– Com vocês, Tina e Themba — ou, o PT “moderno” e o PT antigo

Gleisi diz que crise no PSL é para encobrir problemas do Brasil

Osvaldo Bertolino, Portal Vermelho – 30/11/2005

Tina e Themba não é dupla sertaneja. É uma tirada que li em algum lugar. São os dois partidos que teriam sobrado à medida que a “globalização” foi estreitando a margem de manobra dos governos nacionais. Tina (There Is No Alternative — não há alternativa) seria o partido da situação — o dos resignados, dos que se imaginam “realistas” e dos que já se sentem à vontade neste admirável mundo novo “global”. Themba (There Must Be an Alternative — deve haver uma alternativa) seria a oposição: o partido dos que insistem em que há outro caminho, embora por enquanto não saibam nem por onde devam começar a procurá-lo. O confronto entre tinistas e thembistas se manifesta com intensidade no Partido dos Trabalhadores (PT).

Os thembistas abriram largos sorrisos com a vitória de Lula em 2002. Mas logo entraram em atrito com os tinistas. Desse confronto, o que chama a atenção é a debilidade, não o vigor desse partido. Como ainda estamos a pouco mais de 10 meses da eleição presidencial, é claro que esse quadro pode se alterar. Mas parece inegável que o PT chega manifestamente dividido ao final deste terceiro ano do governo Lula. Esse quadro de debilidade petista sugere importantes indagações. Será o PT uma combinação aleatória de tendências políticas sem correspondência com a estrutura de classes do país? Este partido estará fora de combate em 2006? Bastam cinco minutos de reflexão para ver que essas não são hipóteses convincentes.

Choque de interesses internos

O PT vive um dilema, é certo. Uma prova disso é a atuação petista nas renhidas polêmicas a respeito da política econômica e da política exterior do governo Lula. Este partido ainda tenta definir claramente uma posição a favor das forças interessadas no desenvolvimento do país. Há uma nítida divisão nesse sentido. E essa luta existe também dentro do aparelho do Estado — o governo Lula realiza uma política contraditória, que reflete o conflito entre as necessidades de desenvolvimento e as concessões ao capital especulativo. Dadas as condições políticas existentes, essa contradição é até compreensível. Mas o PT, para manter o papel de principal força política do campo progressista, será forçado a definir melhor o rumo.

O Brasil já está em pleno choque de interesses internos. Recrudesce a luta das correntes nacionalistas por soluções patrióticas para os problemas econômicos e financeiros do país e, de outro lado, a oposição dá sinais evidentes de que fez do golpismo a sua principal bandeira política. Ou seja: entramos numa fase de acentuação dos obstáculos ao desenvolvimento do país, fato que forçará as correntes políticas a se definirem por um ou por outro campo. Embora cresça e se firme a luta progressista, ela ainda não se traduziu, efetivamente, num grande movimento capaz de unificar no plano político as diversas correntes que a exprimem.

Sacrifícios aos trabalhadores

Em face da diversidade das correntes e tendências progressistas e nacionalistas, que se identificam por certos objetivos comuns, mas se distinguem por posições ideológicas e políticas diferentes, quaisquer tentativas de adotar formas rígidas de organização e direção poderiam estreitar o alcance do movimento. Amadurece, no entanto, a coordenação das diversas correntes progressistas em função de objetivos comuns, respeitadas as características e a autonomia de cada uma — como ficou demonstrado na recente reunião entre PT, PSB e PCdoB. A realidade parece indicar que o primeiro passo seria definir um conteúdo programático capaz de construir um fator de unidade e aglutinação de diferentes tendências.

O próprio aprofundamento da contradição entre a nação que se desenvolve e a dependência ao imperialismo suscita a necessidade de soluções capazes de unificar a ação política das correntes patrióticas. A indefinição de uma política progressista — ou a sua formulação apenas em termos de slogans gerais — pode conduzir a equívocos como o de identificar a luta pelo desenvolvimento do país com a atual política macroeconômica. Em certa medida, tal equívoco verifica-se agora em um setor do PT, identificado com a gestão de Antônio Palocci no Ministério da Fazenda, que defende subordinar o desenvolvimento do país à dependência ao capital especulativo e solucionar as dificuldades econômicas e financeiras pela imposição pura e simples de maiores sacrifícios aos trabalhadores e ao povo.

Uma premissa perigosa

Para este setor, parece estar havendo uma tentativa retardatária de aggiornamento (modernização), que levou partidos de esquerda, sobretudo europeus, a apresentar resultados catastróficos. Seria uma adaptação ao conservadorismo macroeconômico, que se autodefine como a única via capaz de modernizar o país. É uma premissa perigosa. No Brasil, há um movimento de intolerância da direita para com a “esquerda atrasada”. É uma marcha forçada do pensamento único neoliberal, para quem só existe liberdade e democracia dentro de seus modelos de sociedade — o que lembra as passeatas de 1964, as Marchas com Deus pela Família e Liberdade que saudavam o enterro do comunismo e purgavam temores na doação de alianças de ouro para salvar as finanças da nação.

(No dia 28 de outubro passado, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, o yuppie Gustavo Ioschpe escreveu que “essa crise política pode ser um presente para a democracia brasileira: dá a chance de levar de rodo todo um núcleo antidemocrático que danificava o país na oposição e o faz de forma exponencialmente mais grave no poder”.)

É o canto da sereia. Na verdade, a direita rancorosa — cuja expressão política é a dupla PSDB/PFL e cujas teses são amplificadas pela “grande imprensa” — sabe que a união das forças progressistas ameaça o staus quo. O que é aceitável seria uma “esquerda democrática”, que expresse um movimento no sentido de se adequar a um mundo que não é mais aquele do Estado desempenhando papel importante na economia e garantindo os direitos da Constituição de 1988 — considerados pelos neoliberais antiguidades do mundo da brilhantina Gumex e da manteiga Aviação. Por isso, a esquerda tem urgência em diagnosticar corretamente os seus próprios problemas e fazer, com eficiência e justeza, o que deve ser feito. Só assim se avança de verdade.

Projeto de união nacional

A renovação que o governo Lula trouxe produziu o milagre da incorporação de uma esquerda combativa à direção do Estado, coisa jamais vista por estas bandas da Terra. Essa construção política assumiu a iniciativa dos debates e ganhou o direito de ser tratada como um protagonista entre iguais. Daí a intolerância da direita. Os problemas apareceram quando um lado do governo optou por fazer política em nome da “estabilidade monetária” e da “responsabilidade fiscal” — corretamente corrigida pelo vice-presidente da República, José Alencar, para “irresponsabilidade fiscal”. O debate não deve ser enfrentado por aí. Com o governo na condição de vidraça, muitos supõem que a oposição vai deitar e rolar na condição de estilingue. A situação social deverá ser a grande arena no combate eleitoral.

O problema, para a direita, não é apenas que o presidente Lula continua desfrutando de bons índices de popularidade e pode ter o apoio de uma coalizão partidária mais ampla em 2006. É que, para apresentar-se como alternativa programática consistente, ela precisa redefinir todo o campo do debate. Como fará isso? É preocupante constatar que reapareceram fantasmas como o da exacerbação irresponsável de conflitos sociais, o de chantagens parlamentares e até o da instabilidade política. Descartada a possibilidade de o Brasil desandar por causa dos primeiros desvarios da direita — as CPIs revelaram-se um autêntico 171, um estelionato político (a dos Correios obteve o sugestivo número 171 de assinaturas para a sua prorrogação) —, o governo Lula deve se preparar para golpes cada vez mais baixos. O confronto entre “tinistas” e “thembistas” no PT deveria convergir rapidamente para a formação de um projeto de união nacional contra o neoliberalismo.

– Aniversário da Petrobras: o cerco histórico da direita

Getúlio Vargas no Palácio do Catete anuncia a criação da Petrobras  

Por Osvaldo Bertolino

Em 3 de outubro de 1953, exatamente três anos após ter sido eleito para o segundo governo, o presidente Getúlio Vargas sancionou a lei que criou a Petrobras. O anúncio se deu num discurso no Palácio do Catete, a sede do governo, sobre suas principais realizações. “O Congresso acaba de consubstanciar em lei o plano governamental para a exploração do nosso petróleo. A Petrobras assegurará não só o desenvolvimento da indústria petrolífera nacional como contribuirá decisivamente para limitar a evasão de nossas divisas. Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobras resulta de uma firme política nacionalista no terreno econômico, já consagrada por outros arrojados empreendimentos, em cuja viabilidade sempre confiei”, disse.

Na país havia amadurecido a consciência de que o setor energético — especialmente a indústria do petróleo — é peça-chave do desenvolvimento econômico e social. Tanto que o Projeto de Lei que criou o monopólio do setor atingiu amplo consenso, apesar das pressões dos interesses internacionais já no momento da votação no Congresso Nacional.

A Petrobras nasceu como consequência da batalha pelo controle estatal do petróleo, condição fundamental para a defesa da soberania nacional. E, por ter esse simbolismo, nunca foi aceita pelas forças conservadoras, devidamente caracterizadas como entreguistas. Os recentes ataques à estatal, agora mais intensos por conta do pré-sal, são apenas mais um capítulo dessa história

Por trás dos arroubos dos patriotas de ocasião e raivosos publicistas que manifestam “indignação” com a profusão de denúncias oportunistas que envolveram a Petrobras estão questões como a batalha mundial pelo petróleo e, em torno dela, a soberania nacional e a união do Brasil com seus vizinhos. A união energética historicamente representou um dos maiores motivos de integração entre os povos. A União Europeia, para citar um exemplo recente, começou a surgir em 1951 com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Inicialmente, a preocupação básica era o suprimento de energia.

No caso da América do Sul, há um fator que facilita essa integração: os países da região, excetuando Brasil e Chile, têm mais energia do que necessitam. Não há nada mais natural do que vender o excedente a quem precise. Para que esse comércio ocorra, contudo, são necessárias obras gigantescas, que tendem a consolidar a ligação entre os países. Só o gasoduto entre Brasil e Bolívia, para se ter uma base, custou mais de US$ 2 bilhões. Ninguém faria uma obra desse porte se não fosse para ter uma relação de longo prazo. Essa ideia, no entanto, sempre enfrentou forte oposição dos interesses que dominam a economia mundial; a indústria do petróleo, que nasceu no final do século XIX, por ser fonte constante de riqueza se tornou desde cedo essencialmente monopolista.

Monteiro Lobato

No Brasil, a luta pela soberania energética é antiga. A confirmação da existência de petróleo no país foi uma vitória das forças patrióticas e progressistas, que sempre demarcaram campo com os entreguistas. O escritor Monteiro Lobato disse em seu livro O escândalo do petróleo, de 1936, que existiam duas visões geológicas: uma paga para “engazopar” o público, outra para o uso interno dos trustes. Até então, escreveu, o Brasil vivia em regime de compartimentos estanques. A imensa extensão territorial do país e a falta de bons transportes fizeram os brasileiros serem regionais. Nasciam e morriam em um desses compartimentos e quando alguém desejava viajar corria para a Europa. As coisas começavam a mudar graça ao petróleo; o brasileiro já circulava mais, de automóvel ou de avião, e estava descobrindo o Brasil rapidamente. O país estava se transformando em uma grande coisa.

Aquele homenzinho de grossas sobrancelhas percorria o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, pregando patriotismo. “Não temos petróleo? Falta-lhe (ao governo) em olhos o que lhe sobra em traidores vendidos aos interesses estrangeiros”, escreveu. Mas, afirmou, “havemos de dar olhos ao Brasil”. “Havemos de obrigá-lo a ver, a convencer-se da existência do gigantesco lençol subterrâneo. Se a fé move montanhas, a convicção rompe o seio da terra e arranca de lá os seus tesouros. Não sei, concluí em uma das minhas pregações, que sacrifício eu não faça para ver meu país arrancado à miséria crônica e elevado ao poder e à riqueza pela força mágica do maravilhoso sangue negro da terra”, asseverou.

Impulsionado por essa ideia, Monteiro Lobato escreveu cartas ao presidente Getúlio Vargas expondo o que considerava a verdade sobre o problema do petróleo no Brasil, que lhe renderia uma prisão. “O petróleo! Nunca o problema teve tanta importância; e se com a maior energia e urgência o senhor não toma a si a solução do caso, arrepender-se-á amargamente um dia, e deixará de assinalar a sua passagem pelo governo com a realização da ‘grande coisa’. Eu vivi demais esse assunto. No livro O escândalo do petróleo denunciei à nação o crime que se cometia contra ela (…). Doutor Getúlio, pelo amor de Deus, ponha de lado a sua displicência e ouça a voz de Jeremias. Medite por si mesmo no que está se passando. Tenho certeza de que se assim o fizer, tudo mudará e o pobre Brasil não será crucificado mais uma vez”, escreveu.

Batalha mundial

A decisão brasileira de nacionalizar suas reservas foi uma resposta aos propósitos dos monopólios que se formaram com a história do imperialismo do século XIX e do início do século XX. Eram tempos de partilhas de mercados, de guerras mundiais, de modificações nas correlações de forças e de soberanias nacionais ameaçadas. Na América Latina, território historicamente cobiçado pelos norte-americanos, o México nacionalizou seu petróleo em 1938 e a Argentina já explorava suas jazidas na década de 1940. Chile e Bolívia encaminhavam-se para o monopólio do Estado.

A formação do bloco socialista tirou do campo de visão dos grupos privados importantes reservas mundiais — um dos quatro maiores lençóis de petróleo, o do Mar Cáspio, passou para as mãos dos povos soviéticos. O drama do petróleo entrava em uma fase nova, marcada pelo avanço da democracia contra o imperialismo. Já naquela época, as concessões abarcavam regiões imensas.

Uma companhia norte-americana era concessionária de toda a Abissínia — hoje Etiópia. Na Arábia Saudita, metade do país estava nas mãos de outras duas empresas dos Estados Unidos. Em 1945, o Paraguai outorgou a uma petrolífera norte-americana concessões que compreendiam dois terços do seu território. Na Venezuela, regiões imensas foram entregues às companhias norte-americanas e inglesas. Os Estados Unidos controlavam mais de 80% do petróleo do mundo capitalista, cerca de 70% de toda a produção mundial. Em muitos países, como a Venezuela, populações miseráveis vegetavam em torno de poços riquíssimos.

A luta pelo petróleo nacional, portanto, brotou em plena batalha mundial pelas reservas petrolíferas. Era uma questão que requeria a união do povo brasileiro e um governo minimamente comprometido com a independência nacional. Apoiada na tenacidade dos pioneiros — como Monteiro Lobato —, e fortalecida pelo esclarecimento das campanhas do Partido Comunista do Brasil, com ampla mobilização esdudantil organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE), a palavra de ordem O petróleo é nosso abriu caminho entre todas as barragens e emergiu como um grande movimento popular em defesa da soberania nacional.

Além da mobilização popular e das denúncias na tribuna do Congresso Nacional, os comunistas apresentaram três projetos sobre o petróleo. De autoria do deputado Carlos Marighella, o primeiro — subscrito por Maurício Grabois, Gregório Bezerra, Henrique Oest, José Maria Crispim, Jorge Amado, Abílio Fernandes e Diógenes Arruda Câmara — dizia que “as jazidas de petróleo e gases naturais existentes no território nacional pertencem à União, a título de domínio privado imprescindível”. Ou seja: só brasileiros poderiam pesquisar e lavrar petróleo e gás.

O segundo — não há registro conhecido de subscrição — declarava de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo. Isto é: a produção, importação, exportação, refino, transporte, construção de oleoduto, distribuição e comércio seriam exclusividade de empresas de capital nacional, com 51% das ações em poder do Estado.

O terceiro projeto de Marighella — subscrito por Maurício Grabois, Diógenes Arruda Câmara, João Amazonas, Henrique Oest, Gregório Bezerra, Gervásio Azevedo, Jorge Amado e Abílio Fernandes — criava o Instituto Nacional do Petróleo, entidade autárquica com ampla competência. Além destes três projetos, Abílio Fernandes apresentou outro, em nome da bancada comunista, regulamentando a aplicação dos artigos 152 e 153 da Constituição de 1946, relativos às minas e demais riquezas do subsolo.

Segundo o projeto, “os decretos de concessões de petróleo e de autorizações de lavra” seriam “conferidos exclusivamente a brasileiros ou sociedades organizadas no país”. As propostas pararam na Comissão de Constituição e Justiça e o assunto passou a ser monopolizado por uma nova legislação que seria enviada ao Congresso pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. A concretização do monopólio estatal do petróleo, contudo, só viria no segundo governo do presidente Getúlio Vargas.

Ao longo dos debates, ficou evidenciada a importância da “batalha pelas reservas”. O deputado comunista Pedro Pomar disse na tribuna da Câmara que o problema fundamental do Brasil era produzir petróleo para o consumo doméstico e assegurar reservas para qualquer emergência. Segundo Pomar, os brasileiros não podiam ficar à mercê da política agressiva e provocadora de guerra dos norte-americanos.

Pai dos neoliberais

Desde cedo, os defensores da posse do petróleo pelo Estado compreenderam a importância dessa bandeira para o desenvolvimento nacional e a defesa da soberania do país. O petróleo é a base principal da economia e do poder do Estado nacional. Por ter essa importância, os entreguistas brasileiros nunca aceitaram a Petrobrás.

Nos anos 1940-1950, as ações para impedir a posse estatal do petróleo tinham muito a ver com o desdobramento do dramático episódio conhecido como “Guerra do Chaco”, tramada pela Standard Oil. No seu final, o Brasil assinou os Tratados de 1938 pelos quais ganhou uma região para pesquisar petróleo. O governo brasileiro havia construído a estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra e recebeu a “área de estudo” como pagamento. O acordo seria desfeito em 1955, quando o governo do presidente Café Filho devolveu a área ao governo boliviano, que seria repassada à Standard Oil.

No caminho estava o pai dos neoliberais brasileiros, Eugênio Gudin, ministro da Fazenda. Ele se recusou a liberar os recursos necessários já aprovados no Congresso e destinados ao reinício das atividades do Conselho Nacional do Petróleo na região subandina boliviana. A mídia, que no Brasil combatia ferozmente o monopólio estatal do petróleo, saudou a atitude de Gudin como um gesto de “coragem e bom senso”. Em La Paz, o procedimento foi o mesmo. Festejaram, assim, o entreguismo brasileiro-boliviano, na pessoa de Gudin.

O alvo era a Petrobrás, que surgia como desmentido aos que só acreditavam nas maravilhas da iniciativa privada. Os monopólios privados sabiam que a estatal era a solução certa para o problema do petróleo brasileiro e que seria a base econômica-financeira do desenvolvimento nacional. Foi assim que começou a primeira campanha contra a Petrobras.

No início da década de 1960, no entanto, o monopólio estatal foi reforçado com a incorporação da importação de petróleo e da distribuição de derivados. A integração de todas as fases da indústria petrolífera — exploração, produção, transporte, refino e distribuição — no regime de monopólio permitiu ao país controlar a totalidade do seu petróleo. O setor evoluía em um ambiente iluminado pelo debate democrático e parecia intocável, apesar do assédio incessante das multinacionais.

Contratos de risco

Com a chegada do regime golpista de 1964, foram criadas as condições para a volta dos ataques privatistas. Já em 1965, a ditadura militar promulgou três decretos-lei: um que restituiu as refinarias estatizadas aos seus antigos proprietários e outros dois que retiraram a petroquímica e o xisto do monopólio estatal.

Em 1970, contrariando a essência da lei que instituiu o monopólio, a direção da Petrobras, cumprindo decisão do governo, reduziu o esforço exploratório, o que comprometeria o objetivo de atingir a auto-suficiência nacional. “A auto-suficiência no campo do petróleo, por mais desejável que seja, não é a missão de base da empresa”, declarou o então presidente da Petrobras, general Ernesto Geisel.

Ao mesmo tempo, a ditadura flertava com as multinacionais do setor. O primeiro resultado foi a associação da Petrobras à Mobil Oil e à National Iranian Oil Company para formar a Hormoz Petroleum Company, com atuação no Irã. Em outubro de 1975, Geisel, agora presidente da República, disse que as empresas multinacionais estavam autorizadas a explorar petróleo no Brasil, anunciando a adoção, pelo governo brasileiro, dos “contratos de ricos”.

Quatro anos depois, em dezembro de 1979, um telex da Presidência da Republica determinou à Petrobras a criação das condições necessárias à participação das multinacionais também na fase de produção. O objetivo era tornar os “contratos de risco” mais atrativos. No entanto, o país entrara na fase de lutas pela redemocratização e a decisão da ditadura provocou protestos.

Em manifesto de 28 de fevereiro de 1980, os sindipetros (sindicatos de petroleiros) disseram: “Estamos levantando a bandeira do ‘Petróleo é nosso!’, não pelo simples prazer de uma nova luta, mas pela vontade de preservar tudo o que foi conquistado com suor e sangue de nosso povo.”

Uma resolução das associações de geólogos de alguns estados e da Sociedade Brasileira de Geologia, dizia: “Conclamamos todos os colegas, principalmente aqueles que trabalham na Petrobras e outras empresas públicas, os sindicatos e associações profissionais, os parlamentares e todos os setores sociais do país para que retomemos juntos a luta: pela abolição dos contratos de risco; pela restauração integral do monopólio estatal do petróleo através da Petrobras; pelo controle da população sobre os recursos minerais e energéticos.”

De 1977 a 1988, foram assinados 243 “contratos de riscos”, que resultaram em 79 poços perfurados, em uma área de 1,5 milhão de quilômetros quadrados (superior à dos territórios da Inglaterra, Itália, Japão, Suiça, Grécia e Portugal juntos), e investimentos de US$ 1,25 bilhão, dos quais ingressaram no país US$ 350 milhões. Um resultado pífio. A Petrobras, no mesmo período, aplicou US$ 26 bilhões, perfurou 8.203 poços e descobriu os campos gigantescos de Marlin, Albacora e Barracuda — além de outros localizados onde vigoraram “contratos de risco”, nas áreas Sul-Tubarão, Estrela do Mar, Coral e Caravela.

Petrobras dividida

No governo do presidente Fernando Collor de Mello, surgiu a proposta do “Emendão”, uma tentativa de alterar a Constituição pela qual ele jurou fidelidade, que incluía a possibilidade de quebra do monopólio estatal do petróleo. O coordenador do Programa Nacional de Desestatização e presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Eduardo Modiano, disse que era possível reverter a tendência majoritária no Congresso Nacional contra a privatização da Petrobras. “Isso depende de emenda constitucional, mas acho que parlamentares e sociedade se sensibilizarão com o sucesso do programa de privatização e, aí, será viável a privatização da Petrobras”, declarou. A proposta recebeu, de pronto, o apoio do ministro do Planejamento, Paulo Haddad.

A ideia seria enterrada pelo presidente Itamar Franco, que declarou, em reunião com representantes da UNE, que a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce não seriam privatizadas. “Enquanto eu for presidente essas estatais não serão privatizadas”, declarou. Contudo, quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) assumiu o Ministério da Fazenda o assunto voltou à baila. “Esse assunto (a privatização da Petrobras) depende do Congresso, porque trata da questão do monopólio”, afirmou.

No governo FHC, a ideia de privatizar a Petrobrás surgiu oficialmente em 1996 quando Luis Carlos Mendonça de Barros, então presidente do BNDES — um tucano de alta plumagem —, desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério; ele foi um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. A privatização não se concretizou, mas a aprovação da Emenda Constitucional nº 9, em 9 de novembro de 1995, quebrou o monopólio estatal e iniciou o processo de abertura da indústria petrolífera e gasífera no Brasil.

O primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva interrompeu o processo de esfacelamento que estava sendo preparado pelos tucanos para vender a Petrobras, de acordo com José Sérgio Gabrielli, que assumiu a presidência da estatal. “A Petrobras estava sendo dividida em partes, estava em processo de esfacelamento. Eu acho que a empresa teria sido vendida se nós não tivéssemos interrompido esse processo”, disse ele. A Petrobras só alcançou tantos resultados (auto-suficiência em petróleo, anunciada em 21 de abril de 2006)) porque não foi parar no “balcão das privatizações”, destacou.

Era dos dividendos

Lula falou sobre a sensação de presenciar essa conquista da estatal. “Eu acredito que ser brasileiro, conhecer a história da Petrobras e viver o 21 abril de 2006 como eu vivi, eu acho que é uma dádiva de Deus”, afirmou. O presidente lembrou as críticas que a estatal enfrentou no decorrer de sua história. “Eu sei que a Petrobras desde 1953, com o decreto de Getúlio Vargas, foi vítima de críticas daqueles pessimistas que gostam de criticar tudo, daquele mesmo que disse que a Petrobras não ia dar certo”, comentou. Com a descoberta do pré-sal, a condição estratégica da Petrobras como esteio da soberania nacional foi elevada a um patamar nunca imaginado e ainda não totalmente dimensionado.

Após o gole de 2016, com a fraude do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a investida da direita impôs toque de silencio sobre o desmonte da Petrobras. Surgia a era dos dividendos como nova forma de saque, uma ofensiva que se utilizou das conhecidas fraudes da Operação Lava Jato. Com a volta de Lula à Presidência da República em 2023, iniciou-se a recuperação da empresa e a restauração da política de preços “abrasileirada”, sob ataque da mídia cartelizada que se reveza na artilharia, usando munições bem conhecidas desde o início da batalha pelo petróleo no Brasil.

São velharias requentadas que compõem o arcabouço das ideias que negam iniciativas do governo para a retomada dos investimentos, como o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a reindustrialização do país, a volta da indústria naval e a retomada das refinarias. Tudo revestido de adjetivações agressivas para desqualificar sobretudo o presidente Lula, um festival de impropérios que atinge todos os que de alguma forma se identificam com o desenvolvimento nacional.

Corvo do Banco Central pretende impor desemprego em massa

Por Osvaldo Bertolino

O comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom) que explicou a decisão de manter, pela segunda vez seguida, a taxa básica de juros, a Selic, em 10,5% ao ano, comprova que o Brasil passa por um acentuado acirramento da histórica disputa entre forças progressistas e entreguistas, tendo como ponto central o “ajuste fiscal”, exigido pelo controle autocrático da política monetária do Banco Central “independente”. A pressão midiática sobre o governo, com manifestações explícitas de censura e ataques virulentos, subqualificados, ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, potencializa a perversidade dessa política.

É uma realidade que impõe a máxima inversa à do corvo de Allan Poe: “Sempre mais”. Não há corte orçamentário que dê conta da voracidade financeira. Os recentes bloqueio e contingenciamento de R$ 15 bilhões do Orçamento é um bom parâmetro para se entender essa crueldade, adotado para cumprir a imoral e draconiana Lei de Responsabilidade Fiscal, criada para burlar e criminalizar dispositivos da Constituição que garantem projetos e investimentos públicos. Esse projeto da direita tem a inflação como questão central, sem considerar o emprego e a industrialização. Porque a inflação afeta os ativos, os valores dos títulos públicos e de todo papelório inventado pelos financistas internacionais.

Organização mais poderosa

O bloqueio e o contingenciamento se deram no âmbito do “arcabouço fiscal”, concebido dentro do limite da conjuntura em que Lula tomou posse em 2023 e que possibilitou desatar o nó da emenda constitucional do teto dos gastos públicos, imposta como projeto do golpe de Estado de 2016 contra a presidenta da República, Dilma Rousseff. O “arcabouço” estabeleceu que a meta fiscal – a garantia do exorbitante recurso público consumido pela engrenagem da dívida pública manipulada pela política monetária sob controle da autocracia do Banco Central “independente” – tenha uma banda de flutuação de até 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima e para baixo.

O corte no Orçamento visou o mínimo, para cumprir a imposição da burlesca Lei de Responsabilidade Fiscal, numa demonstração de compromisso do governo com a reconstrução do país. Logo em seguida, desconsiderando esse esforço do governo, o Copom – a organização mais poderosa do país, que se sobrepõe à Constituição e a toda institucionalidade da República – adotou a manutenção da Selic. Em essência, a justificativa foi de que era preciso uma ação preventiva diante da possibilidade de alta da inflação. A principal causa, deduz-se, é a elevação do nível de emprego.

A tese do sistema financeiro é de que a aceleração do rendimento médio aquece o consumo e leva a aumentos salariais acima da inflação, um dos pilares do projeto neoliberal, a teoria da “taxa natural de desemprego”. Ou seja: o controle da inflação pela contenção da demanda dos trabalhadores, uma crueldade que vai além do conceito de exército industrial de reserva desenvolvido por Karl Marx, correspondente à força de trabalho que excede as necessidades da produção, medida adotada, não raro, de forma preventiva. Além de lançar um vasto contingente de trabalhadores no desemprego, os juros elevados encarecem o crédito, com forte impacto no consumo, e travam os investimentos, comprometendo o desenvolvimento do país.

Sentenças de editoriais

Essa é a causa principal da alegação do comunicado do Copom de “que uma política fiscal crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida contribui para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de risco (juros altos) dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”. Não usaram o pretexto do cenário externo, sempre alegado para justificar decisões como essa, ignorando a decisão do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, que manteve inalterada, pela oitava vez seguida, a taxa de juros de referência daquele país, com indicação de queda diante dos sinais de desaceleração da atividade econômica, com redução de criação de postos de trabalho e aumento do desemprego.

Seguindo sentenças de editoriais dos jornalões, o Relatório Focus, divulgado semanalmente com pareceres de consultores financeiros – o “mercado” em carne e osso – sobre suas avaliações futuras de variáveis da economia – entre elas, a especulação com a alta do dólar –, que serve de baliza para a decisão do Copom, tem ignorado esse cenário externo, reforçando o aspecto interno, sobretudo a queda do desemprego, além da forte pressão sobre cortes orçamentários, com a alegação de que existe excesso de gastos públicos, que também pressionaria a inflação.

Gastos públicos – na verdade, investimentos e políticas sociais, como o aumento do salário-mínimo acima da inflação – e demanda interna em crescimento pela queda do desemprego são a essência do projeto de governo do presidente Lula, eleito por uma frente ampla em 2022 que isolou e derrotou, nas urnas, o bolsonarismo. Foi uma operação que implicou também o debate sobre os rumos do projeto neoliberal, que se firmou na década de 1990 com as eleições de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e seu projeto tocado por uma poderosa equipe de tecnocratas, sob o rótulo do Plano Real, após um precário ensaio no final do governo de José Sarney e as turbulências do período de Fernando Collor de Mello.

Hostilidades neoliberais

O ciclo dos governos Lula e Dilma Rousseff rompeu muitas amarras do arcabouço do Plano Real, mas o projeto neoliberal recobrou forças com a marcha golpista e após o golpe do impeachment de 2016. A condução trôpega do processo golpista, sobretudo pelo governo Bolsonaro, levou os ideólogos da direita a se voltar para a tática de dar à frente ampla a sua dinâmica, numa atitude de confronto aberto com o projeto representado pelo núcleo de esquerda que se uniu em torno de Lula numa trajetória iniciada nas eleições de 1989. Assim que saiu o resultado das eleições de 2022, as forças políticas da frente ampla procuraram ajustar sua tática para redefinir suas posições em busca de influência nos diversos setores da sociedade.

Ao assumir a Presidência da República, Lula passou a enfrentar as hostilidades neoliberais, uma condição que remete à reflexão sobre os grandes momentos históricos nacionais, sempre precedidos de duras lutas, inclusive pelas armas. Foi assim nas lutas pela independência, pela Abolição, pela derrocada da Primeira República, pelo fim do Estado Novo e da ditadura militar. E as vitórias ocorreram sempre que as forças mudancistas optaram pela tática da mais ampla unidade nacional.

Mais uma vez, estamos diante de um momento histórico assim, com o desafio de transformar possibilidades em realidades. O governo está sob forte pressão pela manutenção da ordem neoliberal restaurada com o golpe de 2016, a integração plena do país ao cassino global, caminho oposto, por exemplo, ao da China, que escapou da agonia da especulação financeira com seu sistema imunológico melhor definido basicamente pelo bloqueio da conversão da moeda local, o yuan, em moeda externa.

ESPECIAL: Trinta anos do Plano Real – O outro lado da notícia

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FHC: a face da corrupção do Plano Real

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– FHC: a face da corrupção do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Roberto Civita, filho do fundador da Editora Abril, Victor, manteve por muito tempo em sua sala uma foto de Fernando Henrique Cardoso (FHC). “Pensam que a Abril apoia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apoia o programa de Fernando Henrique. É o Fernando Henrique que apoia o programa de governo da Abril”, disse ele certa vez. Era a negação dos treze pontos que magnetizaram o país na campanha de 1989, embalados pelo slogan Lula lá.

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A fala de Roberto Civita pode ser associada a um pronunciamento de FHC, em 1995, sobre a ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos. “Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo”, discursou ele. FHC não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões.

Era um verdadeiro devaneio, uma abstração inconsequente, possivelmente influenciado pela concepção baseada na ideia de que os conceitos de esquerda e direita foram varridos pela ordem neoliberal. Como não havia mais a oposição básica que lhe daria sentido, Washington capitalista e Moscou socialista, prevalecia o triunfo definitivo do capitalismo, a “nova ordem mundial” do presidente dos Estados Unidos, George Bush pai, que seria o fim da história, na definição de Francis Fukuyama. Ou a proclamação do pensamento único, o primado de que qualquer ideia fora de sua órbita representava o atraso. Defendê-la era coisa para caipiras e neobobos, segundo FHC.

Caipiras e neobobos

Em 15 de julho de 1996, em visita a Portugal, ele declarou: “Como vivi fora do Brasil, na Europa, no Chile, na Argentina, me dei conta disso: os brasileiros são caipiras. Desconhecem o outro lado e, quando conhecem, se encantam. O problema é esse.” Mais adiante ele diria: “Só quem não tem nada na cabeça fica repetindo que o governo só se preocupa com o mercado, que é neoliberal. Isso é neobobismo.” A mídia, coalhada de “economistas” e “comentaristas” afinados com a ideia de FHC, propagava essa cantilena diuturnamente.

FHC tangia politicamente aquilo que o jornalista Aloysio Biondi chamava de destruição da “alma nacional”. Sob a alegação de que era preciso reduzir a dívida interna e o déficit público, o governo vendeu tudo: bancos, ferrovias, empresas de energia, telefônicas, siderúrgicas e até estradas e portos. Biondi chamou os responsáveis por essa destruição de “clones malditos dos intelectuais de ontem”, que “destruíram o que havia sido construído ao longo de décadas”. “Destruíram mais. Destruíram o sonho, a alma nacional. O que somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Somos um curral”, escreveu ele no livro O Brasil privatizado.

Investiram contra o trabalhador, o funcionalismo público, o aposentado, o agricultor, o empresário nacional e o Estado, patrocinando desemprego, cortes na aposentadoria e nos direitos trabalhistas, falsas reformas do funcionalismo, falências, facilidades para importações e juros escorchantes – jogando, assim, um seguimento da população contra outro, afirmou. Até o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, foi posto a serviço dessa desconstrução nacional. (Biondi chamava o banco de Banco Nacional de Desmantelamento Econômico e Social.) Sem demanda e sem infraestrutura, a produção estagnou.

Conta da “estabilidade”

Em 1994, Lula disse que a conta da “estabilidade” — o Plano Real — seria posta na mesa do povo e ela seria salgada. Isso porque FHC escondeu seu real programa de governo. A maioria da sociedade, ansiosa pelo controle da inflação que castigava o país desde que o “milagre econômico” dos generais golpistas começou a fazer água, em meados da década de 1970, não viu as cláusulas do contrato escritas com letras minúsculas.

Uma delas era a cadeira da presidência do Banco Central, que passou a ser um dos postos mais importantes entre todos os ocupados pela legião de “economistas” que foi instalada nos mais destacados postos do governo e fez da passagem por Brasília um trampolim para uma abastada carreira no mercado financeiro. Até então, os ocupantes de cargos no Banco Central só eram conhecidos por quem tinha algum interesse específico na área financeira. Na “era FHC”, eles ganharam uma independência nunca vista no Brasil.

Era o que chamavam de “despolitização da moeda”, a criação de resistências – ou mesmo impossibilidades – a políticas de prioridades aos investimentos públicos, ideia que levou os dois governos FHC a uma conduta ideologicamente reacionária e politicamente fisiológica e clientelista. Em suas eleições, prevaleceu a linguagem publicitária, que substituiu o debate político franco, direto, com o uso de mais clipes e menos papo, menos verbo e mais efeitos especiais. Foram, enfim, eleições ajustadas ao molde neoliberal.

No plano político, o país passou a ser dirigido por um insólito concerto de facções da direita, cujo esteio era a aliança do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), constituída sob uma boa representação no Congresso Nacional e uma vasta rede de vereadores, deputados estaduais e prefeitos. As decisões eram tomadas entre quatro paredes, longe dos olhos do povo, muitas vezes tramadas com corrupção desbragada – não foram poucos os aliados de FHC pegos com a galinha no saco e nada sofreram. A corrupção rondou o Palácio do Planalto e não existiu uma condenação veemente por parte do governo.

Cartão vermelho

Essa constatação ajuda a compreender a afirmação de José Serra, candidato da direita à sucessão de FHC em 2002, de que, “numa perspectiva republicana, o governo é para servir às pessoas, não aos partidos” (ideia que serviria de base para o lavajatismo que levou ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016). Há, nessa afirmação, dois sofismas. O primeiro é a deliberada generalização das “pessoas”. O segundo é a tentativa demagógica de negar que os partidos são expressões da democracia. Era o crepúsculo da “era FHC”, um autêntico fim de feira.

Serra dizia que enfrentaria o desafio de neutralizar a dicotomia entre inflação baixa, represada pelos juros altos, e crescimento econômico, sem mexer nos fundamentos do Plano Real. Ele dizia que era possível. O povo não acreditou. Como não dava para servir a dois senhores, logou mostrou que estava claramente a serviço do capital financeiro. Não existia explicação plausível para a conciliação entre juros altos, uma bola de chumbo atada ao tornozelo da produção, e a geração de empregos. FHC prometeu conciliar esses conceitos opostos e não cumpriu. Nem tentou, o que demonstrava mais uma demagogia eleitoreira.

Lula chegou às eleições de 2002 com força porque fez as três campanhas anteriores defendendo coisas básicas como o direito a todo brasileiro de ter no mínimo três refeições por dia. A esperança de avanço social com o projeto neoliberal não existia mais. O povo olhava para a “era FHC” e só enxergava inépcia e fracasso. FHC e Serra receberam cartão vermelho, uma grande conquista para o país.

– O avanço fascista e o combate do nosso tempo 

Por Roberto Amaral

“(…) Nossas ações são voluntárias, mas nem sempre são escolhas” – Jodi Dean (Camaradas. Boitempo Editorial)

O espectro que ronda o mundo, desrespeitando diversidades de desenvolvimento econômico, é a doença do capitalismo maduro. Mais do que uma disfunção, o fascismo é receita para enfrentar as crises impostas pela sua incapacidade de solver a questão social, que mais se agrava quanto mais cresce a expansão imperialista e os duelos hegemônicos.

O fascismo é um movimento de manipulação das massas, uma construção ideológica formulada de cima para baixo, sempre a serviço do império do capital. Nutre-se na violência que incita. É, de igual modo, a semente da guerra, a solução que conhece para as crises de hegemonia. Uma necessidade do sistema que se torna clara hoje, tanto quanto foi a alternativa única nos idos de 1939.

No século passado a mobilização ideológica da extrema-direita era alimentada pela difusão do medo ao comunismo, e os receios nacionais explorados em face do expansionismo da URSS. Encontrou campo arado na Itália e na Alemanha, mas igualmente em Portugal (salazarismo), na Espanha (franquismo) e no Japão de Hiroito (controlado pelo militarismo, e afoito em uma política guerreira e de expansão territorial). Foi-lhe fácil mobilizar o empresariado para o financiamento do assalto ao poder e o financiamento dos aparelhos de repressão e, na sequência, para a sustentação da guerra, da qual o grande capital e a indústria pesada saíram incólumes e mais poderosos.

A crise social na Itália abriu  a rota da mobilização das massas, que deram as costas aos comunistas, aos socialistas e aos democratas. Não foi distinto  na Alemanha, onde recebeu o apoio dos pequenos comerciantes e da grande burguesia e dos militares. Não lhe faltou mesmo o apoio da socialdemocracia alemã que viu no nazismo o dique que não conseguira construir contra a ascensão dos comunistas, que elegera como seus inimigos prioritários, assim como no Brasil designaria Lula como o inimigo a ser abatido.

Mussolini e Hitler (nada obstante seus inegáveis méritos como agitadores sociais) foram, mais do que tudo, sempre ao serviço do grande capital, instrumentos para a necessária mobilização das massas. Na Itália, as milícias fascistas, civis, assumiram a repressão. Na Alemanha nazista se multiplicavam os grupos civis e paramilitares. Caracterizavam-se pela brutalidade contra os que identificavam como inimigos do nazismo, judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc. Eram os “Camisas pardas”. Na Itália eram os  “Camisas negras”, ou Camicie nere – símbolo, aliás, atualizado pelo juiz neofascista maringaense Sergio Moro, no auge do seu romance com a grande imprensa.

A sociedade alemã, como a italiana, estava impregnada da violência da ideologia fascista. Denunciavam-se vizinhos, enquanto multidões ovacionavam o Führer em seus comícios, paradas e marchas. O povo alemão negou até a última hora o holocausto e os campos de concentração, e lutou até o derradeiro combatente em Berlim, numa alucinada resistência ao Exército Vermelho.

O fascismo, tanto quanto o nazismo, atendia a necessidades do sistema, como atende agora, em sua versão contemporânea, tosca como a matriz, à marcha da extrema-direita, que avança de forma expressiva pela quinta vez consecutiva nas eleições do Parlamento Europeu. E, entre nós, jamais esteve tão forte. Controla as duas casas legislativas e os governos dos principais estados da Federação, os mais ricos e os mais populosos.  Este encontro não resulta de acaso.

O fato de os EUA estarem presentemente divididos entre a direita esclerosada de Biden e a ultradireita belicosa de Trump é um indicador do nível de deterioração política da sociedade norte-americana, sem alternativa diante dos desafios que açoitam o imperialismo, em casa (onde crescem as desigualdades sociais) e no mundo: o fim do unilateralismo associado à crise de hegemonia.

É um artifício reacionário separar o nazismo da alma alemã: Hitler foi o depositário do imperialismo germânico. À aventura do Terceiro Reich, se não faltou o apoio, aberto ou silencioso, da população, foi ostensivo o financiamento da grande indústria, que, no pós-guerra,  permaneceu de pé, atuando em todo o mundo, inclusive no Brasil. O genocida Benjamin Netanyahu, há 16 anos no poder, avançando pela direta, representa o consenso sionista, em Israel e no mundo. É um agente da guerra, a serviço do imperialismo, que o nutre.

Que os sustos de 2022 nos ajudem a ver a sociedade que produziu o bolsonarismo.

A França – que, não faz muito, foi governada pelo Partido Socialista – está politicamente reduzida a dois blocos políticos não totalmente antagônicos: o lepenismo de extrema-direita e… “o resto” (como me diz o professor Marco Antônio Dias), a saber, um amontoado contingente, disforme e desconexo, reunindo os antigos comunistas e socialistas  e Emmanuel Macron, o presidente de direta, a quem as circunstâncias delegaram  o papel de líder da  resistência ao fascismo. Mas os conservadores, herdeiros do gaullismo, já se associaram aos fascistas na disputa das eleições legislativas francesas, convocadas para 30 de junho. La France Insoumise, a promessa que brotou no pleito presidencial com Mélenchon, obteve um pouco menos de 10% dos votos para o Parlamento Europeu, enquanto a extrema-direita de Mme. Le Pen consagrou-se com 30% do voto francês. A Itália, do glorioso PCI, é, desde 2022 governada pela líder fascista Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia. Na “joia da coroa” europeia, França e Alemanha, aliadas dos EUA na beligerância da OTAN, a esquerda e a social-democracia foram surradas no último pleito. O único respiro veio dos países nórdicos.

Na América do Sul três democracias (Brasil, Colômbia e Chile) ainda resistem, com as dificuldades sabidas. Nossa tragédia, porém, é a mais significativa, porque transitamos de cerca de vinte anos de conquistas sociais e democráticas para o avanço do projeto protofascista, construído a partir do golpe de 2016 e consolidado com as eleições de 2018, quando, pela primeira vez na história republicana, um quadro de extrema-direita é alçado à presidência da república pelo voto popular, em processo eleitoral que não pode ser questionado. A única boa notícia ao norte do equador vem do México, com a eleição de Claudia Sheinbaum. Mas o México  permanece “tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos.”

O presente brasileiro guarda relações com a falência das organizações originárias do velho PCB. Destaco a crise dos partidos populares, conquistados pelo eleitoralismo conservador, donde a renúncia coletiva à missão doutrinária da esquerda. O ‘chão de fábrica’ foi abandonado e muitos militantes e líderes sindicais foram conquistados pela burocracia, sindical ou pública, a que se somou a crise do trabalho (fenômeno global, agravado entre nós pela desindustrialização), erodindo o poder político dos trabalhadores e, por consequência, a potência de seus partidos políticos, comunistas, socialistas e trabalhistas.

Não ousamos canalizar para a política o desespero dos muito pobres, e hoje assistimos, desolados, ao deslocamento de trabalhadores e grupos marginalizados da sociedade capitalista para a extrema-direita, cujo governo agravará sua miséria e restringirá ainda mais seus direitos.
Não há acaso na história.

Os governos da social-democracia paulista e os governos de centro-esquerda do PT mostraram-se impotentes para promover as reformas que (ainda dentro do capitalismo periférico e dependente, que é o nosso) poderiam enfrentar o caráter concentrador de renda e riqueza da economia brasileira. Esquecemos que, mais do que uma vontade, vencer (isto é, mudar) era nosso dever e que, para mudar, precisávamos nos organizar e lutar. Organizar as massas, elevar seu nível político. Ao renunciar ao proselitismo e à denúncia da sociedade de classes, nos transformamos em uma esquerda desprovida de política e deixamos as massas à mercê do neopentecostalismo comercial e do discurso dos meios de comunicação da classe dominante. Movidos pelo eleitoralismo, elevado à categoria de fim em si mesmo, deixamos de condenar o capitalismo e abdicamos do proselitismo socialista.

As táticas do curto prazo eleitoral, quando as bandeiras fundamentais do pensamento socialista foram arriadas, cobram preço político muito alto: o retrocesso que se mede pelo avanço do pensamento da extrema-direita, que nos confronta. O termo revolução foi parar num Index que ninguém sabe quem prescreveu, e, mercê de uma trapaça histórica, nos transformamos em defensores da ordem – nós, os que já fomos denunciados como “subversivos”, e apostávamos na propaganda política e na agitação ideológica. De um certo tempo para cá, passamos a nos identificar com a institucionalidade, exatamente quando a nova direita se fantasia de combatente do sistema. Os sindicatos estão menores, menos representativos e mais fracos. Nossos partidos, na sua maioria, estão dispersos e desorganizados. O PT foi condenado à condição de  partido da ordem.

A esquerda, no geral,  ao ler o determinismo histórico como se fôra lição de um fatalismo religioso, renunciou ao fazer revolucionário, e quedou-se na esperança de que a história terminasse por realizar nossas utopias (afinal, estamos “do lado certo” e merecemos ser recompensados pelos fados). Assim, dava realidade aos nossos sonhos. Até lá, fizéssemos o que as condições objetivas da política prática indicavam. Nos misturámos com os conservadores e nos confundimos como agentes daquilo que Gramsci chamava de “a pequena política”. À noite todos os gatos são pardos.

Concluídas as eleições de 2022, empossado Lula nas condições conhecidas, vencido um ano e meio de governo, a direita neofascista permanece organizada, política e militarmente, com projeto concreto de tomada do poder, nos termos que as circunstâncias ensejarem. Conduz ideologicamente o Congresso, comanda em todos os palcos a oposição ferrenha ao governo Lula, e não apenas bloqueia todo avanço civilizatório, mas desconstrói sem dificuldade as conquistas sociais e políticas logradas pelo movimento social nas últimas décadas. Sua capacidade de mobilização das massas foi posta em evidência mais de uma vez, nas ruas e no processo eleitoral. Anuncia vínculos estreitos com a extrema-direita estadunidense. Em suas manifestações desfraldam bandeiras dos EUA e de Israel ao lado da suástica nazista.

É, a rigor, o único projeto de poder em movimento, contrastando com a anomia geral da esquerda e a insegurança política do nosso governo, que, condenado a prioritariamente lutar pela simples sobrevivência, ainda não encontrou forças para pôr em campo um programa político capaz de antepor-se, nas eleições e para além delas, à ameaça fascista.

Neste quadro, é evidente que cabe às forças progressistas de um modo geral, e não só às esquerdas e seus militantes, a defesa do governo, pois sua eventual derrocada significaria a abertura de todas as comportas para o intento fascista, que mantém sua aliança com o grande capital e setores majoritários das forças amadas. E conserva, ainda, suas bases populares em nível jamais conhecido em nosso país. Mas a imperiosa defesa de nosso governo deve ser vista nos termos do grande projeto de construção de uma nova sociedade, atenta ao desenvolvimento soberano e ao atendimento das necessidades básicas de nosso povo.

O ser esquerda se justifica na luta por um futuro emancipatório da humanidade. Sem ilusões, e distante do voluntarismo, terá de combater o Estado inventado para sustentar o capitalismo. Mirar o horizonte procurando ver para além da risca do horizonte, e jamais se contentar com a política do aqui e agora.

Precisamos nos preparar para uma luta diferente, revendo táticas e dogmas.

***

Adeus a Conceição – “A classe operária preferiu ir ao paraíso a fazer a revolução. De preferência se for em um paraíso consumista. […] Não há evidência de revolução operária depois do século XIX. […] O neoliberalismo apodreceu a ‘opinião pública’ e, ao apodrecê-la, produziu o que há de pior em matéria de liderança de direta. E produziu uma ideologia de classe-média que –Trotsky tinha razão – é a poeira da humanidade.” (Entrevista de Maria da Conceição Tavares à Margem Esquerda, nº 77, 1º semestre de 2008)

Genuflexão na Casa do Povo – Numa correlação de forças absolutamente desfavorável, a centro-esquerda acuada – aparentemente incapaz de superar o trauma de 2016 – houve por bem votar massivamente, nos últimos dias, visando ampliar o poder do capo da Câmara para punir seus adversários (após menos de 24 horas de debate). Há que louvar, sem dúvida, o esforço dos que se empenharam em reduzir os danos do surto autoritário de Don Lira, preservando a constitucionalidade. Mas, sobretudo, aplaudir as deputadas e deputados que se recusaram a chancelar a truculência do coronel alagoano.

As mãos sujas – Nada justifica que o Brasil siga comprando armas e contratando serviços de segurança do protetorado de Israel, ajudando assim a financiar o genocídio a que o mundo assiste inerte e  cumpliciado. Cabe ao presidente Lula dar concretude ao discurso – corajoso e imprescindível – que faz na arena internacional. Saudades do Tribunal Russell dos crimes de guerra cometidos pelos EUA no Vietnã.

Com a colaboração de Pedro Amaral

– A mãe de Lula e o tio da mídia

Por Osvaldo Bertolino

As recorrentes citações pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do exemplo da mãe, dona Lindu, como fez ele ao falar da pressão da direita para taxar os pobres e ampliar os ganhos dos ricos de todas as escalas, vão além do sentido didático. Tem o componente social. Dona Lindu era a ministra da Fazenda da casa, a administradora dos envelopes de pagamentos dos filhos. Agia com rigor, destinando os poucos recursos para cada necessidade da família. Dona Lindu, de acordo com Lula, é o seu exemplo para compreender como funciona as finanças do Estado. Elas têm mais complexidades, mas, na essência, é isso mesmo.

A mídia deu grande destaque a essa máxima do presidente em entrevista após a cúpula do G7 na Itália, quando ele falou da pressão para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adote “corte de gastos”. Lula disse que está aberto a analisar propostas, mas não fará “ajustes fiscais” à custa dos pobres. E lembrou que a taxa de juros acima de 10% “num país com inflação de 4%” não faz sentido. “Fazem uma festa com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) em São Paulo. Novamente, os que foram na festa devem estar ganhando dinheiro com a taxa de juros”, agulhou.

Epicentro político 

A “festa” foi uma homenagem ao presidente do Banco Central na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que posteriormente participou de um jantar oferecido pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas. Um ato político que vai além de reunir os que ganham dinheiro com a taxa de juros. Foi uma tentativa de sinalizar aos interessados no “ajuste fiscal” que aquele grupo da direita poderia abrir caminho para a organização política da oposição ao governo Lula. Sobretudo após o espocar de fogos da mídia para saudar o recente “ajuste fiscal” de Tarcísio.

A manobra não surtiu efeito e chegou a ser criticada pela própria mídia, que não gostou da exposição política de Roberto Campos Neto. A questão de fundo é a ligação de Tarcísio com Bolsonaro, um estorvo para eventuais pretensões à sucessão de Lula. Além da base social e política bolsonarista do governador, pesam as limitações organizativas em âmbito nacional, pressuposto básico para um projeto da direita capaz de se apresentar como viável politicamente para disputar a sucessão presidencial. Tarcísio teria de formar outro epicentro político, completamente divorciado de Bolsonaro, personagem desgastado pelos escândalos e desastres de seu governo.

Ataques sistemáticos

A direita mira em outra direção, a ideia de que governo Lula, que deveria ter trilhado o caminho do “ajuste fiscal” assim que saiu o resultado das urnas, já se mostrou inviável por ser um gastador inconsequente. E por não aceitar a imposição de que o presidente foi eleito não pelas ideias de esquerda, mas pelo projeto da direita contido na “frente ampla”. Trata-se de uma empulhação, presente diuturnamente na mídia, falsificação grosseira do movimento que se formou em 2022 para derrotar Bolsonaro. Era óbvio que Lula não adotaria a agenda da direita, embora soubesse das limitações conjunturais, sobretudo pela composição do Congresso Nacional.

Com o tempo, a diferença se transformou em ataques sistemáticos a Lula. A mídia adotou a linha de fazer oposição frontal, muitas vezes com apologia explícita ao golpismo. O “ajuste fiscal” passou a ser uma imposição implacável, espécie de tudo ou nada. Acionaram o sistema de projeção do mercado financeiro, chamado de Relatório Focus – segundo o Banco Central, as “expectativas” de mercado coletadas regularmente, na verdade manipulações de projeções de inflação e juros por agenciadores da especulação financeira –, para apresentar um futuro sombrio, o descontrole da dívida pública pela elevação da taxa de juros para “acalmar os investidores”. Surgiu até o fantasma da inflação alta pela demanda crescente com empregos, rendas, reajuste do salário-mínimo e outros investimentos públicos.

Tríade autocrática

Por trás de tudo está a política monetária, o controle da economia pela gestão do Banco Central dito “independente”, que administra uma “meta fiscal” draconiana, o chamado superávit primário, enormes recursos orçamentários abocanhados pelo mercado financeiro por decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre a taxa de juros. É um jogo bruto contra o povo e o país, sem que o governo ou qualquer outra instância de poder possam agir. A tríade Banco Central “independente”, Relatório Focus e Copom forma um poder paralelo, uma autocracia poderosa e inescrupulosa.

A mídia é a grande porta-voz desse autoritarismo. Em nome do “déficit” orçamentário, apresentado como o Armagedon, anunciam de forma peremptória que é preciso “cortar gastos”, mirando questões como o reajuste da aposentadoria, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência, além das verbas para a Saúde e a Educação. Tudo isso martelado em regime de monopólio midiático, sem espaço para o debate e sem a visão do conjunto da economia e da administração da política econômica.

Árvore mágica de dinheiro

O livro O mito do déficit, de Stephanie Kelton, professora de Economia e Políticas Públicas, explica bem a falácia do “ajuste fiscal”. Ela parte de uma citação da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 1983, segundo a qual o Estado “não tem fonte de dinheiro que não o dinheiro que as pessoas ganham”. “Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo se tomar emprestado as suas economias ou se tributá-lo ainda mais”, completou. Segundo Thatcher, “não existe dinheiro público”, mas “dinheiro do contribuinte”.

O mesmo discurso seria repetido mais adiante pela também primeira-ministra Theresa May. O governo não possui uma “árvore mágica de dinheiro”, disse ela. Para bancar investimentos ou políticas públicas o governo precisa pegar mais “do nosso dinheiro”. É a ideia de que se o governo gasta mais do que arrecada em impostos precisa emprestar recursos do “mercado”. Na verdade, taxar e fazer empréstimos vêm primeiro, explica a autora. É o modo convencional de pensar pelo que ela chama de (TE)G: Tributos e Empréstimos precedem os Gastos.

O resumo, de acordo com o que Stephanie Kelton denomina Teoria Monetária Moderna (TMM), é que existem o emissor de moedas (o Estado) e o usuário. Num sistema de controle autocrático da política monetária, o principal usuário é o mercado financeiro, destinatário de grandes somas de dinheiro – o mercado de títulos públicos – que empresta ao governo e cobra o juro determinado pelo Banco Central “independente”. Os demais destinatários, os serviços e investimentos públicos, ficam na dependência dos interesses do mercado financeiro para definir como gastar. Cumpre-se, assim, o ciclo da (TE)G.

Falsa imagem do Tio Sam

Stephanie Kelton relata projeções de aumento da dívida pública dos Estados Unidos de dezesseis trilhões de dólares em 2019 para vinte e oito trilhões em 2029. Enquanto isso, a repetição sistemática de que o governo não tem dinheiro se intensifica. Ela relata que a citação se espalhou pelo país, com a imagem do Tio Sam de bolsos das calças para fora, do avesso. “Muitas pessoas passaram a acreditar que nosso governo está totalmente falido, que seu orçamento não dá conta dos assuntos mais importantes da nossa atualidade.”

Essa falsa imagem do Tio Sam sem dinheiro é a ideia que a mídia tenta cravar como verdade absoluta no Brasil. O controle da economia por essa política monetária autoritária confronta o projeto de governo eleito em 2022 e vai se transformando em dilema. Há uma evidente tentativa de cooptar Haddad, amplificando declarações da ministra do Planejamento, Simone Tebet, numa clara manobra para isolar Lula e criar crises políticas para desestabilizar o governo, inviabilizando a aplicação do seu programa.

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