– A Operação Lava Jato e a vida pregressa de Sérgio Moro

Na tarde do domingo 22 de novembro de 2015, um forte esquema de segurança fechou uma grande avenida no centro da cidade de Maringá, Paraná, em frente a um hotel de luxo. Policiais ocuparam todo o entorno e quem entrava no auditório passava por um detector de metal. Tanta segurança, conforme transmitiu a rádio CBN, era porque o juiz federal Sérgio Moro participava como convidado especial de um “ato interreligioso contra a corrupção”.

Ele comandava a força-tarefa da Operação Lava Jato, “a maior operação de combate à corrupção que já se viu no país”, conforme disse a repórter Luciana Penha. E prosseguiu informando que no evento estavam presentes seis religiões. “Sérgio Moro nasceu em Maringá e aqui se formou em Direito. A primeira experiência profissional foi no escritório do advogado Irivaldo Souza, idealizador do ato interreligioso contra a corrupção”, noticiou.

Irivaldo é tributarista e assessorou o ex-prefeito de Maringá Jairo Gianoto, do PSDB. Foi condenado em 2006 por desvio de dinheiro público (valor estimado em mais de um bilhão de reais), formação de quadrilha e sonegação fiscal. O advogado foi preso e só teria conseguido um habeas corpus depois que Moro testemunhou a seu favor. “Eu gosto muito do Sérgio, ele é um juiz justo, determinado, e tem cumprido a sua função, a sua missão, e nós, por isso, fizemos esse ato interreligioso em favor dele”, comentou o advogado em entrevista à CBN, ao lado dos “representantes de seis religiões reunidos para refletir sobre a corrupção”, conforme a repórter.

Assassinato de Paolicchi

Segundo Luciana Penha, o presidente da Ordem dos Pastores, Noel Cruz, disse que católicos, evangélicos e muçulmanos, todos concordavam que a corrupção é um mal que mata. “Porque a corrupção, ela está levando, na verdade, o dinheiro que ia para a saúde e também para as empresas. Então os jovens estão desempregados e as mães reclamando com os filhos nas portas dos hospitais e morrendo. Então eu creio que chegou a hora em que o povo de Deus está unido orando a Deus, e Deus ouviu o clamor. Chegou o momento de acabar com a corrupção”, falou o pastor, de viva voz.

O arcebispo, dom Anuar Battisti, afirmou que Sérgio Moro era para muitos a esperança de justiça, de acordo com a repórter. Com sua voz, a autoridade católica disse que “ele (Moro) hoje é o cabeça, é aquele que está dando a canetada final dentro desse processo de corrupção, do processo de julgamento da Lava Jato”. “Tudo passa pela mão dele. E ele está sendo extremamente rígido, extremamente decisivo, não tem medo, enfrentando situações muito complicadas. Nesta oração pedimos que ele continue sendo corajoso”, completou o arcebispo.

Luciana Penha disse que Sérgio Moro não deu entrevista, mas no evento falou por dezessete minutos. E explicou por que decidiu participar do ato interreligioso. Às tantas, ele disse que era um prazer estar ali naquela união de religião com combate à corrupção. A lei valia para todos, afirmou, antes de agradecer a Irivaldo Souza pelo evento. Os representantes das seis religiões que participaram do ato redigiram “A Carta de Maringá contra a corrupção”, que entregaram a Moro, finalizou Luciana Penha.

Ninguém mencionou o caso envolvendo Irivaldo Souza, que teve a participação do então secretário da Fazenda de Maringá, Luiz Antônio Paolicchi, assassinado em outubro de 2011. Seu corpo foi encontrado amarrado dentro do porta-malas de um carro e com dois tiros. Em entrevista ao O Diário, de Maringá, Vagner Eising Ferreira Pio, que se disse mentor do assassinato — segundo o jornal, orientado por seus advogados, que fizeram questão de acompanhar e gravar toda a entrevista —, afirmou que o advogado do Daniel Dantas (banqueiro) teria aconselhado o ex-secretário a firmar uma união estável entre eles por questões patrimoniais.

Acordo branco

O caso nunca foi esclarecido. O que se sabe é que no dia 7 de março de 2001 o ex-governador e senador do Paraná Álvaro Dias protocolou, na Vara Federal Criminal de Maringá, solicitação para que lhe fosse fornecida uma cópia do depoimento prestado à Justiça Federal por Paolicchi. O juiz federal substituto Anderson Furlan Freire da Silva deferiu o requerimento. Igual pedido havia sido encaminhado à Vara Criminal no dia 5 de março de 2001 pelo governador Jaime Lerner e também obteve resposta positiva do magistrado. O que o ex-secretário disse não foi revelado.

Sabe-se também que em 1994, na sucessão do governador Roberto Requião (PMDB), Lerner, o candidato da direita, enfrentava um franco favorito Álvaro Dias. Um esquema financeiro forte foi montado pelos empresários Mário Celso Petraglia e Atilano de Oms Sobrinho, da empresa paranaense Indústrias e Construções (INEPAR). Utilizando-se do prestígio nacional e internacional da empresa, e da reconhecida habilidade de Petraglia para construir operações financeiras intrincadas, levantaram um “papagaio” numa off-shore no Uruguai. Assim, com um caixa razoável, começou a campanha vitoriosa.

Petraglia foi uma das personagens centrais da CPI dos Precatórios, operação nascida de dentro do Banestado como incubadora de desvios do Bradesco e de alguns pequenos bancos liquidados pelo Banco Central (BC) no rastro das denúncias dos então senadores Vilson Kleinubing (PFL-SC) e Roberto Requião (PMDB-PR). Lerner entregara-lhe o Banestado. Em 1998, Lerner fez um “acordo branco” com Álvaro Dias. Candidato ao Senado, ele não apoiou Requião, adversário de Lerner que, buscando a reeleição, não lançou candidato ao Senado. Em 2002, no segundo turno, contra Requião, Lerner abriu seu voto em favor de Dias. Perderam ambos.

Prévia da Lava Jato

Esse caso praticamente não apareceu na mídia; ficou restrito ao noticiário local. O “caixa dois” não era tão visível como ficou após as farsas do “mensalão” e da Operação Lava Jato, apesar de ser público e notório — inclusive na Petrobrás, conforme relata um documento interno da empresa de 2000, mostrado no livro A mentira das urnas —, como demonstram os relatórios de várias CPIs da década de 1990.

Mas Sérgio Moro já estava atuando nesse meio. Antes da aprovação, em 2013, da lei que regulamentou a “delação premiada” ele se utilizou desse instrumento, em 2004, para reduzir a pena do doleiro Alberto Yousseff no caso envolvendo o empresário e ex-deputado estadual paranaense Antônio Celso Garcia, o Toni Garcia (do então PMDB), acusado de crime contra o Sistema Financeiro Nacional com a falência do Consórcio Nacional Garibaldi. Moro foi acusado de agir com arbitrariedade e abuso de autoridade com todos os advogados e de ter concedido imunidade a criminosos com a homologação de acordos de delação.

Ele usou esse instrumento também no caso Banestado, uma espécie de prévia da Operação Lava Jato. Foi ali que os procuradores e policiais aprenderam a usar os acordos de delação e a cooperação com outros países, sobretudo os Estados Unidos. Um deles, Carlos Fernando dos Santos Lima — que ficaria famoso na Lava Jato —, protagonizou, em 2003, uma cena descrita pela revista IstoÉ como um tour de force nos Estados Unidos para que a documentação da quebra de sigilo de várias contas, realizada pelo escritório da Procuradoria Distrital de Manhattan, não viesse à luz. Ele teria na gaveta um dossiê detalhadíssimo sobre o caso Banestado que recebera em 1998 — sua esposa, Vera Lúcia dos Santos Lima, trabalhava no Departamento de Abertura de Contas da filial do Banestado, em Foz do Iguaçu.

Em 2010, a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começou um julgamento só encerrado em 2013 em que foram contestados atos de Moro na Operação Banestado. As contestações foram encaminhadas ao Conselho Nacional de Justiça, onde a apuração foi arquivada. Gilmar Mendes disse, à época, que o caso mostrava um “conjunto de atos abusivos” e “excessos censuráveis” praticados por Moro. “São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior”, escreveu o ministro no acórdão da decisão, que resumiu o debate do julgamento.

Josef Mengele

O juiz federal Fausto Martin De Sanctis também criticou Moro por fazer, segundo ele, acordos de delação em que se fixava de antemão o benefício que o réu receberia. Um caso assim aconteceu com o megadoleiro Hélio Laniado, liberado após permanecer preso por 420 dias com a assinatura de acordo de delação premiada. Esse tipo de acordo já havia beneficiado também doleiros conhecidos pela Lava Jato, como Antônio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, e o próprio Alberto Youssef.

Delegados da Polícia Federal (PF) — muitos dos que atuaram na Lava Jato tiveram atuação político-partidária descarada — que conheciam os negócios de Laniado disseram que ele trabalhava para bancos e grandes empresas, segundo uma matéria do jornal Folha de S. Paulo. Laniado foi preso quando desembarcava no aeroporto de Praga, no dia 16 de agosto de 2005, de um voo vindo de Israel. Ele fugira para lá, onde havia obtido cidadania israelense após a Justiça Federal decretar a sua prisão. A Folha disse que foi o serviço secreto de Israel, o Mossad, que informou à Interpol que Laniado estava no avião, segundo dois delegados da PF.

Não se sabe bem por que o Mossad dedurou Laniado — um dos delegados levantou a hipótese de que poderia ser gratidão pelo esforço da PF brasileira em esclarecer o caso de Josef Mengele, o carrasco nazista cuja ossada foi descoberta em 1985 e posteriormente identificada, conforme a matéria. Moro, segundo a Folha, disse que não podia comentar o caso porque o processo e a decisão de liberar Laniado estavam sob segredo de Justiça.

Luzes da ribalta

Em 2010, cento e onze brasileiros foram investigados pela PF, acusados de enviar ilegalmente US$ 2,2 bilhões para uma agência do Israel Discount Bank, em Nova York, entre 2000 e 2005. O valor foi apurado pela promotoria de Nova York numa investigação sobre lavagem de dinheiro em decorrência dos casos do Banestado, Merchants Bank e Beacon Hill, todos usados por doleiros brasileiros.

Conforme informações da Folha de S. Paulo, a apuração demorou cinco anos para ouvir os suspeitos. Em 2006, a Justiça brasileira recebeu da promotoria de Nova York informações sobre 221 contas do Israel Discount Bank supostamente de brasileiros. Só em 30 de agosto de 2010 Moro mandou instaurar 111 inquéritos. Não há notícia, na mídia, dos seus resultados. No caso das delações e de depoimentos de muitos investigados na Operação Lava Jato que denunciaram esquemas de “caixa dois” — como o empresário Eike Batista e o “marketeiro do PT” João Santana —, nem inquéritos foram instaurados.

O jornal Público, de Portugal, publicou uma matéria sobre a Lava Jato, em 9 de agosto de 2015, e, às tantas, citou um artigo do então coordenador da Federação Nacional dos Petroleiros, Emanuel Cancella, dizendo que “a esposa do juiz Sérgio Moro, que está à frente da operação Lava Jato, advoga para o PSDB do Paraná e para multinacionais do petróleo”. “A denúncia foi publicada no Wikileaks”, teria dito o sindicalista. A matéria afirma, também, que Deltan Dallagnol, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, “é um evangélico engajado da Igreja Batista” e “busca as luzes da ribalta”.

– Manuel Domingos Neto, Roberto Amaral e José Genoino Neto: Washington não pode proclamar González

Manuel Domingos Neto
Roberto Amaral
José Genoino Neto

A política tem sua lógica, nem sempre clara à primeira vista, notadamente em tempo de mudanças radicais.

Está em curso a mais espetacular virada desde a queda de Roma. A supremacia anglo-saxã, imposta paulatinamente desde as circunavegações e revoluções burguesas, busca sobrevida perante a arrancada, até há pouco implausível, de desafiantes poderosos.

Os sinais de hecatombe se anunciam com a exibição de instrumentos de destruição em massa, o cerco à Rússia, a concentração de arsenais em torno da China, o estimulado ressurgimento da capacidade militar da Alemanha e do Japão, a tentativa de naturalização do genocídio em Gaza, os massacres incontáveis e invisíveis de africanos, a ardilosa capacidade de manipulação de comportamentos de indivíduos, sociedades e Estados pelas novas mídias e pelos múltiplos estímulos à bestialidade neonazista.

Ontem à tarde, Washington avisou aos latino-americanos: percam as ilusões de autonomia, domínio da riqueza própria, desenvolvimento integrado, respeito aos direitos humanos, superação de valores racistas e patriarcais, reconhecimento de povos originários e vida social em harmonia com a natureza: nada disso nos interessa, o mundo é dos fortes e nós somos os fortes. Washington não se move por nossos interesses.

Anthony Blinken, em outras palavras, encarnou a religiosidade consagrada em 4 de julho de 1776, segundo a qual o novo país seria terra da promissão e, por mandato divino, surgira para dominar o mundo. Encarnou também o recado de Monroe, emitido em 1823, segundo o qual ninguém d’além-mar se metesse em terras americanas.

Pleno de autoridade, Blinken declarou encerrada as eleições na Venezuela e proclamou eleito Edmundo González. Santificou os baderneiros à soldo de golpistas, atribuindo-lhes a condição de cidadãos de bem. Exigiu que as forças da lei não reprimissem o quebra-quebra terrorista.

Diante de um governo venezuelano envolto em procedimentos eleitorais demorados e de líderes latino-americanos demasiado prudentes, para não dizer desavisados, Washington atribuiu-se poderes de junta eleitoral no país que abriga a maior reserva de petróleo do mundo, projeta-se sobre o Atlântico e o Pacífico e é porta de entrada para a Amazônia.

Anthony Blinken ungiu-se da condição de porta-voz do povo venezuelano e da “comunidade internacional”. Ditou regras para “uma transição transparente” do poder na Venezuela. Com uma penada, jogou ao córner tratativas de entendimento com os maiores países latino-americanos: Brasil, México e Colômbia. Deixou três respeitáveis líderes democratas na condições de atores irrelevantes.

Trata-se de intervenção direta, sem meneios.
A arrogância desmesurada acaba prestando serviços aos latino-americanos: alerta os crédulos na profissão de fé democrática dos candidatos a donos do mundo.

Não há grandes novidades no processo vivido pela Venezuela. Muitos imaginavam que a lisura das eleições seria o grande objetivo de Washington. Preferiam esquecer o longo rol de intervenções que, desde o século XIX, impossibilitaram o exercício efetivo da soberania, a estabilidade política, o desenvolvimento socioeconômico, as reformas sociais e a integração latino-americana. Depositaram fé em bons propósitos de quem se acredita credenciado por Deus a organizar a vida no Planeta.

Os democratas e reformistas sociais latino-americanos estão diante de duas opções: acatar a sina de colono submisso ou rejeitar a vontade imperialista. Não se trata de apoiar ou rejeitar Maduro ou Gonzáles. Trata-se de defender a soberania venezuelana e, por extensão, a soberania dos países latino-americanos, lembrando que nenhum deles pode se defender sozinho.

Não se trata, ainda, de simpatizar ou não com programas governamentais que afetem a vida do povo venezuelano, eternamente saqueado pelo Império. Trata-se simplesmente do direito de cada Estado definir com autonomia suas políticas públicas e erradicar de vez a condição de Washington de xerife e tribunal do mundo.

A carência de petróleo de Washington não pode ser resolvida através da guerra.  Aliás, a guerra amplia desmesuradamente tal carência. A ordem mundial será digna quando as práticas de pilhagem forem substituídas por negócios vantajosos para as partes interessadas. Essa proposição se choca com a experiência histórica, mas não podemos deixar de sonhar com um mundo de paz.

Não existem perspectivas alvissareiras para a América Latina sem a formação de uma grande corrente que conjugue a luta contra o imperialismo com a luta pela democracia e por reformas sociais. A integração de esforços da América Latina não pode ser postergada.

Não vivemos numa ilha isenta das turbulências planetárias. Podemos entrar subitamente no olho do furacão provocado pela mudança da ordem mundial. As pretensões de Washington estão nos conduzindo neste sentido. É hora de nosso subcontinente tomar decididamente partido contra a presunção da unipolaridade.

A política tem lógica e a intervenção estadunidense na Venezuela escancara as pretensões imperiais dos Estados Unidos. Washington não tem direito de proclamar González presidente da Venezuela.

Defendendo o povo e o Estado venezuelano, defenderemos os povos do mundo.

– A visão do PCdoB sobre o Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

O plano de “estabilização da inflação” de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Plano Real, era o “esboço prático” de um projeto global, definiu o então vice-presidente Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Renato Rabelo. “Significa que esse novo governo das elites não será diferente dos precedentes.” A tentativa de juntar duas correntes dos setores dominantes – o “liberalismo” e a “social-democracia” – era um jogo de palavras, demagogia para salvar as aparências e tinha o mesmo efeito “de apresentar um círculo como se fosse um quadrado”.

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Era a expressão da aliança do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), surgido das entranhas da estrutura partidária que apoiou a ditadura militar. Estava no cerne dessa configuração partidária a semente da “reforma política”, o controle autoritário do debate político, tese que ficaria conhecida como “Plano Real na política” para confinar a representação dos votos em poucos partidos, alijando a participação do povo, restringindo a democracia. Seria o fortalecimento de partidos sem cor e com programa descartável, conformado para eleições, a serviço dos donos do poder e do dinheiro.

A reunião do Comitê Central do PCdoB nos dias 12 e 13 de novembro de 1993 avaliou que a conjuntura das eleições presidenciais de 1994 exigia candidatura única do campo democrático e progressista para enfrentar mais uma dura ofensiva do neoliberalismo. O PCdoB procurava a unidade em torno de uma plataforma comum. Seria a maneira mais eficaz para enfrentar as classes dominantes e levar uma candidatura popular à vitória.

Ataques indiscriminados

FHC, nomeado ministro das Relações Exteriores pelo presidente Itamar Franco, assumiu o Ministério da Fazenda em maio de 1993 e unificava quase toda a direita, condição que afastou definitivamente o PCdoB do governo, do qual havia se aproximado diante das promessas de que o projeto neoliberal ostentado por Fernando Collor de Mello, deposto pelo impeachment de 1992, não teria continuidade. A relação vinha abalada desde a venda da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 2 de abril de 1993, inaugurando o ciclo das privatizações selvagens do projeto neoliberal, justificada por Itamar como inevitável por já estar programada.

Em nota, o PCdoB afirmou que o presidente dependia do Congresso, de maioria conservadora, devido à situação especial em que chegou ao Planalto, mas não concordava com as concessões à antiga política de Collor. Rejeitava ataques indiscriminados a Itamar, sem ceder na exigência de soluções dos problemas que afligiam o povo, da necessidade de união a fim de enfrentar a crise e conduzir o país no rumo da retomada do desenvolvimento, da soberania, da superação da miséria, da garantia das liberdades democráticas e da independência nacional.

Estava em curso um astuto jogo midiático que ocupou o espaço do debate político para derrubar o favoritismo de Lula, que vinha bem à frente nas pesquisas de intenções de votos. O PCdoB, que havia lançado um manifesto conclamando os partidos de esquerda e progressistas a se unificarem em torno de uma candidatura, passou a ser duramente atacado. FHC puxou o coro para se defender das consequências da aliança com o PFL, acusando os comunistas – com quem se aliara nas eleições para senador em 1978 e prefeito de São Paulo em 1985 – de “totalitários”.

As articulações oposicionistas resultaram na Frente Popular, Democrática e Nacional, lançada em 21 de abril de 1994, um passo para a ampliação da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Tratava-se de um processo eleitoral que refletia o quadro de crise multilateral que o Brasil atravessava e as dificuldades das classes dominantes para aplicar o projeto neoliberal.

Núcleo forte de esquerda

Segundo Renato, o susto que tomaram em 1989, quando Lula chegou perto da vitória, não se repetia em 1994, com o candidato da esquerda consolidado na liderança das pesquisas. “Atualmente, eles vão encontrando Fernando Henrique como alternativa para enfrentar a candidatura popular. Se utilizam dos tais predicados do Fernando Henrique, homem honesto, que veio da esquerda, um tipo ideal para as classes dominantes.”

Apesar do favoritismo de Lula, Renato entendia que a disputa seria muito difícil. “A candidatura popular vai encontrar dificuldades muito grandes, porque as elites vão fazer de tudo para barrar seu avanço. Não podemos pensar que será fácil a vitória ou que iremos facilmente ao segundo turno, conseguindo derrotar o candidato das forças reacionárias. Achamos que vai ser uma campanha muito dura. Eles vão investir pesado”, alertou.

Cabia às esquerdas e às forças progressistas se unirem, segundo Renato. “Nós pensamos que a candidatura popular deve ter um núcleo forte de esquerda, mas também audácia para ampliar e construir alianças com outras forças. Não temos a visão de que a candidatura popular deva ficar só nos marcos da candidatura de esquerda. Pelo contrário. Com base nesse núcleo, devemos buscar outras forças políticas e sociais. Não só partidos, mas também personalidades políticas de expressão.” A conclamação do PCdoB por candidatura única foi bem aceita. Apenas o PDT não deu resposta positiva, preferindo lançar Leonel Brizola.

Exclusão e marginalização

Renato chamou a atenção para o papel dos Estados Unidos como superpotência unipolar, centro do projeto neoliberal representado pela candidatura FHC. A reestruturação e o ajuste que o capitalismo procurava fazer determinavam a relação entre países dependentes e ricos como contradição mais importante.

Ele alertou para as consequências da política neoliberal, que trazia em seu bojo exclusão e marginalização de parcelas cada vez maiores da sociedade, como mostravam os exemplos do México e da Argentina, países que atravessavam graves crises econômicas e sociais. O Brasil também já vivia uma realidade social grave, com uma crescente parcela de desempregados e marginalizados, e teria uma situação explosiva caso o projeto neoliberal vencesse, alertou. O cerco e as pressões do imperialismo para enquadrar o Brasil em seus planos eram crescentes.

Aquele objetivo motivava a busca incessante da classe dominante brasileira por um novo “engate” internacional e chegava às submissões mais vergonhosas. “Tais reformas seguem receituário semelhante ao da Argentina, do México, do Chile etc. Em resumo, são assim definidas: diminuição do Estado, privatização das empresas estatais, liberalização e flexibilização das relações trabalho-capital (ou seja, a negação de importantes conquistas sociais), rápida liberalização do comércio exterior e ‘parcerias’ internacionais ou nova associação com o capital estrangeiro.”

O “ajuste” perseguido, continuou Renato, mantinha a trilha das deformações do capitalismo brasileiro, elevando e aprofundando a dependência do país. “Este tipo de ajuste gera um cenário de maior desigualdade social, com o aumento das camadas excluídas do processo econômico e a concentração ainda maior do poder de consumo. A fim de garantir os compromissos de uma dívida externa impagável, o país se submete às exigências de enormes reservas de moedas fortes (à custa de quem?) impostas pelo capital financeiro internacional, para dar garantias aos credores e lastro que possa estabilizar uma nova moeda.”

Grande susto

A formação de um bloco de forças que atualizasse as bandeiras democráticas, em defesa dos direitos das grandes massas, seria a resposta àquela situação, a continuidade do projeto de cunho popular, agora assentado em base social mais ampla e numerosa, prosseguiu Renato. Após o declínio do regime militar, boa parte dessas forças, antes amordaçadas e reprimidas violentamente, colocou-se em movimento, participando do processo de democratização política, da vitória da anistia, da convocação da Constituinte, dos êxitos na elaboração da Constituição de 1988, da grande mobilização pelas Diretas já! e da vitória da luta pelo impeachment de Collor.

Na sucessão presidencial de 1989, contando com um programa que começou a articular as bandeiras do campo popular e progressista, por meio da Frente Brasil Popular, as forças populares quase obtiveram a vitória, registrou. “As classes dirigentes foram tomadas de grande susto. Não esperavam tal desfecho e tiveram de convergir todo seu poder à candidatura Collor.”

Com aquele histórico, disse Renato, a sucessão presidencial de 1994 só podia ser compreendida a partir das raízes e características da evolução histórica do Brasil. Ela não estava desligada do processo de contradições políticas e econômico-sociais em curso, sobretudo após a Nova República. Havia uma nova crise conjuntural, marcada pelas particularidades daquele momento eleitoral. “A polarização político-econômica resulta de um processo de concentração de rendas cada vez maior”, analisou.

Era uma lógica do capitalismo, própria de sua essência, porque a globalização da economia só avançava com uma centralização financeira. “A grande oligarquia capitalista no Brasil acabou se enquadrando na nova fase e busca outras formas de associação, tornando-se, assim, centralizadora do capital, dos meios de comunicação, do poder. Nesta realidade interna, não se projetam mais os tempos da Guerra Fria, a contradição Leste-Oeste. Nela se reflete outra contradição, a Norte-Sul, como consequência das imposições reestruturantes fixadas pelos países centrais, imperialistas, aos países periféricos, dependentes, que têm de se submeter a relações cada vez mais desiguais.”

Credo neoliberal

Segundo Renato, o acirramento da polarização desencadeou o impasse. Havia uma encruzilhada, que se revelava, em termos gerais, na contraposição de dois projetos: ou prevalecia o caminho neoliberal, “que deteriora intensamente a grave situação social e submete o país à nova ordem mundial imperialista, ou a resistência na busca de um novo caminho, de base nacional, democrática e popular, que concretize, no plano interno, ampla coalizão de forças política e sociais, e, no plano externo, a formação de uma frente dos países e povos dependentes, pela retomada do desenvolvimento com independência e progresso social”.

Aquele quadro de crise e confronto de dois projetos definiria a sucessão presidencial, disse Renato. Depois do susto de 1989, as classes dominantes tudo faziam para amainar suas próprias desavenças políticas e regionais. “Articulam-se nervosamente na busca de um personagem contra Lula, esforçando-se para chegar a um candidato único, no qual pretendem concentrar todo o seu poderio”, afirmou.

As oligarquias mais poderosas encontraram seu escolhido na pessoa de FHC, que, convertido ao credo neoliberal, agia como um “cristão novo”, resumiu. “Tem de aprovar seu plano atual, que já encampa o artifício da dolarização, a última palavra em matéria de planos encomendados ao FMI para países da América Latina.”

Renato alertou que a candidatura de FHC, apresentada como de centro-esquerda pelas elites, moldada com a ênfase no seu passado de intelectual de prestígio e de esquerda, não deixava de ser burlesca. “Acabam admitindo o prestígio da esquerda, apesar da manipulação pela permanente propaganda em contrário. Dessa maneira, a fina flor dos setores mais ricos de nossa sociedade, em parceria com seus cupinchas externos (segundo o jornal Financial Times, FHC é o favorito dos ‘mercados’), monta um perfil farsante”, enfatizou.

Além de uma exclusão social sem precedente, continuou Renato, a propalada “modernidade” resumia-se à competição na era dos oligopólios, dos conglomerados gigantes. “A disputa está situada nessa escala”, disse. “A mídia internacional, porta-voz do capital, não esconde sua preferência por Fernando Henrique. E as viúvas da ditadura e os setores reacionários falam abertamente da necessidade de usar todos os meios para impedir ou ‘prevenir’ o êxito da esquerda”, disse.

A candidatura popular refletia o nível da polarização política e sintetizava a fisionomia da corrente histórica democrático-popular que vinha se construindo, principalmente após 1930. “A proposta defendida pelo Partido Comunista do Brasil de forjar uma ampla frente nacionalista, democrática e popular, que garanta e, ao mesmo tempo, vá além da vitória eleitoral, é justa e responde às necessidades atuais”, defendeu Renato. “Para alcançar o resultado favorável, é preciso ir além dos marcos de uma única força partidária. Precisamos aprender com a história”, concluiu.

Ameaça à democracia

O PCdoB avaliou a vitória de FHC como ameaça à democracia. A Resolução política do IX Congresso, de 1997, alertou para esse risco. As políticas neoliberais estavam no centro do diagnóstico da realidade mundial e brasileira. “Estas constituem flagrante ameaça à democracia, aos direitos dos trabalhadores e dos povos e à soberania nacional da grande maioria dos países, conformando um período histórico de regressão de todas as conquistas democráticas, sociais e culturais da civilização”, disse Renato

Segundo ele, o neoliberalismo tem nos Estados Unidos, precursores e principais beneficiários da política de flutuação da moeda desde 1973, o centro da liberalização e da desregulamentação financeira e cambial. “A política monetária estadunidense passou a ser, em última instância, a reguladora do mercado financeiro mundial instável e descontrolado, liquidando a possibilidade de uma política econômica e financeira autônoma para a maioria dos países do mundo.”

Cabia ao Partido, disse Renato, trabalhar por uma plataforma contra o neoliberalismo. “Lutamos, sim, pela definição de uma plataforma ampla e consequente. Neste momento, o esforço que empreendem os quatro partidos de esquerda (PCdoB, PT, PDT, PSB) na elaboração de uma plataforma comum antineoliberal é a justa conduta a trilhar”, afirmou. A ideia, segundo Renato, era formar uma frente que unisse os partidos de esquerda, intensificasse a luta política de massas e isolasse ao máximo os blocos aliados a FHC.

Denúncias de corrupção

Renato tomou a frente de um processo político que teria decisiva consequência nas eleições presidenciais de 1998 e de 2002. O PCdoB vinha conversando com os partidos de oposição para transformar os protestos que se levantaram contra o neoliberalismo num movimento unitário. Foi quando surgiu a ideia de formação da chapa com Lula candidato a presidente e Brizola, vice. “Eu e o Amazonas (João Amazonas, então presidente do PCdoB) conversamos com o Brizola, essa questão de ser o vice”, recorda Renato.

A chapa Lula-Brizola era uma opção real de poder, “um novo modelo para a sociedade e a economia brasileiras”. “Modelo que privilegia os trabalhadores, os setores produtivos e a ampla maioria da população. Modelo constituído por um governo pluripartidário, de base popular, apoiado pelos mais diversos segmentos da nação e na democratização crescente da vida nacional”, disse. “Devem ser consequentes nas denúncias e indignação com o entreguismo deslavado do governo FHC e a grave crise social por ele gerada. Desmascarar as falsidades divulgadas pela propaganda chapa branca do pensamento único.”

Enquanto a oposição se organizava, a direita se movimentava para manter FHC no poder. Num processo marcado por denúncias de corrupção, o Congresso Nacional aprovou a emenda constitucional que instituiu a reeleição para presidente da República e governador. Mas o agravamento da crise mundial jogava contra as ambições de FHC. A economia, dominada pela agenda neoliberal, enfrentava verdadeiros dramas na Ásia e na América Latina.

Em meados de 1998, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa do instituto Datafolha de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico. A mídia entrou em cena com ataques a Lula num ponto sensível: a política econômica. FHC seria reeleito no primeiro turno.

Logo depois, o governo fechou o primeiro acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mergulhando o país numa era de incertezas, inclusive institucional. Segundo Renato, as eleições tiveram uma característica forte de tentativa de despolitização e desideologização, feita pelas classes dominantes. “Contra essa tendência, houve um grande esforço de politização por parte do PCdoB, em especial das campanhas de nossos candidatos a deputado federal. Esse nosso esforço teve um resultado bastante favorável.”

FHC queria uma eleição silenciosa, sem mobilização e comícios, sem povo nas ruas, de acordo com Renato. Não houve sequer um debate nacional. “Foi uma eleição que decorreu em período extremamente curto, com um pequeno período de utilização de rádio e TV. Essa orientação governista nacional refletiu-se nas eleições estaduais, que também foram despolitizadas, abordando mais problemas localizados em cada área da Federação.”

Conto de duas cidades

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Renato lembrou a frase do romancista Charles Dickens, no livro Um conto de duas cidades, publicado em 1859 narrando uma história que se passa entre Londres e Paris no período da Revolução Francesa, para dizer que os resultados das urnas configuravam o “melhor” e o “pior” dos mundos para as distintas forças envolvidas. Ele avaliou que o resultado das urnas não fora de todo favorável ao governo.

Segundo Renato, as oposições registraram avanços no segundo turno para o governo de estados. “Um ‘terceiro turno’ vai mostrando seus contornos, com o aprofundamento da crise econômico-financeira, o início de um esgarçamento da base de apoio governista, gerando instabilidade que leva a um quadro de crise política, o ressurgimento das forças centristas com um discurso crítico ao governo FHC e as possibilidades de ampliação da frente oposicionista.”

Renato fez um minucioso relato do resultado geral das eleições e concluiu que a oposição tendia a se fortalecer. Era preciso localizar tendências e resultantes naquele quadro contraditório, observou. Tendo em conta a evolução da crise econômico-financeira, constatava-se o surgimento de um novo quadro político. “O segundo mandato de FHC já estará prenhe de ingrediente demolidor do primeiro, que se encerra. O cenário atual parece ser o de final de governo”, diagnosticou.

No fundo, delineava-se o crescimento da crise do sistema capitalista “globalizado” e seu impacto na crise em curso no Brasil, que já atingia a maioria da nação. “Esta realidade se reflete numa crise da própria concepção neoliberal, neste final de década”, avaliou Renato. “O resultado imediato será um processo depressivo de difícil reversão.”

Politicagem rasteira

Naquele cenário de rápida degradação econômica e social, FHC entregava-se à politicagem rasteira, desconsiderando a fronteira entre o público e o privado, segundo Renato. “Sobre ele se avolumam as suspeições acerca do processo de privatização, feito a toque de caixa. O governo usa todas as artimanhas para impedir que a sociedade comece a tomar conhecimento do que realmente acontece por trás dos rumorosos negócios das privatizações.”

Segundo Renato, o governo estava cada vez mais refém dos grandes magnatas financeiros e, mais uma vez, do FMI. “A sua lógica é pagar com presteza e em tempo aos investidores financeiros. Subsidiar banqueiros e, até mesmo, o capital especulativo”, falou. E mais: “Fernando Henrique rasgou a Constituição e torna-se cada vez mais autoritário. O presidente da República perde a credibilidade e vai predominando uma situação de ingovernabilidade.”

Colocava-se na ordem do dia a necessidade de fortalecer a unidade da frente oposicionista democrática e popular, consolidando “um amplo movimento em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho”. “Defendemos a substituição de FHC por um novo governo, de base democrática, patriótica e popular”, afirmou. “Vai ganhando convicção entre círculos cada vez maiores do povo de que é preciso Fernando Henrique estar fora do governo. Impõe-se a luta pelo fim mais rápido deste governo. Assim, é necessário mobilizar e conscientizar o povo para a denúncia contra o presidente da República por crime de responsabilidade, abrindo assim caminho para a vacância da Presidência e convocação de novas eleições através de medida constitucional.”

Regime ditatorial

Segundo Renato, para tornar realidade seu projeto antinacional e antipopular, o governo estava revogando, sucessivamente, em sua linha geral, a Constituição de 1988, como havia denunciado o renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Melo. “Toda Constituição tem, implícita ou explicitamente, uma linha geral. Na opinião de Bandeira de Melo, esse projeto neoliberal que foi adotado no Brasil é uma antítese dessa linha que constitui a espinha dorsal de nossa Constituição”, denunciou.

Além disso, prosseguiu Renato, FHC governava com medidas provisórias anticonstitucionais, “na opinião de parte dos juristas”. “Na realidade, o governo de Fernando Henrique vai edificando, progressivamente, o que vem sendo denominado por inúmeros juristas independentes de um regime ditatorial ‘constitucional’. As emendas constitucionais de FHC também são anticonstitucionais por ferirem o âmago da concepção de Estado subjacente à nossa Constituição de 1988.”

Com o aprofundamento da crise em todos os terrenos, FHC iniciou, na opinião de Renato, seu “novo” governo já envelhecido, numa situação de descrédito crescente diante da população e começo de erosão de sua base de sustentação política. “Não somente a crise desse modelo governista precipita as divergências entre os componentes de sua base, como também os objetivos próprios de cada setor que apoia o governo, por conquista de melhores posições e espaços políticos hoje, visando melhores condições de disputa nas eleições de 2002.”

A posição mais justa seria considerar que o governo tomara um rumo sem retorno, avaliou. “A política atual aprofunda o modelo neoliberal. A recessão imposta só vai agravar a crise social em curso, com o problema do desemprego, diminuição dos salários, aumento significativo da pobreza, falências de empresas. É preciso alertar a maioria do povo sobre a responsabilidade do governo federal por ter levado o Brasil à situação atual de retrocesso e de depressão econômico-social”, disse. “Hoje, FHC já não tem mais base de sustentação. Seu governo já nasceu morto. A base política dele entrou em erosão.”

Chantagem e intimidação

O Brasil precisava de novo rumo, de uma ruptura com aquela orientação política, de um projeto de mudanças que fosse capaz de promover a reconstrução nacional, a transformação social e a mais ampla liberdade política, indicou. “O país não aguentará mais uma metade de década de crescimento estancado e pode se tornar neocolonizado. Não se pode subestimar tamanho risco ao destino de nossa pátria. Agora, o governo FHC e seus cúmplices, apoiados em vastos recursos, sustentados por grandes interesses internos e externos, compram a cumplicidade e o apoio político, visando a manter sua base de sustentação, a retomar a iniciativa e a isolar a oposição.”

A subida de Lula nas pesquisas provocava verdadeiro sobressalto na seara do Planalto e dos grandes círculos financeiros internacionais. Começava a repetição da chantagem e da intimidação, a falácia de que a vitória da oposição traria o caos, afetando seriamente o investidor estrangeiro. “Tudo isso conduzido com grande estardalhaço pela mídia brasileira. As agências financeiras a serviço do grande capital transnacional decretaram que o Brasil aumentou de risco, rebaixaram a recomendação dos títulos brasileiros, pressionando assim para a retomada da alta dos juros já extremamente elevados”, denunciou Renato.

Eram as vozes do continuísmo, que passaram a pregar a surrada prédica do despreparo de Lula. “Porém, a verdade é que os dois governos de Fernando Henrique, com o acúmulo de seus desastres econômico e social, já não convencem a grande maioria do povo das ‘virtudes’ de sua estabilidade. Desta feita, o governo não conseguiu nem mesmo manter sua base política para o embate eleitoral de 2002. A candidatura Serra (José Serra, do PSDB) derrapa, vive uma crise de identidade, não sabendo como se apresentar: ou é continuidade ou é mudança.”

Carta entregue a FHC

O país enfrentava mais uma ameaça de crise cambial. “Essa orquestração continuou no mesmo diapasão num segundo momento, com o convite de FHC aos candidatos à Presidência da República para tentar comprometê-los com o acordo (com o FMI) e demonstrar que ainda governa”, disse.

No encontro, dia 19 de agosto, Lula entregou a FHC uma carta na qual dizia ser urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liquidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.

Renato denunciou que a mídia, como sempre comprometida com os grandes círculos financeiros, deitava loas sobre a “iniciativa democrática” do encontro dos presidenciáveis com FHC, afirmando que “a democracia está de parabéns”, que o evento foi uma demonstração de “maturidade política” e que o 19 de agosto foi um “dia histórico na vida republicana”, dentre outras coisas do gênero.

Segundo ele, a encenação, na prática, ficou restrita ao seguinte roteiro: FHC disse que todos os candidatos aceitaram o acordo; e todos os candidatos – evidentemente com a exceção do governista, José Serra – disseram que a responsabilidade pela situação atual é do governo e que é preciso outra política econômica. “Até mesmo Fernando Henrique confessou que mudaria também alguma coisa”, ironizou.

Por que aquele festival de fanfarronadas sobre “maturidade política”?, indagou Renato. “Na realidade, a crise que atravessa o país é muito, muito grave. FHC, com sua política neoliberal e seu profundo comprometimento com os grandes círculos financeiros internacionais e nacionais, levou o país a um grande impasse. O Brasil passou a viver uma situação de enorme vulnerabilidade externa, agravada com o quadro de crise financeira mundial, cujo centro hoje não é mais a periferia, mas a principal praça da economia e finanças mundial: os Estados Unidos.” A luta primordial era “pela busca de novo rumo para o Brasil”, resumiu.

– A UNE, a mídia torpe e o processo civilizatório.

O coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas contra a União Nacional dos Estudantes (UNE) é mais um exemplo de que falta à mídia elementos básicos ao exercício do jornalismo — como caráter e espírito democrático, valores que deveriam ser preservados.

Chamo de caráter a capacidade de manter princípios, independente da situação e do momento. O contrário disso é o casuísmo — quando o sujeito troca de premissas, de opinião e de ponto-de-vista ao sabor daquilo que está acontecendo ao seu redor naquele instante. Casuísmo, como está claro, é um dos aspectos da falta de caráter.

O casuísmo aqui, como no dito popular, é bater na canga para o boi andar. Ou seja: batem na UNE para atingir o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva — assim ocorre, vire e mexe, também com o MST, com o movimento sindical e com outras organizações de origem popular. É a campanha da direita para criminalizar os movimentos sociais. Outro valor fundamental da civilização é a democracia. Esse deveria ser um alicerce inegociável na construção de cada um de nós. No entanto, é de assustar o quanto a democracia anda frágil no convívio jornalístico da mídia. Estamos vendo isso ao vivo e em cores nessa cruzada contra a entidade máxima dos estudantes.

Falta para essa gente que comanda a mídia civilidade. Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra abusos como estes. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a “liberdade de imprensa” não passa de balela.

Conclusão inescapável

Essa civilidade poderia ser fruto de uma sociedade mais madura do que a nossa, em que a democracia seria de fato um valor essencial, cravado mais fundo na nossa alma. Seria fruto de uma sociedade com a consciência de que existem regras mínimas de convivência que se não forem levadas a sério acabam levando ao caos social e à guerra entre concidadãos. Numa palavra: falta a essa gente levar a sério a serventia da democracia. Democracia é, acima de tudo, reconhecer os direitos do outro. No meio jornalístico da mídia, costuma-se pensar em democracia como garantia para seus abusos. Podendo, ele cassa os direitos dos seus adversários — como ocorre de modo flagrante nesse caso.

O que está se passando com a UNE é ignóbil, abjeto. Há caso de ultraje pessoal. O Blog do Noblat, por exemplo, publicou que o presidente eleito da entidade, Augusto Chagas, tem “cara de néscio, jeito de néscio e pensa como néscio”. Ele é descrito como um mentecapto, “cevado pelo PCdoB” para “repetir velhos clichês” e “defender posições ditadas por seu partido”. É um jornalismo asqueroso, indigno e vil. “Quer dizer: a UNE vai de Dilma Rousseff. Nada mais natural”, diz o post, revelando o motivo politiqueiro para tamanha torpeza. Essa gente tem o hábito de julgar os outros pelos seus defeitos. Sórdidos, brandem patrocínios de entidades estatais aos eventos dos estudantes para agredir a lógica — como se eles não recebessem quantias infinitamente superiores para difundir suas torpezas.

Filme Twister

O controle da liberdade de imprensa no Brasil pelo poder econômico não será removido enquanto este modelo de jornalismo alicerçado pelo golpe militar de 1964 — promovido pelos grupos privados para assaltar o Estado e moldá-lo à sua imagem e semelhança — não for demolido. Os grupos que controlam com poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil pretendem controlar, ao mesmo tempo, as verbas publicitárias, o trabalho dos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicação, a produção cultural, as informações prestadas por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal dos cidadãos e as ações do Ministério Público. A conclusão é inescapável: os grupos que controlam a mídia brasileira fogem da democracia como o Diabo da água benta.

O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente. Afinal, a julgar pelo noticiário vivemos uma sucessão infernal de crises: elas mal começam a pipocar, em pouco tempo desaparecem, se esfumaçam como aqueles tufões que aparecem no filme Twister.

Emoções e realidade

É uma tentativa desesperada de subverter os resultados das pesquisas que dão altos índices de popularidade ao governo Lula. O Brasil conhece bem, e há muitos anos, a situação de ter dentro de si diversos países diferentes convivendo ao mesmo tempo. No presente momento, a diferença que mais chama a atenção é a existente entre o Brasil da calamidade e o Brasil do progresso. O primeiro, como dizem os mestres-de-cerimônia ao introduzir algum personagem que todo mundo conhece, dispensa apresentações: é o Brasil da elite em particular e da mídia, visível todo dia e a qualquer hora num noticiário político que cada vez mais se parece com os programas de palhaçadas.

O segundo Brasil é o país do trabalho, do mérito e do progresso — tão real, tão visível e tão vigoroso em suas virtudes quanto o primeiro é vigoroso em seus vícios. A questão mais relevante do momento, do ponto de vista prático, é determinar até onde o país da mídia pode piorar — e os fatos mostram que ele tem tudo para continuar piorando — sem que isso torne inviável o país do avanço. É muito fácil, diante da degeneração crescente da mídia, concluir que o filme já terminou e o bandido acabou ganhando.

Mais difícil, porque dá mais trabalho, é separar as emoções das realidades — e quando se faz essa tarefa com aplicação e cabeça fria o que começa a tomar forma é a possibilidade de que esteja ocorrendo exatamente o contrário. A direita continua perdendo terreno. Como diria Lula, o que se pode dizer com certeza, hoje, como nunca antes na história deste país, é que encontram-se em operação forças positivas que jamais haviam se manifestado de forma simultânea. O problema é que isso faz aflorar o que há de pior na mentalidade da direita. Só mesmo golpes baixos para reverter essa situação. É nisso que os golpistas apostam.

Um incêndio por dia

Seria ótimo se este processo pudesse evoluir a ponto de passar o Brasil a limpo realmente — de alto a baixo, de forma justa, ética, democrática e séria. Mas no jogo político da direita, infelizmente, a torpeza é moeda corrente. O problema é que o país já está em campanha eleitoral e a mídia tem o seu programa de governo. Oportunistas de diferentes matizes e chacais enraivecidos são acionados diuturnamente para difundi-lo. Nessa selva, nunca se sabe onde está o inocente útil e onde está o vilão oportunista. O jogo é pesado.

Será preciso muita estabilidade emocional para enfrentar o que vem por aí. As cidadelas da direita já deixam antever sua baixa tolerância às contrariedades. Dá para imaginar como o campo conservador reagirá diante da realidade hostil ao seu projeto de governo daqui para frente. Vamos enfrentar um incêndio por dia. Eles ignorarão o povo, com o qual não conseguem dialogar, e o próprio bom senso para impor o seu coquetel anti-Lula. O ataque cerrado à UNE faz parte desse jogo sujo da direita.