Os partidos e os donos do poder na história do Brasil

Assinatura do projeto da Constituição de 1891, símbolo do início da história republicana do Brasil

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 20/10/2004

Vivemos uma espécie de “Fim da história” no Brasil, a julgar pela opinião academicista e intelectualista que tomou conta dos maiores meios de comunicação a respeito das eleições em andamento no país. Para os porta-vozes desta opinião, os paradigmas econômicos e políticos que marcaram o século XX perderam a razão de ser. O modo como estávamos acostumados a ver as coisas e a entender o mundo não faz mais sentido. Os conceitos clássicos de esquerda e direita, segundo essa tese, não existem mais porque a oposição básica que lhes daria sentido — socialismo versus capitalismo — foi varrida pela “nova ordem mundial”. E com ela teria desaparecido a dicotomia entre revolução e reação, que estabelece o fio condutor com marxistas e liberais.

Onde havia a chama da revolução, teria passado a existir um desejo sereno de mudanças porque as forças da reação estariam tendendo a defender a manutenção dos cenários estabelecidos de uma forma menos cínica. Em consequência, as possibilidades de diálogo e de solução dos conflitos seriam maiores. A nova dicotomia no máximo lembraria um pouco a organização partidária norte-americana, comandada por republicanos à direita e democratas à esquerda — um espectro político muito próximo do “centro”. O PSDB seria a principal força de centro-direita e o PT a principal força de centro-esquerda, ambas enquadradas por “instituições maduras” no trato das políticas macroeconômicas e sem espaços para operar mudanças estruturais.

É difícil a comprovação desta tese num país em que o combate histórico à hegemonia liberal ainda é uma luta contra resquícios medievais. Essa constatação ajuda a desvendar por que no Brasil a direita morre de vergonha em admitir-se de direita e procura manter baixa a visibilidade de sua bandeira. A realidade, no entanto, mostra cotidianamente que o enfrentamento entre forças de transformação e forças conservadoras não desapareceu. Travamos hoje uma batalha contra uma direita que age de tacape na mão para suprimir direitos sociais, que luta com unhas e dentes para manter a imprensa a seu serviço, que abomina qualquer iniciativa que visa a distribuição de renda e que desqualifica qualquer conceito de Estado de corte humanista.

História do movimento partidário imperial

Ou seja: direita e esquerda, que sempre pintaram suas bandeiras com cores nítidas, enfrentam-se com projetos claramente opostos para o país. A direita brasileira não assume o escopo ideológico que lhe corre nas veias porque ele já está há muito tempo superado. Ela sempre se soube na contramão da história, dando sustentação a qualquer regime que protegesse seu senhorio, porque privilégios feudais e arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos em outros países ainda são a essência do seu projeto estratégico. Daí a tentativa da direita de camuflagem de sua bandeira, que vem sendo pintada desde antes da disputa ideológica típica do século XX — entre socialismo e capitalismo, o conflito clássico da esquerda com a direita —, quando no Brasil já havia o choque do contemporâneo com o obsoleto.

A história do movimento partidário imperial — principalmente no auge das disputas entre monarquistas e republicanos, quando os últimos fundaram mais de 300 clubes no ano e meio decorrido entre a Abolição e a República — guarda perfeita simetria com o atual estágio em que as forças políticas conservadoras reproduzem a forma como as oligarquias trataram o povo ao longo do período republicano. Ainda hoje pouco se sabe a respeito da atividade política popular contra a monarquia, registrada em muitos jornais republicanos, e do fio condutor das ações progressistas do século XX com as lutas que se vinham travando por um futuro melhor desde antes da proclamação da República — resultado da contumaz ação autoritária das forças conservadoras.

O papel progressista do PTB até o golpe

Na República Velha, que continuou restringindo a participação popular nos destinos do país, os trabalhadores começaram a construir um efetivo movimento político, que culminou na criação do Partido Comunista do Brasil. Depois da derrocada da República Velha e da consolidação da revolução que levou Getúlio Vargas à Presidência da República em 1930, com a superação da fase em que os comunistas enfrentaram a repressão varguista, o quadro partidário ganhou nova configuração. O PCB — a sigla do Partido Comunista do Brasil na época — contribuiu de forma decisiva para a unidade nacional contra a reação e conquistou a legalidade. Sua atuação junto ao povo, mesmo depois de ser cassado no governo do general Dutra, em 1947, foi marcante.

Neste período surgiu, pelas mãos de Getúlio Vargas, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com o objetivo declarado de ocupar os espaços do PCB. Surgiram também o PSD e a UND, que retomaram a clássica configuração partidária da República Velha — além de outros partidos de menor expressão à direita e à esquerda. O PTB, partido ligado ao movimento operário que adotou uma plataforma nacional e democrática, revelou-se uma força ponderável na formação de um campo político nacional amplo e ao mesmo tempo com base popular, também integrado pelo PCB, e cumpriu importante papel até o golpe militar de 1964.

A política de unidade confirma seu acerto

Vencido o longo inverno antidemocrático, o quadro partidário, após uma fase de redefinição das posições políticas, voltou a ser basicamente o mesmo do período que sucedeu o Estado Novo. Hoje, pode-se dizer que, numa conjuntura evidentemente muito mais complexa, o PFL e o PSDB são, em essência, a continuidade do PSD e da UDN. O Partido Comunista do Brasil, já com a sigla PCdoB, voltou a figurar com destaque no cenário partidário e novamente propôs uma frente popular, liderada pelo PT, que foi se ampliando até a vitória eleitoral que conduziu Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 2002.

As eleições deste ano são mais um passo que concorre para agrupar no plano político as correntes progressista e conservadora. Há, no entanto, um tremendo esforço — às vezes por meio de um academicismo exasperante e tumultuado — para situar o quadro político fora da realidade, ignorando classes, grupos de classes e interesses antagônicos. As eleições estão comprovando a heterogeneidade de alguns partidos tidos como grandes, mas também estão evidenciando a necessidade de unir para a ação conjunta todos os setores democráticos e populares. A política de unidade preconizada pelos comunistas vem obtendo sucessos que, embora ainda parciais, confirmam o seu acerto.

O governo tende a pender para a direita

No entanto, a campanha eleitoral também vem revelando que o campo governista não está conseguindo sensibilizar grande parte do eleitorado. Em grande medida, isto se deve ao fato de que setores do governo fazem caso omisso das condições de vida do povo. Concorrem para isso, principalmente, os conflitos de interesses — destacadamente dentro do PT. Se as eleições estão demonstrando que este partido é sensível às aspirações populares, constituindo hoje uma força política insubstituível para o campo progressista, estão revelando ao mesmo tempo suas contradições e deficiências, sua ligação débil com os interesses estratégicos do país e resquícios do tradicional “esquerdismo” sectário e divisionista.

A grande massa do povo brasileiro se integrará conscientemente no projeto mudancista proposto em 2002 à medida que ver claramente a relação entre seus interesses vitais e a defesa dos interesses gerais da nação. Talvez seja essa deficiência o principal entrave hoje para uma definição clara dos dois projetos que historicamente disputam a condução do país. Uma política progressista acertada, portanto, exige, além do apoio popular decidido às ações favoráveis do governo aos interesses nacionais, o combate enérgico à orientação de certos círculos que pretendem manter a economia do país subordinada à dependência do capital financeiro. Sem dar consequência às reivindicações populares, um governo composto por forças diversificadas tende a pender cada vez mais para a direita. Isto a vida tem demonstrado.

 

– As big techs e as gerações que vêm com tudo

Por Osvaldo Bertolino

No interessante livro Big tech – a ascensão dos dados e a morte da política, que reúne os principais artigos de Evgeny Morozov, um dos mais influentes especialistas em tecnologia e internet do mundo, consta um amplo painel sobre a aliança entre o neoliberalismo e o Vale do Silício. Ele problematiza o que define como lógica do chamado “solucionismo” tecnológico, que enxerga a tecnologia como panaceia para problemas que instituições falharam em resolver. Na verdade, é uma possibilidade que pode servir de ferramenta contrária à democracia. O alerta suscita reflexões sobre a inter-relação da economia com a política – a clássica economia política –, sem a qual uma e outra se artificializam.

O poder do neoliberalismo, decorrente da elevação em grau máximo da influência do capital financeiro sobre o capital industrial, se traduz numa luta política que implica atuar levando em conta a dimensão dessa aliança. Atuar de forma isolada em determinanda esfera sem atentar para essa inter-relação significa limitar a abrangência do combate. O que se nota nessa conjuntura é uma luta de resistência, que exige uma organização popular interagindo com a realidade de cada local, produzindo conteúdo e acúmulo teórico. Em síntese: criar canais para a atuação política apontada para a superação das contradições da contemporaneidade.

A principal delas é o desenvolvimento nacional, um projeto de múltiplas interfaces. Lutar pela democratização da comunicação – ou pela guerra cultural e o debate ideológico – é uma exigência que passa por esse caminho. A combinação simultânea e proporcional da economia com a política possibilita categorias que armam ideologicamente a luta de classes, com suas complexidades, um conceito que abrange a conjuntura internacional e seus tentáculos, determinante para o entendimento do que está em questão em âmbito nacional.

Macacada reunida

O ponto mais decisivo nesse universo é o binômio emprego e renda, que espalha controvérsias, gerando ascensões de forças políticas que negam a civilização, potencializadas por estagnações econômicas e carregadas de obscurantismos. Chamadas de extrema-direita, são, a rigor, manifestações de antagonismos que se agudizam com a evolução dos dilemas do capital. Seu principal efeito pode ser visto às claras entre a juventude que chega ao mundo do trabalho enfrentando desafios inéditos.

São gerações que nasceram sob a interatividade e o virtualismo, desligadas da lógica dos seres analógicos pré-anos 1990. Em suma: estão familiarizadas com um mundo pequeno, conectado, desenhado em interfaces amigáveis, que lhes chega mediado pela tela de alta resolução. Mas, quando falam de seus problemas, o fazem de modo a deixar evidente a questão principal: o desemprego. Ouça-se Jota Quest, um porta-voz da primeira geração dessa juventude no Brasil: “Macacada reunida/Galera pelejando e dançando/Procurando uma saída (…) Que tá faltando emprego no planeta dos macacos.”

Mesmo quando ocupados, podemos verificar que são destinados aos jovens as posições de baixa qualificação e remuneração. Uma parcela significativa deles que precisa trabalhar sob essas condições compromete sua escolarização sem completar sequer os ciclos educacionais compatíveis com a sua idade.

Gerações digitais

É a face do chamado McJob, nome genérico que nos Estados Unidos e na Europa se dá a empregos de baixa especialização e de baixa remuneração no setor de serviços, que se espalhou no Brasil. A prova disso está disponível em qualquer loja do McDonald’s – e congêneres -, onde se vê punhados de adolescentes brasileiros frequentemente vistos como um grupo mal preparado e de pouco futuro. Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs simbolizam uma geração que enfrentou dificuldades para trocar seu diploma universitário por um bom emprego. Eles chegaram ao mercado de trabalho com um currículo cinco estrelas e tiveram que se virar com um emprego destinado a quem tem pouca formação escolar.

Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs geralmente complementam os rendimentos de quem está cursando o colégio ou mesmo a universidade. No Brasil, não. O McDonald’s, por exemplo, tem mais de 30 mil funcionários no país – 85% trabalham como atendentes nos cerca de 500 restaurantes brasileiros da rede. Cada loja tem em média 70 funcionários, e quase todos têm entre 16 e 21 anos, ganhando salários irrisórios. Por esses dados, é possível visualizar o maior drama da juventude brasileira – a entrada no mercado de trabalho. Quem são e o que pensam esses jovens?

Eles compõem as primeiras gerações digitais da história, que emergem no Brasil e em vários outros países com uma força avassaladora. Trata-se de uma moçada que nasceu com hábitos específicos, com jeitos e objetivos muito próprios, e que vai, em breve, tomar as rédeas do país e imprimir a ele suas ideias e seus estilos. Essas gerações vão, muito provavelmente, chacoalhar regras e certezas estabelecidas. Elas impõe um desafio ao mesmo tempo simples e crucial: incorporar essa moçada nas lutas progressistas.

O desafio está na aprendizagem da linguagem e dos seus anseios. E está também na desaprendizagem das práticas que caducaram ou estão caducando. Essas geraçôes romperam com a tradição de sua espécie, que é analógica desde seus primórdios. Raciocinam e se movimentam vida afora a partir de novas e inéditas coordenadas. Essa turma já nasceu sendo filmada, virando registro eletrônico, e cresce na frente de um aparelho de alta tecnologia. São jovens que se divertem com vários programas e tornam-se exímios com um teclado antes mesmo de entrar na escola.

Desânimo e violência

Os dados têm um efeito devastador sobre os jovens quando saem da frieza do papel. Uma pesquisa do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) mostrou que o maior temor dos estudantes de São Paulo é terminar seus cursos e não conseguir emprego. A pesquisa entrevistou 500 jovens de 16 a 25 anos. Desse total, 42% disseram temer não conseguir uma colocação no mercado de trabalho. Um índice bem mais alto do que o de outras preocupações, como obter independência financeira (15%) ou melhorar a qualidade de vida (14%). Segundo as estimativas mais otimistas, para melhorar essa situação o Brasil precisaria retomar um crescimento econômico de 6% ao ano.

Um dos efeitos mais nocivos do desemprego é a combinação de desânimo com violência. Muitas vezes, os jovens fazem a sua parte ao estudar, mas a falta de perspectiva os leva à depressão, à inatividade e ao desespero da droga e do crime. Os governos Lula iniciais tentaram amenizar o drama. Em 2006, o Ministério do Trabalho e Emprego assinou 13 convênios com entidades do movimento social para a execução em 2007 dos Consórcios Sociais da Juventude.

No atual governo, o Ministério do Trabalho e Emprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) lançaram, o Pacto Nacional pela Inclusão Produtiva das Juventudes. A iniciativa pretende unir esforços para impulsionar a empregabilidade e formação profissional para jovens em situação de vulnerabilidade no país até 2030 e conta, também, com o apoio do Pacto Global das Nações Unidas, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e da Secretaria Nacional de Juventude.

Papel do jovem

Segundo o Censo Demográfico 2022, o Brasil conta com 45,3 milhões de adolescentes e jovens de 15 a 29 anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostram que um em cada cinco brasileiros nessa faixa etária não estudava e nem estava ocupado em 2022, um universo de 10,9 milhões pessoas, o equivalente a 22,3% da população nacional. Deste, 43,3% eram mulheres pretas ou pardas, 24,3% homens pretos ou pardos, 20,1% mulheres brancas e 11,4% homens brancos. Havia 4,7 milhões deles que não procuravam trabalho e nem gostariam de trabalhar, entre eles dois milhões de mulheres cuidando de parentes e dos afazeres domésticos, 61,2% pobres, 47,8% pretas ou pardas.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que o desemprego entre jovens no Brasil é, na média, o dobro da população geral historicamente. De acordo o relatório sobre empregabilidade de jovens da OIT, chamado Global Employment Trends for Youth, publicado dia 11 de agosto de 2022, o número global de jovens desempregados pode chegar a 73 milhões. A projeção para 2022 era de que 27,4% das mulheres jovens em todo o mundo estariam empregadas, em comparação com 40,3% dos homens jovens. O fenômeno é mais notado nos países de renda média baixa.

Não é somente a falta de crescimento econômico que mingua os empregos. A tendência de enxugamento de postos de trabalho – acentuada pela onda de fusões e aquisições das grandes corporações – e a redução da oferta de cargos públicos, tanto pelos “ajustes” do projeto neoliberal a que os governos foram submetidos com a brutal Lei da Responsabilidade Fiscal quanto pelas privatizações – têm impacto direto sobre o emprego. É verdade que há muito mais coisas que o governo pode fazer. E os sindicatos também. E a sociedade também. Mas nada substitui o papel do próprio jovem nesse processo.