A Guerrilha do Araguaia e o filme “O pastor e o guerrilheiro”, sobre Glênio Sá

Por Osvaldo Bertolino

Assisti na manhã deste dia 27 de março de 2023 ao filme O pastor e o guerrilheiro, no espaço “Reserva Cultural”, em São Paulo, numa exibição especial para jornalistas convidados. Saí com a convicção de que ninguém interessado na história do Brasil pode perdê-lo. Com estreia prevista para 13 de abril nos cinemas brasileiros, o longa dirigido por José Eduardo Belmonte é uma dessas raridades quando se fala da Guerrilha do Araguaia, sem as descontextualizações habituais e mesmo distorções grosseiras.

Leia também: Araguaia – Uma guerrilha com muita história

Bem produzido, com bons atores e um roteiro envolvente, o filme traz à reflexão, além do fato em si, evocações filosóficas e históricas sobre a Guerrilha. Em diálogos permeados por contradições – e às vezes antagonismos –, os personagens mostram que ali estavam ideais elevados e razões humanísticas fundamentais, condicionados a potencialidades pelas circunstâncias em que os fatos aconteceram. Não há lugares-comuns, muito presentes em narrações históricas que exigem juízo multifacético.

A sobriedade do filme leva a sínteses na junção de personagens que buscam o sentido da vida enfrentando a barbárie, naquele momento representada pela ditadura militar. O “partido” – na verdade, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) –, mencionado em apenas duas falas, aparece como a bússola dos guerrilheiros, assim como a Bíblia para o pastor. Fica a indicação tácita para que se busque o conhecimento de ambos – inclusive com alerta sobre os que usam a fé para maléficas demandas terrenas.

O pastor Zaqueu traduz a Bíblia como caminho para a transcendência humana sem atalhos desviantes. O humano é agora, guiado pelo que Jesus Cristo falou e fez, conforme está na Bíblia. É assim que ele dialoga com o guerrilheiro João, quando se encontram no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Exército, em Brasília. Zaqueu quer chegar em algum lugar sem injustiça. João responde que luta para chegar onde Zaqueu quer chegar, contra-argumentando com o Manifesto do Partido Comunista.

Ambos caíram nas garras dos algozes desses ideais. A ditadura via nas ideias de Zaqueu uma espécie de “comunismo bíblico”. O filme não entra nesse pormenor – o pastor foi preso por ser amigo de “comunistas” que frequentavam com ele um curso bíblico. Mas, com essa abordagem, revolve a doutrina da ditadura que interpretava pregações religiosas no âmbito da justiça social como “comunismo” com disfarce eclesiástico. Sobretudo no meio católico. A Bíblia não podia ser ensinada com o rigor dos mandamentos cristãos.

O encontro entre os dois é a principal intersecção do filme, inspirado num livreto de Glênio Sá, intitulado Araguaia – relato de um guerrilheiro, da editora Anita Garibaldi, um registro de quarenta e oito páginas sobre seu drama ao se perder na mata, a captura pelos agentes da ditadura, as brutais torturas no PIC em Brasília e no DOI-Codi do Rio de Janeiro, e seu retorno ao estado natal, Rio Grande do Norte. No filme, João deixa sua história registrada em livro com dedicatória para Zaqueu, afirmando que a memória é resistência, um rio sempre leva a outro e a vida é uma grande correnteza.

No livro Rio Vermelho – que conta a história do PCdoB no Rio Grande do Norte desde o Levante de 1935 –, refaço a trajetória de Glênio Sá, desde seus primeiros dias como liderança estudantil até sua morte trágica num acidente de carro em 1990. O episódio que no filme aparece como o encontro com o pastor, narrei assim:

“Em Brasília, Glênio conseguiu quebrar sua incomunicabilidade com ajuda de um vizinho de cela condenado por contrabando. Com um palito de fósforo queimado, anotou num papel de jornal apanhado do lixo as palavras ‘Farmácia Minâncora, Caraúbas-RN’, de propriedade de seu pai, Epitácio Martins de Sá. Assim a família tomou conhecimento do local onde estava. Com a informação, seu irmão Gilberto, professor universitário em Fortaleza, foi a Brasília e, no PIC, recebeu a informação de que nunca alguém chamado Glênio estivera por lá. Recorreu, então, à ajuda do senador Dinarte Mariz, a quem seu pai sempre apoiara politicamente em Caraúbas, amigo do comandante do I Exército, e assim conseguiu descobrir a verdade.”

Não há reparos a fazer no filme. Os recortes são precisos para demonstrar o essencial, criando uma ficção que não destoa dos fatos. Pode-se, eventualmente, apontar algumas lacunas, como uma melhor indicação do que representou a ditadura militar e do organizador da Guerrilha – o PCdoB –, mas são detalhes secundários para um filme que resgata e projeta, de maneira sóbria, um acontecimento tão importante para a luta contra a barbárie.