– Guerra híbrida e cultural na história do Brasil

Por Osvaldo Bertolino

Precisamente às 18h30 de 31 de junho de 1963, uma quarta-feira, o então governador do estado da Guanabara, Calos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), recebeu no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, a escritora francesa Suzanne Labin. O motivo da visita era o lançamento do livro Em cima da Hora – a conquista sem guerra, obra prefaciada e traduzida por ele. Em seu texto, Lacerda escreveu que certas faculdades de Filosofia, de Direito e de Economia estavam pondo em circulação centenas de jovens líderes, doutrinados e condicionados pelo treinamento comunista custeado pela nação.

O mesmo ramerrame seria ouvido anos depois, com o alarido sobre a “Escola sem partido” e outras diatribes do gênero. Como diz a extrema-direita agora, Lacerda dissera que “os liberais arrependidos, os socialistas retardados, os religiosos tomados de surpresa, os ensaístas deslumbrados, os jornalistas alfabetizados, os intelectuais ressentidos, os desajustados da liberdade, os novos-ricos de certos bancos e os novos-pobres de certo espírito, formam as mais estranhas contribuições para abrir caminho à propaganda, ao sofisma, às ideias-força da guerra subversiva que os soviéticos movem contra o mundo livre”.

O conjunto listado pelo então governador da Guanabara pertencia à categoria dos que, à falta de melhor definição, são nominados por “comunistas”, uma minoria ínfima que manipulava “uma parte considerável e poderosa das elites dirigentes, para induzir o povo a aceitar as teses de Moscou”. Eram aqueles que não seguiam a cartilha da extrema-direita e nem rezavam por sua ladainha, além de ousar pensar pela ciência e, com ela, contestar o obscurantismo ideológico. Na definição de Lacerda, seria uma “camada de autômatos” que estava sendo preparada “para dirigir o Brasil por conta dos soviéticos”.

O diapasão daquele lacerdismo obtuso, muito familiar aos ouvidos da contemporaneidade, expressava, mais do que o histórico anticomunismo rombudo, uma ojeriza ao Brasil. Seu histrionismo chegava ao ponto de enxergar propaganda soviética nas livrarias, nas bancas de revistas e nos jornais, uma confraria que atendia pelo nome-fantasia de “nacionalistas”. O Brasil estava sendo alvejado por essa propaganda para ser o epicentro da conquista da América Latina pelo comunismo, uma ameaça ao destino da liberdade no mundo.

Seria uma colonização cultural, já dominante na política e na economia. A nação, escreveu Lacerda, estava dominada por um medo intelectual e psíquico, traduzido pelo pavor de muitos de serem chamados de reacionários e perder o bonde da história, uma “enxurrada de estupidez” que estaria “burrificando a mocidade e degradando a velhice de tão grande parcela da intelligentsia brasileira”. A autodeterminação dos povos, pregada por Woodrow Wilson, um dos presidentes dos Estados Unidos, estaria servindo de pretexto para que o Brasil fosse posto, por brasileiros, “a reboque da Rússia e dos seus títeres, como Fidel Castro”.

Estado de guerra

As ideias de Lacerda guardavam proporção com seu destempero verbal – seu conhecido palavreado estridente e oco –, mas foram a base do golpe militar de 1964. Assim como agora, elas ganharam certa popularidade, repetindo o que ocorrera em 1937 com o “Plano Cohen”. O historiador Hélio Silva conta em seu livro A América vermelha que “a história do Brasil não registrou, felizmente, outro embuste, farsa, mentira, impostura, fraude, falsidade, felonia, traição, deslealdade, que se equipare em suas intenções pérfidas, de efeitos políticos calculados, além do Plano Cohen, atirado à face da nação, em sua publicidade cavilosa, chamada nos jornais em 30 de setembro de 1937”.

A fraude grosseira do militar de extrema-direita Olympio Mourão Filho – o primeiro que marcharia quando o golpe de 1964 foi deflagrado, agora como general – não poderia ser ignorada por quem não viveu aquele acontecimento e desconhecia “o que foi e o que fez o documento, ou melhor, o papel sujo, o texto ardilosamente explorado e transformado na ‘prova’ da ameaça de uma subversão comunista”. “Não obstante a origem sabida e o autor conhecido, a finalidade verdadeira, fatos e pessoas desmascaradas logo que havia colimado o objetivo de apavorar a nação e arrancar do Executivo e do Legislativo o estado de guerra, a fraude permaneceu impune e os seus exploradores não foram punidos”, indignou-se.

Mourão Filho e seus cúmplices — o mais destacado deles o general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército — iludiram as Forças Armadas e violentaram o Congresso Nacional para lançar o país na trilha do absolutismo, denunciou Hélio Silva. Mourão filho era chefe dos serviços secretos da Ação Integralista Brasileira, condição na época só conhecida por não mais que cinco pessoas. Batizara o plano de “Cohen” por ser um sobrenome judaico comum, derivado de “Bela Kun”, nome de um conhecido dirigente da Internacional Comunista e do Partido Comunista da Hungria.

Os fios da trama começaram a aparecer em 28 de setembro de 1937, quando os jornais publicaram um comunicado de Góis Monteiro negando rumores de que projetava um golpe militar e realçando o apoio do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, à “obra de fortalecimento moral e material do Exército”. No mesmo dia, a Câmara dos Deputados aprovou a inserção do comunicado nos seus Anais e assegurou, “em nome da representação nacional”, a decisão de “colaborar em todas as medidas que se fizerem mister, em nome da pátria e da autoridade”. A proposta do Legislativo terminou expressando o desejo “de acolher as sugestões do Conselho Superior da Segurança Nacional, em tudo quanto toque às necessidades urgentes da ordem pública e da defesa das instituições nacionais”.

No dia 30, os jornais estamparam parcialmente um plano de ação comunista, também levado ao ar pela Hora do Brasil. O autor seria o Komintern, do alemão Kommunistische Internationale, a Internacional Comunista. O ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, estava em São Paulo e foi chamado com urgência ao Rio de Janeiro para apreciar o pedido de providências dos ministros militares ao presidente da República. Apesar de fazer a viagem de carro, chegou antes do anoitecer. Conversou demoradamente com Góis Monteiro, Dutra, o presidente da República Getúlio Vargas e o ministro da Marinha, almirante Aristides Guilhem. No mesmo dia, divulgou a mensagem solicitando autorização do Congresso Nacional para decretar o estado de guerra.

Levante de 1935

A perfídia do grupo vinha antecedida de palavras adocicadas. “Logo que assumi a pasta da Justiça e Negócios Interiores, e mercê de firme e sincera convicção formada pela evidência dos fatos que se apresentavam à observação, propus a vossa excelência, em exposição datada de 20 de junho, o levantamento do estado de guerra. Disse, então, que se abria novo período de funcionamento livre das instituições, numa atmosfera de tranquilidade sintomática de vitória da nação sobre seus inimigos, e que confiava na sabedoria do povo brasileiro, cumprindo a todos velar, com meios legais de ação, à preservação da ordem triunfante”. Em seguida, lia-se o que interessava: “Afirmam, entretanto, os excelentíssimos ministros da Guerra e da Marinha, em exposição dirigida a vossa excelência, que no momento atual, como em 1935, as ameaças do comunismo são evidentes e que não é possível que fiquemos inertes ante a catástrofe que se aproxima”.

Macedo Soares, alegando o disposto nos termos da Emenda Constitucional número 1, pediu que o presidente determinasse estado de guerra. A situação era grave, muito grave, segundo ele. O Estado-Maior do Exército havia desvendado o plano de ação dos comunistas, “um documento cuidadosamente arquitetado, cujo desenvolvimento meticuloso vem da preparação psicológica das massas ao desencadear do terrorismo sem peias”. Para ele, o diabo vermelho andava solto e para encontrá-lo não era preciso esforço. Macedo Soares disse que o plano incluía “a propaganda comunista”, que invadira “todos os setores da atividade pública e privada”. O comércio, a indústria, as classes laboriosas, a sociedade em geral e a própria família viviam em constante sobressalto.

Mas as portas teriam olhos e as paredes ouvidos, segundo a parola do ministro da Justiça. A polícia civil do Distrito Federal, mesmo após a vitória da lei sobre o Levante de 1935, não deixou nunca de acompanhar de perto a ação subversiva dos comunistas, garantiu ele. Apesar de toda vigilância, nenhuma prova foi apresentada. O debate no Congresso Nacional baseou-se somente na proverbial algazarra midiática e na declaração de Macedo Soares.

Em 10 de novembro de 1937, teve lugar o golpe de Estado que deu início ao chamado Estado Novo, com a promulgação da Constituição de 1937, elaborada e redigida em sua maior parte pelo ministro da Justiça, Francisco Campos (nomeado para o cargo por Getúlio Vargas dias antes do golpe e que mais tarde elaboraria também Atos Institucionais da ditadura de 1964), com a ajuda de líderes integralistas um ano antes. A Carta ficou conhecida como “Polaca” por ter sido baseada na Constituição da Polônia outorgada pelo marechal József Pilsudski, líder do golpe militar que o levou ao poder em 1921.

Hélio Silva constatou, amargamente, que “já se disse, mais de uma vez, que a história do Brasil tem sido assolada pela irrupção e pelas consequências de documentos falsos”. Lembrou que em 1921, por exemplo, a falsificação das famosas cartas do candidato presidencial Arthur Bernardes acabou capturando, por muitos anos, a indignação de grande parte dos atores políticos. “Os documentos falsos se notabilizaram exatamente quando produzem efeitos sensíveis, quando funcionam. Seria limitado demais, entretanto, restringir o estudo da história brasileira ao esquadrinhamento de papéis espúrios, à investigação de suas origens e de seu impacto”, afirmou.

Sociedade tecnológica

As similaridades dos motivos que deflagraram os golpes de 1937 e de 1964 se inserem naquilo que já foi chamado de “sociedade tecnológica”, conceito debatido desde que o capitalismo consolidou um patamar industrial desenvolvido. No Brasil ele chegou quando o povo já estava num estágio avançado de lutas sociais e políticas, processo iniciado em meados do século XIX quando a indústria começou a nascer efetivamente e, com ela, uma nova realidade social, dinamizada pelo desenvolvimento do comércio, dos bancos e do trabalho livre.

O fim do regime escravista foi fundamental para esse salto. As experiências industriais pioneiras de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, faliram exatamente porque surgiram quando ainda prevalecia o que Clóvis Moura chamou, em sua obra Dialética radical do Brasil negro, de “escravismo tardio”, que se deu após a abolição do tráfico internacional. Suas iniciativas não poderiam prosseguir em meio a um sistema de monopólio da terra – os grandes latifúndios –, que impedia a formação de um mercado interno. Mauá era a expressão da capacidade do povo brasileiro, mas não compreendeu que os escravos seriam a classe social capaz de superar aquele quadro de atraso, opressão e miséria.

Essa compreensão marcaria abolicionistas como André Rebouças, que via o latifúndio como o maior problema social brasileiro. Ela não poderia existir antes pelas características do “escravismo pleno”, na definição de Clóvis Moura, entre mais ou menos 1550 e 1850, precedido da escravidão indígena, que abrangeu todo o período colonial. Foram mais de trezentos anos que estruturaram e dinamizaram o modo de produção escravista no Brasil, determinando o comportamento básico das classes fundamentais da sua estrutura social – senhores e escravos.

Liberalismo escravista

A vinda de dom João VI para o Brasil em 1808 rompeu o monopólio colonial com medidas como a abertura dos portos, uma liberdade de comércio que fez crescer a importação de africanos, denominado por Caio Prado Júnior, em sua obra História econômica do Brasil, como “era do liberalismo”, sem acrescentar que era um “liberalismo escravista”, como observou Clóvis Moura. Para o autor de Dialética radical do Brasil negro, mesmo os movimentos contestadores que surgiram antes ou depois da Independência – como a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Sabinada de 1837 – não puseram em seus programas políticos a abolição da escravidão.

O “liberalismo escravista” satisfazia econômica e socialmente o sistema e ninguém pensava ou articulava um movimento que objetivasse substituí-lo por outro regime de trabalho. Clóvis Moura cita como exemplo José Bonifácio que, no processo da Independência, repelia qualquer ideia que criticasse, mesmo tangencialmente, a escravidão. Somente a Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de setembro de 1850 proibindo o tráfico de escravos – quase trinta anos após a Independência –, fez surgir o embrião de uma burguesia, que se consolidaria em 1889 com a proclamação da República, período denominado por Caio Prado Júnior como “o império escravocrata e a aurora burguesa”.

Em sua fase de “escravismo tardio”, a luta contra o sistema, após a Lei Eusébio de Queirós, começou a se ampliar, deixando de ser exclusiva do escravo negro. Na descrição de Clóvis Moura, logo após a Guerra do Paraguai, acontecimento que foi um modificador importantíssimo na desarticulação do “escravismo pleno”, as manifestações humanistas, emancipacionistas, sucederam-se e o silêncio foi rompido; a discussão sobre a substituição da escravidão pelo trabalho livre se dava à luz do dia.

Surgiram as primeiras medidas protetoras, como A “Lei do ventre livre” (1871), a “Lei dos sexagenários” (1885), a lei que extinguiu a pena de açoite (1886) e a lei que proibiu a venda separada de escravos casados. A evolução para a Abolição passou pela administração dos resultados econômicos da Guerra do Paraguai, que exauriu o país, obrigado a contrair dívidas e a entregar seu comércio exterior aos interesses do capitalismo britânico. Clóvis Moura relata que o escravismo em decomposição foi substituído pelo trabalho livre sob controle do bloco de poder que administrava dois problemas: a mão de obra e a terra.

Estrutura da sociedade

Sobre o trabalho, realizou-se um plano ideológico, interessado na vinda de imigrantes, e o latifúndio estava garantido pela Lei de Terras, de 1850, que regulamentou as grandes propriedades quando o tráfico de escravos foi proibido. Eram as estratégias de dominação daquelas classes que assistiram à “modernização” do sistema escravista no Brasil e procuravam, na transição, evitar mudanças na estrutura social, segundo Clóvis Moura. De acordo com ele, o surto imigrantista impediu o acesso da massa de ex-escravos, posta como sobrante no novo sistema.

Mas o modo de produção escravista, ao determinar o comportamento básico de senhores e escravos como classes fundamentais, legou contradições antagônicas nítidas, que perpassaram as etapas seguintes da estrutura social brasileira. A conjunção de acontecimentos que levaram à derrocada daquele sistema – a Independência, a Abolição e a proclamação da República – determinou o dilema que Clóvis Moura definiu como “revolução democrática-burguesa” e Nelson Werneck Sodré, em sua obra Introdução à revolução brasileira, chamou de revolução “sem o proletariado”, referindo-se à Revolução de 1930.

Clóvis Moura trata o conceito no âmbito da Abolição, segundo ele vista como “uma possível revolução democrática-burguesa”, o que seria “no mínimo ingenuidade”. O problema da revolução burguesa no Brasil, escreveu, era polêmico, “especialmente porque muitos dos que a abordam tomam como paradigma as revoluções burguesas europeias como se tivéssemos de repeti-las aqui, na época do imperialismo e no contexto de uma sociedade que tinha até cem anos atrás como forma fundamental de trabalho a escravidão e as instituições correspondentes”.

A Abolição, na análise de Clóvis Moura, não mudou qualitativamente a estrutura da sociedade. O senhor de escravos foi substituído pelo fazendeiro de café. Cristalizaram-se, também, as oligarquias do Norte e do Nordeste, igualmente apoiadas no monopólio da terra, como os antigos senhores de escravos. A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre não mudou as estratégias de dominação antecipadamente estabelecidas, impedindo que o antigo escravo entrasse como força de trabalho na dinâmica desse processo, mesmo como força secundária.

Ao escravismo que imperou até às barbas do século XX se somou o extermínio da população originária, o índígena, que, segundo Darcy Ribeiro, teve uma fase genocida entre 1900 e 1957 e que segue vítimas de garimpeiros e empresas transnacionais. Como lembra Clóvis Moura, os índios destribalizados se incorporaram aos camponeses pobres e são também perseguidos, expulsos das terras e assassinados. Aquilo que o jurista Dalmo de Abreu Dallari definiu como desenvolvimento econômico contra o índio, não com o índio.

Uma nova configuração social do povo trabalhador formou-se em meio a esse conjunto de transformações. Foi o período em que a acumulação cafeeira obteve lucros que superavam a capacidade de investimento no setor. Esse capital deslocou-se para a indústria, que se concentrou em São Paulo e Rio de Janeiro, facilitando a organização dos trabalhadores e suas lutas. Houve uma explosão de manifestações e uma evolução natural para níveis de organização mais elevados, como a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, que trouxe para o movimento sindical uma política de unidade classista.

Relações de trabalho

A Revolução de 1930 promoveu uma série de regulação das relações de trabalho, mas, quando o governo de Getúlio Vargas passou a flertar com o nazifascismo, começou-se a organizar um movimento amplo, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que liderou a Insurreição de 1935. A derrota e a repressão varguista levaram à escalada autoritária que se consolidou com o golpe de 1937. A política ampla dos comunistas fez o PCB reentrar como protagonista na cena política no combate ao nazifascismo, possibilitando o enterro do Estado Novo com a Constituinte de 1946.

Mas a “sociedade tecnológica” já era forte e uma nova onda anticomunista foi deflagrada pelo governo do general Eurico Gaspar Dura, eleito em 1945. O registro e os mandatos do PCB foram cassados em 1947 e 1948, respectivamente, em meio a mais uma gigantesca onda anticomunista puxada pela mídia.

O conceito de “sociedade tecnológica” já foi definido como “sociedade industrial”. Seria a influência do complexo científico-tecnológico na sociabilidade, uma mudança de paradigmas com base em novas tecnologias, que estariam servindo de instrumentos do capital contra as ideias emancipacionistas dos trabalhadores. Hoje ela é mais forte do que nunca.

O historiador Eric Hobsbawm diz que não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra começou. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, houve uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.

Direito à propriedade

Seus primórdios se encontram na formulação de Saint-Simon, pensador francês e socialista utópico, de que a industrialização como estágio mais recente da humanidade exigia uma nova organização social, tese depois acolhida por Auguste Comte, entre outros. A ideia de uma nova organização social ganhou cientificidade na teoria de Karl Marx e Friedrich Engels. Para o pensamento marxista, as liberdades políticas conforme enunciadas na doutrina francesa dos Direitos Humanos de 1789, apesar do seu valor histórico, constituem uma hierarquia de direitos.

De acordo com a Constituição Francesa de 1793, o direito à propriedade privada permite a cada cidadão o gozo e a disposição (…), conforme ele deseja, de seus bens e rendas, dos frutos de seu trabalho e atividade. Na expressão “conforme ele deseja” está implícita a ideia de que cada um deve ver o seu semelhante como inimigo, um objeto obstaculizando os meios de aquisição ou manutenção da propriedade. Alguém só pode defender o direito à propriedade se possuir propriedade, disse Karl Marx em O Capital. De outro modo, o direito se torna vazio e faccioso. Ou seja: cada indivíduo deve ter como objetivo assegurar a sua propriedade.

Cada um dos outros direitos, segundo a análise de Marx, deve ser compreendido como subserviente ao direito à propriedade. “Assim como os indivíduos expressam suas vidas, assim eles são. O que eles são coincide com sua produção, tanto o que eles produzem quanto como produzem”, escreveram Marx e Engels. Este relacionamento recíproco determina o estado do homem durante qualquer período histórico, porque é a partir de suas produções que ele transforma o mundo. No modo privado de produção, diz Marx, o homem é desumanizado mentalmente e fisicamente – síntese fundada na expressão “trabalho alienado”.

Combate ao comunismo

Há ainda a contradição da tecnologia com as relações de produção. “Sob sua forma máquina (…), o meio de trabalho se torna imediatamente o concorrente do trabalhador. A máquina cria uma população supérflua, isto é, inútil para as necessidades momentâneas da exploração capitalista. (…) Em determinado grau de desenvolvimento, um progresso extraordinário na produção pode ser acompanhado de uma diminuição não só relativa como absoluta do número de operários empregados”, escreveu Marx em O Capital.

No artigo Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels diz: “É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob a pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano (…). A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a produção. A colisão torna-se inevitável.”

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels escreveram: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção”. Essa contradição teria uma evolução para um sistema social, político e econômico mais avançado.

Engels, no prefácio ao livro A luta de Classes na França, de Karl Marx, disse: “A ironia da história põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘revoltosos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com os meios ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles mesmos se chamam, vão a pique com a legalidade criada por eles mesmos. Exclamam desesperados, como Odilon Barrot: ‘La legalité nous tue’ (A legalidade nos mata), enquanto nós ganhamos, com essa legalidade, músculos vigorosos e faces coradas. E parece que fomos tocados pelo sopro da eterna juventude e, se não somos tão loucos para nos deixarmos arrastar ao combate de rua simplesmente para satisfazê-los, não terão afinal outro caminho senão romper eles mesmos com a legalidade que lhe és tão fatal.”

O combate ao comunismo foi constatado por Marx e Engels já no que é considerado o primeiro documento programático do marxismo, o Manifesto do Partido Comunista. “Todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele (o espectro do comunismo): o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Qual partido de oposição não foi qualificado de comunista por seus adversários no poder? Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou de volta a acusação de comunista, tanto a outros opositores mais progressistas quanto a seus adversários reacionários?”, escreveram na abertura do texto.

Conceito de liberdade

Esse combate remete ao conceito de liberdade, o mais manipulado na guerra ideológica da direita. Além dos epítetos de baixa intensidade, há a indução ao senso comum de que a “sociedade tecnológica” satisfaz plenamente a liberdade, sem considerar a variedade de necessidades de cada grupo ou camada social. A definição filosófica de liberdade é antiga, sempre associada à igualdade. Para existir a liberdade, é preciso existir a igualdade. Aristóteles, o maior pensador da antiguidade, em seus estudos sobre a lei do valor, descobriu que as mercadorias têm dois valores – um de uso e outro de troca.

Mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, disse Aristóteles. Qual seria a medida dessa igualdade? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século XVIII, pelo estudo do economista clássico inglês David Ricardo – o que há de igualdade é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias. Marx diz em O Capital que Aristóteles era filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo. A compreensão da igualdade de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas. A partir do memento em que a igualdade política se afirmou.

Foi a Revolução Francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental: todos os homens são iguais. Adam Smith, outro economista clássico inglês, considerado o pai do pensamento liberal, também falou do assunto em sua obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, publicado em 1776, ao defender a mão invisível do mercado como meio para a livre concorrência de todos os capitalistas na busca do equilíbrio da sociedade. Ele recomendou que os empresários não frequentassem o mesmo clube para evitar a tentação de se associarem em monopólios. Adam Smith estava dizendo que a liberdade não é um conceito absoluto e precisa da igualdade.

É óbvio que essas ideias pouco têm a ver com o capitalismo em sua fase superior, o imperialismo, como bem demonstrou Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917. As estruturas de classes nas sociedades contemporâneas já não são nem sombra do que foram quando o capitalismo deu seus primeiros passos, como sistematizou Lênin na obra Imperialismo, fase superior do capitalismo. A liberdade nesse sistema é propagada como introjeção de necessidades que atendem mais à reprodução e à acumulação de capital do que ao bem-estar social.

Essa evidente contradição faz os cérebros que comandam a mão invisível do mercado, agora hipertrofiado pelo sistema financeiro, mobilizarem o aparato tecnológico – e todos os seus recursos disponíveis – que está em seu poder para manter as instituições a seu serviço. As formas de controle social se expandem com o caráter global dessa hipertrofia, mantendo a ideia de que existe um inimigo contra o qual é preciso mobilizar todas as forças. A imagem do adversário é inflada para que seja apresentado como inimigo total, uma ameaça à sociedade da “liberdade”.

A dilatação máxima dessa imagem cotidianamente, 24 horas por dia, é imposta de todas as formas e por todos os meios. Os prognósticos mais tenebrosos são atirados ao público de todas as formas possíveis — pela televisão, pelas rádios, pelos jornais, pelas revistas, pela internet e até por seitas religiosas, para não falar nas consultorias, departamentos de análise de bancos, institutos de pesquisa e por aí afora. A ideia é forjar razões para que o inimigo seja asfixiado e não conteste o status quo.

Autoridades coloniais e imperiais

As formas hoje são outras, mas o conteúdo e os objetivos são os mesmos de sempre. O livro de Suzanne Labin, por exemplo, foi largamente difundido quando Lacerda a trouxe para o Brasil. O convide do governador da Guanabara tinha uma extensa agenda de conferências sobre “as táticas de infiltração comunista no mundo livre”, segundo suas declarações aos jornais. Seu périplo incluía São Paulo e outros estados, em pregação “democrática e anticomunista”.

Circulou a informação de que a embaixada dos Estados Unidos teria mandado, junto com os convites para um coquetel aos 41 novos diplomatas formados pelo Curso Rio Branco, três livros, sendo dois deles de Suzanne Labin, um dos quais Em cima da hora. Os jovens recém-formados retribuíram a gentileza comparecendo ao coquetel na sede da embaixada dos Estados Unidos. O secretário-geral do Instituto Rio Branco, Hélio Scarabotolo, declarou não ser verdade que a embaixada tinha presenteado os diplomatas, mas confirmou que os livros foram distribuídos, sem saber quem os enviou ao Itamaraty.

Uma das conferências de Suzanne Labin foi na Escola Superior de Guerra, onde ela declarou que “os comunistas, no plano militar, ensinavam os soldados a conquista do espírito” e que, “ao contrário do que acontece com os democratas, quando querem empreender uma conquista, mandam antes seus agentes para minar a opinião pública, a fim de poderem, mais tarde, com grandes facilidades, fazer a conquista”. O livro foi um sucesso de vendas, a julgar por uma notícia do Jornal do Brasil de que Lacerda comprou um sítio com o dinheiro ganho com a tradução.

Segundo um anúncio comercial nos jornais, “tudo o que estava acontecendo no Brasil foi previsto neste livro admirável”. “Compreenda a que ponto chegou a infiltração comunista do governo (João) Goulart e para onde nos querem levar”, completava. A revista O Cruzeiro, do então poderoso grupo de mídia “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, publicou uma matéria de capa sob o título Suzanne Labin declara guerra ao comunismo. O golpismo fervilhava na mídia. A criação da “Cadeia da democracia” formalizou um cartel da conspiração, unindo as rádios Jornal do BrasilGlobo e Tupi.

Depois do golpe, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, falando ao jornal O Estado de S. Paulo, afirmou que “a revolução de 64” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coreia”. O primeiro ditador-presidente, Castello Branco, ofereceu um jantar ao adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Gordon e Walters organizaram uma rede de ativos conspiradores que criaram uma profusão de organizações e movimentos de extrema direita.

Meridiano primevo

O povo brasileiro sempre se insurgiu contra esses arbítrios. As autoridades coloniais imperiais — como os donos do poder hoje em dia —, ao punirem com tamanho rigor os combatentes do povo, sabiam quem estavam enfrentando. Os que até hoje perseguem e caluniam lideranças populares são os legatários dos governadores gerais, ou vice-reis, que pensavam a mesma coisa de Zumbi dos Palmares, de Tiradentes, de Felipe dos Santos, dos Alfaiates da Bahia de 1798, dos republicanos do Nordeste de 1817 e 1824, que lutaram movidos pelas ideias da Revolução Francesa e da Independência Americana.

A síntese do pensamento de ontem e de hoje dos algozes do povo brasileiro está na forma como o barão de Cotegipe (um dos líderes do Partido Conservador, eleito senador pela Província da Bahia e presidente do Senado de 1882 a 1885) se referiu às multidões entusiasmadas que assistiam às sessões do parlamento durante a votação da Abolição: o Império libertou uma “raça”. Essa “raça” teve ainda em suas fileiras os camponeses de Canudos, do Contestado e legou para a história do povo brasileiro vultos notáveis de líderes populares como Borges da Fonseca, Frei Caneca, Cipriano Barata e tantos outros, valentes, combativos e que tinham um norte definido. Todos odiados pelos inimigos do povo.

Na punição à “Inconfidência Mineira”, por exemplo, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer da execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade —, eles tinham perfeita consciência de que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas.

Esse protagonismo do povo sempre foi inaceitável para os que se consideram donos do poder. Todas as atrocidades praticadas por eles se deram em nome da lei e da ordem. ”Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe”, escreveu Karl Marx. A lei universal desses algozes foi bem traduzida pela fina ironia do escritor George Bernard Shaw referindo-se aos racistas do Sul dos Estados Unidos: primeiro, reduziam os negros à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. No Brasil, essa imagem aparece com nitidez nas gravuras de Jean Baptiste Debret e nas páginas de José Lins do Rego.

Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso. A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país.

Os donos do poder não aceitam outra posição do povo, senão a completa subordinação. Eles são movidos pelos mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre a larga porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela. A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis.

Por esse plano, a metrópole doou três milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento.

A dívida que o país acumulou com seu povo que ainda vive as sequelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas capitanias hereditárias, pelos donatários de dom João III, e mantidas por gerações de sucessores só poderá ser paga numa intervenção movida por espírito político radicalmente novo. Seria algo capaz de mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a brasileira.

A raiz das coisas

A realização do progresso social pressupõe a via democrática, o respeito às leis, especialmente as que contemplam os direitos dos trabalhadores tornados cidadãos. Da mesma forma, os movimentos e organizações sociais devem ser vistos como entes estruturais da dinâmica progressista do país. Mais ainda: não se pode falar em democracia quando a cidadania é afrontada no seu direito de votar e de ser votada. Isso quer dizer que todos devem ter as mesmas condições de exercer o poder, votando ou sendo votado, para estabelecer as conexões entre seus atos e as estruturas constituídas.

Esse conceito de democracia põe em evidência o exercício dos direitos legais, a prática das decisões de alcance político e a formação da consciência cidadã. Uma democracia de massas, com o povo se organizando em partidos políticos e entidades associativas, é a antítese da trama de golpes palacianos. A própria tradição republicana brasileira é essencialmente progressista — nenhum presidente da República elegeu-se com o voto popular prometendo claramente defender a plataforma ideológica da direita. Na história do Brasil, existem muitos exemplos de governos odiados pelo povo por prometer uma coisa e fazer outra.

Em contrapartida, todos os presidentes que cumpriram — ou tentaram cumprir — o que prometeram foram atacados pelas oligarquias. Os conflitos políticos surgem dessa dicotomia povo-elite. Toda a nossa história mostra que a República é vista pela ampla maioria da sociedade como a negação do poder oligárquico e sinônimo de independência nacional — um movimento que marcou profundamente o século XX no país.

Se há interesses antagônicos em uma sociedade, como é o caso brasileiro, há também a disputa política expressa por meio do embate entre os partidos, que refletem as concepções de um ou outro conjunto de forças sociais. Numa perspectiva republicana, portanto, governos democráticos levam a sério o papel dos partidos e respeitam o voto do cidadão. A negação dessa obviedade cerceia a manifestação democrática do povo e nega os ideais republicanos.

O regime dos golpistas de 1964 representou o anticlímax do processo de aceleração da industrialização do país, que ampliou a infraestrutura de serviços básicos orientada para a integração do mercado nacional nos anos 1950, um processo que nasceu com a Revolução de Getúlio Vargas, em 1930, quando o país entrou numa fase de desenvolvimento e de rápida urbanização. Uma onda de otimismo se espalhou com a criação de perspectiva e de esperança, mesmo com os maiores benefícios concentrados nas mãos de uma minoria.

Somente com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2003, o país voltou a ter a respeitabilidade que não tinha desde os tempos de Juscelino Kubitschek, Brasília e a Bossa Nova, substituídos pelas turbulências do governo Jânio Quadros e pelo golpismo contra João Goulart. A eleição de um projeto popular engendrado num curso histórico de enfrentamento com a ditadura militar, e que passou por movimentos como as Diretas Já!, a Frente Brasil Popular, o Fora, Collor! e o combate ao neoliberalismo, trouxe o Brasil de volta ao respeitável clube dos países que prezam seus interesses acima de tudo. Havia pelo menos três gerações de brasileiros que não sabiam o que era isso.

A eleição de Lula representou o resgate dos ideais de governos que combateram as injustiças brutais que sempre reinaram por aqui, um processo abortado pela marcha golpista e pelos desdobramentos do golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, agora com o desafio de ser restaurado com a eleição de Lula em 2022. Quase na virada para o século XX — apenas há pouco mais de 100 anos —, o país era monarquista e escravocrata, uma miscelânea de mazelas. Mesmo trocando a monarquia pela República, a estrutura social se manteve. Essa trajetória explica por que ainda uns detêm muito e muitos não têm coisa alguma. Só não está pior porque o Estado, em determinados períodos, preocupou-se com a industrialização do país.

Vil tristeza do jaburu

Assim o Brasil pôde entrar numa era de realização do ideal republicano, o processo de superação do conservadorismo constatado já nos primeiros anos de vida da República, como demostra a literatura dos explicadores do Brasil daquela época. O próprio Rui Barbosa, que participou da elaboração da Constituição de 1891, apontou os limites da República presidencial quando ela se afasta da vontade popular. Para ele, a onipotência do Congresso Nacional e o arbítrio do Poder Executivo, apoiados na irresponsabilidade das maiorias políticas, criavam uma situação autocrática. Somente “a majestade da Constituição escrita, interpretada, em última alçada, por uma magistratura independente”, poderia contrabalançar tal poderio perverso. Como lembrou Oliveira Vianna, Rui Barbosa, na defesa dos direitos do cidadão, pela doutrinação do habeas corpus, soube conter os poderes dentro dos limites da justiça e do respeito à lei.

Essa conquista, ainda nas palavras de Oliveira Vianna, muito vale em um país “sem tradição de respeito à lei e ao direito”, tese de Rui Barbosa, um dos fundadores e organizadores da República, que seria a base da ideologia do progresso nacional, desejo das novas camadas sociais que emergiram antes mesmo do fim do Império. Na contramão dessa ideologia, como atestou o militante republicano Alberto Sales em artigo intitulado Balanço político — necessidade de uma reforma política, publicado no jornal O Estado de S. Paulo nos dias 18 e 26 de junho de 1901, citado por Carlos Henrique Cardim no livro A raiz das coisas, estava o fracasso do ideal republicano.

Para ele, “ao cabo de uma experiência tão curta” já se via a República convertida, “para descrédito das instituições e a infelicidade de nossa pátria, na mais completa ditadura política”. Aplicava-se, já na época, o famoso “sorites” de Nabuco de Araújo sobre o Império: “O presidente da República faz os governadores dos estados, os governadores fazem as eleições, e as eleições fazem o presidente da República”. Segundo Alberto Sales, a consciência nacional deveria pronunciar o seu julgamento de que “a máquina política montada em 15 de novembro de 1889 já teve tempo preciso para fazer a sua experiência” e que era necessário “dizer com franqueza o que ela é, e o que deve ser”.

Confrontar o ideal republicano com a realidade, após dez anos de regime, disse, “é reconhecer com amargura que a estrutura política que levantamos, cheios de entusiasmo e fé, sobre os destroços do antigo regime, não tem sido mais que uma longa decepção, um desengano mortificante às nossas mais ardentes aspirações”, querendo dizer, como era voz corrente entre importantes figuras do republicanismo, segundo Carlos Henrique Cardim: “Essa não é a República de nossos sonhos”.

Contudo, cumpre observar que Alberto Sales era um analista de uma sociedade recém-saída do trabalho escravo. A compreensão mais exata do ideal republicano só pôde existir quando ele se firmou pelas experiências, embora esparsas, dos governos progressistas. E todas elas resultaram de movimentos de massas, acontecimentos que infundem consciência política e despertam amplos setores para a importância de ações políticas com objetivos bem definidos.

Mas nem por isso o pessimismo de Alberto Sales deixou de se manifestar; ele se deve à atualidade da visão de Capistrano de Abreu sobre o Brasil da negação das aspirações republicanas das duas primeiras décadas do século XX, mais presente do que nunca, traduzida em sua proposta de transformar o jaburu em símbolo nacional. “O jaburu (…), a ave que para mim simboliza a nossa terra, tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela austera e vil tristeza”, escreveu ele.

Ruy Castro, exploda-se

Por Osvaldo Bertolino

Em sua coluna na Folha de S. Paulo nesta quarta-feira (14), Ruy Castro dá o título Maduro, exploda-se. Ponho o texto de cabeça para cima e troco o personagem para expressar melhor o conteúdo.

As opiniões de Ruy Castro sobre as atas que que estão disponíveis no sistema de Justiça da Venezuela, de acordo com sua institucionalidade democrática, equivalem aos caminhões de nitroglicerina do filme O Salário do Medo

Um dos grandes momentos do cinema europeu de todos os tempos é um filme francês, O Salário do Medo (Le Salaire de la Peur), de 1953, dirigido por Henri-Georges Clouzot. A história se passa num vilarejo perdido na Venezuela, controlado por uma companhia de petróleo e, mesmo assim, mantido em indescritível miséria. Entre seus habitantes, há quatro estrangeiros condenados a apodrecer ali por falta de opções.

E, então, eles ganham uma oportunidade: US$ 2.000 para cada um pelo transporte de dois caminhões de nitroglicerina para uma cidade a 150 km. É, com trocadilho, um caminhão de dinheiro. O problema é chegarem lá. Os 150 km consistem de estradas esburacadas, curvas fechadas quase impossíveis de fazer, pontes de madeira que ameaçam desabar ao peso do líquido dentro dos tanques, precipícios que surgem de repente e tudo mais que, com um peteleco, pode fazer os caminhões irem pelos ares.

Os quatro personagens, dois franceses, um alemão e um italiano, são homens duros, violentíssimos. Os atores que os interpretam —respectivamente, Yves Montand, Charles Vanel, Peter van Eick e Folco Lulli— também eram. A história da filmagem, toda em externas no sul da França e sob terríveis condições, fala deles saindo aos murros uns contra os outros e contra o diretor Clouzot. O filme retrata isso. São 147 minutos de tensão quase insuportável, com os caminhões a 10 por hora, como duas bombas sobre rodas.

Imagino Ruy Castro nessa mesma Venezuela, conduzindo um caminhão de nitroglicerina – as atas da votação, forjadas e fraudadas por Maria Corina Machado e Edmundo Gonzáles, prestes a explodir se não forem reveladas. E, se forem, também. A estrada, bombardeada pelos países que sabotam a democracia e por “jornalistas” goebbelianos, não pode estar mais esburacada. A esta altura, ele não tem mais alternativa: ou prende o país inteiro ou é ele próprio quem vai preso.

Não leve a mal, Ruy Castro, mas queremos que você se exploda.