– A Operação Lava Jato e a vida pregressa de Sérgio Moro

Na tarde do domingo 22 de novembro de 2015, um forte esquema de segurança fechou uma grande avenida no centro da cidade de Maringá, Paraná, em frente a um hotel de luxo. Policiais ocuparam todo o entorno e quem entrava no auditório passava por um detector de metal. Tanta segurança, conforme transmitiu a rádio CBN, era porque o juiz federal Sérgio Moro participava como convidado especial de um “ato interreligioso contra a corrupção”.

Ele comandava a força-tarefa da Operação Lava Jato, “a maior operação de combate à corrupção que já se viu no país”, conforme disse a repórter Luciana Penha. E prosseguiu informando que no evento estavam presentes seis religiões. “Sérgio Moro nasceu em Maringá e aqui se formou em Direito. A primeira experiência profissional foi no escritório do advogado Irivaldo Souza, idealizador do ato interreligioso contra a corrupção”, noticiou.

Irivaldo é tributarista e assessorou o ex-prefeito de Maringá Jairo Gianoto, do PSDB. Foi condenado em 2006 por desvio de dinheiro público (valor estimado em mais de um bilhão de reais), formação de quadrilha e sonegação fiscal. O advogado foi preso e só teria conseguido um habeas corpus depois que Moro testemunhou a seu favor. “Eu gosto muito do Sérgio, ele é um juiz justo, determinado, e tem cumprido a sua função, a sua missão, e nós, por isso, fizemos esse ato interreligioso em favor dele”, comentou o advogado em entrevista à CBN, ao lado dos “representantes de seis religiões reunidos para refletir sobre a corrupção”, conforme a repórter.

Assassinato de Paolicchi

Segundo Luciana Penha, o presidente da Ordem dos Pastores, Noel Cruz, disse que católicos, evangélicos e muçulmanos, todos concordavam que a corrupção é um mal que mata. “Porque a corrupção, ela está levando, na verdade, o dinheiro que ia para a saúde e também para as empresas. Então os jovens estão desempregados e as mães reclamando com os filhos nas portas dos hospitais e morrendo. Então eu creio que chegou a hora em que o povo de Deus está unido orando a Deus, e Deus ouviu o clamor. Chegou o momento de acabar com a corrupção”, falou o pastor, de viva voz.

O arcebispo, dom Anuar Battisti, afirmou que Sérgio Moro era para muitos a esperança de justiça, de acordo com a repórter. Com sua voz, a autoridade católica disse que “ele (Moro) hoje é o cabeça, é aquele que está dando a canetada final dentro desse processo de corrupção, do processo de julgamento da Lava Jato”. “Tudo passa pela mão dele. E ele está sendo extremamente rígido, extremamente decisivo, não tem medo, enfrentando situações muito complicadas. Nesta oração pedimos que ele continue sendo corajoso”, completou o arcebispo.

Luciana Penha disse que Sérgio Moro não deu entrevista, mas no evento falou por dezessete minutos. E explicou por que decidiu participar do ato interreligioso. Às tantas, ele disse que era um prazer estar ali naquela união de religião com combate à corrupção. A lei valia para todos, afirmou, antes de agradecer a Irivaldo Souza pelo evento. Os representantes das seis religiões que participaram do ato redigiram “A Carta de Maringá contra a corrupção”, que entregaram a Moro, finalizou Luciana Penha.

Ninguém mencionou o caso envolvendo Irivaldo Souza, que teve a participação do então secretário da Fazenda de Maringá, Luiz Antônio Paolicchi, assassinado em outubro de 2011. Seu corpo foi encontrado amarrado dentro do porta-malas de um carro e com dois tiros. Em entrevista ao O Diário, de Maringá, Vagner Eising Ferreira Pio, que se disse mentor do assassinato — segundo o jornal, orientado por seus advogados, que fizeram questão de acompanhar e gravar toda a entrevista —, afirmou que o advogado do Daniel Dantas (banqueiro) teria aconselhado o ex-secretário a firmar uma união estável entre eles por questões patrimoniais.

Acordo branco

O caso nunca foi esclarecido. O que se sabe é que no dia 7 de março de 2001 o ex-governador e senador do Paraná Álvaro Dias protocolou, na Vara Federal Criminal de Maringá, solicitação para que lhe fosse fornecida uma cópia do depoimento prestado à Justiça Federal por Paolicchi. O juiz federal substituto Anderson Furlan Freire da Silva deferiu o requerimento. Igual pedido havia sido encaminhado à Vara Criminal no dia 5 de março de 2001 pelo governador Jaime Lerner e também obteve resposta positiva do magistrado. O que o ex-secretário disse não foi revelado.

Sabe-se também que em 1994, na sucessão do governador Roberto Requião (PMDB), Lerner, o candidato da direita, enfrentava um franco favorito Álvaro Dias. Um esquema financeiro forte foi montado pelos empresários Mário Celso Petraglia e Atilano de Oms Sobrinho, da empresa paranaense Indústrias e Construções (INEPAR). Utilizando-se do prestígio nacional e internacional da empresa, e da reconhecida habilidade de Petraglia para construir operações financeiras intrincadas, levantaram um “papagaio” numa off-shore no Uruguai. Assim, com um caixa razoável, começou a campanha vitoriosa.

Petraglia foi uma das personagens centrais da CPI dos Precatórios, operação nascida de dentro do Banestado como incubadora de desvios do Bradesco e de alguns pequenos bancos liquidados pelo Banco Central (BC) no rastro das denúncias dos então senadores Vilson Kleinubing (PFL-SC) e Roberto Requião (PMDB-PR). Lerner entregara-lhe o Banestado. Em 1998, Lerner fez um “acordo branco” com Álvaro Dias. Candidato ao Senado, ele não apoiou Requião, adversário de Lerner que, buscando a reeleição, não lançou candidato ao Senado. Em 2002, no segundo turno, contra Requião, Lerner abriu seu voto em favor de Dias. Perderam ambos.

Prévia da Lava Jato

Esse caso praticamente não apareceu na mídia; ficou restrito ao noticiário local. O “caixa dois” não era tão visível como ficou após as farsas do “mensalão” e da Operação Lava Jato, apesar de ser público e notório — inclusive na Petrobrás, conforme relata um documento interno da empresa de 2000, mostrado no livro A mentira das urnas —, como demonstram os relatórios de várias CPIs da década de 1990.

Mas Sérgio Moro já estava atuando nesse meio. Antes da aprovação, em 2013, da lei que regulamentou a “delação premiada” ele se utilizou desse instrumento, em 2004, para reduzir a pena do doleiro Alberto Yousseff no caso envolvendo o empresário e ex-deputado estadual paranaense Antônio Celso Garcia, o Toni Garcia (do então PMDB), acusado de crime contra o Sistema Financeiro Nacional com a falência do Consórcio Nacional Garibaldi. Moro foi acusado de agir com arbitrariedade e abuso de autoridade com todos os advogados e de ter concedido imunidade a criminosos com a homologação de acordos de delação.

Ele usou esse instrumento também no caso Banestado, uma espécie de prévia da Operação Lava Jato. Foi ali que os procuradores e policiais aprenderam a usar os acordos de delação e a cooperação com outros países, sobretudo os Estados Unidos. Um deles, Carlos Fernando dos Santos Lima — que ficaria famoso na Lava Jato —, protagonizou, em 2003, uma cena descrita pela revista IstoÉ como um tour de force nos Estados Unidos para que a documentação da quebra de sigilo de várias contas, realizada pelo escritório da Procuradoria Distrital de Manhattan, não viesse à luz. Ele teria na gaveta um dossiê detalhadíssimo sobre o caso Banestado que recebera em 1998 — sua esposa, Vera Lúcia dos Santos Lima, trabalhava no Departamento de Abertura de Contas da filial do Banestado, em Foz do Iguaçu.

Em 2010, a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começou um julgamento só encerrado em 2013 em que foram contestados atos de Moro na Operação Banestado. As contestações foram encaminhadas ao Conselho Nacional de Justiça, onde a apuração foi arquivada. Gilmar Mendes disse, à época, que o caso mostrava um “conjunto de atos abusivos” e “excessos censuráveis” praticados por Moro. “São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior”, escreveu o ministro no acórdão da decisão, que resumiu o debate do julgamento.

Josef Mengele

O juiz federal Fausto Martin De Sanctis também criticou Moro por fazer, segundo ele, acordos de delação em que se fixava de antemão o benefício que o réu receberia. Um caso assim aconteceu com o megadoleiro Hélio Laniado, liberado após permanecer preso por 420 dias com a assinatura de acordo de delação premiada. Esse tipo de acordo já havia beneficiado também doleiros conhecidos pela Lava Jato, como Antônio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, e o próprio Alberto Youssef.

Delegados da Polícia Federal (PF) — muitos dos que atuaram na Lava Jato tiveram atuação político-partidária descarada — que conheciam os negócios de Laniado disseram que ele trabalhava para bancos e grandes empresas, segundo uma matéria do jornal Folha de S. Paulo. Laniado foi preso quando desembarcava no aeroporto de Praga, no dia 16 de agosto de 2005, de um voo vindo de Israel. Ele fugira para lá, onde havia obtido cidadania israelense após a Justiça Federal decretar a sua prisão. A Folha disse que foi o serviço secreto de Israel, o Mossad, que informou à Interpol que Laniado estava no avião, segundo dois delegados da PF.

Não se sabe bem por que o Mossad dedurou Laniado — um dos delegados levantou a hipótese de que poderia ser gratidão pelo esforço da PF brasileira em esclarecer o caso de Josef Mengele, o carrasco nazista cuja ossada foi descoberta em 1985 e posteriormente identificada, conforme a matéria. Moro, segundo a Folha, disse que não podia comentar o caso porque o processo e a decisão de liberar Laniado estavam sob segredo de Justiça.

Luzes da ribalta

Em 2010, cento e onze brasileiros foram investigados pela PF, acusados de enviar ilegalmente US$ 2,2 bilhões para uma agência do Israel Discount Bank, em Nova York, entre 2000 e 2005. O valor foi apurado pela promotoria de Nova York numa investigação sobre lavagem de dinheiro em decorrência dos casos do Banestado, Merchants Bank e Beacon Hill, todos usados por doleiros brasileiros.

Conforme informações da Folha de S. Paulo, a apuração demorou cinco anos para ouvir os suspeitos. Em 2006, a Justiça brasileira recebeu da promotoria de Nova York informações sobre 221 contas do Israel Discount Bank supostamente de brasileiros. Só em 30 de agosto de 2010 Moro mandou instaurar 111 inquéritos. Não há notícia, na mídia, dos seus resultados. No caso das delações e de depoimentos de muitos investigados na Operação Lava Jato que denunciaram esquemas de “caixa dois” — como o empresário Eike Batista e o “marketeiro do PT” João Santana —, nem inquéritos foram instaurados.

O jornal Público, de Portugal, publicou uma matéria sobre a Lava Jato, em 9 de agosto de 2015, e, às tantas, citou um artigo do então coordenador da Federação Nacional dos Petroleiros, Emanuel Cancella, dizendo que “a esposa do juiz Sérgio Moro, que está à frente da operação Lava Jato, advoga para o PSDB do Paraná e para multinacionais do petróleo”. “A denúncia foi publicada no Wikileaks”, teria dito o sindicalista. A matéria afirma, também, que Deltan Dallagnol, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, “é um evangélico engajado da Igreja Batista” e “busca as luzes da ribalta”.

– Manuel Domingos Neto, Roberto Amaral e José Genoino Neto: Washington não pode proclamar González

Manuel Domingos Neto
Roberto Amaral
José Genoino Neto

A política tem sua lógica, nem sempre clara à primeira vista, notadamente em tempo de mudanças radicais.

Está em curso a mais espetacular virada desde a queda de Roma. A supremacia anglo-saxã, imposta paulatinamente desde as circunavegações e revoluções burguesas, busca sobrevida perante a arrancada, até há pouco implausível, de desafiantes poderosos.

Os sinais de hecatombe se anunciam com a exibição de instrumentos de destruição em massa, o cerco à Rússia, a concentração de arsenais em torno da China, o estimulado ressurgimento da capacidade militar da Alemanha e do Japão, a tentativa de naturalização do genocídio em Gaza, os massacres incontáveis e invisíveis de africanos, a ardilosa capacidade de manipulação de comportamentos de indivíduos, sociedades e Estados pelas novas mídias e pelos múltiplos estímulos à bestialidade neonazista.

Ontem à tarde, Washington avisou aos latino-americanos: percam as ilusões de autonomia, domínio da riqueza própria, desenvolvimento integrado, respeito aos direitos humanos, superação de valores racistas e patriarcais, reconhecimento de povos originários e vida social em harmonia com a natureza: nada disso nos interessa, o mundo é dos fortes e nós somos os fortes. Washington não se move por nossos interesses.

Anthony Blinken, em outras palavras, encarnou a religiosidade consagrada em 4 de julho de 1776, segundo a qual o novo país seria terra da promissão e, por mandato divino, surgira para dominar o mundo. Encarnou também o recado de Monroe, emitido em 1823, segundo o qual ninguém d’além-mar se metesse em terras americanas.

Pleno de autoridade, Blinken declarou encerrada as eleições na Venezuela e proclamou eleito Edmundo González. Santificou os baderneiros à soldo de golpistas, atribuindo-lhes a condição de cidadãos de bem. Exigiu que as forças da lei não reprimissem o quebra-quebra terrorista.

Diante de um governo venezuelano envolto em procedimentos eleitorais demorados e de líderes latino-americanos demasiado prudentes, para não dizer desavisados, Washington atribuiu-se poderes de junta eleitoral no país que abriga a maior reserva de petróleo do mundo, projeta-se sobre o Atlântico e o Pacífico e é porta de entrada para a Amazônia.

Anthony Blinken ungiu-se da condição de porta-voz do povo venezuelano e da “comunidade internacional”. Ditou regras para “uma transição transparente” do poder na Venezuela. Com uma penada, jogou ao córner tratativas de entendimento com os maiores países latino-americanos: Brasil, México e Colômbia. Deixou três respeitáveis líderes democratas na condições de atores irrelevantes.

Trata-se de intervenção direta, sem meneios.
A arrogância desmesurada acaba prestando serviços aos latino-americanos: alerta os crédulos na profissão de fé democrática dos candidatos a donos do mundo.

Não há grandes novidades no processo vivido pela Venezuela. Muitos imaginavam que a lisura das eleições seria o grande objetivo de Washington. Preferiam esquecer o longo rol de intervenções que, desde o século XIX, impossibilitaram o exercício efetivo da soberania, a estabilidade política, o desenvolvimento socioeconômico, as reformas sociais e a integração latino-americana. Depositaram fé em bons propósitos de quem se acredita credenciado por Deus a organizar a vida no Planeta.

Os democratas e reformistas sociais latino-americanos estão diante de duas opções: acatar a sina de colono submisso ou rejeitar a vontade imperialista. Não se trata de apoiar ou rejeitar Maduro ou Gonzáles. Trata-se de defender a soberania venezuelana e, por extensão, a soberania dos países latino-americanos, lembrando que nenhum deles pode se defender sozinho.

Não se trata, ainda, de simpatizar ou não com programas governamentais que afetem a vida do povo venezuelano, eternamente saqueado pelo Império. Trata-se simplesmente do direito de cada Estado definir com autonomia suas políticas públicas e erradicar de vez a condição de Washington de xerife e tribunal do mundo.

A carência de petróleo de Washington não pode ser resolvida através da guerra.  Aliás, a guerra amplia desmesuradamente tal carência. A ordem mundial será digna quando as práticas de pilhagem forem substituídas por negócios vantajosos para as partes interessadas. Essa proposição se choca com a experiência histórica, mas não podemos deixar de sonhar com um mundo de paz.

Não existem perspectivas alvissareiras para a América Latina sem a formação de uma grande corrente que conjugue a luta contra o imperialismo com a luta pela democracia e por reformas sociais. A integração de esforços da América Latina não pode ser postergada.

Não vivemos numa ilha isenta das turbulências planetárias. Podemos entrar subitamente no olho do furacão provocado pela mudança da ordem mundial. As pretensões de Washington estão nos conduzindo neste sentido. É hora de nosso subcontinente tomar decididamente partido contra a presunção da unipolaridade.

A política tem lógica e a intervenção estadunidense na Venezuela escancara as pretensões imperiais dos Estados Unidos. Washington não tem direito de proclamar González presidente da Venezuela.

Defendendo o povo e o Estado venezuelano, defenderemos os povos do mundo.

– As big techs e as gerações que vêm com tudo

Por Osvaldo Bertolino

No interessante livro Big tech – a ascensão dos dados e a morte da política, que reúne os principais artigos de Evgeny Morozov, um dos mais influentes especialistas em tecnologia e internet do mundo, consta um amplo painel sobre a aliança entre o neoliberalismo e o Vale do Silício. Ele problematiza o que define como lógica do chamado “solucionismo” tecnológico, que enxerga a tecnologia como panaceia para problemas que instituições falharam em resolver. Na verdade, é uma possibilidade que pode servir de ferramenta contrária à democracia. O alerta suscita reflexões sobre a inter-relação da economia com a política – a clássica economia política –, sem a qual uma e outra se artificializam.

O poder do neoliberalismo, decorrente da elevação em grau máximo da influência do capital financeiro sobre o capital industrial, se traduz numa luta política que implica atuar levando em conta a dimensão dessa aliança. Atuar de forma isolada em determinanda esfera sem atentar para essa inter-relação significa limitar a abrangência do combate. O que se nota nessa conjuntura é uma luta de resistência, que exige uma organização popular interagindo com a realidade de cada local, produzindo conteúdo e acúmulo teórico. Em síntese: criar canais para a atuação política apontada para a superação das contradições da contemporaneidade.

A principal delas é o desenvolvimento nacional, um projeto de múltiplas interfaces. Lutar pela democratização da comunicação – ou pela guerra cultural e o debate ideológico – é uma exigência que passa por esse caminho. A combinação simultânea e proporcional da economia com a política possibilita categorias que armam ideologicamente a luta de classes, com suas complexidades, um conceito que abrange a conjuntura internacional e seus tentáculos, determinante para o entendimento do que está em questão em âmbito nacional.

Macacada reunida

O ponto mais decisivo nesse universo é o binômio emprego e renda, que espalha controvérsias, gerando ascensões de forças políticas que negam a civilização, potencializadas por estagnações econômicas e carregadas de obscurantismos. Chamadas de extrema-direita, são, a rigor, manifestações de antagonismos que se agudizam com a evolução dos dilemas do capital. Seu principal efeito pode ser visto às claras entre a juventude que chega ao mundo do trabalho enfrentando desafios inéditos.

São gerações que nasceram sob a interatividade e o virtualismo, desligadas da lógica dos seres analógicos pré-anos 1990. Em suma: estão familiarizadas com um mundo pequeno, conectado, desenhado em interfaces amigáveis, que lhes chega mediado pela tela de alta resolução. Mas, quando falam de seus problemas, o fazem de modo a deixar evidente a questão principal: o desemprego. Ouça-se Jota Quest, um porta-voz da primeira geração dessa juventude no Brasil: “Macacada reunida/Galera pelejando e dançando/Procurando uma saída (…) Que tá faltando emprego no planeta dos macacos.”

Mesmo quando ocupados, podemos verificar que são destinados aos jovens as posições de baixa qualificação e remuneração. Uma parcela significativa deles que precisa trabalhar sob essas condições compromete sua escolarização sem completar sequer os ciclos educacionais compatíveis com a sua idade.

Gerações digitais

É a face do chamado McJob, nome genérico que nos Estados Unidos e na Europa se dá a empregos de baixa especialização e de baixa remuneração no setor de serviços, que se espalhou no Brasil. A prova disso está disponível em qualquer loja do McDonald’s – e congêneres -, onde se vê punhados de adolescentes brasileiros frequentemente vistos como um grupo mal preparado e de pouco futuro. Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs simbolizam uma geração que enfrentou dificuldades para trocar seu diploma universitário por um bom emprego. Eles chegaram ao mercado de trabalho com um currículo cinco estrelas e tiveram que se virar com um emprego destinado a quem tem pouca formação escolar.

Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs geralmente complementam os rendimentos de quem está cursando o colégio ou mesmo a universidade. No Brasil, não. O McDonald’s, por exemplo, tem mais de 30 mil funcionários no país – 85% trabalham como atendentes nos cerca de 500 restaurantes brasileiros da rede. Cada loja tem em média 70 funcionários, e quase todos têm entre 16 e 21 anos, ganhando salários irrisórios. Por esses dados, é possível visualizar o maior drama da juventude brasileira – a entrada no mercado de trabalho. Quem são e o que pensam esses jovens?

Eles compõem as primeiras gerações digitais da história, que emergem no Brasil e em vários outros países com uma força avassaladora. Trata-se de uma moçada que nasceu com hábitos específicos, com jeitos e objetivos muito próprios, e que vai, em breve, tomar as rédeas do país e imprimir a ele suas ideias e seus estilos. Essas gerações vão, muito provavelmente, chacoalhar regras e certezas estabelecidas. Elas impõe um desafio ao mesmo tempo simples e crucial: incorporar essa moçada nas lutas progressistas.

O desafio está na aprendizagem da linguagem e dos seus anseios. E está também na desaprendizagem das práticas que caducaram ou estão caducando. Essas geraçôes romperam com a tradição de sua espécie, que é analógica desde seus primórdios. Raciocinam e se movimentam vida afora a partir de novas e inéditas coordenadas. Essa turma já nasceu sendo filmada, virando registro eletrônico, e cresce na frente de um aparelho de alta tecnologia. São jovens que se divertem com vários programas e tornam-se exímios com um teclado antes mesmo de entrar na escola.

Desânimo e violência

Os dados têm um efeito devastador sobre os jovens quando saem da frieza do papel. Uma pesquisa do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) mostrou que o maior temor dos estudantes de São Paulo é terminar seus cursos e não conseguir emprego. A pesquisa entrevistou 500 jovens de 16 a 25 anos. Desse total, 42% disseram temer não conseguir uma colocação no mercado de trabalho. Um índice bem mais alto do que o de outras preocupações, como obter independência financeira (15%) ou melhorar a qualidade de vida (14%). Segundo as estimativas mais otimistas, para melhorar essa situação o Brasil precisaria retomar um crescimento econômico de 6% ao ano.

Um dos efeitos mais nocivos do desemprego é a combinação de desânimo com violência. Muitas vezes, os jovens fazem a sua parte ao estudar, mas a falta de perspectiva os leva à depressão, à inatividade e ao desespero da droga e do crime. Os governos Lula iniciais tentaram amenizar o drama. Em 2006, o Ministério do Trabalho e Emprego assinou 13 convênios com entidades do movimento social para a execução em 2007 dos Consórcios Sociais da Juventude.

No atual governo, o Ministério do Trabalho e Emprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) lançaram, o Pacto Nacional pela Inclusão Produtiva das Juventudes. A iniciativa pretende unir esforços para impulsionar a empregabilidade e formação profissional para jovens em situação de vulnerabilidade no país até 2030 e conta, também, com o apoio do Pacto Global das Nações Unidas, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e da Secretaria Nacional de Juventude.

Papel do jovem

Segundo o Censo Demográfico 2022, o Brasil conta com 45,3 milhões de adolescentes e jovens de 15 a 29 anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostram que um em cada cinco brasileiros nessa faixa etária não estudava e nem estava ocupado em 2022, um universo de 10,9 milhões pessoas, o equivalente a 22,3% da população nacional. Deste, 43,3% eram mulheres pretas ou pardas, 24,3% homens pretos ou pardos, 20,1% mulheres brancas e 11,4% homens brancos. Havia 4,7 milhões deles que não procuravam trabalho e nem gostariam de trabalhar, entre eles dois milhões de mulheres cuidando de parentes e dos afazeres domésticos, 61,2% pobres, 47,8% pretas ou pardas.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que o desemprego entre jovens no Brasil é, na média, o dobro da população geral historicamente. De acordo o relatório sobre empregabilidade de jovens da OIT, chamado Global Employment Trends for Youth, publicado dia 11 de agosto de 2022, o número global de jovens desempregados pode chegar a 73 milhões. A projeção para 2022 era de que 27,4% das mulheres jovens em todo o mundo estariam empregadas, em comparação com 40,3% dos homens jovens. O fenômeno é mais notado nos países de renda média baixa.

Não é somente a falta de crescimento econômico que mingua os empregos. A tendência de enxugamento de postos de trabalho – acentuada pela onda de fusões e aquisições das grandes corporações – e a redução da oferta de cargos públicos, tanto pelos “ajustes” do projeto neoliberal a que os governos foram submetidos com a brutal Lei da Responsabilidade Fiscal quanto pelas privatizações – têm impacto direto sobre o emprego. É verdade que há muito mais coisas que o governo pode fazer. E os sindicatos também. E a sociedade também. Mas nada substitui o papel do próprio jovem nesse processo.