calmon na entrevista à TV Rio e afirmou que mesmo assim o Grupo O Estado de S. Paulo alimentou a mentira. A Folha duvidou da autenticidade do leitor e acusou o concorrente de possuir “força econômica” de duvidosa procedência. A polêmica se desdobrou em novas acusações, mas o foco principal, para o governo, era o negócio do grupo Time-Life com o grupo Globo.

O tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, membro do Conselho Nacional de Segurança, foi indicado para a “comissão de investigação” por influência de aliados militares do presidente da Abert, sobretudo o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel — além dele, compunham a “comissão” Gildo Correia Ferraz (procurador da República) e Celso Luiz Silva (gerente de Fiscalização dos Créditos Estrangeiros do Banco Central).

Roberto Marinho convenceu uma ala do governo e da mídia a isolar, acatar e desmoralizar Calmon. A primeira ação foi uma visita ao ministro da Justiça, Mem de Sá, um lance ousado para mostrar que ele estava disposto a brigar por suas posições. O capo do grupo Globo lamentou o momento da visita, logo após a instalação da “comissão de investigação”, pensando que isso poderia dar margem a interpretações dúbias, mas o próprio ministro esclareceu que não havia motivo para esse receio por se tratar de uma conversa “entre amigos”. A segunda foi uma série de visitas a veículos da mídia tidos como seus aliados.

Em declaração ao Jornal do Brasil, Roberto Marinho disse que Calmon estava interessado em deter apenas a entrada de dólares na imprensa brasileira, ignorando o ingresso de francos, pesestas ou rublos, referindo-se ao presidente da Abert ironicamente como “velho amigo”. Ele atacou o Diários Associados, sem citar o nome do conglomerado de mídia, dizendo que Calmon cometia injustiças ao “terçar armas” contra qualquer outro monopólio privado contrário ao monopólio “dos outros”.

— De qualquer modo, folgo em verificar que o meu amigo Calmon, mesmo cometendo algumas injustiças, está desencadeando forças que podem, afinal, contribuir poderosamente para a moralização da imprensa no país. Não seria crível que o governo revolucionário, tão atuante em outros setores, perdesse a oportunidade para acabar com as empresas jornalísticas que há muito sobrevivem graças apenas aos odiosos privilégios que lhes foram concedidos – agulhou.

Mais um vez ironizando Calmon, Roberto Marinho disse que o presidente da Abert não agia de má-fé mesmo sendo diretor de uma organização de jornais, de rádio, de revistas e de televisão com notórias dificuldades financeiras que procurava com seus ruidosos pronunciamentos uma maneira de eliminar ou criar embaraços para seus mais fortes concorrentes.

O passo seguinte seria o desligamento do grupo Globo da Abert, anunciado em carta de Roberto Marinho endereçada à entidade, logo seguido pela Rádio Jornal do Brasil. Calmon reagiu com novas denúncias, dizendo que fora procurado pelo diretor no Brasil da petrolífera multinacional Esso, Paulo Carvalho Barbosa, que, em tom de ameaça, exigiu o fim da campanha contra o acordo do grupo Globo com o grupo Time-Life. O presidente da Abert mostrou um relatório dando conta da compra de ações do grupo Globo pela Esso por meio de empresas intermediárias.

Calmon chegou a defender, na Câmara dos Deputados, a estatização da mídia para conter a investida estrangeira. A proposta contundente surgiu depois de informações na Justiça do Trabalho contidas na reclamação trabalhista do ex-diretor geral da TV Globo, Rubens Amaral, que demostravam a intervenção do grupo Time-Life na emissora. O grupo Globo respondeu com comunicados em vários jornais, lidos em suas emissoras de rádio e TV, dizendo que o Diários Associados, em tempos passados, fora beneficiado por acordos de Assis Chateaubriand com o magnata norte-americano David Rockfeller. A mídia ligada a Roberto Marinho também intensificou os ataques a Calmon — chegaram a dizer que ele deveria mudar o nome para João “Calmão”, mais adequado ao seu “nacionalismo”.

A tentativa de esvaziar a Abert atingiu também a “comissão de investigação”. Além do bombardeio de Roberto Marinho e seus aliados, acusando a iniciativa de “autoritária” e “invasiva”, não havia local para ela trabalhar. No dia da sua instalação, o ministro Mem de Sá disse que o Ministério da Justiça era pobre e sugeriu a sede do Conselho de Segurança Nacional para o seu funcionamento, onde existiam salas, “embora sem móveis”. Ele também comunicou a imprensa que a “comissão” não daria nenhuma notícia durante o andamento dos trabalhos.

Em agosto de 1966, a “comissão”, que nunca obteve um lugar definitivo para trabalhar — reunia-se esparsamente e ouviu poucas pessoas —, entregou seu relatório final ao novo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva, recheado de informações artificiais que em notas os grupos estrangeiros já haviam tornadas públicas. O documento foi para alguma gaveta do Ministério; as movimentações políticas para a substituição do presidente Castelo Branco estavam a todo vapor e havia interesses de todos num período de trégua. A paz temporária foi selada num almoço promovido por Castelo Branco no Palácio das Laranjeiras, a sede do governo do estado da Guanabara, em 22 de março de 1966, com as presenças de diretores de jornais, entre eles Roberto Marinho e João Calmon.

O general Costa e Silva, ministro da Guerra, como escolhido para substituir Castelo Branco, sugeriu o nome do presidente da Abert, agora um influente líder do partido político que dava sustentação à ditadura, a Aliança Nacional Renovadora (Arena), para a vice-Presidência da República. Na acirrada disputa que se estabeleceu, saiu vitorioso o grupo de defendia o ministro da Educação, Pedro Aleixo, e a guerra Roberto Marinho-Pedro Calmon voltou a pegar fogo. O grupo Globo foi incitado por seus apoiadores do governo a atirar para matar.

Em nota publicada nos jornais, assinada pela TV Globo, Calmon foi acusado de pedir dinheiro à Embaixada norte-americana. Quem fez a denúncia, de acordo com o jornal O Globo, foi a correspondente do jornal Washington Post, Georgie Anne Geyer.

— Autorizadas fontes norte-americanas daqui salientam que Calmon, cujo império está mergulhado em dívidas, procurou a Embaixada americana, no outono passado, a fim de obter dinheiro para livrar os Diários das dificuldades. Ante a negativa do então embaixador Lincoln Gordon, ele, ao que informa, jurou vingar-se – teria escrito a jornalista.

Seguiu-se mais uma violenta troca de acusações, com Lincoln Gordon e Georgie Anne Geyer dando declarações desencontradas, um autêntico duelo nas páginas dos jornais O Globo e O Jornal — este, o líder dos Diários Associados. Calmon também usou a tribuna da Câmara dos Deputados para desancar Roberto Marinho. E declarou-se vitorioso com o resultado da CPI, que encerrou seus trabalhos em 22 de agosto de 1966 concluindo pela inconstitucionalidade dos acordos do grupo Globo com o rupo Time-Life.

— Os contratos firmados entre a TV Globo e o grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional – defendeu o parecer do relator, deputado Djalma Marinho, que pertencia à Arena.

O relatório das investigações apontou que a TV Globo, inequivocamente, fora financiada pelo grupo Time-Life sob a cobertura de um contrato regulamentando a prestação de assessoria técnica. Outro infração grave foi a compra de equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado em vigor.

O contrato principal estabelecia que o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da TV Globo, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava que o grupo Time-Life teria de “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários — mais uma prática proibida, uma violação do Código Brasileiro de Telecomunicações. O acordo sequer foi apreciado pelo Contel. Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a TV Globo enviou um deles — o de assistência técnica — para a Sumoc, assim mesmo por ordem do Contel.

Em nova burla às leis, a TV Globo, atingida pela campanha do deputado João Calmon, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. No contrato constava que a TV Globo seria locatária de um prédio vendido ao grupo Time-Life, feito antes da venda do local aos norte-americanos. O grupo de Roberto Marinho alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somado aos 5% do lucro líquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da TV Globo. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram.

Roberto Marinho, apesar de baleado naquela refrega, saíra fortalecido. Havia uma lógica na sua conduta, ditada pela tendência de moldar a mídia com o alinhamento incondicional do golpe ao ditame norte-americano no âmbito da Guerra Fria anticomunista. O decadente grupo de Assis Chateaubriand, os Diários Associados, estava tão avariado que não responderia aos estímulos do regime. A segunda opção, a Editora Abril — intermediária da negociata de Roberto Marinho com o grupo Time-Life —, também estava descartada pela flagrante ilegalidade constitucional. A emergência de um novo grupo seria a saída óbvia.

Biografia de Renato Rabelo retrata frondosa árvore da notável floresta socialista

Biografia de Renato Rabelo: Frondosa árvore de uma notável floresta

Por Adalberto Monteiro

Quando uma árvore, por seu porte, por suas raízes profundas, por inúmeras floradas e iguais colheitas proporcionadas, por tantas sementes dela germinadas, desponta-se em uma alta floresta, vem de quem a enxerga a indagação de quanto disso e daquilo ela teve de enfrentar e vencer para adquirir aquela presença destacada, valorizada, naquela paisagem por si só rica e diversa.

A biografia de Renato Rabelo, pelo trabalho arguto e meticuloso do historiador e biógrafo Osvaldo Bertolino, dá-nos acesso às páginas da vida deste destacado dirigente do PCdoB e ao mapa de uma longa e realizadora militância revolucionária. O livro é uma realização da Fundação Maurício Grabois, da qual Renato é, hoje, o presidente de honra.

Trata-se de um trabalho de mais de três anos, alicerçado em pesquisas, apoiado em fontes, muitas até então inéditas; além, é claro, de horas e horas de gravação com o biografado. Osvaldo, não fosse historiador, biógrafo, poderia ter sido roteirista de cinema. Por vezes, leitor, leitora, a fluência do texto nos faz ver, enxergar, assistir, sentir fatos vividos por Renato. Riqueza de detalhes, reconstituição de cenários e circunstâncias, mas sempre marcando o significado de cada episódio.

As minúcias são na verdade chaves através das quais somos transportados aos portais do tempo. Quais a senha e a contrassenha que os/as estudantes delegados/as tinham que pronunciar para ter acesso ao clandestino XXVIII Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE)? Quem é o personagem da palavra de ordem entoada pelas passeatas estudantis de meados dos anos 1960: Osso, osso, abaixo o sem-pescoço?

A biografia de Renato flui, pela maestria de Bertolino, carne e unha com a história do Brasil, entrelaçada com as histórias da Ação Popular (AP), da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, também, do movimento comunista internacional. Vê-se a presença destacada de Renato em batalhas e confrontos decisivos para o Brasil e para o proletariado, a luta pelo socialismo nas últimas seis décadas e um rol de feitos e realizações de sua militância.

O Índice Onomástico da obra evidencia um conjunto numeroso de nomes de quadros e lideranças da AP e do PCdoB, que torna patente o trabalho coletivo que Renato sempre valorizou como método de trabalho; e, também, de personalidades dos campos democrático e popular do país que, por sua vez, refletem a política de alianças amplas do PCdoB da qual Renato é um dos elaboradores e protagonistas na aplicação. Os textos, neste livro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidente Dilma Rousseff bem simbolizam a dimensão destas relações de aliança, bem como a estatura do legado político de Renato.

Um dos méritos da obra de Bertolino, aliás um dos traços também presentes em biografias anteriores, é não circundar nenhuma auréola em torno da cabeça do biografado. Movimenta-se, então, um Renato substantivamente humano, terrestre, como você, ele, ela e eu, que tem família, que se diverte, que se embevece com uma taça de vinho, que se entristece, que tem saúde, que adoece, que trabalha muito, acerta e erra. A vida sempre modesta, por vezes, duramente difícil, de Renato e da família.

Em diferentes circunstâncias, a biografia ressalta duas características dominantes da personalidade de Renato: a empatia e a imensa capacidade de ouvir e de, assertivamente, interagir com a ideias a ele apresentadas, mesmo que delas tenha divergência; e a coragem política, a firmeza de tomar decisões.

Uma essência transborda da biografia de Renato: sua maior obra e legado é ter aportado, ao acervo teórico, político e ideológico do Partido Comunista do Brasil, importantes contribuições teóricas e políticas que enriqueceram o pensamento tático, estratégico e programático da legenda comunista, como também a práxis de sua edificação e atuação na arena da luta de classes. A isso se soma um elenco de quadros comunistas em relação aos quais o papel de Renato foi destacado para formá-los, seja na Escola Nacional João Amazonas, seja na estrutura do Partido, seja nas frentes de atuação, notadamente no movimento estudantil.

E este aporte alinhava o fluxo da biografia, revelando-nos em que circunstâncias, no curso de quais confrontos da luta de classes, no Brasil e no mundo, o legado de Renato foi se erguendo.

E, temporalmente, isso se dá ao longo de mais de sessenta anos de militância. O marco zero deste itinerário é o final dos anos 1950, quando, no interior da Bahia, no último ano do colégio, assumiu a secretaria geral do grêmio estudantil. Segundo Osvaldo Bertolino, Renato “queria conhecer Salvador, ver o Brasil, tomar pulso do mundo”. Sonho que, como se sabe, concretizou-se.

A sua jornada de lutas se inicia no âmbito da juventude católica, orientada pela Teologia da Libertação. E, logo a seguir, nas fileiras revolucionárias da Ação Popular, e, a partir de 1973, após incorporação desta organização à legenda comunista, no núcleo dirigente do PCdoB. Trajetória essa que chega ao ápice no período de dezembro de 2001 a maio de 2015, quando, por indicação de João Amazonas, liderança histórica dos comunistas, Renato é eleito pelo Comitê Central para exercer a presidência do Partido Comunista do Brasil.

Uma vida longa é a um só tempo privilégio e desafio. Desafio, pois que, quaisquer que sejam as vicissitudes, a liderança comunista é chamada a descrever uma linha de coerência. Da primeira página até a última do livro, o que costura o itinerário de lutas de Renato são três palavras: coerência, convicção e compromisso, com ideais do comunismo, com um projeto de nação, de um Brasil democrático, soberano, socialista, que abraçou com ardor e consciência desde a juventude.

A maturação da têmpera revolucionária de Renato, o processo cumulativo de suas qualidades respondendo às responsabilidades cada vez mais elevadas de mandatos oriundos do coletivo, deram-se consoante, sobretudo, à dinâmica da luta política do país, mas também sob os impactos dos conflitos e confrontos que se irromperam na realidade mundial e, é claro, das vicissitudes do movimento comunista brasileiro e internacional com suas vitórias, mas, também, com suas divisões e seus reveses.

O retrato de Renato, pelos traços de sua biografia, revela uma liderança de ação, de combate, de verdadeira gana por intervir nas principais lutas sociais, políticas, ideológicas, travadas no país nas últimas seis décadas. E, ao mesmo tempo, sistematiza e generaliza a prática transformadora, estuda, elabora, a partir do marxismo, formulações que buscam responder aos nexos principais da luta de classes em cada momento histórico, jamais se deixando aprisionar por verdades pétreas.

E sempre que a prática e o curso da história revelam erros ou insuficiências, com base no método leninista da crítica e da autocrítica, abraça ou participa da gênese do novo, que faz a teoria e a prática avançarem.

Para completar, o terceiro traço do retrato se avulta: construtor do Partido Comunista do Brasil, com a seiva da luta política e de massas, com a teoria marxista-leninista a toda carga, com sua essência transformadora iluminando a prática revolucionária.
Finalmente, a biografia de Renato é um acervo vivo e pulsante de ideias e práticas transformadoras, de convicções e de energia revolucionárias que nos convidam, nos convocam, a prosseguir as jornadas de lutas pela construção do socialismo em nosso país.

Adalberto Monteiro é jornalista e poeta, secretário nacional de Formação e Propaganda do PCdoB

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Serviço:

Título: Renato Rabelo – vida, ideias e rumos
Autor: Osvaldo Bertolino
ISBN: 978-65980456-4-7
Publicação: Fundação Maurício Grabois
Ano de publicação: 2025
Páginas: 848

Fonte: www.gradois.org.br

Diário de Maurício Grabois: resposta de Lucas Figueiredo tem pernas curtas

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 29/04/2011

Quem jacta-se de si mesmo pouco tem do que jactar-se. A frase atribuída a Honoré de Balzac cai como uma luva para o título Quando o jornalismo incomoda da resposta do jornalista Lucas Figueiredo em seu blog aos comentários que fiz sobre sua matéria na revista CartaCapital comentando o suposto diário de Maurício Grabois. O que menos existe em sua argumentação é jornalismo.

Já de saída ele recorre a uma manobra diversionista ao declarar que, “vinda de dois flancos que se abrigam numa mesma trincheira”, recebeu “uma saraivada de críticas”. (Segundo o dicionário Houaiss, “diversionismo” é, entre outras coisas, um estratagema usado para impedir que se discuta algo ocupando todo o tempo ou desviando-se a atenção dos participantes para assunto diferente do que está sendo tratado.) Refere-se ao editorial do Portal Vermelho sobre o tema e aos meus comentários, misturando alhos com bugalhos.

Com sua habitual modéstia, Lucas Figueiredo informa que em sua matéria destrincha “o até então inédito diário que o comandante da Guerrilha do Araguaia, Maurício Grabois, escreveu entre abril de 1972 e dezembro de 1973 em seus esconderijos (sic) na mata”. “O diário é um documento histórico de grande importância pois cobre 605 dias de luta no Araguaia”, complementa. Em seguida parte para o ataque ao Portal Vermelho, “ponta de lança do PCdoB na internet” — assunto que, tenho absoluta certeza, será muito bem respondido pelo veículo atacado.

Não trabalho no Portal Vermelho já há algum tempo. Fico só na resposta à parte em que o jornalista se refere ao meu texto. Como desinformação é a sua arma, ele começa ignorando que escrevi os comentários para o blog O outro lado da notícia, que publico desde maio de 2008 e está sob a minha exclusiva responsabilidade. Não recebe nem paga uma moeda para ser publicado. Tampouco possui qualquer vinculação com instituições ou veículo de comunicação. “O outro texto que me ataca (Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista da CartaCapital), publicado no mesmo Vermelho.org e no blog do Luis Nassif é assinado por Osvaldo Bertolino, que se apresenta como jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois, editor do portal Grabois.org.br e biógrafo de Maurício Grabois”, escreve Lucas Figueiredo.

Tanto o Portal Vermelho como o blog do Luis Nassif transcreveram — o segundo a meu pedido — o texto. Bastaria um clique para saber onde estava a publicação original. Mas, para Lucas Figueiredo, ignorar O outro lado da notícia foi mais conveniente. Escrevi em tom pessoal, com informações pessoais. O Portal Vermelho transcreveu e, dignamente, citou a fonte. O blog do Luis Nassif disponibilizou o acesso para o original. Forçar a barra para institucionalizar, como sendo do PCdoB, o que escrevi não passa de desfaçatez. Como diz o povo, tentou matar dois coelhos com uma só cajadada ao atribui a “saraivada de críticas” a “dois flancos que se abrigam numa mesma trincheira”. A trincheira — sabemos, mas é bom ressaltar — é o PCdoB.

Depois ele usa o velho recurso de atacar o mensageiro para evitar a mensagem. Se fosse jornalismo mesmo, Lucas Figueiredo não teria dito que o texto foi “assinado por Osvaldo Bertolino”. Quem teria escrito? Vai saber… O jornalista também poderia constatar quem sou e o que faço para evitar uma agressão gratuita ao dizer que me apresento “como jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois, editor do portal Grabois.org.br e biógrafo de Maurício Grabois”. É o famoso tiro pela culatra.

Depois ele diz que começo “tentando desqualificar o furo (sic) de CartaCapital ao dizer que o assunto do diário ‘não é novo’”. “Ele mesmo, antes de mim, já teria recebido anonimamente trechos do diário, mas não os utilizara dada a ‘impossibilidade de verificar a veracidade do documento’, escreve. “Pois eu consegui verificar a veracidade do documento e fui o primeiro a torná-lo público, na íntegra, no site de CartaCapital”, complementa. Como, não explica. E nada fala da versão do jornalista Hugo Studart, em artigo publicado pela revista Brasil História na edição de março de 2007.

(Segundo Studart, o diário foi encontrado pelas tropas que mataram Grabois, dentro de suas roupas, já estufado pela umidade. O documento chegou a Marabá no final da tarde de 25 de dezembro de 1973 para ser encaminhado na primeira hora do dia seguinte ao Centro de Informações do Exército (CIE),em Brasília. Umcapitão da área de informações pediu o material emprestado aos colegas para examiná-lo e, sem consultar os superiores, convocou cinco soldados para que atravessassem a madrugada copiando o conteúdo à mão. Pela manhã devolveu o documento. O diário original desapareceu dos arquivos do CIE, provavelmente destruído no crematório ocorrido em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel para ocultar os combates no Araguaia. Restou a cópia (mais tarde datilografada), preservada nos arquivos pessoais daquele capitão. Três oficiais superiores, antigos membros da Comunidade de Informações que tiveram acesso aos originais antes da cremação, atestam a autenticidade do conteúdo que consta na cópia.)

Os ataques ao mensageiro continuam. “Em seu texto, Bertolino se revela um apaixonado por seu objeto de estudo, condição perigosa para um pesquisador. O comandante da guerrilha seria ‘um homem à frente do seu tempo’ e que vivia ‘totalmente envolvido’ na ‘luta pelo futuro’. Para Bertolino, Grabois fazia parte de uma casta especial, a dos ‘verdadeiros heróis’”. De novo, Lucas Figueiredo apela para as citações descontextualizadas para fugir da essência da polêmica. Inventa citações.

Transcrevo a íntegra do parágrafo para comprovar a falta de rigor do jornalista:

Para escrever a biografia (de Grabois), consultei muitas fontes, conversei demoradamente com pessoas que conviveram com Grabois e mergulhei fundo em seus escritos. A impressão que fiquei é de um homem à frente do seu tempo, de rara capacidade intelectual, de caráter sólido e totalmente envolvido com a causa que embala a humanidade desde tempos imemoriais: a luta pelo futuro. É daqueles que, como disse o escritor Monteiro Lobato na carta enviada a Caio Prado Júnior quando este estava na prisão, quanto mais a gente conhece, mais admira. “A regra é ao contrário: à proporção que a gente vai conhecendo um homem, vai se decepcionando — vendo-lhe as falhinhas…”, disse.

Outra rata: quando o meu texto fala em “verdadeiros heróis”, a citação está entre aspas, atribuída a João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz. Transcrevo o Parágrafo na íntegra:

Grabois escreveu até o dia do seu último combate, em 25 de dezembro de 1973, quando, segundo João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz, o Brasil vivia o tempo dos assassinos, dos curiós, dos sérgios fleury e congêneres. Era “também o tempo dos verdadeiros heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de pé, olhando a morte na cara”. Grabois morreu no grande combate que ficou conhecido como o “Chafurdo de Natal”.

Considero, sim, Maurício Grabois um “verdadeiro herói”. Reafirmo que ele “morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras”. Concordo, portanto, integralmente com o que disse João Quartim de Moraes. Mas Lucas Figueiredo não tem o direito, como jornalista, de atribuir, com aspas e tudo, a um o que outro escreveu. É o mau jornalismo escancarado, flagrante.

Em seguida ele se faz de vítima. “Desinformação, descaso, preconceito, artificialismo, confusão primária, devaneio… Tudo isso está em mim e na minha reportagem, segundo ele”, escreve. As palavras são pinçadas e alinhadas como se nada mais, antes ou depois, fora escrito. Mais um flagrante de mau jornalismo.

Depois Lucas Figueiredo volta a jactar-se. “Não importa o fato – fato, repito – de que, nas 150 páginas datilografadas de seu diário, Grabois tenha feito 113 menções a comida (e não apenas quando ela faltava, mas também quando raleava, empobrecia, enriquecia ou sustentava um banquete). Para Bertolino, escrever o óbvio – Grabois se mostrou um obcecado por comida – significa ‘atacar’ o mito do PCdoB.”

Aqui parece que o desespero tomou conta do jornalista. Em nenhuma das “113 menções” Maurício Grabois refere-se a comida fora do contexto em que os guerrilheiros viviam. É triste ver como Lucas Figueiredo insiste em uma farsa, em uma tese que tem a consistência de uma bolha de sabão. Mais: é um desrespeito ao comandante da Guerrilha tratá-lo como um glutão, um obcecado por comida. Isso não é “atacar”. É desrespeitar não o comandante, mas a pessoa.

Nessa passagem, há outro detalhe relevante, que revela mais um caso de mau jornalismo. Em nenhum momento escrevi que mostrar Grabois como um “obcecado por comida” significa “atacar” o mito do PCdoB. Mais uma vez, transcrevo o parágrafo na íntegra:

O texto (de Lucas Figueiredo) se lança em outros devaneios de menor intensidade, como as descrições de Grabois sobre as dificuldades enfrentadas na mata e a busca incessante por comida. Aí Lucas Figueiredo voa tão baixo que é impossível alcançá-lo. “O diário revela um guerrilheiro obcecado por comida”, diz ele. Depois dessa triste passagem, ele volta a atacar Grabois, “um comandante rigoroso, sobretudo com os outros”.

Há uma diferença oceânica, amazônica, entre o que escrevi e que ele diz que escrevi. A mesma diferença aparece na passagem em que Lucas Figueiredo diz que, “ainda de acordo com Bertolino, é um ‘descaso’ de minha parte relatar que, de seu esconderijo (sic) na mata, Grabois ouvia a propaganda comunista da Rádio Tirana, da Albânia, e a tomava por ‘melhor fonte de informações’ sobre a Guerrilha do Araguaia. Não sei como poderia ter feito diferente se foi o próprio Grabois quem escreveu que a Tirana era sua ‘melhor fonte de informações’.

Não sou professor de ninguém. Procuro apenas cumprir minhas obrigações. Uma delas é ser rigoroso com os fatos. Nesse caso, creio que o assunto ficou bem claro. Vejamos:

Lucas Figueiredo descreve Grabois como um ser tão incapacitado intelectualmente que passava horas de seu dia a ouvir as transmissões da Rádio Tirana e acreditava nas notícias que chegavam “da distante e fechada Albânia comunista”. “Grabois chega a acreditar que não só ele e seus companheiros ouvem a propaganda vermelha da Tirana (sic), a ‘melhor fonte de informações’”, escreve. Aqui a desinformação assusta. Bastaria uma rápida busca na internet para saber que o PCdoB montara um sofisticado sistema de transmissão de informações, via Rádio Tirana, que vinham exatamente de onde Grabois estava.  Dizer, como faz Lucas Figueiredo, que Grabois tomava propaganda como informação é o cúmulo do descaso.

Tomado pelo raciocínio turvo, Lucas Figueiredo passa a me chamar de “apaixonado biógrafo” e puxa uma polêmica que não se sustenta. Diz ele que o acusei “de cair em devaneio ao dizer que o veterano dirigente do PCdoB se revelava um iludido em relação às ‘massas’ (expressão de Grabois) que pretendia recrutar no Araguaia”. “Deixemos que o diário fale por si. No dia 21 de maio de 1972, Maurício Grabois escreveu o seguinte: “Aqui <no Araguaia>, temos que intensificar a propaganda revolucionária, recrutar novos co <combatentes> para as Forças Guerrilheiras e amigos para a nossa causa. E isso não é difícil de realizar. As condições parecem favoráveis”, escreve ele.

Repetio o que disse no primeiro texto:

Já no início da matéria ele (Lucas Figueiredo) deduz que Grabois ilude-se sobre o ânimo das “massas”, que seriam “a miserável população local que quer cooptar para fazer a revolução comunista no Brasil”. Devaneio maior, impossível. Bastaria raciocinar não mais que cinco minutos para saber que uma “revolução comunista” era o que menos estava em questão naquele movimento. Se for para ser mais rigoroso, é possível dizer que Lucas Figueiredo não se deu sequer ao trabalho de evitar chutes teóricos para qualificar a luta armada no Sul do Pará. Seria o caso de perguntar: onde ele leu, ouviu ou obteve tal informação? Se diz que Grabois e seus camaradas queriam “fazer a revolução comunista”, deveria explicar o que vem a ser isso. É o velho vício da mídia, de disparar preconceitos sem a menor preocupação.

É óbvio que a Guerrilha trabalhava para recrutar novos “combatentes” e “amigos” para a sua causa. Só faltava ser o contrário. Daí a dizer que os guerrilheiros pretendiam cooptar “a miserável população local (…) para fazer a revolução comunista no Brasil” há muito devaneio.

Transcrevo, como prova, um trecho de um dos documentos da Guerrilha:

Coloca-se na ordem do dia para todos os patriotas, democratas e revolucionários a tarefa de (…) intensificar a luta contra a ditadura. A derrubada desse regime — eis aquilo de que o povo brasileiro mais necessita. O seu aperfeiçoamento e institucionalização é (sic) grave ameaça ao futuro do Brasil e aos interesses populares.

Lucas Figueiredo fecha a resposta com chave de ouro. “O último parágrafo do texto de Bertolino, transcrito abaixo em negrito, talvez seja o mais revelador de sua real intenção: 

Morreu <Maurício Grabois> por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui, da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido – como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.”

O mau jornalismo não poderia deixar de dar as caras nesse encerramento.

Veja o que escrevi:

Grabois não merecia isso tudo. Se pudesse dizer algo para o comandante da Guerrilha do Araguaia, utilizaria idéias e palavras de Monteiro Lobato na carta a Caio Prado Júnior. Cada ato seu o eleva mais. Morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido — como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.

A última frase é dirigida diretamente a mim. “Se sua intenção, Bertolino, é pintar um deus onde há apenas um homem, não conte mesmo comigo”, finaliza. Não contarei, Lucas Figueiredo. Mas informo que essa não é a minha intenção. Seu chute, mais uma vez, atingiu a bandeirinha de escanteio.

Diz o axioma que dois erros nunca se anulam. Aliás, geralmente somam-se para dar um resultado ainda pior. A enorme massa de invencionices dos textos de Lucas Figueiredo sobre Maurício Grabois, submetida ao crivo dos fatos, foi se dissolvendo e, de tudo o que escreveu, quase nada ficou de concreto. Se sobram teorias, faltam fatos — matéria-prima indispensável a qualquer jornalista que se preze.

Esse jornalismo rarefeito é bem conhecido no Brasil. Ataques pessoais, intrigas, falsidades, invenções, erros de fato e mentiras, puras e simples, são a sua base. Quem aprecia esse estilo de fazer jornalismo pode até reencenar, irresponsavelmente, aquele juvenil orgulho dos tempos da adolescência. Mas isso não passa de demagogia barata, conluio com a desinformação e falta de seriedade.

É cedo para festejar: a denúncia da gangue não é o ponto de chegada

Roberto Amaral*

A denúncia da PGR contra a choldra liderada pelo capitão delinquente, tão esperada, não chega a constituir surpresa, mas implica profundo corte no cenário político. De um lado, pode despertar a esquerda (tomada em plano mais geral) de sua letargia; de outro, deve impor à direita — até aqui fogosa por não enfrentar adversário à altura — um recuo ao canto do ringue, onde hoje se encontra o governo, enredado em sua insegurança estratégica.

Embora o contentamento com o início da ação seja compreensível (temos viva a lembrança do que foi a longa noite bolsonarista), não há razões para soltarmos balões e foguetes, festejando uma vitória ainda por se efetivar — e de cuja construção a esquerda e os progressistas em geral ainda não participaram. Até aqui, o sujeito do processo e depositário das esperanças democráticas é o Poder Judiciário, quando a questão fundamental, que diz respeito ao governo, às esquerdas e ao país, não é jurídica, mas política e, por consequência, só se resolverá na política — onde vimos falhando.

Antes de nós, essa distinção, nada sutil, foi percebida pela direita troglodita, que, na impossibilidade de defender o indefensável — a vasta teia de crimes penais e políticos cometidos e prometidos pela caterva chefiada pelo ex-presidente —, levantou a bandeira de uma anistia bastarda. Isca que a esquerda prontamente mordeu, dedicando-se a combatê-la e desviando-se do foco central, qual seja: a denúncia dos crimes do bolsonarismo, concebida como instrumento de combate ao avanço da direita, nosso adversário estratégico. Sem clareza sobre o processo histórico e de seu papel nele, a esquerda se torna reativa, e assim sua práxis passa a ser condicionada pelo campo adversário.

É como enfrentamento à direita (a dita civilizada e a troglodita) que devem ser compreendidos a denúncia e o combate à choldra bolsonarista e seu contencioso de crimes.
Cumpre à esquerda, valendo-se da oportunidade que se abre, politizar o debate, destrinchar para o povo o conteúdo e o significado da grave denúncia, explicar os crimes do neofascismo como coletivos e pressionar o STF para a aceitação da denúncia, agora, e amanhã o processo. Deve esclarecer a opinião pública e pressionar o Judiciário, mas tudo isso como ação política, cujo objetivo, no curto, médio e longo prazos é a desmoralização política e moral da direita e seus agentes — direita fascista que já estava enraizada entre nós antes da liderança do capitão e aqui permanecerá, mais forte ou mais fraca, mais perigosa ou não, alimentada pelos avanços que vem logrando desde 2018 e, agora, impulsionada pelo trumpismo em ascensão que encontra no viralatismo ideológico da classe dominante terreno fértil para a semeadura.

Seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista ideológico, a extrema-direita (nativa e importada) jamais esteve tão forte política e eleitoralmente, tão bem aparelhada financeiramente e tão vinculada à nova ordem internacional, que, ascendente na Europa e nos EUA, favorece o avanço das correntes neofascistas em todo o mundo.

No Brasil, o reacionarismo controla as duas casas do Congresso, a maioria dos estados (como SP, RJ e MG), as prefeituras e câmaras municipais. Tem atrás de si o grande capital, além de infiltração nas forças armadas do Estado brasileiro. Dispensado falar no controle dos grandes meios de comunicação e das redes sociais, bem como da inefável ajuda do neopentecostalismo comercial. Combatê-lo é o objetivo da esquerda — e deveria ser o ânimo do governo e dos liberais, caso ainda existam, e da socialdemocracia, se esta não houvesse se suicidado.

A condenação penal e moral dos principais próceres da extrema-direita, a começar pelo capitão delinquente, será um instrumento valioso de luta e mobilização popular, mas apenas um ponto de partida. O momento, ou seja, o cavalo que passa selado diante de nós, exige uma revisão corajosa do governo e da esquerda, que não podem permanecer letárgicos, nem celebrar uma vitória que ainda não chegou.
Há trabalho pela frente.

O governo precisa discutir o conceito de frente ampla — uma frente para ganhar eleições e outra para governar —, e sustentar essa frente eleitoral com um projeto aglutinador e diretor. Sem definição, o governo, que já não podia ser de centro-esquerda, se descobre sob as diretivas de um projeto alheio e perde sua identificação com o eleitorado que foi base da eleição de Lula e deveria ser sua sustentação política hoje, como foi na conjuntura do chamado “mensalão”.

(A crise é política, e não de comunicação, que no entanto continua inexistente, pois comunicação de governo envolve questões que os marqueteiros não costumam perceber, como projeto politico e programa de governo dele servidor.)

O combate ao avanço da direita, seja qual for o desfecho dos julgamentos do STF, depende do desempenho político do governo e da ressurreição das esquerdas, da retomada do trabalho de organização sem o qual não há mobilização popular, ponto de partida indispensável para a batalha ideológica que a direita tem vencido sem combate efetivo.
Uma urgência é livrar-se da pauta conservadora imposta pelo sistema e construir a nossa, mas isso depende, nas circunstâncias, de um governo com visão estratégica e comando a ela adequado, como de estruturas partidárias vinculadas à luta social, e não ao cotidiano das disputas internas de facções sem perspectivas históricas, apegadas ao aqui e agora e à disputa de espaços irrelevantes nas estruturas institucionais. O velho fratricídio da micropolítica.

Se o governo Lula não conseguiu, até aqui, organizar-se em torno de um projeto de país, a esquerda tampouco formulou ou defendeu um programa de mudança voltado à crise estrutural do capitalismo dependente, dirigindo-se à sociedade e enfrentando o desafio ideológico colocado pela direita em ascensão. Terminamos, ao fim e ao cabo, repetindo os passos que historicamente condenávamos na antiga socialdemocracia, ou seja, trabalhamos para tornar o capitalismo suportável. É o que fazemos quando deixamos de enxergar a luta de classes, quando deixamos de denunciar a iniquidade do capitalismo, quando renunciamos a apontar alternativas. A desigualdade social, assim, toma a aparência de fenômeno natural.

Nessa toada, refazemos os passos vencidos dos caminhantes sem esperanças: revolucionários, reformistas… por fim conservadores. E nos espantamos quando os explorados não reconhecem mais nosso discurso, e menos ainda nossos governos.
Perdida a utopia fundante, a esquerda se queda no desamparo ideológico, e assim se descobre à mercê do discurso que nega e que ao mesmo tempo a nega. No governo, é presa do neoliberalismo.

Disfunções à parte, a grande vitória do capitalismo se deu e se renova no plano político-ideológico: a adoção de seus valores por aqueles que deveriam combater esse sistema iníquo. No rasto dessa vitória caminha a direita, com suas expressões distintas entre em si, porém irmãs: aquela que “joga dentro das quatro linhas”, e assim se apresenta como civilizada, e a tresloucada, que atinge sua máxima expressão na figura do capitão delinquente e sua súcia de assassinos.

***

Quem se trumbica? — Durante a ditadura militar instalada em 1º de abril de 1964, os militares impunham severa censura aos jornais, que reagiam publicando receitas de bolo nas primeiras páginas, para sinalizar ao público que estavam sob o jugo do arbítrio. Hoje, com o mundo em convulsão e a aprovação do governo em queda, os anódinos bolos voltam a ser destaque — agora na comunicação oficial. Com a palavra, os exegetas.

*Com a colaboração de Pedro Amaral

Há setenta e sete anos, Câmara dos Deputados cassou mandatos comunistas

70 anos da cassação dos mandatos do Partido Comunista do Brasil - Congresso em Foco

Bancada comunista protesta contra cassação

Por Osvaldo Bertolino

A bancada comunista brilhou na sessão da Câmara dos Deputados de 29 de dezembro de 1947 quando o projeto de cassação dos mandatos comunistas foi a discussão. O Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB, passava por uma dura perseguição, resultado do contexto de expansionismo do regime dos Estados Unidos, o imperialismo, conhecido como Guerra Fria, o anticomunismo da Doutrina Truman, formulada pelo então presidente norte-americano, Harry Truman. O registro do Partido havia sido cassado em 7 de maio daquele ano. Não demorou e a artilharia dos perseguidores dos comunistas mirou os mandatos dos eleitos pelo PCB.

Discursando em nome da bancada comunista, Carlos Marighella comentou que contradição mais absurda não poderia existir: cancelou-se o registro do Partido Comunista do Brasil, mas os representantes comunistas no parlamento continuavam defendendo o mesmo programa apresentado aos seus eleitores. O problema em si merecia outros comentários, disse Marighella, não fosse o fechamento do PCB uma decisão meramente política do Judiciário, sob a coação do Executivo. E já Rui Barbosa dizia: “Justiça política equivale a justiça de partido, justiça de interesse, justiça de desforra, justiça de crueldade.”

O Conselho Nacional do Partido Social Democrático (PSD), liderado pelo presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, reuniu-se a portas fechadas e decidiu criar uma comissão de cinco “juristas” para dar um parecer sobre a cassação dos mandatos comunistas, uma trama golpista denunciada pelo PCB como conjura na qual estavam envolvidos, entre outros, o chefe do Gabinete Militar do governo Dutra, Alcio Souto; o ministro da Justiça, Costa Neto; o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, o magnata da indústria paulista Morvan Dias de Figueiredo; e o famigerado Pereira Lira, o chefe de polícia.

A derrota eleitoral do PSD em São Paulo, com a eleição de Adhemar de Barros pelo Partido Social Progressista (PSP), atribuída pelo grupo à aliança com o PCB, acendera o sinal de alerta sobre o potencial dos comunistas nas eleições futuras. Diante da derrota do PSD, Dutra pensou em formar um novo partido, uma maneira de expurgar do seu projeto político a corrente getulista que se abrigava na agremiação partidária que herdara.

O líder pessedista na Câmara dos Deputados, Nereu Ramos, se opôs à ideia, alertando o presidente que o PCB representava um perigo maior. O plano era transformar o governo em algo parecido com o que fizera o ditador Higino Morínigo no Paraguai, sustentado em um sistema monopartidário. O PSD seria o Partido Colorado brasileiro. Para isso, o regime de força teria de ser restaurado e o principal empecilho precisava ser removido. O alvo estava definido: a bancada do Partido Comunista do Brasil. Para cassá-la, o senador Ivo de Aquino (PSD) apresentaria um projeto de lei.

Parábola de Monteiro Lobato

O PCB começou a se preparar para mais uma campanha de resistência. Comícios foram programados em diferentes pontos do país, muitos proibidos pela polícia. Em São Paulo, os líderes comunistas Pedro Pomar e João Amazonas discursaram no “comício da unidade democrática”, realizado no Vale do Anhangabaú em junho de 1947. “A política da reação é: depois de nós, o dilúvio”, disse Pomar. Segundo ele, Dutra poderia ser derrotado porque as condições internacionais não eram favoráveis à ditadura.

No comício foi lida a parábola História do Rei Vesgo, escrita por Monteiro Lobato especialmente para aquele evento. O povo ouviu:

Na frente do palácio de certo Rei do Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse Rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem”; vontade tão grande que ele não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrasar o morro. Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis, nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do Rei. Sem ele o Rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham como um grande mal. Mas aquele Rei, que além de vesgo era malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cavouqueiros, aos quais disse:

— Tirem-me um pouco de terra desse morro, ali há umas touceiras de craguatá espinhento. Se o povo protestar contra a minha mexida no morro, direi que é para destruir o craguatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.

Os cavouqueiros arrancaram os pés de craguatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam: “Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma”.

Vendo que não houve protesto, o Rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra — ele fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra… Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o Rei por muito tempo naquela política de “extirpação das plantas daninhas do morro”, e as foi arrancando, sempre “com terra”, até que um dia…

— Que é do morro?

Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, estender o seu olhar vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente — não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas pelo de trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.

Isso foi no Oriente. Mas nada impede que aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. É preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos Reis vesgos não as arranquem “com terra”. Do contrário o morro se acaba — e… como é? Ditadura outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paizinho dos pobres outra vez?

Este comício tem essa significação. É um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso Rei, sob o pretexto de arrancar o craguatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície.

E se tal acontecer e esse soba instituir o relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-se pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.

O preço da liberdade é uma vigilância barulhenta como a dos gansos do Capitólio.

O PCB estimou em setenta mil o número de participantes do comício, uma multidão que se estendeu por todo o Vale do Anhangabaú, o “vale do povo”.

Palavras de Rui Barbosa

O Senado aprovou o projeto de Ivo de Aquino por trinta e cinco contra dezenove votos. Segundo Maurício Grabois, líder da bancada comunista na Câmara dos Deputados, os senadores votaram, na verdade, o suicídio daquela Casa, uma medida em grande parte devida ao golpe de 29 de outubro de 1945, afastando Getúlio Vargas da Presidência da República, que manteve em posições-chave da administração pública fascistas notórios. “Nós, comunistas, estamos tranquilos; não tememos de maneira alguma aquela votação, porque sabemos que cumprimos nosso dever para com o povo brasileiro. A nação, amanhã, ou hoje mesmo, irá julgar esses senadores que não foram capazes de honrar seus mandatos”, afirmou.

Na sua avaliação, a votação do projeto, tanto no Senado como na Câmara, tinha o poder de mostrar ao povo quem respeitava sua vontade e quem passava por cima da legalidade democrática para impor tiranias. “O povo brasileiro está com os olhos voltados para esse parlamento, e no dia em que a Câmara votar – se, por acaso, assim fizer – a cassação dos mandatos, não mais merecerá – sobre isso não tenho dúvida – a consideração e o respeito do nosso povo. Nosso mandato não foi obtido ilegalmente, por meios fraudulentos; não o conseguimos enganando o povo. Nosso mandato resultou do sufrágio de seiscentos mil brasileiros que deram seus votos conscientes aos representantes eleitos sob a legenda do Partido Comunista do Brasil.”

Grabois foi à tribuna da Câmara dos Deputados no começo de novembro de 1947 para antecipar-se à chegada do projeto em plenário, conforme anunciou no início do discurso. “Hoje, senhor presidente, quando comemoramos a passagem de mais um aniversário da maior figura das letras jurídicas brasileiras – Rui Barbosa – podemos ajustar algumas de suas palavras, relativamente a governos de sua época, ao do senhor general Dutra que permite, em vésperas de eleições, que homens como o senhor Adhemar de Barros criem um clima de desordem e insegurança na principal unidade da federação brasileira.”

As posições que o governador paulista vinha adotando eram embaraçosas para os comunistas. Dois dias depois da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que cassou o registro do PCB, Adhemar de Barros recebeu do ministro da Justiça, Benedito Costa Neto, uma mensagem por rádio instruindo o governo paulista sobre como a polícia deveria agir. A ordem era fechar e interditar as sedes comunistas e arrolar “bens, papéis e documentos encontrados” e lacrar “outros quaisquer locais em que o Partido porventura passe a exercer atividades”. Uma das condições para a aliança do PCB com o governador era a defesa da “existência legal de todos os partidos”. Mantida na gaveta durante o processo de cassação do registro, depois da ordem do ministro da Justiça Adhemar de Barros jogou-a no lixo e assumiu o papel de verdugo dos comunistas.

Em 1947, São Paulo seria tabuleiro de uma jogada eleitoral decisiva para a sucessão do presidente Dutra. As eleições para vereador, prefeito e vice-governador atraíam a atenção de todas as forças políticas do país. Com os olhos voltados para os movimentos políticos no estado, o governo federal pressionava Adhemar de Barros, exigindo que ele eliminasse a força dos comunistas. Estes, por sua vez, conclamavam as forças democráticas para que cerrassem fileiras contra novos golpes na democracia.

O clima estava exaltado quando o PCB tentou organizar comícios no estado para defender seus mandatos e fazer “propaganda dos candidatos recomendados pelo senador Luiz Carlos Prestes”. O ambiente de “intranquilidade” era fomentado pela passagem do governador para o posto de simples interventor de Dutra. Seria um daqueles delegados tão comuns na época do Estado Novo, um concorrente do “louco de Maceió”, segundo Pomar, numa referência ao governador de Alagoas, Silvestre Péricles de Góis, que ameaçou atirar em Prestes e mandou cercar a Assembleia Constituinte do estado com policiais portando metralhadoras, um clima que lembrava “a Alemanha de Hitler”.

Segundo Grabois, o grupo ao qual agora Adhemar de Barros também pertencia, obcecado pelo ódio insaciável aos comunistas, empregava todos os esforços “no sentido de fazer desaparecer da política brasileira, e mesmo da própria face geográfica do Brasil, mais de quinhentos mil compatrícios que concorreram às eleições de 2 de dezembro de 1945 e 19 de janeiro de 1947”.

“Por isso, senhor presidente, na data em que se comemora o nascimento de Rui Barbosa, gênio das letras jurídicas de nossa pátria, não há melhor homenagem a esse grande brasileiro do que ler algumas palavras por ele preferidas, acusando o governo de então, também de incapaz e inepto. Assim permito-me ler o seguinte trecho de discurso proferido no Supremo Tribunal Federal, a 23 de abril de 1892:

Não há mais justiça, porque o governo a absorveu. Não há mais processo, porque o governo o tranca. Não há mais defesa, porque o governo a recusa. Não há mais códigos nem leis, porque os governo as substitui. Não há mais Congresso, porque o governo é senhor da liberdade dos deputados. O governo… o governo, o oceano do arbítrio em cuja soberania desempenham todos os poderes, se afoga todas as liberdades, se dispersam todas as leis. Anarquia vaga, incomensurável, tenebrosa como os pesadelos das noites de crime. De toda parte a desordem, por todos os lados a violência. E flutuando apenas à sua tona, expostas à ironia do inimigo, as formas violadas de uma Constituição, que os seus primeiros executores condenaram ao descrédito imerecido e à ruína precoce.

Senhor presidente, essas palavras do grande Rui Barbosa se aplicam hoje, sem dúvida, à situação presente, quando já podemos dizer que não vivemos mais sob o império da lei, não temos mais um governo que respeite à Constituição. O que temos é uma ditadura terrorista, à frente da qual se encontra um homem cujo passado não é dos mais democráticos, porque ninguém pode contestar ter sido o senhor Eurico Gaspar Dutra um dos executores do golpe de 10 de novembro de 1937, que apoiou durante longo período o Estado Novo com as suas perseguições e todos os seus atos antidemocráticos. E só desembainhou a espada quando a democracia já estava vitoriosa em nossa terra. Só soube desembainhá-la no dia 29 de outubro de 1945.”

As palavras de Rui Barbosa eram bastante oportunas, reforçou Grabois, principalmente naquele momento em que a Câmara dos Deputados teria a necessidade de se manifestar sobre o projeto de lei enviado do Senado que, segundo ele, surgiu sob a inspiração direta do Catete e, “podemos afirmar, do bolso do senhor general Eurico Gaspar Dutra”, que não dormia, não descansava enquanto ele não fosse aprovado. “Assim, não só perderão os mandatos os representantes comunistas como também será ferida a Constituição e liquidada a democracia em nosso país.”

Estado de sítio

Grabois considerava possível a confirmação de uma informação do deputado comunista José Maria Crispim dando conta de que, caso o projeto não fosse aprovado, logo após chegaria à Câmara dos Deputados o pedido de estado de sítio, sob ameaça de dissolução do Congresso Nacional. “Devemos compreender, portanto, que esse projeto de cassação de mandatos é, sem dúvida, repito, profundamente político. A partir disso, querem utilizar o projeto como pretexto para novos assaltos à democracia. O Poder Executivo – esse grupo fascista que tem à frente o senhor Eurico Gaspar Dutra – pretende assim encobrir sua inépcia administrativa, a desorganização em que vive o país, as dificuldades econômicas que atravessa nossa pátria.”

Os comunistas compreendiam o projeto, disse Grabois, como objetivo profundamente político, cortina de fumaça. “Não tenho pretensões a cultor de letras jurídicas e a envolver-me em discussões de caráter puramente constitucional. Vindo do seio do povo, escolhido pela população do Distrito Federal para representá-la nesta Casa, aqui, no trato com os constitucionalistas, tenho aprendido algumas noções referentes aos problemas jurídicos. No entanto, qualquer estudioso do assunto, por certo, observará que esse projeto de cassação de mandatos, de autoria do ‘luminoso’ senhor Ivo de Aquino, sem dúvida, é uma chicana, constituindo mesmo um ridículo lançado à face da nação e que cobre mais que a seu próprio autor, o Congresso Nacional.”

Grabois citou uma matéria do jornal A Noticia classificando o projeto “de uma vergonha e mesmo de acinte, porque procurava regulamentar aquilo que não exige regulamentação”. “Visa-se, para arrecadar as cadeiras dos parlamentares comunistas, forjar uma lei, criar uma teoria sui generis para os casos de extinção de mandatos. Como bem afirmou ao jornal Diretrizes o deputado pessedista senhor Vieira de Melo (PSD), ‘procura-se forçar uma porta aberta’.”

Em tom irônico, Grabois comentou superficialidades e contradições primárias do projeto. Segundo ele, Ivo de Aquino fez uma grande descoberta quando dizia que, passados oito anos, seria extinto o mandato do senador. “Depois, o supersábio senador – e digo supersábio porque sua excelência ultrapassou em sabedoria aqueles famosos cinco sábios que enviaram a petição em nome do Conselho Nacional do Partido Social Democrático ao Superior Tribunal Eleitoral –, como cultor das letras jurídicas, também fez notável descoberta ao declarar que o mandato se extingue por morte do representante do povo. Acreditará sua excelência que uma alma do outro mundo possa ocupar no parlamento a cadeira, vaga por falecimento de um deputado ou senador? Não terá sido preenchido pelo respectivo suplente o lugar daquele saudoso senador desaparecido durante os trabalhos de elaboração da Constituição? Pensou, àquele tempo, o senhor Ivo de Aquino ser indispensável que o representante falecido mantivesse ainda seu mandato? É inconcebível, senhor presidente, pretender-se elaborar uma lei estabelecendo que, pelo fato de um membro do parlamento morrer, fica extinto o mandato de representante do povo.”

Com esse conteúdo, afirmou Grabois, o projeto era um conjunto de chicanas, constituindo afronta à mentalidade jurídica do parlamento. Quando ele foi discutido no Senado, poucas vozes se levantaram “para defender a indecorosa e inconstitucional proposição”. “Homens cujos méritos pessoais serão desconhecidos da população brasileira anônima, cujos argumentos não convencerão a ninguém e cujas afirmações são superficiais e vazias de conteúdo. Que fazem eles? Servem a interesses dos poderosos que querem desmoralizar o parlamento, dos que desejam acabar com a democracia em nossa terra.”

Em contraposição, disse, nomes esclarecidos da pátria, figuras respeitadas de juristas com grande folha de serviços prestados à democracia, estavam contra o projeto. “Não procurarei mais argumentos para demonstrar a inconstitucionalidade de tal projeto, porque nenhum assunto foi tão debatido, com tão vasta literatura, como o da cassação dos mandatos. Quase todos os juristas já se manifestaram sobre ele. Tive oportunidade de comparar as afirmações de senadores e juristas consagrados, relativamente à questão”, asseverou. Mas, para que a Casa ficasse bem elucidada, ele citou mais “algumas opiniões abalizadas”. “Assim, senhor presidente, inúmeros representantes do povo e juristas deram sua opinião contrária à cassação de mandatos. Poderia citar o parecer do desembargador Vieira Ferreira, do advogado Sobral Pinto, enfim, de muitos juristas e políticos de nossa pátria com autoridade para afirmar que este projeto é inconstitucional e ofende a democracia.”

Capítulo amargo

A votação do projeto foi marcada para 8 de janeiro de 1948. Um dia antes, Grabois foi à tribuna da Câmara dos Deputados para dirigir a voz, conforme afirmou na primeira frase do discurso, não para os deputados, pelo menos a maioria deles, mas, sim, diretamente ao povo brasileiro, à imensa massa dos trabalhadores do Brasil. “Porque estou certo de que minhas palavras neste recinto não terão a virtude de convencer aqueles homens que já traçaram seu roteiro, sua posição em face do projeto de cassação dos mandatos. Não tenho ilusões sobre o caráter tremendamente reacionário que orienta a maioria parlamentar, nem espero que a minha palavra possa convencer a esses homens que se esqueceram da dignidade do parlamento nacional, da soberania desta Casa do Congresso Nacional, permitindo a sua automutilação e com seu voto favorecendo a liquidação do próprio regime democrático em nossa pátria.”

O discurso foi rápido. Afirmou que nunca, no cenário político do Brasil, um parlamento tomara uma atitude como aquela, que sem dúvida passaria à história como sendo de conivência com os traidores da pátria. “Não tenhamos ilusões: o historiador saberá julgar essa maioria parlamentar que não ouve os reclamos da população, não é o intérprete da vontade popular, e não faz outra coisa senão se submeter, de maneira subserviente, aos imperativos desse grupo fascista que infelicita nossa pátria, levando o país para o caos e a catástrofe.”

Para Grabois, ali estava se encerrando mais um capítulo amargo da história do Brasil. “Sim, senhor presidente, usando esta tribuna não me dirijo a essa maioria parlamentar incapaz de defender o regime democrático, porque sei que não é a capitulação desta Câmara, a que se pode aplicar o qualificativo que Silveira Martins deu a uma determinada Câmara, que há de servir para a salvação do regime democrático; nesta hora em que se debate o projeto de cassação de mandatos, minha voz se volta para o povo brasileiro, para esse povo que a 2 de dezembro de 1945 acorreu às urnas cheio de esperanças, cheio de entusiasmo, certo de que as eleições iriam trazer para nossa pátria uma nova época de progresso e de liberdade. Logo após o pleito, empossado o candidato eleito através de acordos eleitorais, porque não tinha nenhum prestígio popular, que vimos? A marcha do Brasil no sentido da ditadura, no sentido da reação, a fim de liquidar com todas as conquistas obtidas pelo nosso povo na gloriosa jornada de 1945.”

Nos dias que antecederam à votação, a bancada comunista fez uma marcação cerrada sobre o projeto. Enquanto ele era discutido na Comissão de Constituição e Justiça, os deputados do PCB revezavam-se para denunciar, todos os dias, na tribuna, o que representava aquela medida proposta. O governo tinha pressa. Seu líder, Acúrcio Torres, corria de deputado em deputado, de bancada para bancada, a fim de impedir que os comunistas continuassem a falar. A mídia seguia a procissão e acusava a bancada do PCB de “sabotar os trabalhos parlamentares”.

A precaução contra a revolta do povo brasileiro fazia sentido. Segundo Grabois, ao falar em um comício no Parque Treze de Maio, no Recife, ele viu que a “numerosa multidão verberou o imperialismo e o grupo fascista no poder”. O PCB organizara uma bateria de manifestações pelo país, muitas vezes enfrentando as restrições policiais, com a presença de seus dirigentes nacionais, para que a força do povo se erguesse contra os atentados à democracia e à Constituição. Grabois esteve também em Salvador. “Os comícios de que participei em Recife e em Salvador estão mostrando que o povo está compreendendo que a defesa da democracia e agora, particularmente, a luta contra a cassação dos mandatos está em suas próprias mãos”, disse ele.

As manifestações ganhavam apoio das massas mesmo com a repressão fazendo vítimas por todo o país. Em Salvador, relatou Grabois, havia um ambiente de intranquilidade por conta das provocações policiais que tinham empastelado o jornal local do PCB, O Momento. “Em Salvador, onde o senhor Mangabeira (governador do estado pela UDN) afirma querer realizar um governo democrático, paira um ambiente de intranquilidade em face das ameaças dos mesmos fascistas que, servindo-se das armas da nação, empastelaram O Momento e continuam impunes. Assim, durante o comício na Liberdade, corriam boatos de que esse mesmo grupo pretendia dissolver o comício. No entanto, o povo deu a resposta merecida, comparecendo ao comício e aplaudindo os oradores”, disse.

Pomar, eleito deputado federal em 1947 na aliança com Adhemar de Barros em São Paulo, denunciara que “um bando de criminosos, envergando a farda do Exército para enxovalhá-lo, invadiu e empastelou o jornal O Momento, destruindo implacavelmente todo material do referido órgão da imprensa baiana”. No Recife, informou Grabois, a polícia proibiu comícios nos bairros, o que não impediu que uma multidão comparecesse ao Parque Treze de Maio, embora houvesse muito pouca preparação. “Após o comício, a grande massa, demonstrando mais uma vez a grande fibra de luta do povo pernambucano, saiu em passeata pelo centro da cidade, exigindo a renúncia do ditador. Ao fim da passeata, policiais espancaram alguns manifestantes, demonstrando, mais uma vez, que estamos em ditadura, contra a qual ergue-se o povo.”

Na capital pernambucana, uma “malta de vagabundos e policiais”, segundo disse Grabois na tribuna da Câmara dos Deputados, ameaçava o jornal local do PCB, a Folha do Povo. Ele presenciou “um assassino conhecido, velho agente de polícia” que contava em sua folha de serviço com “numerosos assassinatos, inclusive o do jornalista José Lourenço Bezerra, irmão do senhor Gregório Bezerra, e de operários presos em 1935”, colocar-se “à frente de cinquenta desocupados, ameaçando empastelar a Folha do Povo”. “O povo mobilizou-se em frente à redação do referido jornal, esperando que a malta de provocadores fosse atacar esse órgão de imprensa, para lhe dar a resposta merecida”, discursou.

Grabois asseverou que para os comunistas o parlamento era um lugar de luta contra o capital estrangeiro reacionário e os contratos lesivos ao progresso do país. “É, igualmente, a tribuna para defesa da indústria nacional ameaçada pela concorrência estrangeira. E finalmente o meio constitucional indicado para o início da reforma agrária, capaz de enfrentar o problema da concentração da propriedade rural nas mãos de alguns poucos latifundiários e assegurar aos lavradores sem terra do interior a área necessária ao seu sustento e a sua família. No parlamento os comunistas defenderam melhores salários para os trabalhadores, medidas eficazes de combate à carestia, uma política objetiva de fomento à produção de melhoramento dos transportes, de facilidades à distribuição, de combate aos especuladores, de defesa e amparo aos consumidores e dos produtores.”

Segundo ele, não houve um único problema de interesse do Brasil discutido no parlamento que não tinha recebido a melhor atenção da parte dos comunistas. “Tendo como objetivo exclusivo a defesa do país e do povo, souberam os comunistas desmascarar as manobras lesivas à economia nacional, evitando pela vigilância e firmeza muitos golpes solertes do imperialismo. Ainda nestas últimas semanas, quando a luta pela defesa dos mandatos e da soberania do Poder Legislativo lhes consumia o melhor de suas energias não cessaram os comunistas na sua batalha em prol da economia nacional. Consultem-se os anais desses dias memoráveis e lá se lerá a palavra dos comunistas mostrando como o projeto de cassação dos mandatos nada mais é que uma cortina de fumaça para encobrir a inércia administrativa do governo Dutra, cuja incapacidade se traduz nesta simples verdade: há hoje mais fome, mais doença e mais miséria no Brasil do que antes de sua chegada ao poder.”

Pomar disse que, se dependesse de Dutra o Brasil já teria se transformado em um campo de concentração e as forcas estariam nas praças erguendo os corpos de patriotas, especialmente o de Prestes. “Mas é a posição firme, é a posição enérgica, é a posição corajosa dos comunistas que tem impedido, até o presente momento, que o país enverede pelo caminho que quer a ditadura, o grupo fascista e o senhor Dutra”, discursou. Lembrou que ao espírito unitário dos comunistas, à política de ausência de ressentimentos e de mão estendida, a ditadura respondia com perseguições, brutalidades, violências, espaldeiramentos e assassinatos em praça pública.

A declaração de voto de José Maria Crispim, deputado comunista por São Paulo, foi implacável. Em um copioso discurso, ele esmiuçou o projeto e contestou, detalhe por detalhe, as argumentações de Ivo de Aquino. Nos dias seguintes, a bancada comunista fez uma marcação cerrada sobre o projeto. Os deputados comunistas revezavam-se para denunciar, todos os dias, na tribuna da Comissão de Constituição e Justiça, o que representava aquela medida proposta. O governo tinha pressa. Seu líder, Acúrcio Torres, corria de deputado em deputado, de bancada para bancada, a fim de impedir que os comunistas continuassem a falar. A mídia seguia a procissão e acusava a bancada do PCB de “sabotar os trabalhos parlamentares”.

Coveiros da democracia

Os debates começaram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Os deputados comunistas se revezaram na tribuna para fazer um diagnóstico profundo do país e do papel das forças progressistas. Dados, fatos, números, citações e análises formaram o conjunto da defesa da bancada. Em alguns momentos, os ânimos se exaltaram. O jornal do Partido A Classe Operária reproduziu um áspero entrevero iniciado pelo deputado comunista Pedro Pomar com o líder do governo na Câmara dos Deputados, Acúrcio Torres, que discursava de maneira efusiva para tentar justificar o projeto:

— Vossa Excelência está lendo um discurso de encomenda.

Acúrcio Torres esbraveja.

Diógenes Arruda interrompe suas cavilações de rábula do imperialismo, gritando-lhe:

— Vossa Excelência se diz patriota, mas está falando em nome do “partido americano”.

Marighella acrescenta:

— Se dinheiro tivesse cheiro, o projeto Ivo de Aquino teria cheiro de dólares.

E Gregório Bezerra:

— Vossa Excelência diz que não conhece os americanos, mas conhece o dinheiro americano.

Acúrcio Torres sua, desconversa, torna-se patético. O líder do PSD.

Amazonas interrompe:

— A liberdade de Vossa Excelência é a liberdade de fazer negociata.

O “líder” queremista continua aos trancos e solavancos.

Diógenes Arruda o desmascara:

— As palavras de Vossa Excelência e as palmas da maioria revelam o medo que Vossas Excelências têm da bancada comunista e dos comunistas que sempre defenderam e defenderão os interesses do proletariado e do povo. Vossas Excelências têm medo.

A “maioria” cumpre o seu triste papel: vota, passando por cima do próprio regimento.

No encerramento da discussão, a bancada comunista grita:

— Maioria subserviente a Dutra e ao imperialismo americano! Coveiros da democracia!

O Jornal de Notícias disse que na confusão que se estabeleceu houve uma nuvem de palavras ásperas trocadas entre Gregório Bezerra e Pereira da Silva, do PSD, que sacou um revólver contra o deputado comunista. Benedito Valadares, também do PSD, igualmente sacou sua arma em defesa do companheiro de partido. Outros deputados e até jornalistas se envolveram no quiproquó. Indagado se o uso de arma era permitido no plenário, o presidente da Câmara, Samuel Duarte (PTB), respondeu que não podia revistar os parlamentares.

No dia da votação do projeto, Grabois fez seu último discurso. Lembrou que no dia anterior, no encerramento da sessão, tinha conseguido usar da palavra durante cinco minutos. “Naquele exíguo espaço de tempo, tive ensejo de recordar palavras de uma das figuras políticas de nossa história, Gaspar Silveira Martins, que, ao se dirigir à Câmara de sua época, considerava-a uma Assembleia de servis. E, neste instante, senhor presidente, não há outras palavras senão aquelas pronunciadas por Silveira Martins, para dirigir-me a uma Assembleia que se dobra aos imperativos e à vontade do grupo que se encontra encastelado no Catete, levando o país para a catástrofe e para o caos.”

Era com esse espírito que ocupava a tribuna, asseverou Grabois, compreendendo que já não falava para um parlamento soberano capaz de defender a democracia, capaz de defender sua dignidade. “Por isso, usando da palavra, dirijo-me, não a essa maioria que liquida com a democracia, mas, particularmente, ao povo brasileiro, porque, nesta hora, em que o regime democrático está em completa derrocada, somente o povo – e somente ele organizado – é capaz de assegurar a democracia em nossa pátria.”

Grabois homenageou os homens do povo, anônimos, que deram seus votos aos comunistas para representá-los no parlamento, para que defendessem o regime democrático e que nas ruas clamavam contra o “crime monstruoso” da cassação dos mandatos, “o qual irá golpear, temporariamente, a democracia em nossa pátria, mas só temporariamente, porque a democracia é invencível”. “Quero render minhas homenagens àqueles homens que estão vertendo sangue para que a democracia não pereça, olhos voltados para o operário Anísio Dario, morto pela polícia de Aracajú, o qual perdeu a vida clamando contra o crime que se pretende perpetrar com a cassação dos mandatos de representantes legitimamente eleitos.”

Grabois repetiu o argumento de que os comunistas eram vítimas de uma trama contra a democracia. “Não assomamos à tribuna para nos defender, nem fazer a defesa de nossa posição dentro do Parlamento, porque, senhor presidente, se aqui estamos é mais para acusar, pois somos o alvo desse grupo fascista, dessa maioria subserviente. Se sairmos desta Casa, será com nossa consciência tranquila, com a cabeça erguida, porque temos a certeza de haver cumprido o nosso dever, fiéis ao nosso eleitorado e ao povo brasileiro, defendendo, palmo a palmo, suas reivindicações e a própria Constituição.”

O golpe de violência anticonstitucional, por parte dos maiores inimigos da democracia, disse, seria temporário. “Estou certo, porém, de que, amanhã, em outra eleição, quando a democracia ressurgir em nossa pátria — não essa democracia de fachada, que serve a meia dúzia de politiqueiros e generais fascistas, que estão entregando o Brasil ao imperialismo norte-americano —, quando ressurgir a verdadeira democracia, a democracia do povo, quando for respeitada sua vontade, podem estar certos os senhores representantes que neste instante cassam nossos mandatos de que voltaremos, não apenas com uma bancada de dezesseis deputados, mas com número bem maior, capaz de derrotar todos os reacionários que infelicitam o povo brasileiro e impedem o progresso nacional.”

Grabois afirmou que não alimentava ilusões de reverter a decisão da maioria. “Senhor presidente, inoperante, sem nenhum resultado, seria desenvolver nesta altura dos debates, argumentos jurídicos para atacar o projeto de cassação de mandatos. As maiores figuras da cultura jurídica nacional já se manifestaram, demonstrando a inconstitucionalidade do projeto – homens como o Ministro Eduardo Spinola, como João Mangabeira, como o Desembargador Vieira Ferreira, como o Professor Homero Pires, como o Desembargador Bianco Filho, como o professor Luiz Carpenter, como o doutor Sobral Pinto, como o professor Jorge Americano e inúmeros constitucionalistas de reconhecido valor. Não há, na consciência de qualquer homem honesto, a convicção de que este projeto seja constitucional e venha beneficiar a democracia. Aqui mesmo, neste parlamento, poucos são os representantes do povo, mesmo aqueles que opinam pela cassação de mandatos, que estejam convencidos da constitucionalidade do projeto.”

Os votos seriam por motivos políticos, disse, por interesses próprios e pessoais. “É uma verdadeira farsa querer fazer debate jurídico em torno dessa monstruosa proposição, porque tem a sua origem, não na vingança de um homem, como o senhor Barreto Pinto (obscuro deputado do PTB que iniciou a patranha que resultou na cassação do registro do Partido), mas nos círculos reacionários encastelados no Catete e diretamente inspirados nos trustes e monopólios norte-americanos. Essa a origem do projeto, deste golpe contra a democracia em nosso país. Há outros homens que estão defendendo seus interesses e procuram manter suas posições sob a máscara da constitucionalidade. Sabemos mesmo que não há nenhuma convicção nesse argumento.”

Grabois fez um alerta à nação contra o “grupo fascista que aí está no poder e aproveita-se da ofensiva imperialista, no mundo inteiro, para liquidar com as liberdades e instaurar a mais feroz ditadura em nosso país”.  Está à frente de tal grupo um fascista (o presidente Dutra), conhecido homem que foi condecorado por Hitler e recebeu a espada dos samurais das mãos dos militaristas do Japão, homem que só no último instante, sob a pressão das massas, foi capaz de concordar com o envio das forças expedicionárias para combater o nazismo no solo da Itália.” Dutra, afirmou, transformado por obra do acaso em presidente da República em virtude da instabilidade política em que vivia o país, era um homem de tendências fascistas, que não fazia outra coisa a não ser aplicar diretrizes políticas que favoreciam ao imperialismo.

A atitude dócil do Congresso Nacional diante do autoritarismo do presidente da República, disse Grabois, seria desastrosa para o próprio parlamento. “Neste discurso, desejo ainda lembrar que o parlamento está assumindo grandes responsabilidades. Em 1937, ele não foi capaz de defender sua dignidade, curvando-se às vontades dos senhores que dominavam no Catete. Foi ele que votou as leis de segurança, o estado de sítio e o de guerra, permitindo a prisão e processo de membros seus. Esse parlamento, portanto, sucumbiu, apodrecido, sem o protesto popular, porque quando a polícia cercou este mesmo Palácio do Congresso, nenhuma voz do povo se levantou para proteger um parlamento incapaz de defender suas próprias prerrogativas. Os fatos se repetem de maneira muito mais trágica e mais séria, porque esta Casa se mostra muito abaixo daquela de 37. Aquele cedeu ao futuro ditador, votando leis de arrocho e exceção; o atual corta na própria carne, expulsando de seu seio homens legitimamente eleitos pelo voto popular, sem contestação alguma.”

Uma vez consumado o crime, o parlamento não mereceria o respeito da opinião pública, disse. Seria um parlamento desfibrado, que o povo não levaria a sério. E, quando os inimigos da democracia procurassem implantar uma ditadura sem aparência legal, bastaria simplesmente um vigilante noturno para fechá-lo, pois nenhuma voz seria capaz de se interessar por um parlamento de capitulação e de traição nacional, analisou. “Atrás de todo esse projeto de cassação, entretanto, esconde-se toda uma política contrária aos interesses do povo. Quando encerramos a última sessão legislativa tive oportunidade de dizer que este parlamento não votou nenhum projeto de caráter social. Durante quase um ano de funcionamento, só se votaram as mensagens enviadas pelo Executivo, solicitando abertura de créditos para o governo, ou isenção de direitos para empresas imperialistas. É um parlamento que serve aos poderosos; não se viu aqui aprovado nenhum projeto que viesse beneficiar o povo brasileiro. Esta a realidade palpável.”

Ao votar a cassação dos mandatos, afirmou Grabois, o Congresso nacional assumia uma conduta reacionária. “Incomoda aos representantes da classe dominante ouvir a voz da classe operária e do povo brasileiro que tem assento neste parlamento. Dói aos reacionários, aos negocistas, aos exploradores, ouvir a voz rude, às vezes mal formulada, dos operários que têm assento nesta Casa, do deputado negro Claudino Silva, do ferroviário Agostinho de Oliveira, porque é a voz do povo que aqui está vigilante, desmascarando as manobras do senhor Dutra e do grupo fascista contra o país. Aqui também está a origem do projeto de cassação de mandatos: se votam por subserviência, também o fazem por interesses pessoais para afastar a voz do povo, do proletariado, do recinto desta Assembleia. Mas podem estar certos de que este parlamento, sem os representantes da classe operária, sem os representantes que vêm do povo, não merecerá mais o respeito e a devida consideração, não será mais o terceiro poder, mas um apêndice podre da ditadura do senhor Eurico Gaspar Dutra.”

Jogo de palavras

Grabois denunciou o jogo de cena que a maioria dos deputados fazia ao falar de democracia demagogicamente. “Senhor presidente, a democracia não é um jogo de palavras. A democracia são os fatos, a prática diária e concreta do respeito à nossa Constituição e da defesa dos interesses do povo, e não a subserviência, o calar ante as manobras e as violências dos poderosos. Estou certo de que os acordos e arranjos, que tiveram como objetivo principal facilitar a marcha deste indecoroso projeto, não darão resultado, porque as contradições aumentarão. As posições são poucas e os cargos não chegam para todos. As divergências prosseguirão, porque, para contemplar a UDN (União Democrática Nacional), se descontentará o PSD.”

Ele comentou também a discriminação social manifestada por alguns deputados. “O nobre deputado senhor Munhoz da Rocha (PR), em discurso aqui proferido afirmava que todos nós falamos uma só linguagem. É verdade. Falamos a linguagem do povo, do interesse nacional. Mas todos nós, da bancada comunista, saímos dos mais diferentes setores da sociedade. Lá não estão os negocistas, os industriais reacionários e advogados de empresas imperialistas. Lá estão homens como Gregório Bezerra com sua vida dedicada ao povo pernambucano; Abílio Fernandes, operário metalúrgico; Jorge Amado, uma das glórias da literatura nacional; Alcedo Coutinho, médico, que honra a ciência pátria; João Amazonas, Pedro Pomar, Diógenes Arruda e Carlos Marighella, provados lutadores da causa democrática; Henrique Oest e Gervásio de Azevedo, heróis da FEB (Força Expedicionária Brasileira); Claudino Silva, Francisco Gomes, Agostinho Oliveira e José Maria Crispim, a voz patriótica da classe operária.”

Grabois encerrou dizendo que a vitória seria do povo e não de Dutra, com seu parlamento de ficção, simples chancelaria do Catete, visando apenas aos atos do governo. “Não será o senhor Dutra nem esta maioria – repito – que acabarão com o movimento comunista no Brasil, porque nós somos a vanguarda das forças do progresso e da democracia. Somos a juventude do mundo, os homens que lutam pelo progresso do Brasil. Somos soldados do grande Prestes. Sabemos que a luta para muitos, será difícil, muitos serão sacrificados; mas outros ocuparão nossos lugares, erguerão a bandeira de defesa da democracia e do nosso povo e o triunfo será certo e decisivo. O governo do senhor Dutra cairá sob a pressão das massas e será execrado por todos os brasileiros e por toda a humanidade.”

Segundo Pomar, o anticomunismo do governo era a bandeira com a qual seus integrantes justificavam os maiores crimes contra a Constituição e a soberania da pátria, como fizeram Petáin e Weygand quando entregaram a França a Hitler. Com a mesma cegueira política com que participou do golpe de 10 de novembro de 1937, com que quis impedir a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e resistiu à democratização do país, Dutra queria arrastar a nação para as aventuras guerreiras do imperialismo americano, antes arruinando a indústria nacional, cedendo o petróleo e o ferro, aumentando a fome e o desemprego das massas, sufocando as liberdades democráticas e subordinando as Forças Armadas ao plano de “cooperação” militar do governo dos Estados Unidos, denunciou.

Ataques a Pomar

O anticomunismo raivoso havia sido abraçado também pelos jornais conservadores, principalmente O Globo e A Noite. O jornal do senhor Roberto Marinho esmerava-se nas mais torpes invencionices para atribuí-las aos comunistas e reforçar a tese que os “cinco sabichões” do PSD estavam preparando. A Noite chegou ao ponto de protestar com virulência quando Pomar assumiu a presidência dos trabalhos em uma sessão da Câmara dos Deputados na ausência dos demais membros da mesa. Segundo o jornal, “quando o fato ocorreu houve no ambiente uma sensação de mal-estar”. “O que admira, não tendo havido nenhum protesto imediato, é que ninguém tivesse lembrado ao menos de requerer a suspensão dos trabalhos para que não continuasse perante os olhos da assistência estupefata aquele espetáculo de uma Câmara democrática presidida pelo representante de um partido fora da lei”, vituperou.

O jornal A Noite disse ainda que “houve um grande erro político por parte das correntes democráticas da Câmara em permitir a participação dos bolchevistas na mesa daquela casa legislativa”. “O erro agravou-se, porém, quando em seguida à decisão do Superior Tribunal Eleitoral não se procedeu ao imediato expurgo dos agentes vermelhos, não só da mesa como das comissões internas da Câmara”, esbravejou. “Aquele que outro dia se exibiu na cadeira da presidência da Câmara não é apenas um líder comunista. É um agitador conhecido e o diretor responsável de um jornal que segue, entre nós, as diretrizes do Pravda de Moscou, jornal que prega diariamente a subversão do regime, o desrespeito aos poderes públicos, o ódio de classe e que naturalmente é solidário com o ponto de vista de seu chefe, o que pegaria em armas contra o Brasil, a favor da Rússia”, praguejou o jornal.

Mandado de segurança

O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados por cento e oitenta e um a setenta e quatro votos. Depois da votação, a bancada comunista subiu nas poltronas e, de pé, com o braço esquerdo levantado e a mão fechada, brandiu: Viva o Partido Comunista do Brasil! Viva Prestes! Viva o proletariado! Nós voltaremos! Uma comissão de deputados, indicada pela Mesa, se encaminhou ao Palácio do Catete para que o presidente da República sancionasse a lei aprovada. Em uma cerimônia simples, Dutra assinou a sentença contra a bancada comunista precisamente às vinte e duas horas do dia 8 de janeiro de 1948. Estavam presentes, entre outros, os ministros da Justiça, do Trabalho e da Agricultura; os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado; o chefe do Gabinete Militar Alcio Souto e o chefe da Casa Civil, José Pereira Lira.

Os comunistas estavam fora da Casa especialmente construída sob a invocação de Tiradentes para servir de sede à Câmara dos Deputados e do Palácio Monroe, a sede do Senado. Na Câmara dos Deputados, das catorze vagas abertas sete ficaram com o PSD, cinco com a UDN, uma com o PR e uma com o PTB. A vaga de Prestes no Senado ficou para a UDN. Quarenta e oito horas depois da sanção presidencial, os tribunais regionais da Justiça Eleitoral (TREs) oficiariam as assembleias legislativas e as câmaras municipais, enviando a relação dos eleitos pelo Partido Comunista do Brasil. Ao receber a lista, os presidentes daquelas casas deveriam declarar vagas as cadeiras dos citados.

Um mandado de segurança – assinado por Maurício Grabois, Abílio Fernandes, Agostinho Dias de Oliveira, Alcedo Coutinho, Carlos Marighella, Gervásio Gomes de Azevedo, Gregório Lourenço Bezerra e José Maria Crispim – foi impetrado pelo advogado Sinval Palmeira no Supremo Tribunal Federal apontando a inconstitucionalidade da lei, que nunca seria julgado.

Resistência armada

Tão logo a cassação dos mandatos se consumou, o regime de Dutra voltou a mostrar as garras. O temor maior era o de Prestes ser preso quando pisasse fora do edifício da Praça Paris, onde funcionava o Senado, sem o mandato. Amazonas organizou um comando armado que, com três veículos, foi esperá-lo em uma porta lateral. Pomar e Arruda, que preservaram os mandatos por terem sido eleitos pelo PSP de Adhemar de Barros, foram buscar o senador comunista no interior do prédio. Já era noite. Prestes, escoltado pelos dois deputados, entrou imediatamente em um dos veículos. Amazonas seguiu atrás, em outro. Um terceiro abriu caminho, deixando o que conduzia Prestes no meio da caravana. Em velocidade máxima permitida, levaram o secretário-geral para um esconderijo.

No dia seguinte à cassação dos mandatos — os deputados do PCB só deixariam formalmente suas cadeiras depois do acatamento pela mesa diretora da Câmara dos Deputados da comunicação do Superior Tribunal Eleitoral, em 10 de janeiro de 1946 —, José Maria Crispim, falando como “eventual líder” da bancada comunista, denunciou que na madrugada daquele dia agentes da polícia política invadiram as oficinas da Tribuna Popular, jornal do PCB, para cumprir uma determinação do ministro da Justiça, alegando que um jornal ilegal — a Imprensa Popular — estava sendo impresso.

“Sabe vossa excelência, senhor presidente, e a Casa, que a Tribuna Popular está suspensa por determinação arbitrária do senhor ministro da Justiça, determinação ilegal e, por isso mesmo, violenta, que mostra bem o governo que o Brasil suporta nesta hora grave da vida nacional. Sem poder funcionar a Tribuna Popular, em suas oficinas vem sendo impresso um novo órgão – a Imprensa Popular –, que há vários dias circula na capital da República e nos estados”, afirmou.

Segundo ele, naquela madrugada “a polícia de bandidos”, armada até os dentes de metralhadoras e bombas de gás, com armas de guerra, realizou uma verdadeira batalha, assaltando as oficinas do jornal, “onde se encontravam máquinas para a sua impressão e meia dúzia de trabalhadores”.  O deputado comunista Henrique Cordeiro Oest comentou que entre os trabalhadores das oficinas estava o ex-tenente da FEB Salomão Malina, que fora ferido em combate na Europa, e era o vice-presidente e presidente em exercício do Conselho da Associação dos Ex-Combatentes do Brasil. “É o protesto que faço diante da prisão deste camarada a quem a democracia e o Brasil muito devem”, registrou.

Crispim voltou a falar no dia seguinte, em 9 de janeiro de 1948, para dar mais detalhes da ocorrência. Ao pedir a palavra para fazer “uma comunicação relevante”, foi informado pelo presidente que a Câmara dos Deputados estava “na ordem do dia” e que ele, de acordo com o Regimento, só poderia usar a questão de ordem — um expediente limitado a cinco minutos. Crispim respondeu que o Regimento da Casa assegurava aos líderes de bancada “a faculdade de fazerem comunicações relevantes ao plenário em qualquer fase” dos trabalhos. Mesmo com a interferência de outros deputados, em meio a uma áspera troca de palavras, o presidente manteve a posição inicial.

O deputado comunista informou que houve uma chacina nas oficinas da Tribuna Popular. “São gráficos que nessa hora se encontram entre a vida e a morte, pois foram intoxicados, ao máximo, pelo uso de bombas de gás lançadas pela polícia”, denunciou. Estavam todos nos porões da Polícia Central. Gregório Bezerra aparteou: “Quando vossa excelência falar nos porões da Polícia Central, use a expressão ‘casa de torturas’, pois é o que de fato representa neste governo do ditador Dutra.” Salomão Malina estava, segundo Crispim, além de intoxicado incomunicável. Todos corriam o risco de morrer; quatro deles feridos à bala, internados em estado grave. Ele informou também sobre várias prisões ocorridas pela cidade e relatou casos de detenções e espancamentos das pessoas que assistiram à sessão que cassou os mandatos.

Depois de quatro horas presos, os funcionários da Tribuna Popular foram surpreendidos por um flagrante de apreensão de quatro armas consideradas de guerra. O fato repercutiu na Câmara dos Deputados, onde uma moção repudiando a repressão policial foi assinada por Afonso Arinos, Hermes Lima, Jaci Figueiredo, Monteiro de Castro, Café Filho, Gurgel do Amaral, Nelson Carneiro e outros parlamentares. Pomar, então diretor do jornal, comandou a resistência. Ele telefonou para o presidente da Câmara dos Deputados, Samuel Duarte, comunicando o ocorrido, dizendo que sua vida estava em risco. O presidente se dirigiu ao local dos fatos e comunicou-se com o chefe de polícia, Lima Câmara, pedindo a ele que garantisse a imunidade parlamentar a Pomar.

Prisão de Gregório Bezerra 

A polícia política também andou espalhando que Gregório Bezerra seria preso tão logo pusesse os pés fora da Câmara dos Deputados. As ameaças não foram cumpridas porque ele saiu escoltado por Pomar, Arruda e mais alguns deputados. Mas as aperreações – como ele dizia – logo começariam. Passou a ser seguido pela polícia ostensivamente e não fora preso porque Pomar era uma espécie de guardião dos seus passos. No dia 17 de janeiro de 1948, tomaram café na residência de Luiz Carlos Prestes, onde morava o ex-deputado pernambucano, e foram para o escritório da “fração parlamentar”. Gregório Bezerra ficou no local e Pomar foi para a Câmara dos Deputados.

Ao meio dia, Pomar passou no escritório e ambos saíram para o almoço. O combinado era de que o carro oficial da Câmara dos Deputados estaria esperando-os em frente ao antigo prédio do Senado, na Cinelândia. Por algum motivo, houve um atraso e a polícia política não perdeu a oportunidade. Quando se deram conta, estavam cercados por um bando de policiais, em pela Avenida Rio Branco, uma das principais artérias do centro da cidade do Rio de Janeiro. Pomar protestou, Gregório Bezerra reagiu, mas os “tiras”, em maior número, acabaram vencendo.

Nesse momento, chegou o carro da Câmara dos Deputados e Gregório Bezerra se atirou para o seu interior. Um policial ainda tentou agarrá-lo pela janela, mas teve os dedos prensados na portinhola do veículo. Diante da brutalidade crescente, Pomar comprometeu-se a levar Gregório Bezerra à Polícia Central. Ao chegar, o ex-parlamentar comunista foi brutalmente arrancado do carro e preso em um minúsculo cofre de aço. Depois de protestar a plenos pulmões, foi levado para uma cela. Ficou incomunicável por três meses. Transferido para o Recife, foi julgado pelo Conselho da Justiça Militar e cumpriu dois anos de detenção.

A prisão fora ordenada por ninguém menos que o ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa, que agia como cão de guarda de Dutra. Gregório Bezerra era acusado de haver incendiado o quartel do 15º Regimento de Infantaria em João Pessoa, no estado da Paraíba, a dois mil quilômetros da cidade em que se encontrava e dela não saíra. Segundo ele, a polícia política do general Lima Câmara, desonestamente, negou as informações que provavam sua inocência. Desde que saíra da Câmara dos Deputados, estivera na residência de Prestes, “a casa mais vigiada do Brasil”, ambos protegidos pelas imunidades parlamentares de Pomar e Arruda. Com o incêndio e o processo farsesco que seria montado, a intenção era incompatibilizar o Exército com o Partido Comunista do Brasil, disse Gregório Bezerra. Os autores do incêndio, portanto, deveriam ser procurados entre os “fascistas do governo”, denunciou.

O caso do “reichstag mirim” — uma alusão ao famoso incêndio do parlamento alemão provocado pelos nazistas, em 1933, e atribuído aos comunistas — fez Pomar ocupar a tribuna da Câmara dos Deputados sistematicamente para exigir notícias do “bravo filho de Pernambuco”. “Afinal de contas, o que ocorre com Gregório Bezerra? Por que lhe cassam o direito de defesa?”, indagou. Segundo Pomar, o grupo “militar-fascista” criou uma novela para espalhar calúnias contra os comunistas. “Há três dias, enviamos um advogado à Paraíba. Até agora, o causídico (o doutor Sinval Palmeira) não teve oportunidade de verificar se o senhor Gregório Bezerra lá se achava porque o inquérito se processa sob sigilo”, denunciou.

Ao fazer o histórico dos acontecimentos, Pomar disse que todos os partidos, com exceção de poucos democratas, se atiraram de maneira indigna sobre aquilo que não lhe pertencia — as cadeiras tomadas da bancada comunista. Desde o PTB, dito de oposição e mais interessado do que qualquer outro nas vagas pecebistas, até a UDN, o partido da “eterna vigilância” que mal procurava salvar as aparências para fingir amor à Constituição. Os udenistas, segundo Pomar, marcharam vergonhosamente de sacola na mão atrás dos “senhores da ditadura”, agiram como juristas do “acordo interpartidário” que repartiu as cadeiras que pertenciam aos comunistas.

A Guerrilha do Araguaia e o filme “O pastor e o guerrilheiro”, sobre Glênio Sá

Por Osvaldo Bertolino

Assisti na manhã deste dia 27 de março de 2023 ao filme O pastor e o guerrilheiro, no espaço “Reserva Cultural”, em São Paulo, numa exibição especial para jornalistas convidados. Saí com a convicção de que ninguém interessado na história do Brasil pode perdê-lo. Com estreia prevista para 13 de abril nos cinemas brasileiros, o longa dirigido por José Eduardo Belmonte é uma dessas raridades quando se fala da Guerrilha do Araguaia, sem as descontextualizações habituais e mesmo distorções grosseiras.

Leia também: Araguaia – Uma guerrilha com muita história

Bem produzido, com bons atores e um roteiro envolvente, o filme traz à reflexão, além do fato em si, evocações filosóficas e históricas sobre a Guerrilha. Em diálogos permeados por contradições – e às vezes antagonismos –, os personagens mostram que ali estavam ideais elevados e razões humanísticas fundamentais, condicionados a potencialidades pelas circunstâncias em que os fatos aconteceram. Não há lugares-comuns, muito presentes em narrações históricas que exigem juízo multifacético.

A sobriedade do filme leva a sínteses na junção de personagens que buscam o sentido da vida enfrentando a barbárie, naquele momento representada pela ditadura militar. O “partido” – na verdade, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) –, mencionado em apenas duas falas, aparece como a bússola dos guerrilheiros, assim como a Bíblia para o pastor. Fica a indicação tácita para que se busque o conhecimento de ambos – inclusive com alerta sobre os que usam a fé para maléficas demandas terrenas.

O pastor Zaqueu traduz a Bíblia como caminho para a transcendência humana sem atalhos desviantes. O humano é agora, guiado pelo que Jesus Cristo falou e fez, conforme está na Bíblia. É assim que ele dialoga com o guerrilheiro João, quando se encontram no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Exército, em Brasília. Zaqueu quer chegar em algum lugar sem injustiça. João responde que luta para chegar onde Zaqueu quer chegar, contra-argumentando com o Manifesto do Partido Comunista.

Ambos caíram nas garras dos algozes desses ideais. A ditadura via nas ideias de Zaqueu uma espécie de “comunismo bíblico”. O filme não entra nesse pormenor – o pastor foi preso por ser amigo de “comunistas” que frequentavam com ele um curso bíblico. Mas, com essa abordagem, revolve a doutrina da ditadura que interpretava pregações religiosas no âmbito da justiça social como “comunismo” com disfarce eclesiástico. Sobretudo no meio católico. A Bíblia não podia ser ensinada com o rigor dos mandamentos cristãos.

O encontro entre os dois é a principal intersecção do filme, inspirado num livreto de Glênio Sá, intitulado Araguaia – relato de um guerrilheiro, da editora Anita Garibaldi, um registro de quarenta e oito páginas sobre seu drama ao se perder na mata, a captura pelos agentes da ditadura, as brutais torturas no PIC em Brasília e no DOI-Codi do Rio de Janeiro, e seu retorno ao estado natal, Rio Grande do Norte. No filme, João deixa sua história registrada em livro com dedicatória para Zaqueu, afirmando que a memória é resistência, um rio sempre leva a outro e a vida é uma grande correnteza.

No livro Rio Vermelho – que conta a história do PCdoB no Rio Grande do Norte desde o Levante de 1935 –, refaço a trajetória de Glênio Sá, desde seus primeiros dias como liderança estudantil até sua morte trágica num acidente de carro em 1990. O episódio que no filme aparece como o encontro com o pastor, narrei assim:

“Em Brasília, Glênio conseguiu quebrar sua incomunicabilidade com ajuda de um vizinho de cela condenado por contrabando. Com um palito de fósforo queimado, anotou num papel de jornal apanhado do lixo as palavras ‘Farmácia Minâncora, Caraúbas-RN’, de propriedade de seu pai, Epitácio Martins de Sá. Assim a família tomou conhecimento do local onde estava. Com a informação, seu irmão Gilberto, professor universitário em Fortaleza, foi a Brasília e, no PIC, recebeu a informação de que nunca alguém chamado Glênio estivera por lá. Recorreu, então, à ajuda do senador Dinarte Mariz, a quem seu pai sempre apoiara politicamente em Caraúbas, amigo do comandante do I Exército, e assim conseguiu descobrir a verdade.”

Não há reparos a fazer no filme. Os recortes são precisos para demonstrar o essencial, criando uma ficção que não destoa dos fatos. Pode-se, eventualmente, apontar algumas lacunas, como uma melhor indicação do que representou a ditadura militar e do organizador da Guerrilha – o PCdoB –, mas são detalhes secundários para um filme que resgata e projeta, de maneira sóbria, um acontecimento tão importante para a luta contra a barbárie.

– Biografia conta a vida e a luta de Péricles de Souza pela democracia e o socialismo

O livro, de autoria do jornalista e historiador Osvaldo Bertolino, intitulado Péricles de Souza – uma vida uma luta, fala, em quatrocentos e quarenta páginas, da geração que entrou na juventude na década de 1960, enfrentando uma das fases mais complexas da história do Brasil e do mundo. Narra a vida de Péricles de Souza no contexto daqueles jovens nascidos na conjuntura da Segunda Guerra Mundial e que viviam no auge da “era de ouro”, os anos de crescimento ininterrupto das principais economias, que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “trina anos gloriosos”, o período de 1945 a 1975. Geração também influenciada pela cultura erudita, a música, o cinema, a literatura e as revoluções socialistas na China (1949) e em Cuba (1959).

Filho de uma família de Vitória da Conquista que se mudara para Salvador quando o Brasil vivia os impactos das transformações promovidas pelo governo de Getúlio Vargas, eleito em 1950, em segunda passagem pela Presidência da República depois de liderar a Revolução de 1930. Péricles presenciou, aos dez anos de idade, a professora e o pai tomados pela emoção com o suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954. A cena representou o início do seu despertar político. Logo ingressaria no movimento estudantil e, quando a Ação Popular (AP) surgiu, no começo da década de 1960, ele estava entre seus fundadores.

Os militantes da juventude católica se destacavam na Bahia, um dos principais pontos da resistência às ameaças golpistas ao presidente João Goulart. No golpe de 1964, Péricles estava entre os estudantes que foram para Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, organizar a resistência, que seria comandada pelo prefeito Francisco Pinto, um foco que se somaria à resposta dos governadores de esquerda em Pernambuco e Rio Grande do Sul, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Frustrados, pela ocupação da cidade pelos militares golpistas voltaram para Salvador.

Após um episódio de enfrentamento dos estudantes com o ministro das Relações Exteriores da ditadura, Juraci Magalhães, ex-interventor e ex-governador do estado, Péricles foi para clandestinidade e se instalou no Bico do Papagaio, região Sul do estado do Maranhão, para organizar o que seria um ponto da guerra popular contra a ditadura. A AP transitava para a incorporação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), num momento em que estava em preparação, no Sul do Pará, a Guerrilha do Araguaia.

Com a incorporação, em 1973, Péricles foi para Comitê Central e se mudou para Sergipe, de onde comandaria a reorganização do PCdoB no Nordeste. Por um acaso se livrou de estar na reunião de dezembro de 1976, quando a ditadura metralhou a casa em que a direção comunista se reunia em São Paulo, no bairro da Lapa, matando alguns dirigentes e prendendo outros.

Péricles retornou a Salvador após a anistia de 1979 e assumiu a direção do PCdoB no estado. Ao mesmo tempo, como membro do Comitê Central, participou dos principais eventos que levaram o país a transitar para a redemocratização, elaborar a Constituição de 1989, enfrentar o neoliberalismo dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso e eleger e reeleger os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Osvaldo Bertolino é autor de treze livros, entre eles oito biografias de lideranças comunistas que combateram a ditadura militar. É jornalista e historiador, com experiência em assessoria sindical e parlamentar. É pesquisador de temas relacionados à política, à economia e à história, com destaque para o período da formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil.    

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O boi voador do general Villas-Boas, do reitor José Vicente e do “cientista” Sergio Fausto

Por Osvaldo Bertolino – O outro lado da notícia – 24/11/2018

Hugo Studart anda se vangloriando no seu Facebook de que seu livro sobre a Guerrilha do Araguaia, Borboletas e lobisomens, continua fazendo sucesso. A prova seriam palestras dele e elogios à obra. Numa de suas palestras ele falou no Instituto Federal de São Paulo, campus Pirituba, e foi elogiado por um professor da instituição, Robson Barbosa. “Hoje tivemos a honra e o prazer de receber o professor Hugo Studart que nos brindou com excelente palestra (sobre) a guerrilha do Araguaia, trabalho de sua tese de doutoramento que resultou em seu livro Borboletas e Lobisomens, talvez a mais completa e fidedigna obra sobre o tema”, exagerou Barbosa em seu Face.

Studart falou também na “FlinkSampa Afroetnica — Festival de Literatura e Cultura Negra”, fato ilustrado no seu Face por uma foto com o “reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente (fazendo publicidade de livros), o historiador Luís Mir, a escritora Guiomar de Grammond, e o professor Thiago”. O convite, segundo Studart, foi do reitor e da curadora Francisca Rodrigues.

Jornalismo de esgoto

Em outro post, Studart agradece ao jornalista José Neumanne Pinto, conhecido demiurgo do jornalismo de esgoto do jornal O Estado de S. Paulo, que em um comentário no Youtube elogiou Borboletas e lobisomens, depois de afagos ao também jornalista de esgoto, José Roberto Guzzo, da revista Veja, “por conta de uma análise crítica sobre o Itamaraty do PT”. Neumanne Pinto disse que a obra de Studart é “um livro antológico, um livro importante que você tem que prestigiar”. “É a história verdadeira da guerrilha do Araguaia. Ele não poupa o PCdoB”, completou.

O demiurgo fez esse gancho para falar de um comentário do general Eduardo Villas-Boas, o comandante do Exército, que citou o livro, motivo de mais um comentário de Studart. “Descobri que o general Villas-Boas, comandante do Exército, leu meu livro Borboletas e Lobisomens. Durante a entrevista coletiva em Porto Alegre, 4ª feira, cita a obra como exemplo de ‘isenção’ e de busca da verdade histórica. Entre jornalistas e convidados, tinha umas 150 pessoas presentes. Aos 26 minutos da entrevista, perguntam-lhe sobre a Comissão da Verdade. Ele respondeu: ‘A gente deve preservar a verdade’”, escreveu ele.

Sobre o livro, o general disse: “Agora mesmo saiu um livro, Borboletas e lobisomens, escrito pelo Hugo Studart, sobre a Guerrilha do Araguaia. Ele é extremamente crítico em relação ao Exército. Mas também crítico, e relata as coisas que foram feitas pelo Partido, o PCdoB (…), coisas que eles fizeram lá, naquela região, naquela época, barbaridades, atrocidades que eles cometeram, e que, por exemplo, a Comissão da Verdade não relatou. Trouxe à tona. Tanto que a esquerda ficou atônita com esse livro. Então, a gente tem que produzir a verdade.” Segundo o general, tudo o que o Exército tinha sobre o assunto já foi liberado, o que leva à conclusão de que ele não leu o livro ou não conhece a verdade sobre essa história.

Mãos particulares

Outra citação do livro veio de Sergio Fausto, cientista político e superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso (FHC), em artigo publicado na revista Piauí, intitulado Os militares de volta ao time principal — O papel das Forças Armadas no governo Bolsonaro. Segundo ele, “nada incomoda mais os militares do que a prevalência, ao ver da corporação, de uma interpretação unilateral da história do regime autoritário em geral e das atividades repressivas do Estado naquele período, em particular”. “Os militares têm um ponto ao criticar a glorificação da luta armada. Está mais do que na hora de se reconhecer amplamente que a ideologia que animava os grupos clandestinos pouco ou nada tinha de democrática”, escreve.

Sergio Fausto faz uma digressão sobre o assunto, invocando o tempo como fator determinante para que a verdade apareça, e então cita Borboletas e lobisomens como um bom exemplo, segundo ele “um relato factual cuidadoso, baseado em extensa pesquisa, que não encobre as atrocidades feitas por militares na repressão e extermínio da guerrilha rural naquela região do país, nem sacraliza os guerrilheiros”. “Mostra-os como seres humanos, movidos por paixões generosas e uma ideologia totalitária, capazes de levá-los a cometer atos heroicos de sacrifício pessoal, mas também, em certos casos, a comportar-se com absoluta indiferença ante o sofrimento alheio”, divaga.

O cientista encerra citando que, “nos agradecimentos, Studart menciona ex-guerrilheiros e militares que se dispuseram a compartilhar com ele memórias e documentos”, uma evidência de que o general Villas-Boas desconhece — ou faz vistas grossas — a existência de documentos que deveriam ser públicos e que estão indevidamente em mãos particulares. “Está na hora de curar essa ferida de vez e não há outro modo de fazê-lo se não falar abertamente sobre ela. O melhor do Brasil está em ser muitos e ao mesmo tempo um só. Cuidemos de manter vivo o que temos de melhor, com a razão democrática e o afeto que se encerra em nosso peito já não tão juvenil”, conclui.

Essas versões prevalecem porque esse período de obscurantismo em que vivemos favorece a distorção dos fatos e a revisão oportunista da história. Faltam, nessas análises, o rigor da pesquisa, a fidelidade à verdade e o sentido do espírito democrático proclamado com o fim do regime militar. Nessa atmosfera turva, com o horizonte da democracia e da verdade histórica obnubilado pelo oportunismo de obras como essa de Studart — não por acaso vinda à luz nessa conjuntura —, prevalece a mistificação, a falsificação e a mentira pura e simples, como é o caso desse livro infame.

São Tomaz de Aquino

Como lembrou o cronista Humberto de Campos, contam os fatos da ordem de São Domingos que achando-se São Tomaz de Aquino na sua cela, no convento São Jacques, curvado sobre obscuros palimpsestos medievais, ali entrou, de repente, um frade folgazão, o qual foi exclamando com escândalo:

— Vinde ver, irmão Tomaz! Vinde ver um boi voando!

Tranquilamente, o grande doutor da Igreja ergueu-se do seu banco, deixou a cela, e, vindo para o átrio do mosteiro, pôs-se a olhar o céu, a mão sobre os olhos fatigados do estudo. Ao vê-lo assim, o frade jovial desatou a rir com estrépito.

— Ora, irmão Tomaz, então sois tão crédulo a ponto de acreditar que um boi pudesse voar?

E com a mesma singeleza, flor da sabedoria, irmão Tomaz respondeu:

— Eu preferi admitir que um boi voasse a acreditar que um religioso pudesse mentir.

Não conheço o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, assim como o general Eduardo Villas-Boas e o cientista Sergio Fausto. Mas conheço bem a obra de Hugo Studart e os motivos dos elogios a ela por seu séquito. Imagino — apenas imagino — que, com a responsabilidade das inteligências e da cultura de José Vicente, Eduardo Villas-Boas e Sergio Fausto, há, nos céus do Brasil, um boi de asas abertas, pastando entre as nuvens. E eu sairei para ver. Mas sairei, como se viu na história de São Tomaz de Aquino, em homenagem a eles, não em atenção ao boi.

– Com vocês, Tina e Themba — ou, o PT “moderno” e o PT antigo

Gleisi diz que crise no PSL é para encobrir problemas do Brasil

Osvaldo Bertolino, Portal Vermelho – 30/11/2005

Tina e Themba não é dupla sertaneja. É uma tirada que li em algum lugar. São os dois partidos que teriam sobrado à medida que a “globalização” foi estreitando a margem de manobra dos governos nacionais. Tina (There Is No Alternative — não há alternativa) seria o partido da situação — o dos resignados, dos que se imaginam “realistas” e dos que já se sentem à vontade neste admirável mundo novo “global”. Themba (There Must Be an Alternative — deve haver uma alternativa) seria a oposição: o partido dos que insistem em que há outro caminho, embora por enquanto não saibam nem por onde devam começar a procurá-lo. O confronto entre tinistas e thembistas se manifesta com intensidade no Partido dos Trabalhadores (PT).

Os thembistas abriram largos sorrisos com a vitória de Lula em 2002. Mas logo entraram em atrito com os tinistas. Desse confronto, o que chama a atenção é a debilidade, não o vigor desse partido. Como ainda estamos a pouco mais de 10 meses da eleição presidencial, é claro que esse quadro pode se alterar. Mas parece inegável que o PT chega manifestamente dividido ao final deste terceiro ano do governo Lula. Esse quadro de debilidade petista sugere importantes indagações. Será o PT uma combinação aleatória de tendências políticas sem correspondência com a estrutura de classes do país? Este partido estará fora de combate em 2006? Bastam cinco minutos de reflexão para ver que essas não são hipóteses convincentes.

Choque de interesses internos

O PT vive um dilema, é certo. Uma prova disso é a atuação petista nas renhidas polêmicas a respeito da política econômica e da política exterior do governo Lula. Este partido ainda tenta definir claramente uma posição a favor das forças interessadas no desenvolvimento do país. Há uma nítida divisão nesse sentido. E essa luta existe também dentro do aparelho do Estado — o governo Lula realiza uma política contraditória, que reflete o conflito entre as necessidades de desenvolvimento e as concessões ao capital especulativo. Dadas as condições políticas existentes, essa contradição é até compreensível. Mas o PT, para manter o papel de principal força política do campo progressista, será forçado a definir melhor o rumo.

O Brasil já está em pleno choque de interesses internos. Recrudesce a luta das correntes nacionalistas por soluções patrióticas para os problemas econômicos e financeiros do país e, de outro lado, a oposição dá sinais evidentes de que fez do golpismo a sua principal bandeira política. Ou seja: entramos numa fase de acentuação dos obstáculos ao desenvolvimento do país, fato que forçará as correntes políticas a se definirem por um ou por outro campo. Embora cresça e se firme a luta progressista, ela ainda não se traduziu, efetivamente, num grande movimento capaz de unificar no plano político as diversas correntes que a exprimem.

Sacrifícios aos trabalhadores

Em face da diversidade das correntes e tendências progressistas e nacionalistas, que se identificam por certos objetivos comuns, mas se distinguem por posições ideológicas e políticas diferentes, quaisquer tentativas de adotar formas rígidas de organização e direção poderiam estreitar o alcance do movimento. Amadurece, no entanto, a coordenação das diversas correntes progressistas em função de objetivos comuns, respeitadas as características e a autonomia de cada uma — como ficou demonstrado na recente reunião entre PT, PSB e PCdoB. A realidade parece indicar que o primeiro passo seria definir um conteúdo programático capaz de construir um fator de unidade e aglutinação de diferentes tendências.

O próprio aprofundamento da contradição entre a nação que se desenvolve e a dependência ao imperialismo suscita a necessidade de soluções capazes de unificar a ação política das correntes patrióticas. A indefinição de uma política progressista — ou a sua formulação apenas em termos de slogans gerais — pode conduzir a equívocos como o de identificar a luta pelo desenvolvimento do país com a atual política macroeconômica. Em certa medida, tal equívoco verifica-se agora em um setor do PT, identificado com a gestão de Antônio Palocci no Ministério da Fazenda, que defende subordinar o desenvolvimento do país à dependência ao capital especulativo e solucionar as dificuldades econômicas e financeiras pela imposição pura e simples de maiores sacrifícios aos trabalhadores e ao povo.

Uma premissa perigosa

Para este setor, parece estar havendo uma tentativa retardatária de aggiornamento (modernização), que levou partidos de esquerda, sobretudo europeus, a apresentar resultados catastróficos. Seria uma adaptação ao conservadorismo macroeconômico, que se autodefine como a única via capaz de modernizar o país. É uma premissa perigosa. No Brasil, há um movimento de intolerância da direita para com a “esquerda atrasada”. É uma marcha forçada do pensamento único neoliberal, para quem só existe liberdade e democracia dentro de seus modelos de sociedade — o que lembra as passeatas de 1964, as Marchas com Deus pela Família e Liberdade que saudavam o enterro do comunismo e purgavam temores na doação de alianças de ouro para salvar as finanças da nação.

(No dia 28 de outubro passado, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, o yuppie Gustavo Ioschpe escreveu que “essa crise política pode ser um presente para a democracia brasileira: dá a chance de levar de rodo todo um núcleo antidemocrático que danificava o país na oposição e o faz de forma exponencialmente mais grave no poder”.)

É o canto da sereia. Na verdade, a direita rancorosa — cuja expressão política é a dupla PSDB/PFL e cujas teses são amplificadas pela “grande imprensa” — sabe que a união das forças progressistas ameaça o staus quo. O que é aceitável seria uma “esquerda democrática”, que expresse um movimento no sentido de se adequar a um mundo que não é mais aquele do Estado desempenhando papel importante na economia e garantindo os direitos da Constituição de 1988 — considerados pelos neoliberais antiguidades do mundo da brilhantina Gumex e da manteiga Aviação. Por isso, a esquerda tem urgência em diagnosticar corretamente os seus próprios problemas e fazer, com eficiência e justeza, o que deve ser feito. Só assim se avança de verdade.

Projeto de união nacional

A renovação que o governo Lula trouxe produziu o milagre da incorporação de uma esquerda combativa à direção do Estado, coisa jamais vista por estas bandas da Terra. Essa construção política assumiu a iniciativa dos debates e ganhou o direito de ser tratada como um protagonista entre iguais. Daí a intolerância da direita. Os problemas apareceram quando um lado do governo optou por fazer política em nome da “estabilidade monetária” e da “responsabilidade fiscal” — corretamente corrigida pelo vice-presidente da República, José Alencar, para “irresponsabilidade fiscal”. O debate não deve ser enfrentado por aí. Com o governo na condição de vidraça, muitos supõem que a oposição vai deitar e rolar na condição de estilingue. A situação social deverá ser a grande arena no combate eleitoral.

O problema, para a direita, não é apenas que o presidente Lula continua desfrutando de bons índices de popularidade e pode ter o apoio de uma coalizão partidária mais ampla em 2006. É que, para apresentar-se como alternativa programática consistente, ela precisa redefinir todo o campo do debate. Como fará isso? É preocupante constatar que reapareceram fantasmas como o da exacerbação irresponsável de conflitos sociais, o de chantagens parlamentares e até o da instabilidade política. Descartada a possibilidade de o Brasil desandar por causa dos primeiros desvarios da direita — as CPIs revelaram-se um autêntico 171, um estelionato político (a dos Correios obteve o sugestivo número 171 de assinaturas para a sua prorrogação) —, o governo Lula deve se preparar para golpes cada vez mais baixos. O confronto entre “tinistas” e “thembistas” no PT deveria convergir rapidamente para a formação de um projeto de união nacional contra o neoliberalismo.