Biografia de Renato Rabelo retrata frondosa árvore da notável floresta socialista

Biografia de Renato Rabelo: Frondosa árvore de uma notável floresta

Por Adalberto Monteiro

Quando uma árvore, por seu porte, por suas raízes profundas, por inúmeras floradas e iguais colheitas proporcionadas, por tantas sementes dela germinadas, desponta-se em uma alta floresta, vem de quem a enxerga a indagação de quanto disso e daquilo ela teve de enfrentar e vencer para adquirir aquela presença destacada, valorizada, naquela paisagem por si só rica e diversa.

A biografia de Renato Rabelo, pelo trabalho arguto e meticuloso do historiador e biógrafo Osvaldo Bertolino, dá-nos acesso às páginas da vida deste destacado dirigente do PCdoB e ao mapa de uma longa e realizadora militância revolucionária. O livro é uma realização da Fundação Maurício Grabois, da qual Renato é, hoje, o presidente de honra.

Trata-se de um trabalho de mais de três anos, alicerçado em pesquisas, apoiado em fontes, muitas até então inéditas; além, é claro, de horas e horas de gravação com o biografado. Osvaldo, não fosse historiador, biógrafo, poderia ter sido roteirista de cinema. Por vezes, leitor, leitora, a fluência do texto nos faz ver, enxergar, assistir, sentir fatos vividos por Renato. Riqueza de detalhes, reconstituição de cenários e circunstâncias, mas sempre marcando o significado de cada episódio.

As minúcias são na verdade chaves através das quais somos transportados aos portais do tempo. Quais a senha e a contrassenha que os/as estudantes delegados/as tinham que pronunciar para ter acesso ao clandestino XXVIII Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE)? Quem é o personagem da palavra de ordem entoada pelas passeatas estudantis de meados dos anos 1960: Osso, osso, abaixo o sem-pescoço?

A biografia de Renato flui, pela maestria de Bertolino, carne e unha com a história do Brasil, entrelaçada com as histórias da Ação Popular (AP), da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, também, do movimento comunista internacional. Vê-se a presença destacada de Renato em batalhas e confrontos decisivos para o Brasil e para o proletariado, a luta pelo socialismo nas últimas seis décadas e um rol de feitos e realizações de sua militância.

O Índice Onomástico da obra evidencia um conjunto numeroso de nomes de quadros e lideranças da AP e do PCdoB, que torna patente o trabalho coletivo que Renato sempre valorizou como método de trabalho; e, também, de personalidades dos campos democrático e popular do país que, por sua vez, refletem a política de alianças amplas do PCdoB da qual Renato é um dos elaboradores e protagonistas na aplicação. Os textos, neste livro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidente Dilma Rousseff bem simbolizam a dimensão destas relações de aliança, bem como a estatura do legado político de Renato.

Um dos méritos da obra de Bertolino, aliás um dos traços também presentes em biografias anteriores, é não circundar nenhuma auréola em torno da cabeça do biografado. Movimenta-se, então, um Renato substantivamente humano, terrestre, como você, ele, ela e eu, que tem família, que se diverte, que se embevece com uma taça de vinho, que se entristece, que tem saúde, que adoece, que trabalha muito, acerta e erra. A vida sempre modesta, por vezes, duramente difícil, de Renato e da família.

Em diferentes circunstâncias, a biografia ressalta duas características dominantes da personalidade de Renato: a empatia e a imensa capacidade de ouvir e de, assertivamente, interagir com a ideias a ele apresentadas, mesmo que delas tenha divergência; e a coragem política, a firmeza de tomar decisões.

Uma essência transborda da biografia de Renato: sua maior obra e legado é ter aportado, ao acervo teórico, político e ideológico do Partido Comunista do Brasil, importantes contribuições teóricas e políticas que enriqueceram o pensamento tático, estratégico e programático da legenda comunista, como também a práxis de sua edificação e atuação na arena da luta de classes. A isso se soma um elenco de quadros comunistas em relação aos quais o papel de Renato foi destacado para formá-los, seja na Escola Nacional João Amazonas, seja na estrutura do Partido, seja nas frentes de atuação, notadamente no movimento estudantil.

E este aporte alinhava o fluxo da biografia, revelando-nos em que circunstâncias, no curso de quais confrontos da luta de classes, no Brasil e no mundo, o legado de Renato foi se erguendo.

E, temporalmente, isso se dá ao longo de mais de sessenta anos de militância. O marco zero deste itinerário é o final dos anos 1950, quando, no interior da Bahia, no último ano do colégio, assumiu a secretaria geral do grêmio estudantil. Segundo Osvaldo Bertolino, Renato “queria conhecer Salvador, ver o Brasil, tomar pulso do mundo”. Sonho que, como se sabe, concretizou-se.

A sua jornada de lutas se inicia no âmbito da juventude católica, orientada pela Teologia da Libertação. E, logo a seguir, nas fileiras revolucionárias da Ação Popular, e, a partir de 1973, após incorporação desta organização à legenda comunista, no núcleo dirigente do PCdoB. Trajetória essa que chega ao ápice no período de dezembro de 2001 a maio de 2015, quando, por indicação de João Amazonas, liderança histórica dos comunistas, Renato é eleito pelo Comitê Central para exercer a presidência do Partido Comunista do Brasil.

Uma vida longa é a um só tempo privilégio e desafio. Desafio, pois que, quaisquer que sejam as vicissitudes, a liderança comunista é chamada a descrever uma linha de coerência. Da primeira página até a última do livro, o que costura o itinerário de lutas de Renato são três palavras: coerência, convicção e compromisso, com ideais do comunismo, com um projeto de nação, de um Brasil democrático, soberano, socialista, que abraçou com ardor e consciência desde a juventude.

A maturação da têmpera revolucionária de Renato, o processo cumulativo de suas qualidades respondendo às responsabilidades cada vez mais elevadas de mandatos oriundos do coletivo, deram-se consoante, sobretudo, à dinâmica da luta política do país, mas também sob os impactos dos conflitos e confrontos que se irromperam na realidade mundial e, é claro, das vicissitudes do movimento comunista brasileiro e internacional com suas vitórias, mas, também, com suas divisões e seus reveses.

O retrato de Renato, pelos traços de sua biografia, revela uma liderança de ação, de combate, de verdadeira gana por intervir nas principais lutas sociais, políticas, ideológicas, travadas no país nas últimas seis décadas. E, ao mesmo tempo, sistematiza e generaliza a prática transformadora, estuda, elabora, a partir do marxismo, formulações que buscam responder aos nexos principais da luta de classes em cada momento histórico, jamais se deixando aprisionar por verdades pétreas.

E sempre que a prática e o curso da história revelam erros ou insuficiências, com base no método leninista da crítica e da autocrítica, abraça ou participa da gênese do novo, que faz a teoria e a prática avançarem.

Para completar, o terceiro traço do retrato se avulta: construtor do Partido Comunista do Brasil, com a seiva da luta política e de massas, com a teoria marxista-leninista a toda carga, com sua essência transformadora iluminando a prática revolucionária.
Finalmente, a biografia de Renato é um acervo vivo e pulsante de ideias e práticas transformadoras, de convicções e de energia revolucionárias que nos convidam, nos convocam, a prosseguir as jornadas de lutas pela construção do socialismo em nosso país.

Adalberto Monteiro é jornalista e poeta, secretário nacional de Formação e Propaganda do PCdoB

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Serviço:

Título: Renato Rabelo – vida, ideias e rumos
Autor: Osvaldo Bertolino
ISBN: 978-65980456-4-7
Publicação: Fundação Maurício Grabois
Ano de publicação: 2025
Páginas: 848

Fonte: www.gradois.org.br

A agressividade dos senhores da terra contra Lula

Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho,  9/7/2003

Se dividirmos o Estado do Rio Grande do Sul no sentido horizontal, teremos água e vinho, literalmente. A metade norte do Estado, colonizada por italianos e alemães, foi estruturada em minifúndios — assim como a maioria dos outros dois Estados da região sul, Paraná e Santa Catarina. Já a metade sul do Rio Grande do Sul foi estruturada em grandes concentrações de terra — assim como a maioria do Brasil. Enquanto o norte comemora a fartura com vinho — como a famosa festa da uva, em Caxias do Sul —, o Sul faz água com suas enormes estâncias cercadas de populações empobrecidas. Esse quadro sulista é a um só tempo uma fotografia do que o Brasil tem sido e do que poderia ser. As regiões das Missões, do Alto Uruguai e da Serra, ao norte, assim como as regiões Norte, Noroeste e Oeste do Paraná, correspondem à ideia que o resto do Brasil faz do sul: lavouras verdejantes, comércio forte, cidades em progresso. São lugares onde a fome, o analfabetismo e a mortalidade infantil não são tão escandalosos como em outras regiões do Brasil. Já as regiões da Campanha e das fronteiras Sul e Oeste do Rio Grande do Sul não guardam muita distância do que ocorre nos sertões do resto do país.

Essa fotografia social pode ser explicada pelo modo como aconteceu a colonização no Brasil. Enquanto os Estados Unidos atraíam imigrantes distribuindo a eles lotes de terra para que produzissem de modo autônomo, a elite brasileira decidiu resolver o problema da falta de trabalhadores promovendo uma imigração forçada de escravos como mão-de-obra barata para os fazendeiros. Somente alguns trabalhadores puderam ter a própria terra, mas bem longe de onde o país estava estabelecido — primeiro no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e depois desbravando matas no Norte, Noroeste e Oeste do Paraná. A abolição da escravatura não eliminou a estrutura oligárquica: antes o dono da terra tinha escravos, agora tinha vassalos. Tampouco a Revolução de 1930 e a industrialização do país mudaram essa ordem que, de certa forma, também se estabeleceu nos minifúndios do sul. A condição de senhor da terra não se alterou e segue solidamente instalada no campo como ideologia dominante. Os coronéis estão representados em todas as esferas da política nacional e seus jagunços continuam atirando a esmo em trabalhadores que lutam por um pedaço de chão.

É fundamental que o Brasil democrático chegue aos latifúndios

Nos anos 1970 e 1980, a ditadura militar empurrou muitas vítimas da concentração de terra para a Amazônia. Junto com elas foram muitos aventureiros que viram nesse gesto dos governos militares a oportunidade de expandir suas fronteiras latifundiárias para o Norte do país — cortando árvores e destruindo ecossistemas mais antigos do que a própria humanidade para plantar soja e criar gado. Muitos dos que foram para lá atrás de terra acabaram constatando logo que aquele solo não se presta à agricultura e sobrevivem do extrativismo predatório da floresta, derrubando árvores milenares para garantir pequenas plantações ou ganhando uma mixaria para jogar mercúrio no rio atrás de minerais preciosos. Esse quadro camponês paupérrimo, enfim, poderia ser radicalmente alterado ao custo de umas poucas leis e diretrizes administrativas. Não faz sentido um país com a extensão do Brasil ostentar um cenário de Idade Média em pleno século XXI. Evidentemente, para essa alteração seria necessário que o governo promovesse uma inflexão no campo.

É fundamental que o Brasil democrático vá até os latifúndios e troque de lugar com os muitos fora-da-lei que hoje dominam vastas regiões improdutivas. Aos aventureiros sem escrúpulos, que se estabeleceram em terras devolutas e se sentem na casa da mãe Joana, caberia aplicar uma receita básica: rua, lei e cadeia. Mas nada se fará enquanto essa idéia não for um posicionamento nacional claro e indiscutível. Esse é o problema. Para essa questão, é necessário considerar que tão importante quanto a vontade política do governo para alterar esse cenário — que indiscutivelmente existe — é a visão dominante que o Brasil tem sobre o campo. A ideologia escravista sobre a nossa estrutura fundiária vê atitudes como as do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) como crimes. Para ela, uma organização que abarca um grande número de pessoas com um enorme potencial de luta num ponto neurálgico da vida nacional é uma inconveniência intolerável. A história brasileira é pródiga em exemplos de repressão às organizações que tentaram mudar as regras desse jogo.

Radicalismo é contraponto ao autoritarismo da oligarquia

Ainda é recente o caso da histeria causada pelo decreto do presidente João Goulart que declarou de interesse social para fins de desapropriação algumas áreas inexploradas. A reação a essa medida, cujo ponto alto foi a tristemente famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” realizada dia 19 de março de 1964 pedindo aos militares que expressavam opiniões reacionárias que derrubassem o governo, teve na Sociedade Rural Brasileira — velha entidades de fazendeiros paulistas — um de seus principais organizadores. Por trás da vã invocação de Deus e da liberdade estavam os interesses terrenos e oligárquicos dos latifundiários — muitos deles grileiros. Os recentes episódios de luta no campo demonstram quão enraizada na elite brasileira está essa ideologia. Do ponto de vista político, essa herança escravista apresenta-se em uma dicotomia clara: de um lado há uns poucos que lutam para manter privilégios com rancor e nenhum bom senso e de outro uma imensa massa sem cidadania que vê no governo Lula uma boa oportunidade para a conquista de um pedaço de terra.

Se há algum radicalismo nas ações dos trabalhadores ele é mero contraponto ao autoritarismo histórico dessa oligarquia. Por nunca ter em seu projeto o conceito de nação, a elite brasileira abriu espaço, com sua conduta de exploração e acúmulo, para ações radicalizadas. Os governos passados, tradicionalmente vinculados ao poder econômico, não funcionavam como elemento de equilíbrio nessa dicotomia e contribuíam para o acirramento das posturas. No governo Lula, o que se espera é uma atitude que traga para o debate nacional a necessidade de se equalizar essa dicotomia. O desafio é gigante. Afinal, num dos pratos da balança estão os proprietários — e seus apoios ideológicos — de algo próximo a 150 milhões de hectares de terras improdutivas, um oceano de solos inúteis ao país que equivale a dois Chiles ou a quinze Coréias, dispostos a defender seus feudos com balas e chantagens — inclusive no Congresso Nacional, ameaçando votações de interesse do governo. No outro prato estão aqueles que viram na eleição de Lula a esperança de termos no país um desenvolvimento nacional integrado, no qual ninguém será esquecido.

Histeria feudal deve soar como sinal de alerta para todos nós

O ponto aqui é encontrar o norte do debate: a ideia de nação. A reflexão sobre algumas propostas do governo para o campo oferece uma visão clara da disposição das peças no tabuleiro do Brasil de hoje. Na reunião realizada dia dois de julho passado entre o governo e o MST, Lula anunciou medidas como a desapropriação de áreas que não cumprem função social e um programa massivo de educação no campo (a íntegra das propostas está na edição do Vermelho do dia três de julho). A rigor, por trás da histeria desatada supostamente pelo gesto de Lula de vestir o boné do movimento está o fato de a elite brasileira não aceitar do povão outra postura que não seja a reverência. Para ela, é um disparate o governo planejar ações do Estado com gente considerada a ralé da sociedade. Essa elite não simpatiza com a ideia de democratizar o debate nacional porque ela sempre viveu sob o domo do Estado, de modo fisiológico e clientelista. Seus expoentes querem forjar uma situação no país que permita a manutenção do status quo, com o governo lhes fazendo favores, lhes protegendo as fontes de lucro e lhes pagando as contas.

Segundo dados do Incra, 94% dos proprietários rurais com latifúndios entre 50 mil e 500 mil hectares sonegam o imposto territorial. Dados da Central Única dos Trabalhadores (CUT) mostram que 3.500 latifundiários foram perdoados de uma dívida de 7 bilhões de reais junto ao Banco do Brasil. No âmbito das empresas, também é possível reconhecer esses traços feudais — uma simbiose de um setor do capitalismo brasileiro com os senhores de terra. Não é novidade que o Estado protege certos monopólios em detrimento de uma economia com profusões de iniciativas. Ainda é a hegemonia do sobrenome, da família e dos círculos a que se pertence que domina o cenário econômico e, em certa medida, político brasileiro. A reação às ações do MST, portanto, é o ideário oligárquico lutando para conservar a riqueza e as oportunidades do mesmo lado da cerca — um comportamento baseado em nossa história de rasgada distância entre classes sociais e fundado na ideologia dominante de que existimos como senhor escravista e escravo, corte e plebe. Mudar esse quadro requer muito mais do que um governo democrático. Esse é um desafio que depende da tomada de consciência dos trabalhadores. A histeria escravista, portanto, soa como sinal de alerta para todos nós.

– Reforma tributária e justiça social

Reforma tributária: o que diz texto que vai a sanção de Lula

Por Osvaldo Bertolino

A aprovação pela Câmara dos Deputados da regulamentação da reforma tributária, que havia retornado do Senado com mudanças e segue para sanção presidencial, representa uma vitória histórica do governo. A decisão abrange três impostos estabelecidos pela Emenda Constitucional (PEC) sobre o sistema tributário nacional: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). Na transição entre 2026 e 2033, eles substituirão o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o Imposto Sobre Serviços (ISS), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), formando o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).

O assunto frequenta a pauta nacional desde o fim da ditatura militar, na qual vigorou um perverso sistema de concentração de renda, imposto por Roberto Campos (avô do atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto), entronizado como poderoso ministro do Planejamento do governo Castello Branco, o primeiro da ditadura militar. Ele e Octávio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda, operaram uma “reforma” econômica desastrosa para a maioria dos brasileiros. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) substituiu o regime de estabilidade no emprego. As tarifas de importação foram baixadas. E impostos como o do solo, que atingia os latifúndios, foram varridos numa “reforma” tributária.

Com as medidas, surgiu a tese de que as bases para o desenvolvimento de longo prazo seriam criadas, promessa semelhante à que permeou o projeto neoliberal e segue na agenda dos porta-vozes e agentes do mercado financeiro. Diziam que o ônus de curto prazo, como a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda, seria compensado no futuro com melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar. Como se sabe, essa teoria levou à crise das décadas de 1980 e 1990. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”

A reforma tributária foi também tema da Assembleia Constituinte, em 1987-1988, que resultou em mudanças tributárias com a extinção de impostos federais cumulativos e descentralização da receita. Criou, também, um sistema de seguridade social financiado por diversas formas de contribuição. Logo surgiram propostas de alterações na Constituição, como a PEC da reforma tributária do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), de 1995, no contexto das primeiras manifestações amplificadas sobre “crise fiscal” do Estado, associada a propostas de cortes drásticos nas áreas sociais, com o mesmo argumento de que era preciso conter a trajetória explosiva da dívida pública, já em processo de escalada, puxada pela elevação da taxa de juro.

A atual regulamentação da reforma tributária ocorre em meio a mais um grande embate dessa natureza, com o mercado financeiro promovendo mais um ataque brutal para chantagear o governo e impor regras draconianas ao pacote de cortes de gastos. A jogatina da especulação sem limite com o dólar traduz bem o que são essas manipulações, cujo espírito que ficou explícito nas contrariedades ao anúncio do governo de isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil e aumento da tributação para quem ganha R$ 50 mil por mês ou mais.

Corvo do Banco Central pretende impor desemprego em massa

Por Osvaldo Bertolino

O comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom) que explicou a decisão de manter, pela segunda vez seguida, a taxa básica de juros, a Selic, em 10,5% ao ano, comprova que o Brasil passa por um acentuado acirramento da histórica disputa entre forças progressistas e entreguistas, tendo como ponto central o “ajuste fiscal”, exigido pelo controle autocrático da política monetária do Banco Central “independente”. A pressão midiática sobre o governo, com manifestações explícitas de censura e ataques virulentos, subqualificados, ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, potencializa a perversidade dessa política.

É uma realidade que impõe a máxima inversa à do corvo de Allan Poe: “Sempre mais”. Não há corte orçamentário que dê conta da voracidade financeira. Os recentes bloqueio e contingenciamento de R$ 15 bilhões do Orçamento é um bom parâmetro para se entender essa crueldade, adotado para cumprir a imoral e draconiana Lei de Responsabilidade Fiscal, criada para burlar e criminalizar dispositivos da Constituição que garantem projetos e investimentos públicos. Esse projeto da direita tem a inflação como questão central, sem considerar o emprego e a industrialização. Porque a inflação afeta os ativos, os valores dos títulos públicos e de todo papelório inventado pelos financistas internacionais.

Organização mais poderosa

O bloqueio e o contingenciamento se deram no âmbito do “arcabouço fiscal”, concebido dentro do limite da conjuntura em que Lula tomou posse em 2023 e que possibilitou desatar o nó da emenda constitucional do teto dos gastos públicos, imposta como projeto do golpe de Estado de 2016 contra a presidenta da República, Dilma Rousseff. O “arcabouço” estabeleceu que a meta fiscal – a garantia do exorbitante recurso público consumido pela engrenagem da dívida pública manipulada pela política monetária sob controle da autocracia do Banco Central “independente” – tenha uma banda de flutuação de até 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima e para baixo.

O corte no Orçamento visou o mínimo, para cumprir a imposição da burlesca Lei de Responsabilidade Fiscal, numa demonstração de compromisso do governo com a reconstrução do país. Logo em seguida, desconsiderando esse esforço do governo, o Copom – a organização mais poderosa do país, que se sobrepõe à Constituição e a toda institucionalidade da República – adotou a manutenção da Selic. Em essência, a justificativa foi de que era preciso uma ação preventiva diante da possibilidade de alta da inflação. A principal causa, deduz-se, é a elevação do nível de emprego.

A tese do sistema financeiro é de que a aceleração do rendimento médio aquece o consumo e leva a aumentos salariais acima da inflação, um dos pilares do projeto neoliberal, a teoria da “taxa natural de desemprego”. Ou seja: o controle da inflação pela contenção da demanda dos trabalhadores, uma crueldade que vai além do conceito de exército industrial de reserva desenvolvido por Karl Marx, correspondente à força de trabalho que excede as necessidades da produção, medida adotada, não raro, de forma preventiva. Além de lançar um vasto contingente de trabalhadores no desemprego, os juros elevados encarecem o crédito, com forte impacto no consumo, e travam os investimentos, comprometendo o desenvolvimento do país.

Sentenças de editoriais

Essa é a causa principal da alegação do comunicado do Copom de “que uma política fiscal crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida contribui para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de risco (juros altos) dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”. Não usaram o pretexto do cenário externo, sempre alegado para justificar decisões como essa, ignorando a decisão do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, que manteve inalterada, pela oitava vez seguida, a taxa de juros de referência daquele país, com indicação de queda diante dos sinais de desaceleração da atividade econômica, com redução de criação de postos de trabalho e aumento do desemprego.

Seguindo sentenças de editoriais dos jornalões, o Relatório Focus, divulgado semanalmente com pareceres de consultores financeiros – o “mercado” em carne e osso – sobre suas avaliações futuras de variáveis da economia – entre elas, a especulação com a alta do dólar –, que serve de baliza para a decisão do Copom, tem ignorado esse cenário externo, reforçando o aspecto interno, sobretudo a queda do desemprego, além da forte pressão sobre cortes orçamentários, com a alegação de que existe excesso de gastos públicos, que também pressionaria a inflação.

Gastos públicos – na verdade, investimentos e políticas sociais, como o aumento do salário-mínimo acima da inflação – e demanda interna em crescimento pela queda do desemprego são a essência do projeto de governo do presidente Lula, eleito por uma frente ampla em 2022 que isolou e derrotou, nas urnas, o bolsonarismo. Foi uma operação que implicou também o debate sobre os rumos do projeto neoliberal, que se firmou na década de 1990 com as eleições de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e seu projeto tocado por uma poderosa equipe de tecnocratas, sob o rótulo do Plano Real, após um precário ensaio no final do governo de José Sarney e as turbulências do período de Fernando Collor de Mello.

Hostilidades neoliberais

O ciclo dos governos Lula e Dilma Rousseff rompeu muitas amarras do arcabouço do Plano Real, mas o projeto neoliberal recobrou forças com a marcha golpista e após o golpe do impeachment de 2016. A condução trôpega do processo golpista, sobretudo pelo governo Bolsonaro, levou os ideólogos da direita a se voltar para a tática de dar à frente ampla a sua dinâmica, numa atitude de confronto aberto com o projeto representado pelo núcleo de esquerda que se uniu em torno de Lula numa trajetória iniciada nas eleições de 1989. Assim que saiu o resultado das eleições de 2022, as forças políticas da frente ampla procuraram ajustar sua tática para redefinir suas posições em busca de influência nos diversos setores da sociedade.

Ao assumir a Presidência da República, Lula passou a enfrentar as hostilidades neoliberais, uma condição que remete à reflexão sobre os grandes momentos históricos nacionais, sempre precedidos de duras lutas, inclusive pelas armas. Foi assim nas lutas pela independência, pela Abolição, pela derrocada da Primeira República, pelo fim do Estado Novo e da ditadura militar. E as vitórias ocorreram sempre que as forças mudancistas optaram pela tática da mais ampla unidade nacional.

Mais uma vez, estamos diante de um momento histórico assim, com o desafio de transformar possibilidades em realidades. O governo está sob forte pressão pela manutenção da ordem neoliberal restaurada com o golpe de 2016, a integração plena do país ao cassino global, caminho oposto, por exemplo, ao da China, que escapou da agonia da especulação financeira com seu sistema imunológico melhor definido basicamente pelo bloqueio da conversão da moeda local, o yuan, em moeda externa.