PCdoB cento e três anos: as lideranças das gerações comunistas

Prólogo do livro Renato Rabelo – vida, ideias e rumos

O sorriso largo não deixava dúvida. João Amazonas estava feliz ao receber uma placa homenageando seus quase sessenta e sete anos de militância comunista, perto de completar quarenta anos como principal dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Pouco antes, estivera na tribuna do X Congresso do Partido, realizado entre 9 e 12 de dezembro de 2001 no Centro de Convenções Riocentro, Rio de Janeiro, para apontar, com voz serena e embargada, Renato Rabelo, então vice-presidente, como seu substituto. A quarta geração de dirigentes estava assumindo o comando do Partido.

Os mais de oitocentos delegados, representando em torno de duzentos mil filiados, além dos convidados e trinta e duas delegações estrangeiras, ouviram, em silêncio absoluto, Amazonas dizer que Renato era um bom camarada, que vinha se destacando no Partido e procurando seguir suas tradições de luta.

Em pé, trajando terno e gravata, com as mãos apoiadas na mesa, Amazonas falou, num breve discurso, que completaria noventa anos de idade em 1º de janeiro de 2002 e não tinha mais condições físicas para ocupar o cargo máximo da direção partidária. Pediu aos seus camaradas dispensa da função. Não havia cargo vitalício no PCdoB, mas não estava pedindo aposentadoria, comunicou. Queria morrer em sua banca de trabalho, continuando a luta pelos ideais que procurou defender durante a vida. Seguiria membro do Comitê Central, agora no simbólico posto de presidente de honra.

Agradeceu pelo apoio que sempre teve “nas fileiras do glorioso e heroico Partido Comunista do Brasil” e virou-se para a esquerda, onde estava sua companheira de jornada, Elza Monnerat. Sentou-se lentamente. Com o gesto, retirou-se simbolicamente do posto que ocupava desde 1962, quando o Partido foi reorganizado. Às suas costas, um painel do Congresso ostentava as imagens de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lênin.

Em cem anos de atividades do Partido Comunista do Brasil, passaram por sua direção, antes de Renato, à frente de gerações de dirigentes, Astrojildo Pereira – que liderou a fundação e os primeiros anos do Partido –, Luiz Carlos Prestes – que assumiu na Conferência da Mantiqueira, de 1943, na reconstrução após a ditadura do Estado Novo – e Amazonas, uma das lideranças da reorganização na Conferência extraordinária de 1962.

Nas duas conferências – de 1943 e de 1962 –, os comunistas recomeçavam praticamente do zero, uma atividade de construção e reconstrução do Partido que Amazonas comparava à mitológica Fênix, a ave da literatura grega que renasce de suas cinzas.

Passagem para Renato Rabelo

Na passagem de comando para Renato, Amazonas destacou o papel dos camaradas da direção coletiva na sua geração, dos quais lembrava com saudades e respeito pela sua combatividade. Citou Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luís Guilhardini e outros tantos que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade – a ditadura militar – para defender os interesses do povo.

Com os assassinatos daqueles camaradas, coube a ele maiores responsabilidades. O ingresso de Renato e outros dirigentes da Ação Popular (AP) no Partido, no começo da década de 1970, reforçou a direção. Foram recebidos com entusiasmo. Estavam entrando para o PCdoB em um momento de alto risco, quando a repressão atacava ferozmente os comunistas. A caçada aos que, de uma forma ou de outra, estavam ligados à Guerrilha do Araguaia era uma obsessão da ditadura militar.

Começava ali o trajeto que levaria à quarta geração de dirigentes, reunindo remanescentes da incorporação da Ação Popular e novas lideranças. Quando Renato ingressou no PCdoB, encontrou na direção quadros experientes, marcados por combates que vinham dos anos 1930. Não conheceu Grabois, morto em ação armada na Guerrilha do Araguaia, mas foi recebido por Amazonas, Pedro Pomar e Elza Monnerat, sobreviventes das matanças promovidas pela ditadura e antigos dirigentes comunistas.

Amazonas ingressou no Partido em Belém do Pará, sua terra Natal, onde fora preso em atividades da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que organizava o Levante de 1935, assim como Pomar. Elza Monnerat viera do Rio de Janeiro. Ingressara no Partido em 1945. Foram lideranças da reorganização de 1962, quando o Partido enfrentou um surto revisionista e reformista, processo iniciado em 1956 sob o influxo do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Com o golpe de 1964, diante da quase impossibilidade da luta revolucionária nas cidades, foram para o campo organizar a guerra popular, o caminho da luta armada, a resistência à ditadura. Amazonas e Elza sobreviveram à repressão à Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará. Pomar esteve em diferentes regiões do Norte e do Nordeste. Fixou-se no Vale do Ribeira, organizando bases da guerra popular nas montanhas do Sul do estado de São Paulo, e seria morto na Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976.

Liderança de João Amazonas

Amazonas assumiu a liderança da terceira geração de dirigentes, em 1962 – ao lado de Maurício Grabois, Pedro Pomar e outros –, com a experiência de membro do Comitê Central desde a Conferência da Mantiqueira, de 1943, assim chamada por ter sido realizada nas proximidades da serra com esse nome, numa casa de taipa, moradia de uma propriedade rural que pertencia a um militante comunista, no meio da mata, em Engenheiro Passos, distrito de Resende, Sul Fluminense, entre 28 e 30 de agosto de 1943. Nela, o Partido foi reconstruído após a feroz perseguição do Estado Novo, instaurado com o golpe de 1937.

Sua militância política começou na “Ala Moça” da União Popular do Pará (UPP), uma frente única organizada para participar das eleições municipais de Belém em 30 de novembro de 1935. O passo seguinte seria o ingresso no Partido Comunista do Brasil, tendo como caminho a ANL, organizadora do Levante de 1935, liderada por Luiz Carlos Prestes. Ingressou também na União dos Proletários.

Quando a ANL surgiu com força no país, Amazonas participou de uma ação ousada ao içar, à noite, uma bandeira da organização nos mastros dos reservatórios de água da Lauro Sodré, local com ampla visibilidade na cidade, com vinte metros de altura. O jornal Folha do Norte de 19 de dezembro de 1935 noticiou o fato notado pelo público desde a manhã do dia anterior. Os participantes do protesto escreveram, segundo a Folha do Norte, com tinta arroxeada, várias inscrições – como Viva Luiz Carlos Prestes, Viva a ANL e Viva o comunismo.

Na repressão que se instalou no país após o Levante, Amazonas foi preso na Cadeia de São José, descrita pela Folha do Norte como “um antigo e inqualificável pardieiro, uma ignomínia”. Um ano depois, a Justiça mandou soltá-lo, quando terminou o estado de guerra. Mergulhou na clandestinidade, mas logo seria preso novamente.

Segundo o inquérito que determinou a sua prisão, nas palavras da Folha do Norte, “João Amazonas agia no preparo de matrizes e boletins subversivos da propaganda moscovita, matrizes que eram entregues a Pedro de Araújo Pomar, detido há dias passados”, encarregado “de mimeografá-los em grande quantidade para os espalhar sorrateiramente pelos bairros da cidade”. Eram “pouquinhos, mas teimosos os adeptos do credo sinistro”.

Foram para a prisão de Umarizal, em Belém, de onde fugiram e, numa longa e penosa viagem, chegaram ao Rio de Janeiro para se juntar aos comunistas que reconstruíam o Partido, ainda na vigência do Estado Novo, liderados por Maurício Grabois. A decisão foi tomada após a informação de que a Alemanha nazista invadira a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 22 de junho de 1941. Fugiram em 5 de agosto. Chegaram ao Rio de Janeiro e se integraram à Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), criada por Maurício Grabois e outros comunistas para reestruturar o Partido desarticulado pelo Estado Novo.

Amazonas empregou-se como auxiliar de contabilidade, no centro da cidade. Era uma forma de fazer algum recurso enquanto a CNOP pavimentava os caminhos para o início de uma nova jornada. Logo foi para Minas Gerais. Recebeu alguns mil-réis e a passagem de trem que o levaria para as terras onde deveria fazer rebrotar as raízes comunistas. Outro ponto visitado por Amazonas foi a Bahia, de onde partiu o dirigente Diógenes Arruda Câmara para se integrar à CNOP. O objetivo era realizar uma Conferência Nacional e eleger um Comitê Central.

Os comunistas ressurgiam com força, presentes em organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), além da Liga de Defesa Nacional – uma frente com vários departamentos, entre eles o sindical, assumido por Amazonas, embrião do Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT). O Partido priorizava a organização de células nas empresas, formando uma grande base de trabalhadores.

De 1941 a 1945 foram anos de luta aguda contra o liquidacionismo – os que pretendiam liquidar o Partido, dissolvendo-o numa frente contra o nazifascismo –, disse Amazonas. “É preciso dizer que a desvantagem era grande. Vencemos porque a verdade estava do nosso lado”, afirmou. A nova equipe que assumia a defesa do Partido – registrou Amazonas – eram pessoas desconhecidas quase completamente. “Afinal, essa nova equipe – Arruda, Grabois, Pomar, eu etc. – eram pessoas que não tinham nenhuma posição no Partido, na época, a não ser locais, naqueles lugares onde tínhamos atuado.”

Na Conferência da Mantiqueira Amazonas assumiu a Secretaria Sindical e de Massas. A direção eleita contava também com Grabois, Pomar, Arruda, José Medina Filho, Álvaro Ventura, Jorge Herlein, Francisco Campos, Agostinho Dias de Oliveira e Lindolfo Hill.

Naquele processo, o encontro de Amazonas, Pomar, Grabois e Arruda representou as fundações de uma nova fase do Partido Comunista do Brasil. A meta era enterrar a ditadura do Estado Novo e liquidar o nazifascismo. Em 9 de agosto de 1943, o governo do presidente Getúlio Vargas decidiu organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Segundo Amazonas, os comunistas foram os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil na Segunda Guerra Mundial. “E o fizemos de maneira consequente”, constatou.

Os comunistas lideraram grandes manifestações para redemocratizar o país, defendendo uma Assembleia Nacional Constituinte, principalmente após a legalidade, em meados de 1945. Amazonas foi eleito deputado constituinte, o mais votado do Distrito Federal, sediado então no Rio de Janeiro. Depois da cassação do registro do Partido – em 1947 – e dos mandatos comunistas – em 1948 –, voltou à clandestinidade.

No debate deflagrado pelas mudanças do PCUS, Amazonas foi um dos primeiros a se pronunciar. Seu primeiro artigo, intitulado As massas, o indivíduo e a história, publicado no jornal Voz Operária em 26 de janeiro de 1957, contestou duramente a base dos argumentos daqueles que iniciaram os ataques ao Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB. Disse que eram as massas que faziam a história, mas “não se pode concluir que seja nulo ou insignificante o papel das personalidades”.

Amazonas voltaria a escrever em 2 de fevereiro de 1957 para defender a ideia de que “o Partido Comunista elabora sua orientação e enriquece seus princípios coletivamente”. “Isso dá ao Partido do proletariado uma grande vantagem sobre os partidos burgueses”, asseverou.

Nos debates do V Congresso, em 1960, também inovou ao abordar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil pela via prussiana (as análises de Marx e Engels sobre o desenvolvimento capitalista no espaço da Prússia e do que viria a ser a Alemanha sem alterações na propriedade da terra).

Segundo ele, as Teses do Congresso se equivocavam ao definir “que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas”. “O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio. Pode também o capitalismo crescer, substituindo a dependência do país ao imperialismo”, escreveu. “Não é o crescimento do capitalismo que leva à independência e às transformações democráticas, como se afirma implicitamente nas Teses.”

Os debates do V Congresso evoluíram para o “racha” e a reorganização. No jornal do Partido A Classe Operária, Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização, revelando nuances daquela batalha. Os que assumiram o controle partidário elaboraram um novo Programa e novo Estatuto para a criação de outro partido, o Partido Comunista Brasileiro, que assumiu a sigla PCB. Segundo Pomar, toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

A atitude revoltou os comunistas que combateram a linha vitoriosa no V Congresso. Imediatamente enviaram à nova direção um documento denominado Em defesa do Partido, com cem assinaturas – que ficaria conhecido como Carta dos cem –, solicitando a revogação das mudanças anunciadas. O documento classificava as medidas como uma “violação frontal dos princípios partidários, aberta infração das decisões do V Congresso (que) ferem a disciplina e atingem a própria unidade do Partido”.

De acordo com o documento, “as mudanças feitas no nome, no Programa e nos Estatutos objetivam o registro de um novo partido e, por isto, se suprime tudo que possa ser identificado com o Partido Comunista do Brasil, de tão gloriosas tradições”. “Ora, precisamente o partido que deve conquistar a legalidade é o Partido Comunista do Brasil e não um arremedo de partido de vanguarda do proletariado”, asseverava.

A resposta do Comitê Central foi, como destaca Pomar, de intolerância a toda prova. “Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisionismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

Após o golpe militar de 1964, o Partido, agora com a sigla PCdoB, começou a estudar o caminho da guerra popular. “Em toda parte, em especial no campo, é preciso discutir os problemas da luta armada e, guardadas as normas de trabalho conspirativo, tomar medidas visando à sua preparação prática”, diz o texto da VI Conferência, de 1966. O PCdoB saiu a campo à procura dos melhores lugares para instalar a guerrilha, com três grupos de trabalho – um dirigido por Amazonas e Grabois, outro por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, e um terceiro por Carlos Danielli.

Amazonas se integraria ao Araguaia, Sul do Pará, onde Grabois e outros militantes do PCdoB desenvolviam o trabalho da guerra popular. Na ocasião, Amazonas e Grabois escreveram dois importantes documentos: A atualidade do pensamento de Lênin e Cinquenta anos de luta, sobre a história do Partido Comunista do Brasil.

Liderança de Luiz Carlos Prestes

Luiz Carlos Prestes assumiu a liderança da segunda geração de dirigentes comunistas na Conferência da Mantiqueira. Ainda nos cárceres da ditadura do Estado Novo, preso por ter liderado a ANL no Levante de 1935, foi eleito secretário-geral. Seu prestígio decorria da liderança na Coluna Invicta, um movimento nunca derrotado que percorreu o Brasil no final da década de 1920 combatendo os desmandos da República Velha e fermentando as condições para a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

Prestes desembarcou clandestinamente no Brasil em 15 de abril de 1935, vindo da União Soviética, onde estava exilado, para liderar o Levante. O governo Vargas baniu a ANL da legalidade e, após o malogro do movimento rebelde, desencadeou uma violenta onda repressiva.

Prestes foi preso em 5 de março de 1936, depois de uma caçada comandada pelo chefe da polícia política, Filinto Müller, que esquadrinhou o bairro do Méier e revistou casa por casa. Estava com a esposa, a alemã Olga Benário, deportada grávida para a Alemanha nazista onde morreu em uma câmara de gás, na cidade de Bernburg, pouco depois de dar à luz Anita Leocádia Benário Prestes.

Com a reviravolta na Segunda Guerra Mundial, quando os soviéticos começaram a empurrar os nazistas de volta para Berlim, o presidente da República foi para o lado dos Aliados – a aliança de países que combateram o Eixo nazifascista formado por Alemanha, Itália e Japão – e recebeu o reconhecimento dos comunistas. O diplomata Orlando Leite Ribeiro foi designado para ser o elo com Prestes, ainda encarcerado. Em 18 de abril de 1945, Vargas concedeu a anistia aos presos e exilados. Prestes deixou a prisão.

Tempos depois, Prestes avaliaria que o presidente da República precisava dos comunistas, uma força política à época com grande apoio popular. Havia um setor do governo que agia abertamente contra o avanço das medidas democráticas, logo transformado em conspiradores.

Prestes só assumiria de fato a função de secretário-geral no final do “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional, depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto de 1945. O Partido Comunista do Brasil puxava grandes manifestações populares, numa campanha vitoriosa pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte.

A eleição dos constituintes ocorreu em 2 de dezembro de 1945, quando também foi eleito o presidente da República. Compareceram às urnas cerca de seis milhões de eleitores. O candidato a presidente do Partido Comunista do Brasil, Yeddo Fiúza, obteve 569.818 votos, 9,7% do total de votantes. O general Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático (PSD), foi eleito com 55% dos votos e Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), obteve 35%. Os comunistas elegeram catorze deputados federais e Prestes senador.

As perseguições anticomunistas, no entanto, recomeçaram já no início de 1946, quando dois pedidos de cassação do registro eleitoral do Partido Comunista do Brasil foram apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Prestes seguiu na liderança do Partido até 1961, quando assumiu a chefia do Partido Comunista Brasileiro.

Liderança de Astrojildo Pereira

O líder da primeira geração de dirigentes comunistas, Astrojildo Pereira, foi o fundador do Partido. Prestes entrou em contato com os comunistas por seu intermédio. Foi em dezembro de 1927, na Bolívia. Lá estavam os remanescentes da Coluna Invicta. Prestes já era conhecido como o lendário Cavaleiro da Esperança e deixaria seu nome como marca da Coluna, inicialmente chamada de Miguel Costa-Prestes, uma referência ao general que também comandou os revoltosos.

Astrojildo viajou como repórter do jornal A Esquerda, dirigido por Pedro Motta Lima – que comandaria alguns dos jornais do Partido –, levando uma mala carregada de livros de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin e outros, publicações da editora L’Humanité, do Partido Comunista Francês – no Brasil, poucas obras marxistas em português haviam sido publicadas –, possivelmente trazidas quando estivera na União Soviética, em 1924, ou recebidas pelo correio naval. O encontro ocorreu em Porto Suarez, ao lado de Corumbá, a cidade brasileira de Mato Grosso do Sul na fronteira boliviana.

Foi recebido por Prestes e dois oficiais na Coluna, vindos possivelmente da cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, conforme a memória de Astrojildo. Há versões de que os remanescentes da Coluna se instalaram numa localidade chamada La Guaíba. Em Porto Suarez, conversaram por quase dois dias, instalados numa casa simples. O dirigente do Partido Comunista do Brasil transmitiu-lhe o pensamento dos comunistas e as questões que o levaram a procurá-lo.

Segundo Astrojildo, o motivo da conversa era, em suma, o problema político da aliança entre os comunistas e os combatentes da Coluna Prestes, a união do proletariado revolucionário, sob a influência dos comunistas, e as massas populares – especialmente os camponeses – influenciadas pela Coluna e seu comandante.

O PCB estava saindo de um período de clandestinidade, iniciado logo após a sua fundação com a adoção do estado de sítio em julho de 1922, uma resposta do governo Epitácio Pessoa ao movimento tenentista que entrou para a história como a “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, e extinto em 15 de novembro de 1926, já no governo de Washington Luís.

De janeiro a agosto de 1927, o PCB liderou um ciclo de greves operárias. O jornal A Nação, em cuja redação trabalhavam três ou quatro membros do Comitê Central, segundo Astrojildo, divulgava amplamente as ações dos comunistas. Com a chamada “Lei Celerada”, editada em 12 de agosto de 1927, os comunistas voltaram à ilegalidade e tiveram seu jornal fechado.

Nos meses seguintes, o Comitê Central chegou à conclusão de que a derrota sofrida se devia basicamente às posições sectárias do Partido, relatou Astrojildo. Era preciso buscar aliados. Essa era a missão na Bolívia. A essência da conversa, publicada como entrevista em janeiro de 1928 no jornal A Esquerda, alinhava os pontos principais de um programa de frente única, democrática e nacionalista.

Prestes, contudo, foi para a Argentina, onde trabalhou como engenheiro e participou de atividades políticas. Em 1930, lançou um manifesto apontando o caminho da revolução agrária e anti-imperialista, sob a hegemonia da classe operária. Expulso da Argentina, exilou-se na União Soviética e, em 1º de agosto de 1934, foi oficialmente aceito como membro do Partido Comunista do Brasil. No VII Congresso da Internacional Comunista, em agosto de 1935, passou a integrar o seu Comitê Executivo.

A militância anarquista de Astrojildo começou em 1910, no movimento sindical. Trabalhou como tipógrafo de jornal, linotipista, revisor, repórter e redator. Como um dos líderes das greves de 1918 e redator do jornal Voz do Povo, foi preso e processado. Recebia informações da III Internacional Comunista antes mesmo da fundação do PCB, segundo ele pela “correspondência internacional”.

A revista Movimento Comunista, sob sua direção, começou a circular em 1º de janeiro de 1922 com notícias vindas da União Soviética. Em 1924 viajou para a pátria do socialismo. Tomou o navio na Praça Mauá, Rio de Janeiro, precisamente no dia da morte de Lênin, em 21 de janeiro. Como a partida seria à noite, pôde ler a notícia nos jornais vespertinos. De Moscou, enviou matérias para os jornais O Paiz e Correio da Manhã, relatando aspectos do nascente socialismo e comentando como a imprensa anarquista no Brasil distorcia os propósitos da Revolução.

Ele mesmo egresso do anarquismo, via aquele movimento como superado pelo marxismo, compreensão que o havia levado a organizar as primeiras ações visando à fundação do Partido Comunista do Brasil, um movimento conhecido como “os doze astrojildistas”, nominação recebida de Octávio Brandão, outro importante dirigente do PCB daquela geração. De acordo com Astrojildo, em 1921 já havia “acalorados debates nos sindicatos operários” que resultaram na fundação, em 7 de novembro daquele ano – aniversário da Revolução Russa de 2017 –, de um grupo chamado “Centro Comunista”.

A primeira ideia de criar o Partido Comunista do Brasil, diz Astrojildo, havia sido lançada cerca de três anos antes, mas não estava ainda madura e “gorou no nascedouro”. De 1917 em diante, a influência da Revolução Russa tornou-se decisiva, sobrepondo-se pouco a pouco à hegemonia anarquista. Uma onda de greves iniciada naquele ano ficou marcada por manifestação de apoio aos comunistas russos.

Intelectuais também se manifestaram, entre eles Lima Barreto, que, em 1919, publicou um artigo intitulado Manifesto maximalista, com grande repercussão. Segundo Astrojildo, tudo levava a crer que o escritor, falecido em 1º de novembro de 1922, tomaria posição a favor do Partido.

Naquele clima de debates, houve a cisão no anarquismo e a criação do “Centro Comunista”. Os “doze astrojildistas” entraram em contato com comunistas de outras regiões do país e lançaram a revista mensal Movimento Comunista, importante veículo de ligação e preparação política entre os grupos que elegeram delegados para o Congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil.

Depois de seis meses de preparação, nove delegados reuniram-se dias 25 e 26 de março de 1922 no Rio de Janeiro. A reunião final ocorreu dia 27 na pequena sala de visitas da residência de Astrojildo, na Rua Visconde de Rio Branco, número 651, Niterói. Terminados os trabalhos, os delegados levantaram-se e cantaram a Internacional Comunista.

De acordo com Astrojildo, a formação do Partido se deu em pleno fogo da luta de classes e, ao mesmo tempo, sob o fogo de uma dura luta ideológica, reflexo, no Brasil, e segundo as condições brasileiras, da luta ideológica travada no plano mundial pela III Internacional Comunista. Em 1º de maio de 1925, circulou pela primeira vez o lendário jornal do Partido A Classe Operária, do qual Astrojildo era o principal redator.

O jornal surgiu após o ingresso do PCB na Internacional, no seu V Congresso, em 1924. Astrojildo, mesmo ausente, foi eleito para a Comissão de Controle do Comitê Executivo e o PCB passou a ser reconhecido como membro efetivo da organização.

Astrojildo tornou-se um escritor refinado, descrito pelo analista Sylvio Rabello, num texto publicado nos jornais do grupo Diários Associados, como “de uma simplicidade ideal, uma simplicidade que está em boa correspondência com as suas doutrinas e com o curso de sua argumentação, ao mesmo tempo de um virtuosismo do escritor preocupado com a disciplina e o rigor de sua arte”.

Especializou-se na obra de Machado de Assis, com quem esteve pouco antes de sua morte. O encontro foi descrito por Euclides da Cunha em uma homenagem ao escritor no Jornal do Comércio de 30 de setembro de 1908: “Chegou, não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois de algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.” Machado de Assis, disse Astrojildo, foi “o escritor que melhor refletiu em sua obra a vida social e o espírito da sociedade brasileira do seu tempo”.

Astrojildo voltou à União Soviética em 1929, onde permaneceu de março até o final de dezembro. Os acontecimentos no pós-contato com Prestes na Bolívia, segundo ele, “puseram à prova o que havia de tremendamente falso” na concepção da direção do PCB, “que levou o Partido a uma completa e criminosa passividade diante dos acontecimentos de outubro de 1930 (a Revolução liderada por Getúlio Vargas) e às terríveis oscilações da direita para a esquerda e da esquerda para a direita que se seguiram durante meses e anos”.

Naquele ziguezague tático, a direção acusou o Partido de seguir a linha política do “astrojildismo menchevista”. Com a chegada de Prestes, o Partido Comunista do Brasil iniciou nova fase. Astrojildo estava afastado e só voltaria na década de 1940. Sobreviveu do comércio de bananas, numa quitanda do Rio de Janeiro, condição que mereceu de Manuel Bandeira o seguinte poema:

Bananeiras – Astrojildo esbofa-se –
Plantai-a às centenas, às mil:
Musa paradisíaca, a única
Que dá dinheiro neste Brasil.

Em 1945, Astrojildo descreveu o Partido com essas palavras: “O fio d’água desceu minguadinho por entre as pedras, seguiu o seu destino por montes e vales, cresceu de vulto passo a passo, com a afluência de novas águas, engrossando por efeito mesmo das tempestades que sobre ele se formaram, e ei-lo hoje, o grande rio brasileiro, sulco profundo na terra do Brasil, artéria vital no sistema político do nosso país – o Partido Comunista do Brasil.”

Coletivo dirigente

Renato assumiu o comando desse “grande rio brasileiro”, liderando a quarta geração de dirigentes comunistas, no curso natural das águas. Anunciou que o faria ainda mais caudaloso. Os que bebem nessa fonte de interpretações marxistas e progressistas desde 1922 teriam agora uma nova fase de desafios, representados por mudanças de largo espectro nas conjunturas nacional e internacional. “Tentarei dar desenvolvimento ao pensamento político do nosso Partido na nova situação e reunir as inteligências e os meios necessários para enfrentar os novos desafios que nos apresentam. Manteremos a linha revolucionária e flexível que nos possibilitará conquistas ainda maiores”, resumiu.

Amazonas trabalhou a sua sucessão com a dedicação de sempre. Envolveu o coletivo dirigente no processo e fez a transição seguro de que seus métodos como principal liderança do Partido garantiriam a continuidade da marcha revolucionária iniciada em 1922.

Uma de suas principais preocupações, naquele momento, era a tática para as eleições presidenciais de 2002. João Amazonas defendia, desde a campanha de 1989, quando se formou a Frente Brasil Popular (PT, PCdoB e PSB) liderada pelo candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, que, nas condições brasileiras, inseridas na conjuntura da América Latina e do mundo, seria muito difícil a esquerda sozinha ganhar eleições presidenciais.

Amazonas ficou contente quando soube que Lula, na articulação de sua quarta campanha, procurava ampliar a frente. Disse-lhe pessoalmente, na sede do PCdoB, em São Paulo – a última vez que se encontraram –, que a escolha de José Alencar para seu vice era uma boa decisão. Amazonas não chegou a ver a vitória de Lula nas eleições de 2002 – faleceu, cinco meses antes, de causas naturais, no dia 27 de maio de 2002.

Parabéns, Renato Rabelo, por seus 83 anos de vida bem vivida

Por Osvaldo Bertolino

Da biografia que escrevi dele recentemente:

Acomodado na mesa da pequena sala do seu apartamento, em São Paulo, com uma pilha de livros ao lado, Renato começou a falar. Parecia incansável. De meados da tarde até a noite avançada, lembrou detalhes de sua vida e do seu pensamento. Era muita coisa. Foi preciso retomar em outro dia. Novamente faltou coisa. E assim a cena se repetiu, até que tudo fosse falado.

Renato se define como pessoa reservada, que não gosta de aparecer, o mais tímido dos irmãos. “Quando comecei a assumir o trabalho político, tive de fazer um esforço muito grande para ser uma pessoa com capacidade pública maior. Era essencial para a minha atividade. Acho que consegui não só por intervenções públicas como na relação política com grandes lideranças, como presidentes da República, presidentes da Câmara e do Senado, gente como o José Alencar, ministros. Todos me atendiam com muito respeito.”

Essa relação de confiança se devia ao prestígio do PCdoB, segundo Renato. “Então, eu ia sentindo que estava fazendo o papel necessário. Compreendi que estava fazendo um papel importante. Isso me deu muita segurança. Tinha certa autoridade.”

Um dos momentos mais decisivos de sua vida foi a indicação de Luciana Santos para assumir a presidência do PCdoB. “Foi uma das atitudes mais serenas e mais justas que tomei. Não foi uma corrida de revezamento”, comenta ao falar das pacientes consultas e dos debates no âmbito da direção do Partido. Para ele, esse processo guarda semelhança com a sua indicação para presidente do Partido por João Amazonas.

Renato recorda de seus camaradas com emoção, especialmente Haroldo Lima. “Haroldo teve também um papel importante para eu ingressar na luta. Eu poderia ficar por ali mesmo, em Salvador, estudando, ser um médico. Foi um ponto importante na minha vida”, relata, mostrando a foto da capa do livro autobiográfico de Haroldo, inconformado com a sua morte por uma causa que poderia ser evitada, a Covid-19.

Falou também da relação com os filhos, muito atenciosos. “Sempre foram muito compreensivos, pelo que eles passaram. A relação conosco mostra a grandeza deles.”

Renato cita a experiência vivida na China, quando jovem, como fundamental para a sua militância. “Uma experiência da envergadura da Revolução Chinesa ensina muito”, afirma. As visitas ao Vietnã também lhe causaram forte impressão. “Fiquei impressionado com o povo vietnamita. Não é por acaso que expulsaram três imperialismos. Essa ideia de nova luta pelo socialismo é deles.”

Segundo Renato, foram conhecimentos que ajudaram muito na sua compreensão sobre a tática e a estratégia. “O tempo que passei na França foi também importante, porque o exílio é uma escola. O povo francês é muito testado. É a terra das revoluções. Eles têm uma tradição de luta gigantesca. A vivência com um povo desse ensina muito para a gente”, afirma.

Mulheres heroínas nas biografias do PCdoB

Por Osvaldo Bertolino

Escrevi oito biografias de lideranças do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – Carlos Nicolau Danielli, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Aurélio Peres, Vital Nolasco, Antônio Almeida Soares (Tom), Péricles de Souza e Renato Rabelo. Nelas, adotei como método situar a vida dos biografados nas dimensões pessoais e familiares, nas conjunturas por eles vividas e nas circunstâncias das organizações nas quais atuaram. Em todas, aparecem mulheres como importantes alicerces da história, em geral pouco notadas. No PCdoB, foram elos essenciais, sem os quais as histórias narradas não existiriam ou teriam tomado outros caminhos.

Procurei dar a elas o espaço devido, mostrando como, muitas vezes, seguraram a barra na retaguarda, além de, em alguns casos, militarem na linha de frente. Com as que convivi, criei laços de amizade e camaradagem. Com as que não tive o privilégio de conviver, fiquei com a sensação de que também teriam a mesma atitude.

Marilda Costa Danielli

A primeira delas foi Marilda Costa, esposa de Carlos Nicolau Danielli, com quem convivi, em 2001, por aproximadamente quinze dias, em Niterói, Rio de Janeiro. Mulher de gestos cordiais, memória privilegiada e de convicção sólida, ajudou muito para que na biografia do marido constasse o máximo de informações. Mãe de três filhos – Wladimir, Waldenir e Wladir –, Marilda se viu só, de uma hora para outra, com o brutal assassinato de Danielli no Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, em 31 de dezembro de 1972.

Recebi dela, em reconhecimento pela biografia, uma comovente carta me considerando membro da família. Uma grande honra, que comentei em artigo no Portal Vermelho, dia 24 de março de 2006, para homenageá-la quando soube de sua morte, intitulado A perda de uma guerreira: morre Marilda Costa Danielli. Escrevi:

“Os vizinhos gostavam daquela família solidária e unida. Na casa em frente, duas jovens estudantes sempre se socorriam da presteza de Danielli para os trabalhos escolares. Na manhã do dia 27 de dezembro de 1972, ele tomou o café da manhã e fumou um cigarro. Marilda já estava no tanque lavando roupa quando ele se despediu e avisou que possivelmente voltaria dali a um ou dois dias. Não voltou. (…) No dia 5 de janeiro de 1973, uma sexta-feira, ela fazia crochê na sala quando ouviu Sérgio Chapelin (um dos apresentadores do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão) anunciar com voz grave: “Morto em São Paulo o terrorista Carlos Nicolau Danielli”. (…) Sem parentes, sem conhecidos e com três crianças, Marilda resolveu procurar as vizinhas estudantes. Ao saber da verdadeira história, uma delas se dispôs a levá-la com as crianças para o Rio de Janeiro.”

Marilda foi presa em São Gonçalo, na casa de uma irmã, onde estava com os filhos. Algemada e encapuzada, foi levada para algum lugar no Rio de Janeiro. Dois dias depois, foi encaminhada para o DOI-Codi paulista, onde ficou por dez dias. Ao voltar para a casa da família, no bairro Jabaquara, viu, desolada, que praticamente nada restava. Voltou para o Rio de Janeiro para recomeçar a vida como revendedora de cosméticos. Para as crianças, o pai estava viajando e um dia voltaria.

Alzira da Costa Reis Grabois

A esposa de Maurício Grabois, Alzira da Costa Reis, também atuou intensamente no Partido. No começo da noite de 28 de dezembro de 1972, Danielli deu a ela notícias de Maurício Grabois e de seu filho, André, trazidas pela guerrilheira Criméia Alice Schmidt de Almeida, em um “ponto” na Rua Marselhesa, na Vila Clementino, próximo à Vila Mariana, antes de se dirigir  à Rua Loefgreen, onde foi preso. A operação fazia parte do restabelecimento de contatos entre os dois dirigentes do PCdoB, após o ataque da repressão à Guerrilha do Araguaia em 12 de abril de 1972. Danielli era o secretário de Organização do Partido, responsável pela infraestrutura da Guerrilha.

Alzira militava no Partido antes de conhecer Grabois. O casal teve os filhos Victória e André (também morto no Araguaia). No dia que Maurício Grabois teve o seu mandato de deputado federal cassado, em 1948, ela enfrentou a repressão, que estava pronta para prendê-lo. Ele saiu da Câmara direto para a cama, acometido de mononucleose, doença provocada por vírus que causa dores nas articulações e ínguas pelo pescoço. O estado de saúde do agora ex-líder da bancada do Partido era considerado muito grave pelo médico que o atendeu, José Sarmento Barata.

Mas a situação não impediu que ele fosse levado para a delegacia, detido por policiais que invadiram a sua residência. Na frente dos agentes do delegado José Piccoreli, Alzira telefonou para José Sarmento Barata, que comunicou a eles que o paciente estava proibido de sair de casa. Mas de nada adiantou. Maurício Grabois foi arrastado, de pijama, sem poder andar e escorado por policiais, protestando contra aquela atitude arbitrária.

O vandalismo policial atraiu a vizinhança, que se aglomerou em frente à residência. Alzira, acompanhada dos filhos de quatro e dois anos de idade, fez um discurso contra o autoritarismo do governo do general Eurico Gaspar Dutra. Em seguida, dirigiu-se à Câmara dos Deputados para denunciar a prisão. Lá protestou veementemente e foi recebida pelo deputado Flores da Cunha (UDN-RS), que localizou Maurício Grabois na Delegacia de Segurança Política, levado para prestar “esclarecimentos” sobre o Partido. O parlamentar gaúcho telefonou para o ministro da Justiça e exigiu sua libertação.

Alzira também foi atingida pela repressão. Ela participava da Associação Feminina da Gávea, com forte influência do Partido, e, em uma atividade na favela da Praia do Pinto, foi presa com outras quatro pessoas. Na hora, ela se pôs a protestar, mas o grupo foi levado, fichado e posto à disposição do delegado, que mandou recolher todos ao xadrez, onde passaram a noite. Alzira também seria demitida sumariamente do cargo que ocupava, havia mais de cinco anos, no Serviço Florestal do Ministério da Agricultura.

Pouco depois, a polícia voltou à residência de Maurício Grabois, onde também estava o ex-senador do Partido, Luiz Carlos Prestes. Percebendo a aproximação da repressão, os dois pularam o muro dos fundos e fugiram. Quando a polícia entrou na casa, encontrou Alzira revoltada, segurando André, chorando, no colo. Maurício Grabois e Prestes foram parar no Hotel Glória, no apartamento do ex-deputado e governador da Bahia Octávio Mangabeira que, por telefone, exigiu do presidente da República o fim da perseguição policial aos ex-parlamentares comunistas.

Alzira participou da Federação de Mulheres do Brasil, foi advogada trabalhista e dirigente do Partido no estado do Rio de Janeiro. No desdobramento da crise do movimento comunistas na segunda metade da década de 1950, quando grupos revisionistas tentaram liquidar o Partido, Alzira foi “expulsa” do Parido Comunista Brasileiro (PCB), criado por eles em 1961. O jornal Novos Rumos publicou a seguinte nota: “Os comunistas de Niterói, capital do Estado do Rio, comunicam aos trabalhadores e ao povo que Lincoln Cordeiro Oest (que também seria morto na operação que assassinou Danielli) e Alzira Reis Grabois não mais pertencem às fileiras do movimento comunista, das quais foram expulsos em virtude de suas atividades fracionistas e contrárias aos interesses da classe operária e do povo.”

Catharina Patrocínia Torres Pomar

Pedro Pomar igualmente teve na esposa, Catharina Patrocínia Torres, também militante do Partido desde antes de se conhecerem, um apoio decisivo. O casal teve os filhos Wladimir, Eduardo, Jonas e Carlos Alberto. Ainda no Pará, quando o marido e outros dirigentes locais do Partido foram presos ela encaminhava cartas para serem distribuídas pelo país afora denunciando os abusos da repressão.

Era uma mulher de reconhecida coragem. Quando o presidente Getúlio Vargas visitou Belém, ela entregou-lhe um documento de protesto. A ousadia custou-lhe uma queda do bonde, quando estava nos últimos meses da gravidez do segundo filho, Eduardo. Catharina foi também um elo importante no estabelecimento de contatos entre Grabois – que estava reorganizando o Partido no Rio de Janeiro, após a repressão do Estado Novo – e Pomar e Amazonas. “Já conhecia a Catharina (…) antes mesmo de eles se casarem, pessoa também muito amiga, muito estimada”, disse Amazonas ao jornal Tribuna da Luta Operária.

Na fuga da prisão, liderada, entre outros, por Pomar e Amazonas, Catharina foi um elo fundamental. Ela se encarregou de falar com o médico Raimundo Silas de Andrade, amigo dos comunistas, que seria outro ponto-chave do plano. Faria uma receita para adormecer os guardas. Catharina providenciou carteiras de trabalho com nomes falsos para todos e comprou duas passagens para Marabá, uma para Monte Alegre, duas para São Benedito, em Faro, no Baixo Amazonas. Cada um sabia o destino a tomar depois da fuga. Pomar e Amazonas foram para o Rio de Janeiro. A data da fuga coincidiu com a partida dos barcos – 5 de agosto de 1941.

O escritor comunista Dalcídio Jurandir conta que, em meados de setembro de 1945, quando se dirigia ao Paraná para representar a direção nacional na instalação do Comitê Estadual, passou por São Paulo e foi recebido por dirigentes locais, entre eles Jorge Amado. “Uma grande amiga corre para abraçar-me. É Catharina Pomar. Que alegria na sua voz e a recordo, no Pará, quando a via carregando papéis ilegais, quando foi jogada no chão pelo policial, quando levava horas e horas no Umarizal (onde estavam presos Pomar, Amazonas e outros) à espera de que os policiais lhe trouxessem o companheiro”, disse.

Pomar era amigo dos  escritores Jorge Amado e Zélia Gattai e lhes disse que gostaria que Catharina e as crianças fossem passar uma temporada no sítio do casal, entre São João de Meriti e Caxias. “Catharina está precisando descansar, os meninos andam pálidos… Vão te fazer companhia”, teria dito ele, segundo Zélia em seu livro Um chapéu para viagem. Ela conta que a família de Pomar era unida. O amor reinava entre marido e mulher, pais e filhos. Zélia Gattai diz que concordou com satisfação. Gostava de Catharina e sua presença seria bem-vinda.

Durante três ou quatro semanas que passou no sítio, a “sofrida” mulher de Pomar contou-lhe sua vida. Os momentos de amor, as horas terríveis que vivera, como esposa de um dirigente comunista perseguido, preso várias vezes, condenado. Desde que haviam se casado, somente após a anistia aos presos políticos conseguiram viver juntos, em uma vida estável, em paz.

Uma das distrações de Catharina era conversar com o papagaio do sítio. Segundo Zélia Gattai, nem sempre ela entendia o que o louro dizia. Certa vez, achou que ouvira pirarucu. Mas a conversa nada tinha a ver com peixe. Tratava-se de uma frase indecente, grosseira. Recordações dos tempos em que o papagaio convivia com mulheres da vida e boêmios. Diante da gargalhada de Zélia Gattai, Catharina prestou mais atenção e entendeu: ofendeu-se até o fundo da alma. “Vai você, seu louro vagabundo!”, teria respondido. Foi a última vez que Catharina se dirigiu ao papagaio. Cortou relações com ele, conta Zélia Gattai.

Antes da Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, quando Pomar foi assassinado pela repressão, ele estava de viagem marcada para o exterior, em missão do Partido. Mas Catharina foi diagnosticada com aneurisma cerebral e precisava passar por uma delicada cirurgia. Pomar trocou a viagem com Amazonas. Catharina faleceu em 1984, em decorrência do agravamento do aneurisma.

Maria da Conceição Peres

Maria da Conceição, esposa de Aurélio Peres, iniciou a militância política no trabalho de formação de lideranças populares nos bairros mais afastados da zona Sul paulistana, uma iniciativa da ala progressista da Igreja Católica. O casal teve os filhos Leni e Marco Aurélio. O trabalho começou em 1970 e evoluiu para os clubes de mães e o Movimento do Custo de Vida, mais tarde transformado em Movimento Contra a Carestia, sob a liderança de Aurélio Peres.

Quando ele foi preso em sua residência por agentes do DOI-Codi, em 1974, Conceição foi para a rua e gritou denunciando o ocorrido e saiu a procura de ajuda de advogados ligados ao movimento de resistência organizado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Foi uma heroína, nas palavras de Aurélio. Ao relatar esses fatos, Aurélio fez esforço para segurar as lágrimas, que insistiam em avermelhar seus olhos. Os músculos da face crisparam e o olhar se perdeu no infinito. Ao seu lado, Conceição mexia as mãos, com olhos marejados, revelando a mesma angústia e impotência de quando o marido foi arrancado de casa por agentes da repressão.

Maria Ester Nolasco

Maria Ester também já era militante política quando conheceu Vital Nolasco. O casal teve os filhos Patrícia, Daniel e Iara. Ester foi comerciária e ingressou numa empresa metalúrgica, como operária, seguindo a diretriz da Ação Popular (AP), a organização a qual pertenciam, de integração à produção. Vital diz que faziam os chamados comícios relâmpagos: subiam em um banquinho num lugar de concentração popular, como o Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, São Paulo, e metiam o pau na ditadura e na carestia. Falavam rápido e sumiam. Ester, como é chamada, só soube o nome completo de Vital no dia do casamento civil. Até então, era somente Vicente (nome clandestino) ou Vital, conforme a ocasião.

Quando ele estava preso no DOI-Codi paulista, recebeu a visita da mãe, Diva Zanandreis Nolasco, e soube que Ester e a filha, Patrícia, estavam com seus familiares em Belo Horizonte. Para que ela não visse as marcas da tortura, os agentes da ditadura montaram uma farsa: providenciaram uma camisa de mangas compridas.

Para não ficar exposta à repressão, Ester pegou a filha, passou a mão nas coisas que pôde levar e se mandou para a casa de um padre amigo da família. Dali, foram levadas para um convento de freiras. A Patrícia tinha um ano e pouco e foi para uma creche. Depois de certo tempo, arrumaram um esquema para dona Diva pegá-las e levá-las para Belo Horizonte. Foram no mesmo ônibus, mas não se falaram por razões de segurança.

Assim que saiu da prisão, Vital foi reencontrá-las em Belo Horizonte. Quando nasceu o filho, homenagearam Danielli, de quem Vital ouviu falar muito na prisão por sua postura de enfrentar os torturadores, com o nome de Daniel. Vital voltou a trabalhar como operário e Ester ficou em casa para cuidar dos filhos e se reaproximou do Movimento do Custo de Vida. Ester continua na militância do PCdoB.

Anna Martins

Anna Martins também era militante da AP quando conheceu Antônio Almeida Soares, o Tom. Tiveram os filhos Juliana e Pedro. Foi operária e o casal se integrou à produção como camponeses em Livramento de Nossa Senhora, Bahia, logo após o casamento. De volta a São Paulo, trabalhou como operária e liderou lutas sociais históricas nas periferias paulistanas. Ela e Tom foram essenciais para a reestruturação do PCdoB, na luta contra a ditadura militar, na organização e formação dos comunistas.

Filha de agricultores, se integrou à Juventude Operária Católica (JOC), uma das vertentes que criaram a AP. Como estudante, participou também da Juventude Estudantil Católica (JEC). Na década de 1970, integrou-se aos movimentos comunitários e participou dos clubes de mães e do Movimento Contra a Carestia. Foi diretora da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam) e presidente da Federação Estadual das Associações Comunitárias de São Paulo. Pelo PCdoB, cumpriu três mandatos de vereadora em São Paulo e elegeu-se deputada estadual.

Carmilce Miriam Carneiro de Souza

Carmilce Míriam Brito Carneiro e Péricles de Souza se conheceram na militância estudantil. Algum tempo após o golpe militar de 1964, já militantes da AP, foram se integrar à produção na região do Bico do Papagaio – confluência dos estados do Pará, Maranhão e Norte de Goiás (atualmente pertencente ao estado de Tocantins) – e fixaram residência no município maranhense de Imperatriz. Carmilce assumiu o nome de Clea, atuando como professora num projeto de alfabetização de adultos e crianças.

No processo de incorporação da AP ao PCdoB, o casal se estabeleceu em São Paulo. Carmilce se integrou à equipe de “serviços” – os bastidores do trabalho organizativo – da direção nacional. Era também responsável pelo trânsito da produção e distribuição do jornal da AP, Libertação. Cumpria a ela levar os pacotes do jornal impresso a um ponto, onde era recolhido pelo sistema de organização para a distribuição.

Nesse sistema, Carmilce também se tornou um elo importante com os militantes que chegavam em São Paulo, fazendo o controle dos “pontos” de rua e da rede que garantia a segurança da organização. Os contatos não eram estabelecidos diretamente. Havia um sistema de senhas e símbolos, como a cor da camisa, o tipo de jornal ou revista embaixo do braço, o gesto de tomar café numa padaria e assim por diante.

Após a anistia, com a família de volta a Salvador, Carmilce foi trabalhar na Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba), como instrutora de ensino. Antes, trabalhou como auxiliar administrativa na rede de supermercados Paes Mendonça, de 1º de dezembro de 1979 a 9 de agosto de 1980, e passou dois meses na Secretaria de Educação do estado. Na Coelba, fez parte do sistema de direção do Sindicato dos Eletricitários. Se aposentou no começo dos anos 2000 e continuou participando da Associação dos Aposentados da empresa e de atividades sindicais da categoria.

Conceição Leiro Vilan (Conchita)

Conceição Leiro Vilan, a Conchita, e Renato Rabelo também se conheceram no movimento estudantil. Juntos, enfrentaram a investida da ditadura militar e foram, clandestinos, para Belo Horizonte, em 1966, organizar o 28º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), no qual Renato foi eleito vice-presidente. Casaram-se em 1967 e foram morar no Rio de Janeiro. Tiveram os filhos André e Nina. Ela também se integrou ao “serviço” da AP após uma dura experiência de integração à produção na região de Formoso e Trombas, em Goiás.

No episódio da Chacina da Lapa, em 1976, quando Renato estava fora do país e não pôde retornar, Conchita se viu só, com duas crianças. A família havia se estabelecido em Belém, Pará, numa operação montada pelo Partido para que Renato tentasse contato com eventuais sobreviventes da Guerrilha do Araguaia. A residência era precária, vizinha a um local em que porcos eram criados ao ar livre. Não raro apareciam ratos em profusão nos arreadores. Poucos dias após a mudança para Belém, de coração partido – diria Renato mais tarde – ele deixou a esposa com as crianças e os ratos para participar de reuniões da direção do Partido, em 1976, e viajar ao exterior.

Conchita tomou conhecimento da Chacina da Lapa andando pelo centro de Belém. Avistou, numa banca de jornais e revistas, as manchetes sobre o caso. Na busca por notícias de Renato, soube que ele estava na França. Com ajuda de familiares e de entidades solidárias aos perseguidos políticos conseguiu se juntar ao marido em Paris. As crianças foram em seguida. Lá, enfrentou também a dura situação da prisão de Renato, acusado de portar documentos falsos. Ficaram no exílio até a anistia, em 1979.

Assim como Renato e outros militantes da resistência democrática, Conchita continuou vigiada pela ditadura. Nos arquivos da repressão consta que em 1982 ela esteve entre as pessoas que contribuíram para o “agravamento do processo subversivo e contestatório ao regime vigente”. Os espiões relataram sua participação em uma reunião de mulheres, em 1984, num curso de “capacitação política” organizado pelo PCdoB em Campos do Jordão, São Paulo, e a citação do seu nome em uma reportagem intitulada Desempregados invadem prefeitura de Embu, onde ela trabalhava. Cita também sua participação em diversas atividades do PCdoB.

Em 4 de abril de 2014, Renato participou da sessão da Comissão de Anistia que anistiou filhos de presos políticos durante a ditadura militar, na Câmara Municipal de São Paulo. Entre eles estavam os filhos e Conchita, homenageada “pela destacada atuação na luta em prol da democracia e contra a opressão promovida pelo golpe de 1º de abril de 1964”, conforme descreve um certificado assinado pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.

Edíria Carneiro Amazonas

Na França, Conchita fez amizade com Edíria Carneiro, esposa de João Amazonas, sempre visitada por ela. A amizade se fortaleceu quando Conchita se aposentou como assistente social da prefeitura de São Paulo e passou a visitá-la semanalmente. “Nos tornamos muito amigas. Ela ficava numa alegria grande quando eu chegava. A gente papeava a tarde inteira. Ela servia Chá e a conversa continuava”, lembra Conchita.

A biografia de Amazonas foi escrita por Augusto Buoinicore, mas fiz uma bela amizade com Edíria na busca de informações para escrever as biografias de Danielli, Grabois e Pomar. Na biografia de Pomar, escrevi:

“Foi uma paciente consultora quando minhas limitações eram desafiadas pela história. Conheci essa figura generosa e simpática na manhã fria e ensolarada de 5 de agosto de 2002, quando preparava a biografia de Carlos Danielli. Desde então, tornou-se, além de consultora, uma amiga carinhosa. As conversas com ela eram sempre agradáveis, permeadas por suas tiradas de humor e olhares no espaço, buscando recordações que em seus olhos apareciam como doces lembranças.

Ela se foi sem cumprir uma promessa que me fez quando iniciei a redação final deste livro. Em uma agradável noite de verão, dona Ediria me recebeu em sua casa para trocarmos ideias sobre alguns detalhes que surgiram no curso das pesquisas. Conversamos longamente. Sempre revelava algo novo em nossos contatos. Falou da admiração de Catharina por Pedro Pomar, comentou alguns episódios em que o aqui biografado agiu com exagerado rigor moral e falou da generosa cordialidade do casal.

Deixei com ela cópias da revista Seiva (ligada ao Partido, na Bahia), na qual trabalhou como ilustradora nos anos 1940, gentilmente cedidas por João Falcão, seu diretor, com quem estive em sua residência na cidade de Salvador. Fiquei imaginando como reagiria ao ver seus trabalhos muitos anos depois. Pedi para ela ler os originais deste livro, como fez com as duas primeiras biografias que escrevi (de Danielli e de Grabois). Aceitou de pronto e com indisfarçável satisfação.

Seus olhinhos vivos, seu sorriso discreto quase permanente, sua voz pausada e suas ideias compunham uma doce criatura. Estive com ela pela última vez em 25 de agosto de 2011, no lançamento da sua exposição – era uma refinada artista plástica – no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Pouco mais de dois meses depois, recebi a notícia de que estava internada. Travou uma dura batalha pela vida, foi vencida e faleceu na noite de Natal de 2011. Perdi uma colaboradora e, mais que tudo, uma amiga que me cativou profundamente. O Brasil perdeu uma lutadora, uma socialista de raro brilho intelectual e artístico. Este livro ficou menos completo sem as suas preciosas observações.”

Tenho de todas elas as melhores recordações e os mais elevados sentimentos, assim como de irmãs, filhas ou mulheres de outros graus de parentesco dos biografados. As que convivi foram de um carinho imenso. Com as que continuo me comunicando, sempre me emociono com suas mensagens transbordantes de generosidade, graça e delicadeza. E, acima de tudo, o reconhecimento pelo esforço para retratá-las nas biografias, método que adoto para dar visibilidade a essas personagens invisibilizadas pelas durezas da vida e, sobretudo, pela estrutura social que esconde essas maravilhosas mulheres heroínas. Um beijo carinhoso em cada uma delas.

– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.