A China e a revolução escondida

Por Osvaldo Bertolino

O fenômeno chinês é, possivelmente, um dos assuntos mais debatidos na atualidade em todo o mundo. No Brasil, é possível afirmar que o assunto está no topo do debate político, econômico e ideológico. Com o advento das novas formas de comunicação, velhos estereótipos foram desmoralizados, sobretudo os que estigmatizam a China como ditadura e fornecedora de força de trabalho abundante a baixos custos, sem contrapartidas, como se essa fosse uma condição do sistema.

Ficou, no debate com esses novos conhecimentos, um vazio de ideias. Fala-se muito sobre a China, mas pouco sobre o essencial, a ideologia que impulsiona o seu desenvolvimento. Compreende-se pouco, pelas manifestações mais conhecidas, o dínamo daquele país, a organização que orienta politicamente a sociedade: o Partido Comunista da China (PCCh). Nele está o projeto chinês, compreendido como antípoda do imperialismo como evolução natural das ideias surgidas com Adam Smith e seus congêneres, à época chamadas de liberais. O socialismo é o processo de superação do capitalismo, não seu mero concorrente

É um anacronismo chamar o atual projeto econômico, político e social do capitalismo de liberal. O termo surgiu como sinônimo de liberdade, num mundo em que a relação entre capital e trabalho era vista como antinomia assimilável pelo princípio da liberdade, tida como universal e perene. Mais recentemente, tentou-se reavivar esse projeto, rebatizado de neoliberal, a nova ordem econômica e política do velho imperialismo.

A história logo provou a cientificidade da crítica da economia política de Karl Marx, a constatação de que a liberdade de Adam Smith não era universal e muito menos perene. A crítica de Marx é lastreada numa síntese do pensamento social desde a antiguidade clássica. Outros marxistas deram novas sistematizações a essa ideia, sobretudo Vladimir Lênin, que elaborou outra grande síntese do pensamento social.

Surge, nesse curso histórico, a concepção leninista de partido de novo tipo, o portador consciente de um processo inconsciente, as contradições manifestadas em luta política pelas categorias da dialética, transformando os trabalhadores de classe em si para classe para si, a consciência social de que o capital é instrumento de dominação, exploração e alienação. O partido leninista concentra essa teoria em suas elaborações programáticas e dá a elas sentido prático, com táticas e estratégias impulsionadas dialeticamente, conforme as realidades concretas.

Não se compreende a China sem esses elementos. Foram eles que levaram à revolução de 1949 e ao desenvolvimento do socialismo, também carregado de antinomias e contradições. As limitações teóricas foram o grande entrave a esse processo – também foram em outras experiências socialistas –, atualmente em processo de superação, mais conhecido como nova luta pelo socialismo, por experientes partidos comunistas, entre eles o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

É a busca de novas elaborações no cenário mundial de novas realidades, caminhos para a consecução do projeto socialista. O PCCh empreende grande esforço nesse sentido. Suas elaborações permitem compreender melhor a síntese leninista, a causa do sucesso chinês, um bem-sucedido projeto antinômico que transforma capital em investimentos e desenvolvimento, produzindo novas realidades, o caminho do socialismo.

Ou seja: a raiz do fenômeno chinês é o partido leninista, com a revolução de 1949 como seu marco principal. Resta saber se, com esses elementos, é possível dizer que o mundo caminha para a multipolaridade, com o imperialismo cada vez mais feroz na defesa da ordem do capital e a China em marcha acelerada com seu projeto socialista.

PCdoB cento e três anos: as lideranças das gerações comunistas

Prólogo do livro Renato Rabelo – vida, ideias e rumos

O sorriso largo não deixava dúvida. João Amazonas estava feliz ao receber uma placa homenageando seus quase sessenta e sete anos de militância comunista, perto de completar quarenta anos como principal dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Pouco antes, estivera na tribuna do X Congresso do Partido, realizado entre 9 e 12 de dezembro de 2001 no Centro de Convenções Riocentro, Rio de Janeiro, para apontar, com voz serena e embargada, Renato Rabelo, então vice-presidente, como seu substituto. A quarta geração de dirigentes estava assumindo o comando do Partido.

Os mais de oitocentos delegados, representando em torno de duzentos mil filiados, além dos convidados e trinta e duas delegações estrangeiras, ouviram, em silêncio absoluto, Amazonas dizer que Renato era um bom camarada, que vinha se destacando no Partido e procurando seguir suas tradições de luta.

Em pé, trajando terno e gravata, com as mãos apoiadas na mesa, Amazonas falou, num breve discurso, que completaria noventa anos de idade em 1º de janeiro de 2002 e não tinha mais condições físicas para ocupar o cargo máximo da direção partidária. Pediu aos seus camaradas dispensa da função. Não havia cargo vitalício no PCdoB, mas não estava pedindo aposentadoria, comunicou. Queria morrer em sua banca de trabalho, continuando a luta pelos ideais que procurou defender durante a vida. Seguiria membro do Comitê Central, agora no simbólico posto de presidente de honra.

Agradeceu pelo apoio que sempre teve “nas fileiras do glorioso e heroico Partido Comunista do Brasil” e virou-se para a esquerda, onde estava sua companheira de jornada, Elza Monnerat. Sentou-se lentamente. Com o gesto, retirou-se simbolicamente do posto que ocupava desde 1962, quando o Partido foi reorganizado. Às suas costas, um painel do Congresso ostentava as imagens de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lênin.

Em cem anos de atividades do Partido Comunista do Brasil, passaram por sua direção, antes de Renato, à frente de gerações de dirigentes, Astrojildo Pereira – que liderou a fundação e os primeiros anos do Partido –, Luiz Carlos Prestes – que assumiu na Conferência da Mantiqueira, de 1943, na reconstrução após a ditadura do Estado Novo – e Amazonas, uma das lideranças da reorganização na Conferência extraordinária de 1962.

Nas duas conferências – de 1943 e de 1962 –, os comunistas recomeçavam praticamente do zero, uma atividade de construção e reconstrução do Partido que Amazonas comparava à mitológica Fênix, a ave da literatura grega que renasce de suas cinzas.

Passagem para Renato Rabelo

Na passagem de comando para Renato, Amazonas destacou o papel dos camaradas da direção coletiva na sua geração, dos quais lembrava com saudades e respeito pela sua combatividade. Citou Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luís Guilhardini e outros tantos que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade – a ditadura militar – para defender os interesses do povo.

Com os assassinatos daqueles camaradas, coube a ele maiores responsabilidades. O ingresso de Renato e outros dirigentes da Ação Popular (AP) no Partido, no começo da década de 1970, reforçou a direção. Foram recebidos com entusiasmo. Estavam entrando para o PCdoB em um momento de alto risco, quando a repressão atacava ferozmente os comunistas. A caçada aos que, de uma forma ou de outra, estavam ligados à Guerrilha do Araguaia era uma obsessão da ditadura militar.

Começava ali o trajeto que levaria à quarta geração de dirigentes, reunindo remanescentes da incorporação da Ação Popular e novas lideranças. Quando Renato ingressou no PCdoB, encontrou na direção quadros experientes, marcados por combates que vinham dos anos 1930. Não conheceu Grabois, morto em ação armada na Guerrilha do Araguaia, mas foi recebido por Amazonas, Pedro Pomar e Elza Monnerat, sobreviventes das matanças promovidas pela ditadura e antigos dirigentes comunistas.

Amazonas ingressou no Partido em Belém do Pará, sua terra Natal, onde fora preso em atividades da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que organizava o Levante de 1935, assim como Pomar. Elza Monnerat viera do Rio de Janeiro. Ingressara no Partido em 1945. Foram lideranças da reorganização de 1962, quando o Partido enfrentou um surto revisionista e reformista, processo iniciado em 1956 sob o influxo do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Com o golpe de 1964, diante da quase impossibilidade da luta revolucionária nas cidades, foram para o campo organizar a guerra popular, o caminho da luta armada, a resistência à ditadura. Amazonas e Elza sobreviveram à repressão à Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará. Pomar esteve em diferentes regiões do Norte e do Nordeste. Fixou-se no Vale do Ribeira, organizando bases da guerra popular nas montanhas do Sul do estado de São Paulo, e seria morto na Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976.

Liderança de João Amazonas

Amazonas assumiu a liderança da terceira geração de dirigentes, em 1962 – ao lado de Maurício Grabois, Pedro Pomar e outros –, com a experiência de membro do Comitê Central desde a Conferência da Mantiqueira, de 1943, assim chamada por ter sido realizada nas proximidades da serra com esse nome, numa casa de taipa, moradia de uma propriedade rural que pertencia a um militante comunista, no meio da mata, em Engenheiro Passos, distrito de Resende, Sul Fluminense, entre 28 e 30 de agosto de 1943. Nela, o Partido foi reconstruído após a feroz perseguição do Estado Novo, instaurado com o golpe de 1937.

Sua militância política começou na “Ala Moça” da União Popular do Pará (UPP), uma frente única organizada para participar das eleições municipais de Belém em 30 de novembro de 1935. O passo seguinte seria o ingresso no Partido Comunista do Brasil, tendo como caminho a ANL, organizadora do Levante de 1935, liderada por Luiz Carlos Prestes. Ingressou também na União dos Proletários.

Quando a ANL surgiu com força no país, Amazonas participou de uma ação ousada ao içar, à noite, uma bandeira da organização nos mastros dos reservatórios de água da Lauro Sodré, local com ampla visibilidade na cidade, com vinte metros de altura. O jornal Folha do Norte de 19 de dezembro de 1935 noticiou o fato notado pelo público desde a manhã do dia anterior. Os participantes do protesto escreveram, segundo a Folha do Norte, com tinta arroxeada, várias inscrições – como Viva Luiz Carlos Prestes, Viva a ANL e Viva o comunismo.

Na repressão que se instalou no país após o Levante, Amazonas foi preso na Cadeia de São José, descrita pela Folha do Norte como “um antigo e inqualificável pardieiro, uma ignomínia”. Um ano depois, a Justiça mandou soltá-lo, quando terminou o estado de guerra. Mergulhou na clandestinidade, mas logo seria preso novamente.

Segundo o inquérito que determinou a sua prisão, nas palavras da Folha do Norte, “João Amazonas agia no preparo de matrizes e boletins subversivos da propaganda moscovita, matrizes que eram entregues a Pedro de Araújo Pomar, detido há dias passados”, encarregado “de mimeografá-los em grande quantidade para os espalhar sorrateiramente pelos bairros da cidade”. Eram “pouquinhos, mas teimosos os adeptos do credo sinistro”.

Foram para a prisão de Umarizal, em Belém, de onde fugiram e, numa longa e penosa viagem, chegaram ao Rio de Janeiro para se juntar aos comunistas que reconstruíam o Partido, ainda na vigência do Estado Novo, liderados por Maurício Grabois. A decisão foi tomada após a informação de que a Alemanha nazista invadira a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 22 de junho de 1941. Fugiram em 5 de agosto. Chegaram ao Rio de Janeiro e se integraram à Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), criada por Maurício Grabois e outros comunistas para reestruturar o Partido desarticulado pelo Estado Novo.

Amazonas empregou-se como auxiliar de contabilidade, no centro da cidade. Era uma forma de fazer algum recurso enquanto a CNOP pavimentava os caminhos para o início de uma nova jornada. Logo foi para Minas Gerais. Recebeu alguns mil-réis e a passagem de trem que o levaria para as terras onde deveria fazer rebrotar as raízes comunistas. Outro ponto visitado por Amazonas foi a Bahia, de onde partiu o dirigente Diógenes Arruda Câmara para se integrar à CNOP. O objetivo era realizar uma Conferência Nacional e eleger um Comitê Central.

Os comunistas ressurgiam com força, presentes em organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), além da Liga de Defesa Nacional – uma frente com vários departamentos, entre eles o sindical, assumido por Amazonas, embrião do Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT). O Partido priorizava a organização de células nas empresas, formando uma grande base de trabalhadores.

De 1941 a 1945 foram anos de luta aguda contra o liquidacionismo – os que pretendiam liquidar o Partido, dissolvendo-o numa frente contra o nazifascismo –, disse Amazonas. “É preciso dizer que a desvantagem era grande. Vencemos porque a verdade estava do nosso lado”, afirmou. A nova equipe que assumia a defesa do Partido – registrou Amazonas – eram pessoas desconhecidas quase completamente. “Afinal, essa nova equipe – Arruda, Grabois, Pomar, eu etc. – eram pessoas que não tinham nenhuma posição no Partido, na época, a não ser locais, naqueles lugares onde tínhamos atuado.”

Na Conferência da Mantiqueira Amazonas assumiu a Secretaria Sindical e de Massas. A direção eleita contava também com Grabois, Pomar, Arruda, José Medina Filho, Álvaro Ventura, Jorge Herlein, Francisco Campos, Agostinho Dias de Oliveira e Lindolfo Hill.

Naquele processo, o encontro de Amazonas, Pomar, Grabois e Arruda representou as fundações de uma nova fase do Partido Comunista do Brasil. A meta era enterrar a ditadura do Estado Novo e liquidar o nazifascismo. Em 9 de agosto de 1943, o governo do presidente Getúlio Vargas decidiu organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Segundo Amazonas, os comunistas foram os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil na Segunda Guerra Mundial. “E o fizemos de maneira consequente”, constatou.

Os comunistas lideraram grandes manifestações para redemocratizar o país, defendendo uma Assembleia Nacional Constituinte, principalmente após a legalidade, em meados de 1945. Amazonas foi eleito deputado constituinte, o mais votado do Distrito Federal, sediado então no Rio de Janeiro. Depois da cassação do registro do Partido – em 1947 – e dos mandatos comunistas – em 1948 –, voltou à clandestinidade.

No debate deflagrado pelas mudanças do PCUS, Amazonas foi um dos primeiros a se pronunciar. Seu primeiro artigo, intitulado As massas, o indivíduo e a história, publicado no jornal Voz Operária em 26 de janeiro de 1957, contestou duramente a base dos argumentos daqueles que iniciaram os ataques ao Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB. Disse que eram as massas que faziam a história, mas “não se pode concluir que seja nulo ou insignificante o papel das personalidades”.

Amazonas voltaria a escrever em 2 de fevereiro de 1957 para defender a ideia de que “o Partido Comunista elabora sua orientação e enriquece seus princípios coletivamente”. “Isso dá ao Partido do proletariado uma grande vantagem sobre os partidos burgueses”, asseverou.

Nos debates do V Congresso, em 1960, também inovou ao abordar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil pela via prussiana (as análises de Marx e Engels sobre o desenvolvimento capitalista no espaço da Prússia e do que viria a ser a Alemanha sem alterações na propriedade da terra).

Segundo ele, as Teses do Congresso se equivocavam ao definir “que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas”. “O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio. Pode também o capitalismo crescer, substituindo a dependência do país ao imperialismo”, escreveu. “Não é o crescimento do capitalismo que leva à independência e às transformações democráticas, como se afirma implicitamente nas Teses.”

Os debates do V Congresso evoluíram para o “racha” e a reorganização. No jornal do Partido A Classe Operária, Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização, revelando nuances daquela batalha. Os que assumiram o controle partidário elaboraram um novo Programa e novo Estatuto para a criação de outro partido, o Partido Comunista Brasileiro, que assumiu a sigla PCB. Segundo Pomar, toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

A atitude revoltou os comunistas que combateram a linha vitoriosa no V Congresso. Imediatamente enviaram à nova direção um documento denominado Em defesa do Partido, com cem assinaturas – que ficaria conhecido como Carta dos cem –, solicitando a revogação das mudanças anunciadas. O documento classificava as medidas como uma “violação frontal dos princípios partidários, aberta infração das decisões do V Congresso (que) ferem a disciplina e atingem a própria unidade do Partido”.

De acordo com o documento, “as mudanças feitas no nome, no Programa e nos Estatutos objetivam o registro de um novo partido e, por isto, se suprime tudo que possa ser identificado com o Partido Comunista do Brasil, de tão gloriosas tradições”. “Ora, precisamente o partido que deve conquistar a legalidade é o Partido Comunista do Brasil e não um arremedo de partido de vanguarda do proletariado”, asseverava.

A resposta do Comitê Central foi, como destaca Pomar, de intolerância a toda prova. “Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisionismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

Após o golpe militar de 1964, o Partido, agora com a sigla PCdoB, começou a estudar o caminho da guerra popular. “Em toda parte, em especial no campo, é preciso discutir os problemas da luta armada e, guardadas as normas de trabalho conspirativo, tomar medidas visando à sua preparação prática”, diz o texto da VI Conferência, de 1966. O PCdoB saiu a campo à procura dos melhores lugares para instalar a guerrilha, com três grupos de trabalho – um dirigido por Amazonas e Grabois, outro por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, e um terceiro por Carlos Danielli.

Amazonas se integraria ao Araguaia, Sul do Pará, onde Grabois e outros militantes do PCdoB desenvolviam o trabalho da guerra popular. Na ocasião, Amazonas e Grabois escreveram dois importantes documentos: A atualidade do pensamento de Lênin e Cinquenta anos de luta, sobre a história do Partido Comunista do Brasil.

Liderança de Luiz Carlos Prestes

Luiz Carlos Prestes assumiu a liderança da segunda geração de dirigentes comunistas na Conferência da Mantiqueira. Ainda nos cárceres da ditadura do Estado Novo, preso por ter liderado a ANL no Levante de 1935, foi eleito secretário-geral. Seu prestígio decorria da liderança na Coluna Invicta, um movimento nunca derrotado que percorreu o Brasil no final da década de 1920 combatendo os desmandos da República Velha e fermentando as condições para a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

Prestes desembarcou clandestinamente no Brasil em 15 de abril de 1935, vindo da União Soviética, onde estava exilado, para liderar o Levante. O governo Vargas baniu a ANL da legalidade e, após o malogro do movimento rebelde, desencadeou uma violenta onda repressiva.

Prestes foi preso em 5 de março de 1936, depois de uma caçada comandada pelo chefe da polícia política, Filinto Müller, que esquadrinhou o bairro do Méier e revistou casa por casa. Estava com a esposa, a alemã Olga Benário, deportada grávida para a Alemanha nazista onde morreu em uma câmara de gás, na cidade de Bernburg, pouco depois de dar à luz Anita Leocádia Benário Prestes.

Com a reviravolta na Segunda Guerra Mundial, quando os soviéticos começaram a empurrar os nazistas de volta para Berlim, o presidente da República foi para o lado dos Aliados – a aliança de países que combateram o Eixo nazifascista formado por Alemanha, Itália e Japão – e recebeu o reconhecimento dos comunistas. O diplomata Orlando Leite Ribeiro foi designado para ser o elo com Prestes, ainda encarcerado. Em 18 de abril de 1945, Vargas concedeu a anistia aos presos e exilados. Prestes deixou a prisão.

Tempos depois, Prestes avaliaria que o presidente da República precisava dos comunistas, uma força política à época com grande apoio popular. Havia um setor do governo que agia abertamente contra o avanço das medidas democráticas, logo transformado em conspiradores.

Prestes só assumiria de fato a função de secretário-geral no final do “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional, depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto de 1945. O Partido Comunista do Brasil puxava grandes manifestações populares, numa campanha vitoriosa pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte.

A eleição dos constituintes ocorreu em 2 de dezembro de 1945, quando também foi eleito o presidente da República. Compareceram às urnas cerca de seis milhões de eleitores. O candidato a presidente do Partido Comunista do Brasil, Yeddo Fiúza, obteve 569.818 votos, 9,7% do total de votantes. O general Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático (PSD), foi eleito com 55% dos votos e Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), obteve 35%. Os comunistas elegeram catorze deputados federais e Prestes senador.

As perseguições anticomunistas, no entanto, recomeçaram já no início de 1946, quando dois pedidos de cassação do registro eleitoral do Partido Comunista do Brasil foram apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Prestes seguiu na liderança do Partido até 1961, quando assumiu a chefia do Partido Comunista Brasileiro.

Liderança de Astrojildo Pereira

O líder da primeira geração de dirigentes comunistas, Astrojildo Pereira, foi o fundador do Partido. Prestes entrou em contato com os comunistas por seu intermédio. Foi em dezembro de 1927, na Bolívia. Lá estavam os remanescentes da Coluna Invicta. Prestes já era conhecido como o lendário Cavaleiro da Esperança e deixaria seu nome como marca da Coluna, inicialmente chamada de Miguel Costa-Prestes, uma referência ao general que também comandou os revoltosos.

Astrojildo viajou como repórter do jornal A Esquerda, dirigido por Pedro Motta Lima – que comandaria alguns dos jornais do Partido –, levando uma mala carregada de livros de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin e outros, publicações da editora L’Humanité, do Partido Comunista Francês – no Brasil, poucas obras marxistas em português haviam sido publicadas –, possivelmente trazidas quando estivera na União Soviética, em 1924, ou recebidas pelo correio naval. O encontro ocorreu em Porto Suarez, ao lado de Corumbá, a cidade brasileira de Mato Grosso do Sul na fronteira boliviana.

Foi recebido por Prestes e dois oficiais na Coluna, vindos possivelmente da cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, conforme a memória de Astrojildo. Há versões de que os remanescentes da Coluna se instalaram numa localidade chamada La Guaíba. Em Porto Suarez, conversaram por quase dois dias, instalados numa casa simples. O dirigente do Partido Comunista do Brasil transmitiu-lhe o pensamento dos comunistas e as questões que o levaram a procurá-lo.

Segundo Astrojildo, o motivo da conversa era, em suma, o problema político da aliança entre os comunistas e os combatentes da Coluna Prestes, a união do proletariado revolucionário, sob a influência dos comunistas, e as massas populares – especialmente os camponeses – influenciadas pela Coluna e seu comandante.

O PCB estava saindo de um período de clandestinidade, iniciado logo após a sua fundação com a adoção do estado de sítio em julho de 1922, uma resposta do governo Epitácio Pessoa ao movimento tenentista que entrou para a história como a “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, e extinto em 15 de novembro de 1926, já no governo de Washington Luís.

De janeiro a agosto de 1927, o PCB liderou um ciclo de greves operárias. O jornal A Nação, em cuja redação trabalhavam três ou quatro membros do Comitê Central, segundo Astrojildo, divulgava amplamente as ações dos comunistas. Com a chamada “Lei Celerada”, editada em 12 de agosto de 1927, os comunistas voltaram à ilegalidade e tiveram seu jornal fechado.

Nos meses seguintes, o Comitê Central chegou à conclusão de que a derrota sofrida se devia basicamente às posições sectárias do Partido, relatou Astrojildo. Era preciso buscar aliados. Essa era a missão na Bolívia. A essência da conversa, publicada como entrevista em janeiro de 1928 no jornal A Esquerda, alinhava os pontos principais de um programa de frente única, democrática e nacionalista.

Prestes, contudo, foi para a Argentina, onde trabalhou como engenheiro e participou de atividades políticas. Em 1930, lançou um manifesto apontando o caminho da revolução agrária e anti-imperialista, sob a hegemonia da classe operária. Expulso da Argentina, exilou-se na União Soviética e, em 1º de agosto de 1934, foi oficialmente aceito como membro do Partido Comunista do Brasil. No VII Congresso da Internacional Comunista, em agosto de 1935, passou a integrar o seu Comitê Executivo.

A militância anarquista de Astrojildo começou em 1910, no movimento sindical. Trabalhou como tipógrafo de jornal, linotipista, revisor, repórter e redator. Como um dos líderes das greves de 1918 e redator do jornal Voz do Povo, foi preso e processado. Recebia informações da III Internacional Comunista antes mesmo da fundação do PCB, segundo ele pela “correspondência internacional”.

A revista Movimento Comunista, sob sua direção, começou a circular em 1º de janeiro de 1922 com notícias vindas da União Soviética. Em 1924 viajou para a pátria do socialismo. Tomou o navio na Praça Mauá, Rio de Janeiro, precisamente no dia da morte de Lênin, em 21 de janeiro. Como a partida seria à noite, pôde ler a notícia nos jornais vespertinos. De Moscou, enviou matérias para os jornais O Paiz e Correio da Manhã, relatando aspectos do nascente socialismo e comentando como a imprensa anarquista no Brasil distorcia os propósitos da Revolução.

Ele mesmo egresso do anarquismo, via aquele movimento como superado pelo marxismo, compreensão que o havia levado a organizar as primeiras ações visando à fundação do Partido Comunista do Brasil, um movimento conhecido como “os doze astrojildistas”, nominação recebida de Octávio Brandão, outro importante dirigente do PCB daquela geração. De acordo com Astrojildo, em 1921 já havia “acalorados debates nos sindicatos operários” que resultaram na fundação, em 7 de novembro daquele ano – aniversário da Revolução Russa de 2017 –, de um grupo chamado “Centro Comunista”.

A primeira ideia de criar o Partido Comunista do Brasil, diz Astrojildo, havia sido lançada cerca de três anos antes, mas não estava ainda madura e “gorou no nascedouro”. De 1917 em diante, a influência da Revolução Russa tornou-se decisiva, sobrepondo-se pouco a pouco à hegemonia anarquista. Uma onda de greves iniciada naquele ano ficou marcada por manifestação de apoio aos comunistas russos.

Intelectuais também se manifestaram, entre eles Lima Barreto, que, em 1919, publicou um artigo intitulado Manifesto maximalista, com grande repercussão. Segundo Astrojildo, tudo levava a crer que o escritor, falecido em 1º de novembro de 1922, tomaria posição a favor do Partido.

Naquele clima de debates, houve a cisão no anarquismo e a criação do “Centro Comunista”. Os “doze astrojildistas” entraram em contato com comunistas de outras regiões do país e lançaram a revista mensal Movimento Comunista, importante veículo de ligação e preparação política entre os grupos que elegeram delegados para o Congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil.

Depois de seis meses de preparação, nove delegados reuniram-se dias 25 e 26 de março de 1922 no Rio de Janeiro. A reunião final ocorreu dia 27 na pequena sala de visitas da residência de Astrojildo, na Rua Visconde de Rio Branco, número 651, Niterói. Terminados os trabalhos, os delegados levantaram-se e cantaram a Internacional Comunista.

De acordo com Astrojildo, a formação do Partido se deu em pleno fogo da luta de classes e, ao mesmo tempo, sob o fogo de uma dura luta ideológica, reflexo, no Brasil, e segundo as condições brasileiras, da luta ideológica travada no plano mundial pela III Internacional Comunista. Em 1º de maio de 1925, circulou pela primeira vez o lendário jornal do Partido A Classe Operária, do qual Astrojildo era o principal redator.

O jornal surgiu após o ingresso do PCB na Internacional, no seu V Congresso, em 1924. Astrojildo, mesmo ausente, foi eleito para a Comissão de Controle do Comitê Executivo e o PCB passou a ser reconhecido como membro efetivo da organização.

Astrojildo tornou-se um escritor refinado, descrito pelo analista Sylvio Rabello, num texto publicado nos jornais do grupo Diários Associados, como “de uma simplicidade ideal, uma simplicidade que está em boa correspondência com as suas doutrinas e com o curso de sua argumentação, ao mesmo tempo de um virtuosismo do escritor preocupado com a disciplina e o rigor de sua arte”.

Especializou-se na obra de Machado de Assis, com quem esteve pouco antes de sua morte. O encontro foi descrito por Euclides da Cunha em uma homenagem ao escritor no Jornal do Comércio de 30 de setembro de 1908: “Chegou, não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois de algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.” Machado de Assis, disse Astrojildo, foi “o escritor que melhor refletiu em sua obra a vida social e o espírito da sociedade brasileira do seu tempo”.

Astrojildo voltou à União Soviética em 1929, onde permaneceu de março até o final de dezembro. Os acontecimentos no pós-contato com Prestes na Bolívia, segundo ele, “puseram à prova o que havia de tremendamente falso” na concepção da direção do PCB, “que levou o Partido a uma completa e criminosa passividade diante dos acontecimentos de outubro de 1930 (a Revolução liderada por Getúlio Vargas) e às terríveis oscilações da direita para a esquerda e da esquerda para a direita que se seguiram durante meses e anos”.

Naquele ziguezague tático, a direção acusou o Partido de seguir a linha política do “astrojildismo menchevista”. Com a chegada de Prestes, o Partido Comunista do Brasil iniciou nova fase. Astrojildo estava afastado e só voltaria na década de 1940. Sobreviveu do comércio de bananas, numa quitanda do Rio de Janeiro, condição que mereceu de Manuel Bandeira o seguinte poema:

Bananeiras – Astrojildo esbofa-se –
Plantai-a às centenas, às mil:
Musa paradisíaca, a única
Que dá dinheiro neste Brasil.

Em 1945, Astrojildo descreveu o Partido com essas palavras: “O fio d’água desceu minguadinho por entre as pedras, seguiu o seu destino por montes e vales, cresceu de vulto passo a passo, com a afluência de novas águas, engrossando por efeito mesmo das tempestades que sobre ele se formaram, e ei-lo hoje, o grande rio brasileiro, sulco profundo na terra do Brasil, artéria vital no sistema político do nosso país – o Partido Comunista do Brasil.”

Coletivo dirigente

Renato assumiu o comando desse “grande rio brasileiro”, liderando a quarta geração de dirigentes comunistas, no curso natural das águas. Anunciou que o faria ainda mais caudaloso. Os que bebem nessa fonte de interpretações marxistas e progressistas desde 1922 teriam agora uma nova fase de desafios, representados por mudanças de largo espectro nas conjunturas nacional e internacional. “Tentarei dar desenvolvimento ao pensamento político do nosso Partido na nova situação e reunir as inteligências e os meios necessários para enfrentar os novos desafios que nos apresentam. Manteremos a linha revolucionária e flexível que nos possibilitará conquistas ainda maiores”, resumiu.

Amazonas trabalhou a sua sucessão com a dedicação de sempre. Envolveu o coletivo dirigente no processo e fez a transição seguro de que seus métodos como principal liderança do Partido garantiriam a continuidade da marcha revolucionária iniciada em 1922.

Uma de suas principais preocupações, naquele momento, era a tática para as eleições presidenciais de 2002. João Amazonas defendia, desde a campanha de 1989, quando se formou a Frente Brasil Popular (PT, PCdoB e PSB) liderada pelo candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, que, nas condições brasileiras, inseridas na conjuntura da América Latina e do mundo, seria muito difícil a esquerda sozinha ganhar eleições presidenciais.

Amazonas ficou contente quando soube que Lula, na articulação de sua quarta campanha, procurava ampliar a frente. Disse-lhe pessoalmente, na sede do PCdoB, em São Paulo – a última vez que se encontraram –, que a escolha de José Alencar para seu vice era uma boa decisão. Amazonas não chegou a ver a vitória de Lula nas eleições de 2002 – faleceu, cinco meses antes, de causas naturais, no dia 27 de maio de 2002.

Dia Internacional da Mulher: símbolo da luta pelo socialismo

Por Osvaldo Bertolino

A histórica batalha pelos direitos da mulher tem uma forte tradição progressista

O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, tem um significado de batalhas históricas por justiça, igualdade e direitos. Uma frase de Samora Machel, líder da guerra pela independência de Moçambique, define com precisão o alcance dessa comemoração histórica: “A libertação da mulher é uma necessidade da Revolução, garantia da sua continuidade, condição de seu triunfo.”

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O atraso imposto às mulheres começou a ser rompido, de fato, com as revoluções do século XX. Na Rússia, a Revolução de Outubro de 1917 abalou profundamente velhas convicções machistas e elevou a condição da mulher a um patamar avançado na luta pelos seus direitos. Pode-se dizer que elas foram uma das principais forças na fase decisiva da Revolução. Já no dia 3 de março de 1913, as mulheres lembraram o seu dia com manifestações e protestos. No ano seguinte, a prisão das organizadoras do evento impediu uma nova manifestação.

O início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, encontrou as mulheres socialistas russas dispostas a não permitir que o país fosse destruído por interesses que nada tinham a ver com o povo. Em pleno fogo da guerra, no começo de 1917, elas realizaram mobilizações, no dia 23 de fevereiro — segundo o calendário russo de então, a data correspondia ao dia 8 de março — que deram origem à greve espontânea das tecelãs e costureiras de Petrogrado. As trabalhadoras saíram às ruas para exigir a paz e pedir pão — e declararam-se em greve.

Cinzas da Segunda Guerra Mundial

Começava ali, efetivamente, a chamada Revolução de Fevereiro, que destruiria o império czarista e abriria caminho para a Revolução de Outubro — quando os trabalhadores, liderados por Vladimir Lênin, assumiriam o poder no país. A comissária do povo soviético Alexandra Kollontai escreveu que o dia 23 de fevereiro — 8 de março — de 1917 foi “uma data memorável para a história”. “Nesse dia, as mulheres russas levantaram a tocha da Revolução”, disse ela.

Com o poder soviético, as mulheres descortinaram novos horizontes. A Conferência das mulheres comunistas, realizada em 1921 na cidade de Moscou, oficializou o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. A decisão foi amplamente divulgada pela Terceira Internacional Comunista, mas o combate ao terror nazifascista que cobriu a Europa, prenunciando acontecimentos tenebrosos, fez com que a data deixasse de ser comemorada.

O Dia da Mulher só voltaria a ser lembrado na década de 1960, quando o mundo começava a deixar para trás as cinzas da Segunda Guerra Mundial. Durante todo esse período, no entanto, a emancipação da mulher foi uma bandeira segurada com firmeza pelos socialistas. A base dessa luta são as ideias marxistas. O livro de Friedrich Engels A Origem da família, da propriedade privada e do Estado estabelece uma dimensão realista do peso imposto pelas sociedades baseadas na exploração de classe sobre a mulher. “A opressão do homem pelo homem iniciou- se com a opressão da mulher pelo homem”, escreveu Karl Marx.

Crescente mobilização das mulheres

A teórica marxista Clara Zetkin desenvolveu uma vasta literatura sobre o tema, iniciada nas últimas décadas do século XIX — já nos primeiros anos após a criação da Primeira Internacional. A luta pelos direitos da mulher rapidamente transformou-se em uma das principais bandeiras socialistas. August Bebel, proeminente representante da Primeira Internacional, escreveu o livro A mulher e o socialismo; e Lênin produziu importantes formulações sobre o papel da mulher na nova sociedade almejada pelos socialistas. Toda essa torrente resultou na grande obra A nova mulher e a moral sexual, de Alexandra Kollontai.

Pode-se dizer que a formulação socialista deu impulso a um processo de rebeldia feminina iniciado na segunda metade do século XIX. À época, as mulheres — principalmente nos países onde o capitalismo ganhara predominância, como Inglaterra e Estados Unidos — já lutavam pelo direito de votar. Com a fundação do partido socialista norte-americano, em 1901, as mulheres daquele país criaram a União Socialista das Mulheres a fim de exigir esse direito. Nos anos seguintes, brotaram, nos Estados Unidos, muitos clubes de mulheres que empunhavam essa bandeira.

A crescente mobilização feminina levou o partido socialista norte-americano, por meio do seu Comitê Nacional da Mulher, a organizar, no dia 28 de fevereiro de 1909, em Nova York, o primeiro Dia da Mulher no país. “A realização da revolução das mulheres é um dos meios mais eficazes para a revolução de toda a sociedade”, dizia a convocatória do movimento. Até aquele ano, apenas quatro estados permitiam que elas votassem — o sufrágio universal feminino só chegaria em 1920.

Longa greve nos Estados Unidos

No âmbito da Internacional Socialista — à época a Segunda Internacional —, o debate sobre o voto feminino também era intenso. A 1ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em 1907 na cidade de Stuttgart (Alemanha), com a participação de 58 delegadas representando 14 países, aprovou uma resolução — elaborada por Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai — segundo a qual os partidos socialistas teriam de encampar a bandeira do voto feminino.

A mobilização das mulheres avançava rapidamente. Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher de 1910 — o segundo organizado pelo partido socialista — contou com uma grande participação de trabalhadoras têxteis que acabara de sair de uma greve pelo reconhecimento do sindicato da categoria. A repressão agiu com dureza — além da violência aberta, mais de seiscentas pessoas foram presas. Mas as trabalhadoras estavam determinadas a conquistar o seu objetivo e sustentaram a paralisação de 22 de novembro de 1909 até 15 de fevereiro de 1910.

Ainda em 1910, o partido socialista norte-americano aprovou, em congresso realizado no mês de maio, uma proposta, que seria levada à Segunda Conferência das Mulheres Socialistas — realizada em agosto — instituindo o Dia Internacional da Mulher. “As mulheres socialistas de todas as nações organizarão um Dia das Mulheres específico, cujo primeiro objetivo será promover o direito de voto feminino. É preciso discutir esta proposta, ligando-a à questão mais ampla das mulheres, numa perspectiva socialista”, publicou o jornal A Igualdade, dirigido por Clara Zetkin, na edição do dia 29 de agosto de 1910.

Emancipação dos trabalhadores

A data não foi especificada. Alexandra Kollontai, que dirigia a Secretaria da Mulher Socialista da Internacional, propôs que na Europa o Dia da Mulher fosse lembrado em 19 de março — segundo ela para coincidir com o aniversário de um levante de trabalhadoras na Prússia, em 1848, que conquistou, embora provisoriamente, o direito do voto feminino. Mais tarde, na Conferência das mulheres comunistas realizada em 1921 na cidade de Moscou, houve a unificação em torno do 8 de março — a data da greve em que “as mulheres russas levantaram a tocha da revolução”, como dissera Alexandra Kollontai.

É importante reafirmar essa tradição da luta feminina tem como objetivo intrínseco a emancipação de todos os trabalhadores. Como escreveram Marx e Engels, na família moldada pelos ditames capitalistas o homem é o burguês e a mulher representa o proletariado. Não é possível, portanto, a emancipação dos trabalhadores sem a libertação das mulheres.

Biografia de Renato Rabelo retrata frondosa árvore da notável floresta socialista

Biografia de Renato Rabelo: Frondosa árvore de uma notável floresta

Por Adalberto Monteiro

Quando uma árvore, por seu porte, por suas raízes profundas, por inúmeras floradas e iguais colheitas proporcionadas, por tantas sementes dela germinadas, desponta-se em uma alta floresta, vem de quem a enxerga a indagação de quanto disso e daquilo ela teve de enfrentar e vencer para adquirir aquela presença destacada, valorizada, naquela paisagem por si só rica e diversa.

A biografia de Renato Rabelo, pelo trabalho arguto e meticuloso do historiador e biógrafo Osvaldo Bertolino, dá-nos acesso às páginas da vida deste destacado dirigente do PCdoB e ao mapa de uma longa e realizadora militância revolucionária. O livro é uma realização da Fundação Maurício Grabois, da qual Renato é, hoje, o presidente de honra.

Trata-se de um trabalho de mais de três anos, alicerçado em pesquisas, apoiado em fontes, muitas até então inéditas; além, é claro, de horas e horas de gravação com o biografado. Osvaldo, não fosse historiador, biógrafo, poderia ter sido roteirista de cinema. Por vezes, leitor, leitora, a fluência do texto nos faz ver, enxergar, assistir, sentir fatos vividos por Renato. Riqueza de detalhes, reconstituição de cenários e circunstâncias, mas sempre marcando o significado de cada episódio.

As minúcias são na verdade chaves através das quais somos transportados aos portais do tempo. Quais a senha e a contrassenha que os/as estudantes delegados/as tinham que pronunciar para ter acesso ao clandestino XXVIII Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE)? Quem é o personagem da palavra de ordem entoada pelas passeatas estudantis de meados dos anos 1960: Osso, osso, abaixo o sem-pescoço?

A biografia de Renato flui, pela maestria de Bertolino, carne e unha com a história do Brasil, entrelaçada com as histórias da Ação Popular (AP), da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, também, do movimento comunista internacional. Vê-se a presença destacada de Renato em batalhas e confrontos decisivos para o Brasil e para o proletariado, a luta pelo socialismo nas últimas seis décadas e um rol de feitos e realizações de sua militância.

O Índice Onomástico da obra evidencia um conjunto numeroso de nomes de quadros e lideranças da AP e do PCdoB, que torna patente o trabalho coletivo que Renato sempre valorizou como método de trabalho; e, também, de personalidades dos campos democrático e popular do país que, por sua vez, refletem a política de alianças amplas do PCdoB da qual Renato é um dos elaboradores e protagonistas na aplicação. Os textos, neste livro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidente Dilma Rousseff bem simbolizam a dimensão destas relações de aliança, bem como a estatura do legado político de Renato.

Um dos méritos da obra de Bertolino, aliás um dos traços também presentes em biografias anteriores, é não circundar nenhuma auréola em torno da cabeça do biografado. Movimenta-se, então, um Renato substantivamente humano, terrestre, como você, ele, ela e eu, que tem família, que se diverte, que se embevece com uma taça de vinho, que se entristece, que tem saúde, que adoece, que trabalha muito, acerta e erra. A vida sempre modesta, por vezes, duramente difícil, de Renato e da família.

Em diferentes circunstâncias, a biografia ressalta duas características dominantes da personalidade de Renato: a empatia e a imensa capacidade de ouvir e de, assertivamente, interagir com a ideias a ele apresentadas, mesmo que delas tenha divergência; e a coragem política, a firmeza de tomar decisões.

Uma essência transborda da biografia de Renato: sua maior obra e legado é ter aportado, ao acervo teórico, político e ideológico do Partido Comunista do Brasil, importantes contribuições teóricas e políticas que enriqueceram o pensamento tático, estratégico e programático da legenda comunista, como também a práxis de sua edificação e atuação na arena da luta de classes. A isso se soma um elenco de quadros comunistas em relação aos quais o papel de Renato foi destacado para formá-los, seja na Escola Nacional João Amazonas, seja na estrutura do Partido, seja nas frentes de atuação, notadamente no movimento estudantil.

E este aporte alinhava o fluxo da biografia, revelando-nos em que circunstâncias, no curso de quais confrontos da luta de classes, no Brasil e no mundo, o legado de Renato foi se erguendo.

E, temporalmente, isso se dá ao longo de mais de sessenta anos de militância. O marco zero deste itinerário é o final dos anos 1950, quando, no interior da Bahia, no último ano do colégio, assumiu a secretaria geral do grêmio estudantil. Segundo Osvaldo Bertolino, Renato “queria conhecer Salvador, ver o Brasil, tomar pulso do mundo”. Sonho que, como se sabe, concretizou-se.

A sua jornada de lutas se inicia no âmbito da juventude católica, orientada pela Teologia da Libertação. E, logo a seguir, nas fileiras revolucionárias da Ação Popular, e, a partir de 1973, após incorporação desta organização à legenda comunista, no núcleo dirigente do PCdoB. Trajetória essa que chega ao ápice no período de dezembro de 2001 a maio de 2015, quando, por indicação de João Amazonas, liderança histórica dos comunistas, Renato é eleito pelo Comitê Central para exercer a presidência do Partido Comunista do Brasil.

Uma vida longa é a um só tempo privilégio e desafio. Desafio, pois que, quaisquer que sejam as vicissitudes, a liderança comunista é chamada a descrever uma linha de coerência. Da primeira página até a última do livro, o que costura o itinerário de lutas de Renato são três palavras: coerência, convicção e compromisso, com ideais do comunismo, com um projeto de nação, de um Brasil democrático, soberano, socialista, que abraçou com ardor e consciência desde a juventude.

A maturação da têmpera revolucionária de Renato, o processo cumulativo de suas qualidades respondendo às responsabilidades cada vez mais elevadas de mandatos oriundos do coletivo, deram-se consoante, sobretudo, à dinâmica da luta política do país, mas também sob os impactos dos conflitos e confrontos que se irromperam na realidade mundial e, é claro, das vicissitudes do movimento comunista brasileiro e internacional com suas vitórias, mas, também, com suas divisões e seus reveses.

O retrato de Renato, pelos traços de sua biografia, revela uma liderança de ação, de combate, de verdadeira gana por intervir nas principais lutas sociais, políticas, ideológicas, travadas no país nas últimas seis décadas. E, ao mesmo tempo, sistematiza e generaliza a prática transformadora, estuda, elabora, a partir do marxismo, formulações que buscam responder aos nexos principais da luta de classes em cada momento histórico, jamais se deixando aprisionar por verdades pétreas.

E sempre que a prática e o curso da história revelam erros ou insuficiências, com base no método leninista da crítica e da autocrítica, abraça ou participa da gênese do novo, que faz a teoria e a prática avançarem.

Para completar, o terceiro traço do retrato se avulta: construtor do Partido Comunista do Brasil, com a seiva da luta política e de massas, com a teoria marxista-leninista a toda carga, com sua essência transformadora iluminando a prática revolucionária.
Finalmente, a biografia de Renato é um acervo vivo e pulsante de ideias e práticas transformadoras, de convicções e de energia revolucionárias que nos convidam, nos convocam, a prosseguir as jornadas de lutas pela construção do socialismo em nosso país.

Adalberto Monteiro é jornalista e poeta, secretário nacional de Formação e Propaganda do PCdoB

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Serviço:

Título: Renato Rabelo – vida, ideias e rumos
Autor: Osvaldo Bertolino
ISBN: 978-65980456-4-7
Publicação: Fundação Maurício Grabois
Ano de publicação: 2025
Páginas: 848

Fonte: www.gradois.org.br

Parabéns, Renato Rabelo, por seus 83 anos de vida bem vivida

Por Osvaldo Bertolino

Da biografia que escrevi dele recentemente:

Acomodado na mesa da pequena sala do seu apartamento, em São Paulo, com uma pilha de livros ao lado, Renato começou a falar. Parecia incansável. De meados da tarde até a noite avançada, lembrou detalhes de sua vida e do seu pensamento. Era muita coisa. Foi preciso retomar em outro dia. Novamente faltou coisa. E assim a cena se repetiu, até que tudo fosse falado.

Renato se define como pessoa reservada, que não gosta de aparecer, o mais tímido dos irmãos. “Quando comecei a assumir o trabalho político, tive de fazer um esforço muito grande para ser uma pessoa com capacidade pública maior. Era essencial para a minha atividade. Acho que consegui não só por intervenções públicas como na relação política com grandes lideranças, como presidentes da República, presidentes da Câmara e do Senado, gente como o José Alencar, ministros. Todos me atendiam com muito respeito.”

Essa relação de confiança se devia ao prestígio do PCdoB, segundo Renato. “Então, eu ia sentindo que estava fazendo o papel necessário. Compreendi que estava fazendo um papel importante. Isso me deu muita segurança. Tinha certa autoridade.”

Um dos momentos mais decisivos de sua vida foi a indicação de Luciana Santos para assumir a presidência do PCdoB. “Foi uma das atitudes mais serenas e mais justas que tomei. Não foi uma corrida de revezamento”, comenta ao falar das pacientes consultas e dos debates no âmbito da direção do Partido. Para ele, esse processo guarda semelhança com a sua indicação para presidente do Partido por João Amazonas.

Renato recorda de seus camaradas com emoção, especialmente Haroldo Lima. “Haroldo teve também um papel importante para eu ingressar na luta. Eu poderia ficar por ali mesmo, em Salvador, estudando, ser um médico. Foi um ponto importante na minha vida”, relata, mostrando a foto da capa do livro autobiográfico de Haroldo, inconformado com a sua morte por uma causa que poderia ser evitada, a Covid-19.

Falou também da relação com os filhos, muito atenciosos. “Sempre foram muito compreensivos, pelo que eles passaram. A relação conosco mostra a grandeza deles.”

Renato cita a experiência vivida na China, quando jovem, como fundamental para a sua militância. “Uma experiência da envergadura da Revolução Chinesa ensina muito”, afirma. As visitas ao Vietnã também lhe causaram forte impressão. “Fiquei impressionado com o povo vietnamita. Não é por acaso que expulsaram três imperialismos. Essa ideia de nova luta pelo socialismo é deles.”

Segundo Renato, foram conhecimentos que ajudaram muito na sua compreensão sobre a tática e a estratégia. “O tempo que passei na França foi também importante, porque o exílio é uma escola. O povo francês é muito testado. É a terra das revoluções. Eles têm uma tradição de luta gigantesca. A vivência com um povo desse ensina muito para a gente”, afirma.

Motivos e fatos da reorganização do PCdoB em 1962

Passados 63 anos da Conferência extraordinária que reorganizou o PCdoB, ocorrida em 18 de fevereiro de 1962, a versão de que o Partido foi “fundado” nessa data já não reina em regime de monopólio, superada pela força dos fatos.

Por Osvaldo Bertolino

Carlos Nicolau Danielli, um dos primeiros dirigentes comunistas a opinar sobre o cisma ocorrido com os impactos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), escreveu que naquele processo estava em questão a defesa dos princípios do Partido Comunista do Brasil. Segundo ele, os princípios deveriam ser defendidos sob pena de o Partido perder suas características essenciais de um partido revolucionário.

Outros dirigentes comunistas – principalmente João Amazonas – também rejeitaram com ênfase a tese superficial daquela primeira vertente revisionista. Pode-se afirmar com segurança que havia naquele primeiro embate uma manipulação dos fatos com uma finalidade mal escondida – a liquidação do Partido Comunista do Brasil.

Maurício Grabois escreveu, em 1960, durante o debate do V Congresso do PCdoB, que nas discussões de 1956/57 surgiram entre os comunistas ideias antipartidárias. Seus porta-vozes eram basicamente militantes que atuavam na imprensa do Partido.

Grabois conta que ideias reformistas e revisionistas do debate de 1956/57 acabaram se impondo no Partido. Mas no debate do V Congresso elas ganharam uma formulação claramente mais sofisticada.

O antológico texto de Grabois Duas concepções, duas orientações políticas resume a questão. Para ele, a nova orientação traçada pelo Comitê Central em março de 1958, com a Declaração de Março, defendia uma linha “oportunista de direita”. A polêmica evoluiu para o “racha”.

Já no V Congresso, doze dos vinte e cinco membros do Comitê Central – além de vários suplentes – não foram reeleitos. Entre eles estavam Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara.

Mais tarde, foram afastados também Pedro Pomar, Danielli e Ângelo Arroyo. E, mais adiante, uma nova leva de dirigentes – Lincoln Oest, José Duarte, Walter Martins e Calil Chade – também seria destituída.

Era a consolidação da direção que defendeu a nova linha política pós-XX Congresso do PCUS. No dia 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos publicou um suplemento com o programa e os estatutos do Partido Comunista Brasileiro, de inspiração visivelmente revisionista. A direção eleita no V Congresso pretendia, com os novos documentos e a mudança de nome, obter a legalidade da nova agremiação.

O problema é que esse ato contrariava o artigo 32 dos Estatutos do Partido. “As decisões do Congresso são obrigatórias para todo o Partido e não podem ser revogadas, no todo ou em parte, senão por outro Congresso”, dizia o documento.

Em resposta, os comunistas que combateram a linha política da Declaração de Março organizaram um abaixo-assinado – Carta dos Cem – pedindo à nova direção a revogação das medidas anunciadas. Na Carta, eles disseram que a mudança de nome do Partido era “uma séria concessão às forças reacionárias”.

De fato, quando a repressão lançou os comunistas na ilegalidade, em 1947, o principal pretexto foi o de que o nome deixava claro que o Partido Comunista do Brasil era um instrumento da política externa da União Soviética. “Na realidade, essa alteração tem sentido mais grave – procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista”, diz a Carta.

No encerramento do debate do V Congresso, Pedro Pomar escreveu que ele tinha esperanças de que a defesa feita por Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral, no único artigo por ele publicado, de uma “justa linha política revolucionária para o Partido”, viesse a se concretizar.

O texto da Carta dos Cem termina com esta conclamação: “Ao adotar essa posição, confiamos que nas fileiras do próprio Partido existam forças suficientes para derrotar as tendências errôneas e encontrar o acertado caminho para resolver as dificuldades que o Partido enfrenta”.

No longo debate interno – iniciado em 1956/57 e encerrado em 1960 – fica facilmente perceptível que os principais fatores que levaram à cisão eram de fato predominantemente internos.

O problema é que no curso do processo do V Congresso solidificou a tendência revisionista, culminando na criação do novo PCB – o que não deixou aos antigos dirigentes alternativas à reorganização do Partido.

Pedro Pomar afirmou que a Conferência de 1962 fora convocada para debater e enfrentar graves problemas do movimento comunista no Brasil, decorrente de um longo processo que culminara na formação de um novo partido.

Outra missão seria a discussão da necessidade de reorganizar “o nosso velho e glorioso Partido e de indicar o caminho da luta capaz de conduzir o proletariado e povo à sua emancipação nacional e social”.

Segundo Pedro Pomar, em comentário no jornal A Classe Operária, não seria possível compreender o significado da Conferência sem estabelecer conexão com os acontecimentos anteriores, sobretudo os dos anos 1950.

Fora um período difícil para país, constatou ele, que exigiu dos comunistas esforços para vencer os obstáculos “que o Partido teve de transpor para cumprir sua missão revolucionária”.

Fora também uma fase rica de ensinamentos, na qual muitos militantes manifestaram grande abnegação, “mas a direção do Partido não teve a capacidade de encontrar o melhor caminho da revolução e deixou que se perdessem magníficas oportunidades para elevar o nível da ação combativa das massas”.

Naquela época já se podia observar certo desalento nas fileiras comunistas e perceber que a linha política claudicava diante dos acontecimentos que se precipitavam, como os de 24 de agosto de 1954 e os de 11 de novembro de 1955, analisou.

O Programa do Partido, aprovado no IV Congresso, na opinião de Pedro Pomar passou a ter uma interpretação sui generis, que não afinava com as diretrizes essenciais nele contidas. “Nessas condições é que nos surpreendeu a ofensiva da reação imperialista e o surto revisonista”, afirmou.

Pedro Pomar constatou que nas fileiras comunistas propagou-se rapidamente uma sensação de frustração, sobretudo nos setores da intelectualidade ligada aos comunistas ou sob a influência do Partido. “Cresceu a confusão ideológica em face das enormes vacilações da direção partidária e da sua impotência para enfrentar os ataques dos revisionistas”, comentou ele.

Pedro Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização do Partido Comunista do Brasil, revelando nuances que permitem visualizar as entranhas da batalha desenvolvida no processo do V Congresso.

Segundo ele, o debate no “movimento comunista” começou por iniciativa dos revisionistas e, “embora contivesse aspectos positivos e revelasse o sentimento internacionalista e revolucionário de diversos camaradas, não contribuiu para esclarecer devidamente os problemas controvertidos”.

Ao contrário, gerou mais desorientação, disse ele. “Tudo isso contribuiu para que fosse declinando a influência dos comunistas no movimento operário e democrático. As forças populares, sem liderança efetiva, se tornaram objeto da traficância dos demagogos burgueses e pequeno-burgueses. O movimento de massas ia sendo empolgado, cada vez mais, pelo nacionalismo. As publicações comunistas de massa despareceram e o próprio nome do Partido Comunista do Brasil passou a ser omitido, sendo substituído pela expressão ‘movimento comunista’ ou pela assinatura de um único dirigente”, escreveu.

Toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria, disse Pedro Pomar. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

“O Programa do Partido foi considerado superado em sua totalidade pelos corifeus do revisionismo, sob a acusação de que não refletia as novas condições do mundo e do Brasil. No que se refere à situação internacional, os revisonistas afirmavam que, na base de uma falsa apreciação, havíamos exagerado o perigo de guerra, que o poderio do socialismo era de tal magnitude que todas as reformas sob o capitalismo favoreciam o socialismo e que, portanto, a ditadura do proletariado e a revolução proletária deixaram de ser indispensáveis.”

O culto à personalidade de Prestes, que segundo Pedro Pomar os comunistas estimularam durante muitos anos, tornou-se um fator primordial para que as ideias revisionistas acabassem se impondo.

“Por ironia, um dos aspectos negativos da atividade do Partido e que os revisionistas diziam combater é que lhes propiciou a arma mais poderosa para empolgar a direção e depois o conjunto do Partido. Justamente graças à adesão de Prestes ao grupo revisionista, em 1957, é que este passou a predominar no Partido.”

Pedro Pomar revelou que os dirigentes do grupo revisionista, de acordo com Prestes na reunião do Comitê Central em agosto de 1957, acusaram quatro integrantes do antigo Presidium de serem os principais responsáveis pelos erros do Partido.

“Embora em conversas privadas confessassem outra coisa, consideraram Prestes como vítima de uma conspiração, como um homem não informado. Os ‘cabeça de turco’ (locução de uso popular que significa teimoso, obstinado, resistente) foram apontados no Partido e alijados de seus postos e aquele que era de fato o maior responsável, não só como decorrência do posto que ocupava, mas, sobretudo, pelo sistema de culto à personalidade, foi inocentado, ou considerado capaz de recuperação”, detalhou.

Apelando para a esperteza e utilizando sofismas, disse Pedro Pomar, os revisionistas continuavam rendendo o mesmo culto à personalidade, acusando, entretanto, os que se mantinham fiéis às tradições revolucionárias do Partido como “saudosistas desejosos da volta do passado”.

“Com esses estribilhos monótonos, aplicavam a torto e a direito o método mandonista por eles tão condenado. Velhos quadros e militantes foram vítimas de uma política discriminatória mais absurda e hipócrita. Empregando tais processos, os revisonistas conseguiram impor no 5º Congresso a linha reformista, apesar da vigilância dos elementos revolucionários e de sua crescente resistência diante do que ocorria no Partido. Tanto assim que os Estatutos então aprovados ainda conservaram, no fundamental, os princípios e as normas leninistas consagrados pelo movimento comunista internacional.”

Era preciso ressaltar a resistência aos revisionistas para se apreciar de modo correto o que aconteceu quando o Comitê Central eleito no V Congresso resolveu alterar o nome do Partido e criar um novo partido, que não se regeria mais pelos princípios do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário, ponderou Pedro Pomar.

“Nessa ocasião, grande número de militantes se dirigiu ao Comitê Central para condenar essa tentativa de formar um novo partido, sob o pretexto de obter seu registro eleitoral. Simultaneamente, esses militantes solicitaram a convocação de um novo Congresso, única instância que podia decidir a questão caso a direção não quisesse voltar atrás de seus propósito liquidacionista.”

A resposta do Comitê Central a essa petição dos que divergiam de sua conduta foi de uma intolerância a toda prova.

“Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisonismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

O marxismo e a emancipação da mulher

Por Osvaldo Bertolino

Feminismo e emancipação feminina. Eis uma questão que atravessa os tempos e desafia as formulações políticas que enfrentam a histórica ordem econômica e social regida pela opressão. Compreender o conceito de emancipação é o primeiro passo. Ele tem no entendimento de que a dicotomia opressores e oprimidos não é natural, uma condição que pode ser superada pelo domínio da ciência sobre as leis que determinam os fenômenos sociais, conhecido na história como socialismo científico, a grande síntese do pensamento sobre a igualdade social, desde a Antiguidade Clássica.

O tema está no livro Trajetória teórica e política do feminismo emancipacionista, publicação da Secretaria Nacional da Mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), uma coletânea de textos do período entre 1954 e 2012, infelizmente pouco conhecido. É uma espécie de síntese daquilo que Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, definiu como “base teórica clara e precisa” do movimento feminino. A secretária da Mulher, Liège Rocha, explica na apresentação que os textos foram publicados em revistas, jornais, boletins e outros veículos, além de informes de congressos do Partido.

O marxismo como síntese

São 403 páginas de textos de especialistas no tema: Ana Rocha, Clara Araújo, Iracema Ribeiro, Jô Moraes, Liège Rocha, Lilian Martins, Loreta Valadares, Lúcia Rincón, Mary Garcia Castro, Milton Barbosa, Olga Maranhão e Sara Romero da Silva. O texto que abre o livro, de Jô Moares, intitulado A origem da opressão da mulher, é uma espécie de apresentação da ideia emancipacionista. À indagação sobre se o homem é por natureza opressor, ela responde: “Nos movimentos de mulheres sempre surge a ideia de que a nossa luta é contra os homens. O preconceito com que a maioria da população vê o termo ‘feminismo’ vem daí.”

Loreta Valadares, no texto A ‘controvérsia’ feminismo-marxismo, é enfática. “As críticas à pretensa ‘insuficiência’ do marxismo sobre a questão da mulher se fazem presente em quase todas as análises sobre a situação de dependência e inferioridade na sociedade, bem como sobre as origens de sua opressão. Evidentemente, as diversas teorias feministas não param somente na crítica à interpretação do marxismo sobre o processo de transformação da sociedade, mas, sobretudo, investem contra o caminho apontado pelo marxismo para a luta de emancipação da mulher”, escreve.

Sara Romero da Silva, no artigo A classe operária e a questão de gênero, ressalva que no campo da teoria marxista vai sendo evidenciado o esgotamento de uma série de modelos teóricos e práticos, “sem o suficiente desenvolvimento científico do próprio marxismo por parte de seus seguidores”. “O marxismo-leninismo afirma, e a vida, tanto no mundo capitalista como das experiências socialistas, tem confirmado que a exploração de classe é decisiva em relação à opressão de gênero e que esta última não se resolverá sem que se resolva a exploração de classe.”

A questão é compreender o marxismo como síntese do pensamento social na história. “O marxismo apresentou a primeira formulação sistematizada acerca da opressão da mulher”, escreve Liliam Martins no artigo As mulheres e o socialismo. “Incorporando ideias formuladas pelas primeiras feministas, pelos socialistas utópicos, como Fourier, desvendou a origem dessa opressão como intrinsecamente ligada ao surgimento da propriedade privada, à formulação das classes sociais.”

O poder da reprodução humana

No artigo Gênero, trabalho e pobreza: para além dos direitos iguais, Clara Araújo constata que “as crises do capitalismo agravam sobremaneira as adversas condições de vida da maioria das mulheres”. “A chamada globalização tem como um dos pontos constantemente abordados o argumento de que, em uma economia internacionalizada, de mercados transnacionais, o Estado vai perdendo sua razão de ser, assim como o próprio conceito de soberania”, diz. “A ideologia neoliberal é, portanto, contrária à própria essência das reivindicações materiais das mulheres, que dependem de iniciativas de cunho social.”

Pelo mesmo viés, Lúcia Rincon comenta, no artigo O papel da maternidade, que “o poder da reprodução humana sempre foi alvo privilegiado de preocupações daqueles que detêm o poder econômico e político e que procuram dominá-lo e controlá-lo”. “Na sociedade patriarcal e, depois, na sociedade capitalista, muitos foram os cientistas e ideólogos que se dedicaram a compreender e a explicar a reprodução humana”, escreve.

Nos textos, o ponto de vista marxista é o norte das argumentações, mas não são poucas as observações críticas sobre leituras artificias do conceito emancipacionista. Mary Garcia Castro destaca, no artigo Feminismo marxista – mais que um gênero em tempos neoliberais, que o marxismo é uma teoria científica e um movimento social crítico das sociedades de classe, em particular contra o capitalismo. “A referência no feminismo de corte liberal e social-democrata e mesmo dito ‘radical’, porque destacaria sexualidade e diferenças, é uma mulher genérica, desterrada da classe e raça. Mas em tendências no feminismo socialista, que se pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica. Sem circulação na raça ou em outras identidades marcadas por sistemas político-econômico-culturais de opressões.”

Sara Romero Silva, no artigo Origens da opressão de gênero, afirma que “houve um tempo em que militantes socialistas consideravam, em termos práticos (e até teóricos), que a luta de classes explicava tudo”. “No entanto, Marx e Engels trazem o ensinamento de que é preciso conhecer melhor a realidade, não fechar o ângulo de visão. O próprio surgimento das ideias marxistas sobre a questão da família e da mulher traz essa lição também.”

Milton Barbosa, no bem ilustrado artigo Pequena contribuição metodológica ao feminismo emancipacionista, escreve que “durante um tempo demasiadamente longo e enfadonho, a filosofia e a ciência, com seus mais ilustres e melhores representantes, desqualificaram a mulher, tornando-a uma obviedade desinteressante para a investigação racional”. “Mais do que isso, a apropriação privada pré-capitalista e capitalista, que inicialmente aprisionou-as à vida doméstica, impedindo-as de desenvolver uma visão ampla da sua existência e de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino um meio de acesso à vida pública para eternizá-la como objeto de desejo dos machos, velhos e novos.”

Uma vida livre e feliz

Ana Rocha encerra o livro com o texto Impactos da ideologia neoliberal na subjetividade feminina. “Vimos que a mulher avançou sua presença no espaço público, mas que a questão da dupla jornada permanece como um problema crônico, que tem afetado a vida da mulher, aumentando seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e traz uma ameaça de retrocesso na condição feminina é necessário abordarmos em que consiste a vitória ideológica-cultural do neoliberalismo no mundo.”

Antes, o livro tem dois textos do 4º Congresso do Partido, realizado em 1954. O primeiro é uma intervenção de Iracema Ribeiro. “O trabalho de ganhar milhões de mulheres para o Programa (do Partido) só poderá se desenvolver com pleno êxito quando deixar de ser apenas tarefas das seções do trabalho feminino e das organizações de base femininas e for incluído entre as tarefas permanentes e diárias de todos os organismos do Partido.”

Olga Maranhão, também em intervenção no 4º Congresso, disse que o Partido Comunista do Brasil é herdeiro das gloriosas tradições de luta do povo e dirige “as lutas das massas femininas pelos direitos e interesses da mulher, pela paz, pelas liberdades democráticas e pela independência nacional”. “O Partido nos ensina que a ação unida e organizada das grandes massas femininas é indispensável para assegurar às mulheres uma vida livre e feliz.”

Mulheres contra os homens

Um ponto abordado em algumas passagens do livro, referente à indagação de Jô Moares sobre a natureza opressora do homem, representa um dilema histórico. O que se convencionou chamar de “sexismo” é tratado por ela no artigo A nova etapa do feminismo como “ruptura”, que se dá, “fundamentalmente, com o chamado feminismo da igualdade na sua expressão liberal-reformista”. “A concepção da universalidade da condição feminina reforçou-se com a ideia da ‘irmandade de mulheres’, que constituía o modelo feminino de fazer política. Expressa com força no feminismo americano, a ideia da irmandade se desenvolveu amplamente pelo mundo”, relata.

Jô Moraes traz um conceito que, às vezes, tenta se impor pelas palavras, tirando do debate o arejamento das ideias e o exercício reflexivo. Essa discussão, na verdade, é antiga. No Partido Comunista do Brasil ela aparece, por exemplo, numa sabatina do então deputado constituinte comunista Carlos Marighella, em 1946, em Salvador. “Com a presença de grande número de mulheres, operárias, donas de casa, elementos femininos progressistas de várias classes sociais e representantes da Liga Femina Democrática, além de pessoas outras, teve lugar na sede da Associação dos Empregados do Comércio, a sabatina com o deputado Carlos Marighella com as mulheres baianas”, noticiou a agência de notícias do Partido, Iter Press.

Segundo Marighella, a mulher só poderia se libertar “procurando se organizar e conseguindo participar da produção, porque então obterá uma situação de independência econômica, de onde decorrerão todas as outras situações de liberdade e vida digna e moderna”. Citou como exemplo a União Soviética, onde, mesmo após a vitória do socialismo, persistiu a violência contra a mulher. Mas “as mulheres mais esclarecidas se organizaram e se uniram às companheiras e, após séria luta organizada, conseguiram a sua independência”. E falou do falso feminismo, que se dizia disposto a emancipar as mulheres, um movimento de mulheres contra os homens.

Marighella citou o exemplo de mulheres no parlamento na França e na União Soviética para dizer que, com o atraso político no Brasil, mulher alguma tomava assento no Legislativo, a exemplo da dirigente comunista Adalgisa Cavalcanti, de Pernambuco, cuja candidatura à Assembleia Constituinte não foi reconhecida. Era um momento em que o Partido promovia debates sobre a emancipação da mulher. O Barão de Itararé, nome mais conhecido de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, era um dos palestrantes.

Destruir Cartago

Em 1956, A Editoria Vitória, ligada ao Partido, publicou, em livreto, uma coletânea de textos de Lênin, sob o título O socialismo e a emancipação da mulher. Num dos textos ele diz que “a verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começa onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado) contra a pequena economia doméstica, ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista”.

Em outra passagem, ele relata que “em dois anos, em um dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, por sua igualdade com o sexo ‘forte’, mais do que haviam feito todas as repúblicas avançadas, cultas, ‘democráticas’, do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos”.

O livreto inclui um cativante artigo de Clara Zetkin (personagem histórica do feminismo marxista), intitulado Lênin e o movimento feminino, relatando uma longa conversação com ele em 1920. Vale reproduzir essa pérola: “Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas consequências e estigmatizar, além disso, a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a essa conclusão: ‘É preciso destruir Cartago.’ Lênin sorria e fazia com a cabeça sinais de aprovação.”

– Biografia conta a vida e a luta de Péricles de Souza pela democracia e o socialismo

O livro, de autoria do jornalista e historiador Osvaldo Bertolino, intitulado Péricles de Souza – uma vida uma luta, fala, em quatrocentos e quarenta páginas, da geração que entrou na juventude na década de 1960, enfrentando uma das fases mais complexas da história do Brasil e do mundo. Narra a vida de Péricles de Souza no contexto daqueles jovens nascidos na conjuntura da Segunda Guerra Mundial e que viviam no auge da “era de ouro”, os anos de crescimento ininterrupto das principais economias, que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “trina anos gloriosos”, o período de 1945 a 1975. Geração também influenciada pela cultura erudita, a música, o cinema, a literatura e as revoluções socialistas na China (1949) e em Cuba (1959).

Filho de uma família de Vitória da Conquista que se mudara para Salvador quando o Brasil vivia os impactos das transformações promovidas pelo governo de Getúlio Vargas, eleito em 1950, em segunda passagem pela Presidência da República depois de liderar a Revolução de 1930. Péricles presenciou, aos dez anos de idade, a professora e o pai tomados pela emoção com o suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954. A cena representou o início do seu despertar político. Logo ingressaria no movimento estudantil e, quando a Ação Popular (AP) surgiu, no começo da década de 1960, ele estava entre seus fundadores.

Os militantes da juventude católica se destacavam na Bahia, um dos principais pontos da resistência às ameaças golpistas ao presidente João Goulart. No golpe de 1964, Péricles estava entre os estudantes que foram para Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, organizar a resistência, que seria comandada pelo prefeito Francisco Pinto, um foco que se somaria à resposta dos governadores de esquerda em Pernambuco e Rio Grande do Sul, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Frustrados, pela ocupação da cidade pelos militares golpistas voltaram para Salvador.

Após um episódio de enfrentamento dos estudantes com o ministro das Relações Exteriores da ditadura, Juraci Magalhães, ex-interventor e ex-governador do estado, Péricles foi para clandestinidade e se instalou no Bico do Papagaio, região Sul do estado do Maranhão, para organizar o que seria um ponto da guerra popular contra a ditadura. A AP transitava para a incorporação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), num momento em que estava em preparação, no Sul do Pará, a Guerrilha do Araguaia.

Com a incorporação, em 1973, Péricles foi para Comitê Central e se mudou para Sergipe, de onde comandaria a reorganização do PCdoB no Nordeste. Por um acaso se livrou de estar na reunião de dezembro de 1976, quando a ditadura metralhou a casa em que a direção comunista se reunia em São Paulo, no bairro da Lapa, matando alguns dirigentes e prendendo outros.

Péricles retornou a Salvador após a anistia de 1979 e assumiu a direção do PCdoB no estado. Ao mesmo tempo, como membro do Comitê Central, participou dos principais eventos que levaram o país a transitar para a redemocratização, elaborar a Constituição de 1989, enfrentar o neoliberalismo dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso e eleger e reeleger os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Osvaldo Bertolino é autor de treze livros, entre eles oito biografias de lideranças comunistas que combateram a ditadura militar. É jornalista e historiador, com experiência em assessoria sindical e parlamentar. É pesquisador de temas relacionados à política, à economia e à história, com destaque para o período da formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil.    

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– A vida de combates de Maurício Grabois

Por Osvaldo Bertolino

O dia 2 de outubro de 2024 assinala a passagem dos cento e doze anos de nascimento de Maurício Grabois, um dos principais pilares da história do Partido Comunista do Brasil. Nascido na cidade paulista de Campinas e acidentalmente registrado pela segunda vez em Salvador (BA), era filho de judeus vindos da Ucrânia fugindo das perseguições antissemitas e dos castigos da guerra do Império Russo com o Japão.

Em 1930, Maurício Grabois desembarcou no Rio de Janeiro para fazer o “Curso Anexo” da Escola Militar do Realengo, onde ingressou em 1931. Mandado para o 1º Regimento de Infantaria em 1932, neste mesmo ano integrou-se à Federação da Juventude Comunista e logo assumiu a direção nacional de comunicação da organização. Por esta porta, Maurício Grabois entrou para o Partido Comunista do Brasil, à época com a sigla PCB.

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No Levante da Aliança nacional Libertadora (ANL) de 1935, Maurício Grabois estava no olho do furacão. Em seguida, mergulhou na clandestinidade para ajudar a manter o fio que sustentaria o mínimo de organização do Partido Comunista do Brasil — o jornal A Classe Operária. Mesmo nos tempos mais duros da repressão do Estado Novo, ele e mais alguns jovens intrépidos — entre eles, Amarílio Vasconcelos — mantiveram na ativa o órgão central do Partido.

Com a prisão de todo o Comitê Central, Maurício Grabois e Amarílio Vasconcelos começaram a articular a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), que seria integrada, mais tarde, por João Amazonas e Pedro Pomar, vindos do Pará; Diógenes Arruda Câmara, vindo da Bahia; e Luis Carlos Prestes, que estava na prisão. O objetivo era reorganizar o Partido Comunista do Brasil, meta alcançada com a realização da Conferência da Mantiqueira, em 1943.

Delegação na URSS

A vitória da democracia na Segunda Guerra Mundial criou as condições para o fim da estrutura do Estado Novo. Maurício Grabois e seus camaradas organizaram um grande movimento de massas que conquistou a anistia aos presos políticos — entre eles, Prestes —, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e a realização de eleições em 2 de dezembro de 1945.

Em 1º de fevereiro, ele e mais quatorze deputados, além do senador Luis Carlos Prestes, entraram no Palácio Tiradentes, no Distrito Federal — Rio de Janeiro, à época —, para tomar posse como constituintes eleitos. Quase oito meses depois, o país recebeu a Constituição que enterrou os entulhos do Estado Novo. Imediatamente depois, Maurício Garbois assumiu a liderança da bancada comunista na Câmara dos Deputados e liderou uma batalha gigantesca contra o que ele chamava de “restos fascistas”. Nesse período, escreveu intensamente para desmascarar as manobras anticomunistas. Além da Tribuna Popular, propôs o relançamento d’A Classe Operária, o que ocorreu em 9 de março de 1946.

Ao final da refrega iniciada logo nos primeiros dias de 1946, o Partido Comunista do Brasil perdeu seu registro legal no Tribunal Superior Eleitoral e todos os comunistas eleitos foram cassados. Em meados de 1955, Maurício Grabois chefiou o terceiro grupo, de 51 integrantes, que fez um curso de duração de mais de um ano em Moscou, ministrado pela Escola Superior do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Caminho da luta armada

Em 1960, no processo do V Congresso, ele iniciou a série de artigos de um grupo que recusou a revisão da linha revolucionária do Partido Comunista do Brasil, iniciada com a publicação da Declaração de Março, em 1958. Maurício Grabois foi o primeiro a escrever e deixou bem claro que havia no Partido Duas Concepções, Duas Orientações Políticas — título do seu artigo inicial.

Na Tribuna de debates, publicada no jornal Novos Rumos, cristalizaram-se duas posições antagônicas: de um lado ficaram, além de Maurício Grabois, entre outros, João Amazonas, Pedro Pomar, Carlos Nicolau Danielli e Ângelo Arroyo; de outro, estavam nomes como Luis Carlos Prestes, Mário Alves e Jacob Gorender. A polêmica evoluiu para a criação do Partido Comunista Brasileiro e a reorganização do Partido Comunista do Brasil — agora um PCB e outro PCdoB.

A chegada do golpe de Estado em 1964 fez com que o PCdoB optasse pelo caminho da luta armada. Maurício Grabois, João Amazonas, Ângelo Arroyo e Elza Monnerat foram para a selva do Araguaia, no Sul do estado do Pará, preparar a implantação de um núcleo do que seria a guerra popular. Além das tarefas práticas, Maurício Grabois e João Amazonas escreveram os estratégicos textos Atualidade do pensamento de Lênin Cinquenta anos de Luta — o primeiro uma crítica à tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como “nova etapa do marxismo” e o segundo um retrospecto das atividades ininterruptas do Partido Comunista do Brasil.

Para João Amazonas, Maurício Grabois foi o grande amigo, o grande camarada. “O Maurício Grabois foi um dos maiores propagandistas que o Partido já teve, um homem de muitas ideias”, afirmou. Em sua sala, na velha sede nacional do PCdoB na Rua Major Diogo, em São Paulo, João Amazonas conservava um quadro com a foto de Maurício Grabois em posição mais destacada entre outras referências comunistas. Ele também lembrou da constituinte de 1946, “na qual Maurício Grabois teve uma presença de espírito muito grande”.

Engraçado e pessoa distinta

Nas entrevistas que fiz para o livro Maurício Grabois — uma vida de combates, a admiração por ele foi unânime. Segundo Renato Rabelo, ex-presidente nacional do PCdoB e da Fundação Maurício Grabois, João Amazonas lembrava dele em tudo. “Era, na opinião dele, talvez o maior dirigente que o Partido teve”, disse. “Eles deviam ter uma ligação de amizade muito forte”, afirmou.

Edíria Carneiro, a companheira de João Amazonas, ao buscar na memória lembranças de Maurício Grabois estampava no rosto um semblante de carinho e bom humor. “Ele era muito engraçado”, disse ela, com o pensamento longe. Armênio Guedes, que morou com ele nos tempos da revista Continental, dos anos 1940, lembrou: “Era de um temperamento afável no trato com as pessoas, um sujeito de muita compreensão com o lado humano do militante. O Grabois e o Amarílio eram educados, não eram mandonistas.”

Do mesmo modo, Jacob Gorender lembrou de Maurício Grabois com reverência. “Tenho dele as melhores recordações. Era afável, fácil de se conversar. Foi um grande camarada, isso é fora de dúvida”, disse. Na sala de sua residência repleta de livros, de pé na porta, com a entrevista já encerrada, Gorender disse: “Não esqueça de registrar minha grande admiração por Maurício Grabois. Foi uma pessoa distinta. Estivemos em campos diferentes, mas isso nada tem a ver com sua integridade, simpatia e camaradagem.”

Atividade político-ideológica

Diógenes Arruda Câmara, em artigo publicado no jornal A Classe Operária de setembro/outubro de 1978, disse que “considerável foi sua atividade, tanto político-ideológica como prática, no trabalho de reorganização marxista-leninista do Partido de 1961 a 1962, contribuindo de forma destacada, juntamente com o camarada Amazonas, para o esclarecimento de importantes problemas da revolução brasileira e na elaboração do Programa do Partido, aprovado na Conferência Nacional Extraordinária de fevereiro de 1962”.

Sobre a atuação de Maurício Grabois na Guerrilha do Araguaia, Arruda afirmou: “Ali esteve desde os primeiros momentos, ali conviveu com as massas exploradas e oprimidas e sentiu sua grande revolta, ali atuou abnegadamente ombro a ombro com todos os camaradas, ali colaborou na elaboração de valiosos documentos políticos e militares, ali comandou as Forças Guerrilheiras do Araguaia, ali tombou como um bravo. Caiu com glória, caiu de arma na mão naquele campo de batalha da luta de classes, no Araguaia — ponto alto da referência da luta revolucionária e libertadora de nosso povo.”

– O caminho da revolução na República Popular da China

Neste 1º de outubro de 2024, transcorre o 75º aniversário da proclamação da República Popular da China. À frente da Revolução vitoriosa, em 1949, Mao Tse-tung anunciou: “De hoje em diante, a China vai se colocar de pé.” Mais de 470 milhões de pessoas passavam para o campo socialista. Apesar de ter sido um dos países fundadores das Nações Unidas, em 1945, a China revolucionária só iria ser aceita na Organização em 1971, substituindo a ilha separatista de Taiwan onde o Kuomitang de Chiang Kai-shek, ao ser derrotado pela Revolução, se refugiou. Em 23 de novembro do mesmo ano, o país socialista tornou-se membro permanente do Conselho de Segurança com direito a veto.

A tentativa malograda de incluir a China Popular na ONU logo após o triunfo da Revolução, contou com a ativa participação do Brasil. Oswaldo Aranha, o representante brasileiro, a pedido do secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Halvdan Lie, declarou-se favorável ao ingresso dos representantes do governo de Mao Tse-tung por considerá-lo o único que representava o povo chinês e também porque seria uma grande contribuição à causa da paz entre os povos. A União Soviética, como uma das potências mundiais, advogou a causa de Mao Tse-tung, mas a força diplomática anglo-americana fez prevalecer a opção por Taiwan.

Tarefa central

São dados e fatos muito pouco comentados no Brasil. Isso se deve ao cerco que a mídia promove sobre qualquer assunto afeito ao progresso social. A China, com suas complexidades e peculiaridades, contudo, merece ser analisada com mais rigor. Desde a Revolução, o país tem percorrido com sucesso o caminho do socialismo e conquistado êxitos notáveis no seu desenvolvimento. Com a execução da “Política de Reforma e Abertura”, o Produto Interno Bruto (PIB) atingiu US$ 9,4 trilhões em 2013, o que fez do país a segunda economia do mundo. A vida do povo chinês melhorou consideravelmente; 600 milhões de pessoas deixaram a pobreza.

A China vem tratando o desenvolvimento socioeconômico como tarefa central para um longo período, com o objetivo de transformar o país em uma moderna economia tecnológica até meados deste século. A meta, segundo o governo chinês, é enfrentar a situação complicada da economia mundial buscando avanços com reformas profundas para aumentar o emprego, equilibrar o crescimento regional, garantir a igualdade e a justiça, melhorar a vida da população e promover o progresso social.

Enormes benefícios internos

Todo esse arcabouço teórico trouxe enormes benefícios internos. Um deles é o salto educacional. Ao enumerar os principais eventos que afetaram a China nas últimas três décadas, a maioria dos chineses colocou o Exame Nacional para Entrada na Faculdade (Gaokao, em chinês) em primeiro lugar da lista. Em dezembro de 1977, 5,7 milhões de pessoas participaram do exame nacional, o primeiro do tipo desde o começo da catastrófica Revolução Cultural (1966-1976).

Milhões de estudantes graduaram-se em instituições de ensino superior de vários tipos para formar uma força de trabalho de alta qualidade. As instituições de ensino superior inscreveram cerca de 53,86 milhões de estudantes nas últimas três décadas, dos 128 milhões de participantes do Gaokao. Ao mesmo tempo, o governo fez grandes esforços para desenvolver a educação obrigatória e a ocupacional, com a finalidade de melhorar a qualidade de todos os cidadãos.

Educação nas áreas rurais

Nas últimas décadas, mais de 100 milhões de estudantes formaram-se nas escolas ocupacionais de diferentes tipos. Em 2000, a China alcançou a meta de garantir a educação obrigatória para as crianças e eliminar o analfabetismo entre os jovens e cidadãos de média idade. O grande sucesso nas reformas econômicas ajudou o desenvolvimento da educação no país. Com recursos financeiros suficientes, o governo passou a aumentar o investimento na educação e adotar políticas mais favoráveis, com a maior importância dada às áreas rurais.

Em 2003, um programa de ensino à distância foi lançado para cobrir 360 mil escolas primárias e secundárias rurais, beneficiando mais de 100 milhões de estudantes. Em 2004, o governo central investiu 10 bilhões de yuans (US$ 1,45 bilhão) para construir mais de 8,3 mil escolas de tempo integral nas áreas rurais. Em 2006, a China emendou sua Lei de Educação Obrigatória para isentar os estudantes primários e os estudantes nos primeiros três anos do ensino secundário de pagamento da matrícula e de outras taxas administrativas.

Idioma atrativo

Além de fazer grandes esforços para alcançar a meta de educação para todos, o governo tem encorajado o estudo no exterior. O número subiu de 860 em 1978 para 144,5 mil em 2007. Até o momento, 319,7 mil estudantes chineses voltaram após terem terminado o estudo em outros países. A China também abriu suas portas a estudantes de fora.

Nos últimos 40 anos, 1,23 milhões de pessoas de mais de 180 países e regiões estudaram em instituições de ensino chinesas. Com o sucesso da reforma e um maior prestígio internacional, o chinês tornou-se um idioma atrativo e útil. O número de estrangeiros que estudam chinês já ultrapassa 30 milhões. Até o momento, a China assinou acordos de cooperação e intercâmbio educacionais com 188 países e regiões. Foram firmados acordos de reconhecimento mútuo de diplomas com 33 países.

No campo, o país também passa por uma revolução. Entre a população de 1,3 bilhão, mais de 800 milhões vivem no na área rural. Com isso, o governo chinês prioriza a produção agrícola e a elevação do nível de vida dos camponeses. A informatização no campo prioriza o domínio da tecnologia e das informações a fim de melhorar a produção e a administração.

Indústria básica e infraestrutura

A construção da indústria básica e da infra-estrutura também foi reforçada de forma significativa, dando um suporte crescente ao desenvolvimento econômico e social do país. Entre 1979 e 2007, os capitais destinados aos dois setores somaram aproximadamente 30 trilhões de yuans, representando 38% do total dos investimentos. Um grande número de projetos essenciais como transmissão de gás natural oeste-leste, transmissão de água sul-norte e reflorestamento de terras de cultivo, foram concluídos ou seguem em ritmo acelerado.

A produtividade da indústria de base e o nível infraestrutural aumentaram significativamente. Foram criadas redes de transporte e telecomunicações que cobrem todo o país. As instalações de educação, cultura e esporte também tiveram aprimoramentos. Um aspecto que merece observação especial é o acelerado ritmo de urbanização chinês. A superfície urbanizada subiu de 17,9% para 50% do território nacional. Durante este processo, as metrópoles que mais brilharam foram Pequim, Shanghai e Shenzhen.

Estabilidade social

Em um seminário promovido pelo Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico no Rio de Janeiro, os participantes avaliaram que a política de reforma e abertura criada por Deng Xiaoping não só trouxe desenvolvimento rápido como deu uma contribuição significativa à humanidade e ao mundo. O diretor do Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico, Severino Bezerra Cabral Filho, disse que a política de reforma e abertura foi a mudança política, econômica e social mais importante do mundo nos últimos 30 anos.

Cabral Filho também destacou que, neste processo, a China tomou uma atitude programática e não imitou o modelo de desenvolvimento dos Estados Unidos e de países do Leste Europeu, mas explorou um caminho que atendia à sua própria situação — mantendo o rápido desenvolvimento econômico e a estabilidade social. Segundo ele, estudar este ”fenômeno chinês” tem um importante significado para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil e de outros países em desenvolvimento.

Cinco Princípios

Ao mesmo tempo, a China amplia seus laços comerciais e políticos, baseados nos mesmos “Cinco Princípios” de sessenta anos atrás, quando o país, junto com a Índia e o Myanmar, proclamaram a coexistência pacífica no tratamento das relações internacionais: respeito mútuo à soberania e integridade nacional; não agressão por um país ao outro; não intervenção nos assuntos internos de um país por parte de outro;  igualdade e benefícios recíprocos; e coexistência pacífica.

O Relatório do 18º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCCh), realizado em 2012, deu ao capítulo sobre diplomacia o título “Continuando a promover a nobre causa da paz e desenvolvimento da humanidade”. Segundo o documento, desde o começo do século XXI a China tem feito importantes contribuições para a paz e a prosperidade mundial enquanto mantém a própria estabilidade e desenvolvimento, dando um poderoso impulso para o desenvolvimento econômico global. Ao manter um firme e acelerado crescimento doméstico, a China tem obtido uma taxa de participação média anual superior a 20% no crescimento econômico mundial no século XXI.

Boa vizinhança

Na onda da crise financeira internacional, a China contribuiu duas vezes, com um total de US$ 93 bilhões, para a recomposição do capital do Fundo Monetário Internacional (FMI) e se tornou uma importante força dirigente da recuperação econômica mundial e da reestruturação econômica e financeira internacional. Empenhada em se abrir ainda mais, a China se posicionou em 2011 no segundo lugar no mundo em volume de importações e exportações, no segundo lugar em investimento estrangeiro direto e no quinto em investimento no exterior.

O relatório diz ainda que a China tem trabalhado ativamente para promover a globalização econômica e a cooperação regional, se opondo a todos os tipos de protecionismo. O país, segundo o documento, é um entusiástico promotor e praticante da cooperação Sul-Sul; na década passada, destinou aproximadamente US$ 27,3 bilhões a uma variedade de programas de ajuda internacional e ajudou a aumentar a capacidade de desenvolvimento independente dos países em desenvolvimento pelo cancelamento de encargos de suas dívidas e outros meios, oferecendo uma importante contribuição para a causa internacional da redução da pobreza.

O pesquisador do Instituto de Estratégia Internacional da China, Gao Zugui, destaca que o país sempre persiste na política de boa vizinhança. As cooperações de benefício mútuo com os vizinhos fizeram com que a China se tornasse o maior parceiro comercial da maioria deles. “Com o crescimento econômico rápido da China, não só os arredores como também o mundo foram beneficiados. No futuro, a China deve pensar como melhor favorecer a região. Há uma grande oportunidade nesta área. Por exemplo, a transformação do modelo de desenvolvimento vai resultar no aumento significativo da importação e do investimento no exterior”, avaliou.

Desenvolvimento pacífico

O governo chinês avalia que a paz traz grandes benefícios para o país. Mesmo depois da Revolução, a falta de um ambiente pacífico, tanto dentro como fora das suas fronteiras, impossibilitava o desenvolvimento nacional. A China de então era um país de economia atrasada, debilitado e empobrecido, que enfrentava grandes desafios à sua subsistência e ao seu progresso. Foi assim que os chineses começaram a revisar suas políticas, a reavaliar as relações com o mundo e tomaram uma decisão histórica — a 3ª Sessão Plenária do 11º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, realizada em 1978, definiu o modelo de crescimento e o desenvolvimento pacífico tornou-se parte da estratégia nacional.

O desenvolvimento pacífico, segundo o governo chinês, significa buscar um ambiente internacional de paz em benefício do próprio desenvolvimento nacional. Para a China, a construção econômica interna combinada com o estabelecimento de cooperações com o exterior contribui decisivamente para melhorar o ambiente externo. Como exemplo disso, a China, além de promover as relações com os principais países e regiões, tem aprofundando o conhecimento e os intercâmbios com o Ocidente, mantendo a estabilidade do vínculo com as grandes nações.

Os chineses entendem que, tanto do ponto de vista econômico como do geopolítico, quanto mais eles puderem ajudar outras nações a se fortalecerem, melhor será o mundo para a China. O país também tenta aprender com os erros da América Latina nos anos 1980 e 1990. Por encomenda do governo, a Academia Chinesa de Ciências Sociais publicou, em 2004, um livro chamado Análises do Neoliberalismo, uma compilação de artigos de respeitados acadêmicos chineses escritos sob um ponto de vista marxista, que considera a Rússia e a América Latina como áreas do “desastre” do neoliberalismo. Um dos capítulos trata das vítimas latinas das reformas neoliberais.

A China no flanco japonês

Os chineses certamente têm muito a aprender com essas análises. O país está no centro da economia asiática, umbilicalmente ligada aos Estados Unidos, com um crédito monumental em títulos do Tesouro norte-americano — recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva da “globalização”, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona. O Japão, que enfrenta uma longa crise, é o país da região que ainda hoje enfrenta maiores dificuldades para se levantar. Para complicar mais ainda o cenário japonês, há em seu flanco a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial.

Esse quadro tem tudo a ver com a dinâmica da especulação financeira internacional. A “bolha especulativa” chegou ao seu limite com o esgotamento da capacidade mundial de financiamento do alucinado endividamento público norte-americano pelo agravamento da crise de seus principais financiadores. Assim, os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. E o tombo da economia norte-americana, que inevitavelmente levaria as demais economias à bancarrota, passou a assombrar o mundo. Desde a “crise asiática” essa tendência vem se acentuando e foi captada pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Anann, durante uma conferência internacional em Bancoc, Tailândia, em junho de 1998. “A recessão econômica da Ásia está prestes a se estender por todo o mundo”, disse ele.

As peças políticas no tabuleiro asiático

No pós-Segunda Guerra Mundial, o imperialismo norte-americano fincou suas bandeiras no Oriente porque era real a possibilidade de o continente asiático seguir por um caminho próprio. China e Coréia são exemplos nesse sentido. Com seu feixe de tradições preservado, a China chegou à fase de inventar seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. De quebra, o país tem sido hábil em adaptar-se às transformações do ambiente em que atua, em absorver, mesmo que de projetos rivais e teorias adversárias, aquilo que é fundamental à sua sobrevivência. Essa flexibilidade inteligente é um dos aspectos mais notáveis do sistema chinês.

A China tem, portanto, grande interesse na disposição das peças no tabuleiro político mundial. Daí o seu olhar atento sobre a decisão dos norte-americanos de forçar um atalho, pela via militar, na busca de uma estratégia que responda à desesperadora necessidade de uma saída para a crise econômica. Além dos interesses imediatos, é possível que o imperialismo tenha desenhado em sua estratégia os mecanismos para assegurar o controle das rotas de petróleo e gás natural da Ásia Central e do Mar Cáspio — cujas reservas serão de grande valia quando se esgotarem os recursos do Oriente Médio.

Máquina militar imperialista

O poder de veto das potências no Conselho de Segurança da ONU, contudo, impõe limites à máquina militar imperialista. Mesmo com o fim da estabilidade diplomática que equilibrava a força militar entre as duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial, a ONU representa uma certa garantia de respeito à legalidade internacional. Com a decisão dos Estados Unidos de afrontar essa ordem, abriu-se a possibilidade para que Rússia e China se unissem a fim de conter a agressividade imperialista, levada à prática com a guerra na Ucrânia.

A presença militar norte-americana nas vizinhanças da China, da Rússia — e da sua rica região siberiana — e da Índia, portanto, faz o mundo coçar a cabeça. É a mais grave crise dos últimos 60 anos. Se o conflito se estender, poderá ser cruento. A potência bélica não hesitará em lançar artefatos de extermínio em massa caso seja necessário usar seu senso de revide, sua indiferença internacional e sua sede de status. Junto com outros países, os Estados Unidos se amontoam em clubes como a Otan e, montados em seus arsenais, se autoproclamam os donos do mundo.

Uma oposição firme aos devaneios belicosos dos Estados Unidos e seus aliados só pode vir, no curto prazo, da China e da Rússia — infelizmente porque só estes dois países, entre os que se opõem com mais firmeza ao ataque imperialista, têm poderes políticos e, principalmente, bélicos para tanto. E isso é decisivo. Imagine, por exemplo, a China sem seu arsenal de 120 mísseis e 420 ogivas nucleares. Seria apenas mais um país “emergente”. Ninguém lhe perguntaria a opinião em assuntos estratégicos. Provavelmente a Inglaterra não lhe teria devolvido Hong Kong e os Estados Unidos manteriam por lá muito mais agentes especiais subvertendo a ordem socialista e trabalhando em prol da “democracia” e do “capitalismo cristão”.