É cedo para festejar: a denúncia da gangue não é o ponto de chegada

Roberto Amaral*

A denúncia da PGR contra a choldra liderada pelo capitão delinquente, tão esperada, não chega a constituir surpresa, mas implica profundo corte no cenário político. De um lado, pode despertar a esquerda (tomada em plano mais geral) de sua letargia; de outro, deve impor à direita — até aqui fogosa por não enfrentar adversário à altura — um recuo ao canto do ringue, onde hoje se encontra o governo, enredado em sua insegurança estratégica.

Embora o contentamento com o início da ação seja compreensível (temos viva a lembrança do que foi a longa noite bolsonarista), não há razões para soltarmos balões e foguetes, festejando uma vitória ainda por se efetivar — e de cuja construção a esquerda e os progressistas em geral ainda não participaram. Até aqui, o sujeito do processo e depositário das esperanças democráticas é o Poder Judiciário, quando a questão fundamental, que diz respeito ao governo, às esquerdas e ao país, não é jurídica, mas política e, por consequência, só se resolverá na política — onde vimos falhando.

Antes de nós, essa distinção, nada sutil, foi percebida pela direita troglodita, que, na impossibilidade de defender o indefensável — a vasta teia de crimes penais e políticos cometidos e prometidos pela caterva chefiada pelo ex-presidente —, levantou a bandeira de uma anistia bastarda. Isca que a esquerda prontamente mordeu, dedicando-se a combatê-la e desviando-se do foco central, qual seja: a denúncia dos crimes do bolsonarismo, concebida como instrumento de combate ao avanço da direita, nosso adversário estratégico. Sem clareza sobre o processo histórico e de seu papel nele, a esquerda se torna reativa, e assim sua práxis passa a ser condicionada pelo campo adversário.

É como enfrentamento à direita (a dita civilizada e a troglodita) que devem ser compreendidos a denúncia e o combate à choldra bolsonarista e seu contencioso de crimes.
Cumpre à esquerda, valendo-se da oportunidade que se abre, politizar o debate, destrinchar para o povo o conteúdo e o significado da grave denúncia, explicar os crimes do neofascismo como coletivos e pressionar o STF para a aceitação da denúncia, agora, e amanhã o processo. Deve esclarecer a opinião pública e pressionar o Judiciário, mas tudo isso como ação política, cujo objetivo, no curto, médio e longo prazos é a desmoralização política e moral da direita e seus agentes — direita fascista que já estava enraizada entre nós antes da liderança do capitão e aqui permanecerá, mais forte ou mais fraca, mais perigosa ou não, alimentada pelos avanços que vem logrando desde 2018 e, agora, impulsionada pelo trumpismo em ascensão que encontra no viralatismo ideológico da classe dominante terreno fértil para a semeadura.

Seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista ideológico, a extrema-direita (nativa e importada) jamais esteve tão forte política e eleitoralmente, tão bem aparelhada financeiramente e tão vinculada à nova ordem internacional, que, ascendente na Europa e nos EUA, favorece o avanço das correntes neofascistas em todo o mundo.

No Brasil, o reacionarismo controla as duas casas do Congresso, a maioria dos estados (como SP, RJ e MG), as prefeituras e câmaras municipais. Tem atrás de si o grande capital, além de infiltração nas forças armadas do Estado brasileiro. Dispensado falar no controle dos grandes meios de comunicação e das redes sociais, bem como da inefável ajuda do neopentecostalismo comercial. Combatê-lo é o objetivo da esquerda — e deveria ser o ânimo do governo e dos liberais, caso ainda existam, e da socialdemocracia, se esta não houvesse se suicidado.

A condenação penal e moral dos principais próceres da extrema-direita, a começar pelo capitão delinquente, será um instrumento valioso de luta e mobilização popular, mas apenas um ponto de partida. O momento, ou seja, o cavalo que passa selado diante de nós, exige uma revisão corajosa do governo e da esquerda, que não podem permanecer letárgicos, nem celebrar uma vitória que ainda não chegou.
Há trabalho pela frente.

O governo precisa discutir o conceito de frente ampla — uma frente para ganhar eleições e outra para governar —, e sustentar essa frente eleitoral com um projeto aglutinador e diretor. Sem definição, o governo, que já não podia ser de centro-esquerda, se descobre sob as diretivas de um projeto alheio e perde sua identificação com o eleitorado que foi base da eleição de Lula e deveria ser sua sustentação política hoje, como foi na conjuntura do chamado “mensalão”.

(A crise é política, e não de comunicação, que no entanto continua inexistente, pois comunicação de governo envolve questões que os marqueteiros não costumam perceber, como projeto politico e programa de governo dele servidor.)

O combate ao avanço da direita, seja qual for o desfecho dos julgamentos do STF, depende do desempenho político do governo e da ressurreição das esquerdas, da retomada do trabalho de organização sem o qual não há mobilização popular, ponto de partida indispensável para a batalha ideológica que a direita tem vencido sem combate efetivo.
Uma urgência é livrar-se da pauta conservadora imposta pelo sistema e construir a nossa, mas isso depende, nas circunstâncias, de um governo com visão estratégica e comando a ela adequado, como de estruturas partidárias vinculadas à luta social, e não ao cotidiano das disputas internas de facções sem perspectivas históricas, apegadas ao aqui e agora e à disputa de espaços irrelevantes nas estruturas institucionais. O velho fratricídio da micropolítica.

Se o governo Lula não conseguiu, até aqui, organizar-se em torno de um projeto de país, a esquerda tampouco formulou ou defendeu um programa de mudança voltado à crise estrutural do capitalismo dependente, dirigindo-se à sociedade e enfrentando o desafio ideológico colocado pela direita em ascensão. Terminamos, ao fim e ao cabo, repetindo os passos que historicamente condenávamos na antiga socialdemocracia, ou seja, trabalhamos para tornar o capitalismo suportável. É o que fazemos quando deixamos de enxergar a luta de classes, quando deixamos de denunciar a iniquidade do capitalismo, quando renunciamos a apontar alternativas. A desigualdade social, assim, toma a aparência de fenômeno natural.

Nessa toada, refazemos os passos vencidos dos caminhantes sem esperanças: revolucionários, reformistas… por fim conservadores. E nos espantamos quando os explorados não reconhecem mais nosso discurso, e menos ainda nossos governos.
Perdida a utopia fundante, a esquerda se queda no desamparo ideológico, e assim se descobre à mercê do discurso que nega e que ao mesmo tempo a nega. No governo, é presa do neoliberalismo.

Disfunções à parte, a grande vitória do capitalismo se deu e se renova no plano político-ideológico: a adoção de seus valores por aqueles que deveriam combater esse sistema iníquo. No rasto dessa vitória caminha a direita, com suas expressões distintas entre em si, porém irmãs: aquela que “joga dentro das quatro linhas”, e assim se apresenta como civilizada, e a tresloucada, que atinge sua máxima expressão na figura do capitão delinquente e sua súcia de assassinos.

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Quem se trumbica? — Durante a ditadura militar instalada em 1º de abril de 1964, os militares impunham severa censura aos jornais, que reagiam publicando receitas de bolo nas primeiras páginas, para sinalizar ao público que estavam sob o jugo do arbítrio. Hoje, com o mundo em convulsão e a aprovação do governo em queda, os anódinos bolos voltam a ser destaque — agora na comunicação oficial. Com a palavra, os exegetas.

*Com a colaboração de Pedro Amaral

Mortos pela ditadura terão correção de certidões

Recriada em julho deste ano, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que retomou seus trabalhos oficialmente na última sexta-feira, 30 de agosto, recomendou ao Conselho Nacional de Justiça a correção de certidões de mortos pela ditadura.

A medida consta como uma das recomendações feita pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

Marco importante na luta por justiça e reconhecimento das violações cometidas durante a ditadura militar, a Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecidos Políticos indica que em 407 dos 434 casos de mortes e desaparecimentos que a CNV confirmou em 2014, os termos lavrados nos documentos não refletem a real causa dos óbitos.

De acordo com o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, a proposta é que o CNJ determine aos cartórios de todo o país que corrijam as certidões com um modelo de certidão no qual o Estado reconhece a morte não natural, violenta, causada por perseguição política pelas forças repressivas do Estado.

Representante de Familiares na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos desde 2005, Diva Soares Santana, de 80 anos, tem a irmã Dinaelza Soares Santana Coqueiro, morta por militares durante a repressão à Guerrilha do Araguaia, no Pará, dada como desaparecida até hoje. No documento de óbito entregue à família, não constam informações básicas de como ela morreu e onde foi sepultada.

Para Andrea Depiere, professora de Direito da Universidade Federal de Sergipe, a retomada da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, criada em 1995, e da Comissão da Anistia, criada em 2002, são passos importantes para o amadurecimento de uma Justiça por Memória, Verdade e Reparação. De 2015 a 2019, ela esteve à frente da Comissão Estadual da Verdade em Sergipe.

E o  Ministério Público Federal em São Paulo entrou com uma ação na Justiça Federal pedindo a responsabilização de 46 ex-agentes da ditadura militar por envolvimento direto ou indireto em torturas, mortes e desaparecimentos de 15 opositores à ditadura.

Segundo o órgão, todos eram ligados a unidades de repressão como o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e o Instituto Médico Legal em São Paulo.

A ação é no âmbito civil e pede, entre outras coisas, que estes ex-agentes ou suas famílias – no caso de eles já terem falecido – façam o ressarcimento ao Estado brasileiro, uma vez que o país precisou indenizar as vítimas da ditadura.

Entre os réus estão o ex-delegado do Dops Sérgio Paranhos Fleury, morto em 1979, e o ex-comandante do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015. (Agência Brasil)