– O Plano Real contra a soberania nacional

Por Osvaldo Bertolino

Multidões nas ruas, palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, bombas de gás lacrimogêneo, tumulto. Este cenário era comum nas conturbadas privatizações dos anos 1990, sobretudo após o Plano Real, o catalisador de votos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Em 1994, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato da oposição, cortava o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania, FHC desfilava na mídia prometendo o que não cumpriria. Estava em andamento, como base da “estabilização da moeda”, a preparação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), a adequação do sistema bancário ao mercado de títulos públicos, aquecido com a liberalização financeira.

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De 1º de julho de 1994, data da implantação do Plano Real, a 3 de novembro de 1995, quando o Proer foi instituído por uma Medida Provisória, o Banco Central fez 22 intervenções no sistema bancário. Em 17 de novembro de 1995, outra Medida Provisória deu ao Banco Central a obrigação e o poder de escolher os bancos que teriam solidez. De outubro de 1995 a maio de 1996, o governo liberou US$ 12,1 bilhões, salvando bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira.

Estava também em andamento o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelo presidente dos Estados Unidos George Bush – pai do também presidente George W. Bush – em 1990 e reavivada em 1994, uma resposta ao fracasso das negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que enfrentava protestos onde se reunia. Seria uma ferramenta sobressalente, reserva estratégica que permitiria entrar pela janela o que não pôde entrar pela porta, a realização em escala regional daquilo que não pôde ser feito em escala mundial, na definição da professora do Centro de Pesquisas e Estudos sobre a América Latina e Caribe (Crealc), Janete Habel.

O Brasil entregou o comércio exterior a um grupo de 45 diplomatas, nove dos quais acreditados em Genebra – onde fica a sede da OMC – e seis na missão junto à União Européia, em Bruxelas, nenhum deles especialista em Alca. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães, que seria secretário-geral do Itamaraty no governo Lula – após ser demitido do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (Ipri) pelo ministro das Relações Exteriores do governo FHC, Celso Lafer, por suas repetidas e enfáticas criticas à entrada do Brasil na Alca -, o Brasil corria o risco de adotar uma incorporação de forma subordinada e assimétrica ao sistema econômico e político dos Estados Unidos.

“Julgava-se então que o livre ingresso de bens e de capitais estrangeiros modernizaria a estrutura produtiva e geraria exportações suficientes para compensar as remessas de recursos”, disse ele. “Nosso desarmamento unilateral, pensava-se, colaboraria para o desarmamento das grandes potências. Elas, porém, continuaram a se armar e a agir cada vez mais arbitrariamente. Acreditava-se na imparcialidade de agências como a OMC e o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o que se constata é o seu viés pró-Estados desenvolvidos”, afirmou. “O projeto da Alca atende aos interesses estratégicos dos Estados Unidos para a América do Sul, mas afeta muito em especial o Brasil, devido a nossas dimensões territoriais, de população e de PIB”, comentou

A Alca colocaria em confronto direito, ainda que gradualmente, as megaempresas multinacionais americanas e as empresas brasileiras, disse ele em entrevista ao jornal Correio Braziliense de 19 de abril de 2001. “As regras internacionais que viriam a ser consagradas pela Alca levariam à impossibilidade prática de o Brasil exercer políticas comerciais, industriais, tecnológicas, agrícolas e de emprego indispensáveis à superação das extraordinárias disparidades sociais e da crônica vulnerabilidade externa”, afirmou.

Um plebiscito organizado por entidades do movimento social, precedido de uma campanha de esclarecimento, ocorreu entre 1º e 7 de setembro de 2002, em 3.894 municípios. Dos 10.149.542 votantes, 98% manifestaram-se contrários à adesão. Renato Rabelo, então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que o plebiscito era “um instrumento de divulgação para a sociedade do significado da Alca para o nosso país e suas influências na vida dos trabalhadores”. Segundo ele, a Alca representava a continuidade do Consenso de Washington, projeto do governo norte-americano para ser aplicado na década de 1990 com o objetivo de alinhar os seus interesses na América Latina. “Esse tipo de zona de livre comércio, com os Estados Unidos no centro, é o mesmo que colocar numa piscina um tubarão e várias piabas: é evidente que elas serão extintas pelo tubarão”, exemplificou.

Ataques especulativos

O Proer e a Alca eram a essência do projeto neoliberal, que cumpria um novo ciclo na América Latina, depois da condução anglo-saxã de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos) e Margaret Thatcher (primeira-ministra da Inglaterra), com os presidentes Augusto Pinochet (Chile), Carlos Menen (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Carlos Andrés Perez (Venezuela) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Alguns se tornaram foragidos da lei, abrigados pelos Estados Unidos. O segundo ciclo se iniciava novamente sob a condução anglo-saxã, desta vez com Bill Clinton (Estados Unidos) e Tony Blair (Inglaterra), cujo símbolo foi o governo do presidente Fernando de la Rua, na Argentina, que fugiu, de helicóptero, de uma revolva popular nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, deixando para trás um saldo de mais de 30 mortos, cinco deles na Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires.

Assim começou a “era FHC”, soprada pela massa do que se dizia ser o “capital da nova era”, que gira pelos países em velocidades jamais vistas e emprestou ao capitalismo nova feição. Na definição do famoso economista norte-americano John Kenneth Galbraith, essa “nova era” tornou “o mundo mais vulnerável a manifestações de insanidade”, governado por uma massa de dinheiro opulenta, que passou a ser o personagem-chave das finanças internacionais, onipresente e onisciente, para a qual barreiras e fronteiras nacionais são meras abstrações, vagando em escala planetária diariamente ao comando de teclas de computador acionadas por operadores ávidos por mais dinheiro, assombrando principalmente economias dependentes.

São fundos formados por “investidores” sem face, unidos por instituições financeiras esparramadas pelo mundo afora, os chamados “mercados”, com seus “ataques especulativos” que atingiram o Brasil de frente pelo furacão que começou a girar na Ásia em 1997. Quando a farra especulativa começou a baixar a poeira, porque não encontrava mais contrapartida na economia real (pois, afinal, quem produz valor e excedente para alimentar a especulação é a economia real), surgiu a ameaça de insolvência, isto é, os créditos apodreceram. O projeto neoliberal estava espalhando a tendência de estagnação econômica dos países centrais – sobretudo dos Estados Unidos – e gerando crises financeiras assombrosas.

Donos estrangeiros

Ao denunciar, no primeiro semestre de 1997, a “exuberância irracional” das bolsas de seu país, o presidente do Fed (o banco central norte-americano), Alan Greenpan, estava constatando o esgotamento desse processo de especulação. A bolha estourou e seus ecos se espalharam pelo mundo quando a Enron puxou a fila de empresas que protagonizaram verdadeiros escândalos financeiros nos Estados Unidos, mostrando o tamanho dos “mercados” especulativos.

Essa massa amorfa de “investimentos” começou a aportar no Brasil, ainda no governo Collor, no leito do “choque de concorrência” proporcionado pela diminuição da proteção cambial e tarifária. Símbolos do capitalismo brasileiro – como Metal Leve, Cofap, Arisco e Bamerindus – entregarem as chaves para ícones do capitalismo mundial, como Bosch-Siemens, Gessy Lever e Hongkong & Shangai Banking Corporation (HSBC). Dados divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo dia 3 de outubro de 1999 revelam que a desnacionalização da indústria e do setor de serviços no Brasil havia produzido, do início do Plano Real até então, um aumento do envio de dinheiro pelas multinacionais para fora de US$ 2,5 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões.

Em 1994, segundo o jornal, apenas 0,38% dos US$ 2,1 bilhões em investimentos externos foram para a compra de empresas já constituídas. Em 1998, o percentual já era de 74,1%. Ou seja: dos US$ 28,7 bilhões que entraram, US$ 21,3 bilhões foram usados para que empresas brasileiras passassem a ter donos estrangeiros. A desnacionalização da economia brasileira implicou outra armadilha trágica: o Brasil entrou ainda mais no beco da dívida externa. Com a economia nas mãos das multinacionais, criou-se uma sangria permanente de despesas com dólares por dois caminhos principais: a compra de peças e componentes para produtos apenas montados aqui, de acordo com as ordens das suas matrizes, e um brutal aumento das remessas de lucros e dividendos.

O método de tratamento às críticas a essa insensatez era truculento. Gustavo Franco, o arrogante presidente do Banco Central, certa vez chamou Delfim Netto de “porta-voz do Parque Jurássico” para responder a críticas sobre a apreciação cambial. Em outra, ele comentou a resistência dos portuários à privatização dos portos chamando os trabalhadores de “flanelinhas de navio”. Em resposta a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que alertou para o peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo, ele disse que ali estava um “covil de retrógrados”.

Essa política empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em vários centros industriais do país, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas. Antigas indústrias transformaram-se em galpões abandonados – ou ocupados para outros fins teoricamente não econômicos – e levas de desempregados passaram a perambular pelas ruas, sem perspectivas. Eram as vítimas da lógica neoliberal segundo a qual para que alguns possam emergir social e economicamente muitos precisam submergir na pobreza e na miséria.

Privatização da Petrobras

Nesse processo, o programa de privatizações selvagens, que vinha do governo Collor, se acelerou. O símbolo dessa política foi a ideia de privatizar a Petrobrás, que surgiu oficialmente em 1996 quando um tucano de alta plumagem – o então presidente do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luis Carlos Mendonça de Barros – desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério – ele foi um dos baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. Em seguida, os petroleiros lançaram a palavra de ordem Defender a Petrobrás é defender o Brasil, uma síntese que remontava ao despertar do país para a importância do petróleo nacional muito tempo antes.

A Petrobras foi avariada, mas os neoliberais não reuniram forças para privatizá-la. Já em 1995, acabaram com o monopólio estatal do petróleo, decisão proclamada por FHC como “página virada” na história do Brasil. Mas houve força para privatizar empresas estratégicas, como a Vale do Rio Doce, processo que enfrentou forte resistência. Em maio de 1997, em pleno auge da “era FHC”, a revista Veja divulgou uma pesquisa mostrando que 50% dos entrevistados discordavam daquela privatização. Outros 18% não tinham opinião e apenas 30% apoiavam. Ou seja: sete de cada dez brasileiros não estavam de acordo com uma ação que foi considerada outro símbolo das privatizações selvagens.

Limite da irresponsabilidade

Os escândalos de corrupção também marcaram aquele período. O mais conhecido se deu com Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e apontado como um dos arrecadadores de recursos para campanhas eleitorais do PSDB, flagrado dizendo que atuava no “limite da irresponsabilidade” no processo de privatização do sistema Telebrás. Um grampo do BNDES trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos daquela privatização.

Soube-se que “o maior negócio da República”, tramado por Luiz Carlos Mendonça de Barros – então do Ministério das Comunicações –, André Lara Resende – então da presidência do BNDES – e o banqueiro Daniel Dantas, ocorreu numa atmosfera de alto risco (“no limite da irresponsabilidade”), em meio a um linguajar raso (“se der m…, estamos juntos”) e com pitadas de truculência (“temos de fazer os italianos na marra”). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre as “vantagens” da negociata, assentiu dizendo: “Não tenha dúvida, não tenha dúvida.”

Dizia-se que seria necessário privatizar para abater a dívida pública e liberar bilhões de dólares das despesas com juros para financiar investimentos sociais. FHC afirmou que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal-nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse. Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continuou estratosférica.

Os “guardiões da moeda” garantiam que o fluxo mirabolante de capital especulativo não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico competitivo. Nada de intervencionismos do Estado, nada de incentivos à microeconomia doméstica.

O efeito cachaça

Em outubro de 1998, FHC, se aproveitando da crise que começou na Ásia, disse: “A opção é simples: fazer logo o ajuste (as reformas), enfrentando os sacrifícios necessários, e voltar a crescer o mais cedo possível. (…) O Estado se tornou incapaz de cumprir o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro.” O Brasil estava no centro do que o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, chamou de “a pior crise financeira do mundo nos últimos 50 anos”. A saída foi um acordo falimentar com o Fundo Monetário Internacional para obter empréstimo de US$ 30 bilhões, condicionado à resolução dos “problemas” a que se referia FHC, um brutal “ajuste fiscal”. Na época do acordo, o Brasil estava em destaque nos principais jornais do mundo. Na definição do The New York Times, o país constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times. O medo de que o Brasil pudesse arrastar os países centrais para uma recessão chegou a ser tema de um seminário realizado em Washington pelo Center for Strategic and International Studies, entidade privada que congregava personalidades como os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. O nome do evento foi sugestivo: Os próximos 90 dias – o efeito cachaça. Numa reunião em setembro de 1998 com os ministros da Fazenda da América Latina e dos Estados Unidos, os dirigentes do FMI deram o recado claramente ao recomendar que o rumo traçado pelo neoliberalismo deveria ser seguido rigorosamente.

Código de Bancarrota

Na Folha de S. Paulo, de 13 de junho de 1999, o economista Celso Furtado escreveu que, com essa política, “o país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida, que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos”. “É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, escreveu.

Furtado explicou que os recursos postos à disposição do Brasil aprofundaram o endividamento do país. “Diante dessa perspectiva, teríamos de reconhecer que o recurso à moratória seria um mal menor em comparação com a abdicação da responsabilidade de o país autogovernar-se”, disse. Na opinião de Furtado, o essencial seria que o entendimento com os credores fosse adequadamente programado nos planos externo e interno. “Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Caberia inspirar-se no capítulo 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos, conforme recomenda a Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de reduzir a volatilidade dos fluxos de capital a curto prazo”, escreveu.

Lembrando Lênin, ele perguntou: o que fazer? “A estratégia a ser seguida comporta uma ação em três frentes. A primeira delas visa reverter o processo de concentração patrimonial e de renda que está na raiz das distorções sociais que caracterizam o Brasil. Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão-de-obra sub-ocupada. Esses fatores dificilmente se encontram em outras partes do planeta. (…) A segunda frente a ser abordada é a do atraso nos investimentos no fator humano, atraso que se traduz em extremas disparidades entre salários de especialistas e do operário comum. (…) A terceira frente de ação refere-se à forma de inserção no processo de globalização. Esse processo traduz a prevalência das empresas transnacionais na alocação de recursos raros, decorrência da importância crescente do fator tecnológico na orientação dos investimentos”, respondeu.

Brasil se tornou adulto

O projeto da Alca foi enterrado com a ascensão da esquerda na América Latina, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998. O acordo com o FMI foi encerrado no governo Lula. “Não fizemos nenhum barulho, rompemos o acordo porque não precisávamos mais do FMI”, afirmou o presidente. Ele disse que o país agora pode dizer que “tem governo” e é “dono de seu próprio nariz”.

O Brasil já havia passado por essa experiência quando o governo do presidente Juscelino Kubitschek (JK) tentou executar o “programa de estabilização” elaborado pelo seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, e pelo diretor do Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), Roberto Campos (este último um célebre economista de direita que marcaria época no regime militar). Havia uma contradição evidente: como conciliar altos investimentos com arrocho fiscal? Argentina e Chile experimentavam o tratamento de choque do FMI e os resultados faziam com que o plano de Lopes e Campos enfrentasse forte resistência no Brasil. Mas a pressão externa era grande e JK acabou cedendo, o que resultou no inevitável conflito entre seu “Programa de metas” e a “estabilização”. Lopes e Campos se isolaram no governo.

A controvérsia acabou com as ordens do presidente da República para que as negociações com o FMI fossem rompidas. Lopes e Campos pediam a JK paciência porque a economia estava prestes a gozar dos frutos da “estabilização”, argumento que seria repetido pelos neoliberais da “era FHC”. Mas o presidente não quis saber de conversa. Em discurso no Clube Militar, palco de intenso debate sobre as duas orientações que existiam no governo, JK disse: “O Brasil já se tornou adulto. Não somos mais os parentes pobres, relegados à cozinha e proibidos de entrar na sala de visitas. Só pedimos a colaboração de outras nações. Através de maiores sacrifícios poderemos obter a independência política e, principalmente, a econômica, sem ajuda de outros.”

– O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

Por Osvaldo Bertolino

Na madrugada de 24 de maio de 1995, trabalhadores de quatro refinarias da Petrobras foram surpreendidos por canhões de tanques do Exército apontados para eles. A ocupação militar, na calada da noite, foi uma resposta a uma greve que reivindicava o cumprimento de acordos assinados no governo Itamar Franco e descumpridos pelo seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC). As negociações salariais se arrastaram pelo ano anterior e resultaram em compromissos assumidos por Itamar e seu ministro da Minas e Energia, Delcídio Gomes. Até mesmo um acordo do presidente da Petrobrás, Joel Rennó, com a Federação Única dos Petroleiros (FUP) foi ignorado.

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Tropas militares ocuparam três refinarias em São Paulo e uma no Paraná. A decisão foi tomada na noite de 17 de maio numa reunião entre FHC e os ministros do Exército, general Zenildo Lucena, e das Minas e Energia, Raimundo Brito. Foi a segunda vez, após a ditadura militar, que tanques reprimiram trabalhadores – em 1988, três operários morreram na Companhia Siderurgica Nacional (CSN), numa invasão autorizada pelo então presidente da República, José Sarney.

A greve dos petroleiros havia sido julgada “abusiva” pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. A categoria ficou entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco de repressão. Ficaram com a segunda e receberam ampla solidariedade. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram em todo o país contra a ocupação militar das refinarias.

Racismo na Rede Globo

A revista Veja divulgou que, em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir os petroleiros em greve nas principais refinarias. As importações custaram à Petrobras US$ 700 milhões. Tudo isso gastando R$ 20 milhões por dia, quando o cumprimento dos acordos representava R$ 14 milhões. O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria os que divergissem de seu governo.

A mídia, mais uma vez, armou seu circo para difamar os trabalhadores. Paulo Francis, à época comentarista da Rede Globo de Televisão e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, disse: “Uma das falhas do governo FHC é sua boa educação. É preciso meter as mãos na cabeça raspada do Vicentinho (então presidente da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, da qual a FUP era filiada) língua-presa. Eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo.” Alexandre Garcia, que fora ligado à ditadura militar, também da Rede Globo, afirmou que a ocupação militar era uma medida necessária para evitar que os petroleiros ameaçassem o patrimônio físico das refinarias.

FHC havia investido contra a lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional, para ele uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. Na verdade, era uma investida contra a legislação trabalhista, a incompatibilidade do projeto neoliberal com a liberdade de organização dos trabalhadores, demonstrada no início dos anos 1980 pelo governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de voo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que estes retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.

A primeira-ministra da Inglaterra, Margareth Thatcher, outro símbolo do autoritarismo neoliberal, também fez o mesmo com as greves dos mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pelo neoliberalismo, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário – responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores ingleses. Apesar da solidariedade que se espalhou por todo o Reino Unido, da coesão entre trabalhadores mineiros e suas famílias – especialmente as mulheres – e da importante solidariedade internacional, a greve foi derrotada.

Ministro inoportuno

FHC assumiu com a promessa de implodir a estrutura sindical e a legislação trabalhista. A ideia começou a ser formada logo após a promulgação da Constituição de 1988, quando os principais executivos das empresas multinacionais instaladas no Brasil criaram um grupo permanente para organizar o lobby que atuaria no golpe fracassado da “revisão constitucional” de 1993. Em 1994, o presidente FHC foi buscar o economista Paulo de Tarso Almeida Paiva, que atuava no governo do Estado de Minas Gerais, para ocupar o Ministério do Trabalho com a função definida de comandar o ataque à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e à Constituição.

Quando o presidente apresentou seu ministério, fez uma menção especial a Paiva. “Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país”, disse, referindo-se à “era Vargas” como “apodrecida”. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro do Trabalho provocou uma tempestade ao defender, na sede da Força Sindical, em São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem “disponíveis para negociação”. “O ministro foi, no mínimo, inoportuno”, disse o então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros. O porta-voz da Presidência, Sérgio Amaral, anunciou que “o governo jamais cogitara de retirar da Constituição os sagrados direitos dos trabalhadores”. Era uma falácia.

Tudo virou barganha

Os trabalhadores iniciaram o combate ao Plano Real assim que ele surgiu. Em fevereiro de 1994, as centrais sindicais anunciaram uma greve geral contra as perdas da conversão dos salários pela média da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda, que chegavam a 36%. Para os preços, segundo FHC, não era preciso regras de conversão porque o próprio “mercado” se incumbiria de conter os abusos. Seu plano só atingia os salários. Greves e manifestações começaram a pipocar. Em 1º de março de 1994, as centrais sindicais definiram um plano de lutas e programaram um Dia nacional de lutas contra o arrocho da URV.

O passo seguinte foi uma manobra do governo para envolver as centrais na “reforma” da Previdência Social. Os termos previstos no acordo – substituição da aposentadoria por tempo de serviço por tempo de contribuição, fim da aposentadoria proporcional, fim da aposentadoria especial para os professores universitários e novas regras para aposentadoria integral no serviço público – foram duramente criticados. Em 21 de junho de 1996, uma greve geral, mesmo em meio àquele clima hostil, foi considerada um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve – ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação, mostraram o seu sucesso. Mas as condições para a ação sindical eram cada vez mais duras.

O governo havia editado uma Medida Provisória (MP) – chamada de MP da desindexação – que na prática proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho. As campanhas salariais muitas vezes se resumiam à luta para não perder direitos. No dia 25 de abril de 1997, os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do Plano Real. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país.

O primeiro golpe efetivo da “era FHC” na “era Vargas” ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1998, quando a “reforma” da Previdência foi aprovada no Congresso Nacional. Mas a direita pagou caro – na mesma data, ocorreu o Dia nacional de luta contra a reforma da Previdência. Nos bastidores da votação, a corrupção fervilhou. Tudo virou barganha. A obrigatoriedade do selo de controle colado no para-brisa dos carros tornou-se lei para atender a um lobby do sobrinho do deputado Delfim Netto, do Partido Progressista Brasileiro (PPB), uma das derivações das organizações partidárias que sustentaram a ditadura militar. A corrupção chegou a detalhes reles – um deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) negociou a transferência de sua mulher de São Paulo para Brasília. Um caminhão de dinheiro da Caixa Econômica Federal (CEF) foi liberado para a compra de votos.

A direita cooptava, mas também deixava o uso da força sempre ao alcance. “Se precisar bater, bata. Se precisar atirar, atire. Aqui não vai entrar ninguém. Eu estou aqui”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães, o ACM (PFL-BA), presidente do Congresso Nacional, aos seguranças chamados para reprimir os trabalhadores. O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ameaçou mandar a Polícia Militar atirar nos manifestantes se eles não se retirassem do plenário. FHC e a mídia abusaram da retórica para atacar os “baderneiros” que protestaram em todo o país.

Farsa de ACM

O país se arrastava e logo seria atingido de frente pelo furacão do ataque especulativo que começou na Ásia. O governo correu para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs duras condições para um socorro emergencial. Novas manifestações tomaram conta do país, puxadas pelo Fórum nacional de luta por trabalho, terra e cidadania, que lançou, em 1º de março de 1999, a Jornada nacional em defesa do Brasil. Em 26 do mesmo mês, sob a palavra de ordem Basta de FHC!, mais uma vez os trabalhadores foram às ruas.

O governo também agiu para amedrontar a Justiça do Trabalho. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas por ACM – um dos principais aliados de FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. A ordem era não conceder reajuste. ACM chegou a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho.

Em 26 de agosto de 1999, os trabalhadores promoveram a Marcha dos 100 mil, em Brasília, que representou uma grande vitória da unidade entre os partidos de oposição e o Fórum nacional de lutas. Aquela demonstração histórica de mobilização popular foi o resultado da consolidação da Frente de oposição democrática e popular, depois de sucessivas manifestações contra o projeto neoliberal. Representantes da Marcha dos 100 mil entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados 1 milhão e 300 mil assinaturas exigindo a instalação da CPI da Telebrás para apurar corrupção no processo de privatização do sistema telefônico brasileiro.

Índices de impopularidade

No ato da Marcha dos 100 mil em Brasília, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) expressou, em poucas palavras, o que representava aquele momento. “Estou gratificado. Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”, disse ele em resposta ao então presidente da República, que classificou a Marcha dos 100 mil como manifestação dos “sem rumo”. Dirigindo-se diretamente a FHC, Lula afirmou: “Quem não tem rumo é você”.

Os manifestantes deixaram claro que não pretendiam apenas uma mudança no governo, mas uma mudança de governo. Ou seja: a saída do presidente menos de oito meses após a sua posse no segundo mandato, traduzida no slogan Fora, FHC!. “Temos de fazer milhares de movimentos como este até tirar essa gente do poder”, discursou Lula, confirmando o que o presidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Leonel Brizola, dissera um pouco antes no mesmo palanque montado em frente ao Congresso Nacional. “Esse ato é apenas o começo de uma grande jornada que só vai parar no dia em que tivermos um governo em que o povo brasileiro confie”, afirmou Brizola.

O cumprimento das metas impostas pelo FMI corroía o governo. FHC, já abalado por altos índices de impopularidade, isolava-se cada vez mais. Uma nota assinada pelo Fórum nacional de lutas refletiu bem essa constatação. O documento defendeu emprego para todos, aumento geral de salários, redução da jornada de trabalho, fim das privatizações e auditoria nas empresas privatizadas, suspensão do pagamento da dívida externa e ampla reforma agrária. O texto também mencionou o pedido de impeachment de FHC e pediu a instalação da CPI das privatizações das empresas de telecomunicações.

FHC reagiu com mais ameaças. Questionado sobre a possível volta de uma lei para corrigir os salários automaticamente, disparou: “No limite, eu veto. Eu não vou deixar.” Para os neoliberais, cada empresa deveria definir sua política salarial. É o que chamavam de “livre negociação”. Em 2001, o país viveu o auge dos ataques à legislação trabalhista. FHC encaminhou ao Congresso um projeto de lei alterando o artigo 618 da CLT. “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de segurança e saúde do trabalho”, dizia a nova redação de FHC.

Hitler e o pastor Jim Jones

Era só o começo. O governo pretendia desregulamentar os 34 incisos do artigo 7° da Constituição – espécie de mini código do trabalho –, que tratam de direitos como jornada de 44 horas semanais, salário-mínimo, seguro-desemprego, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), aviso prévio, limites para a despedida arbitrária, piso salarial, irredutibilidade de salário e sua garantia, décimo-terceiro e remuneração do trabalho noturno. “Em que pese a pouca abrangência da reforma, o seu aspecto gratificante é saber que o governo atual está inspirado por uma nova mentalidade e uma nova determinação, tornando possível a reforma trabalhista em curso, que, até pouco tempo atrás, parecia impossível, empalidecendo as minorias vociferantes e conservadoras e as viúvas ideológicas”, disse o então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles.

A “reforma” da legislação e das práticas trabalhistas era uma das peças centrais do projeto neoliberal, um dos pilares do Plano Real. O projeto de lei de FHC, alterando o artigo 618 da CLT, fazia parte – em conjunto com a privatização da Previdência, da Saúde, da educação e do saneamento básico – das “reformas” de segunda geração previstas no pacote de exigências contidas no acordo com o FMI. FHC já havia conseguido a lei n. 9.601/1998, sobre o contrato por prazo determinado; editado a medida provisória n. 1.709, que instituiu o trabalho de tempo parcial; e o decreto n. 2.100, autorizando a demissão sem motivo.

A revista Época havia noticiado que ACM foi escalado por FHC para convencer os juízes trabalhistas a segurar os reajustes salariais. Em São Paulo, circulavam rumores de que FHC estaria articulando, por meio do secretário-geral da Presidência da República, Eduardo Jorge, e o juiz Nicolau dos Santos Neto – que mais tarde seria um foragido da Justiça –, a indicação de juízes pró-Plano Real em troca de dinheiro para a construção superfaturada do novo prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). ACM disse que estava recebendo apoios à ideia de acabar com a Justiça do Trabalho e provocou a seguinte resposta do então presidente do TST, Wagner Pimenta: “E daí? Hitler e o pastor Jim Jones também tiveram apoio às suas ideias.”

– O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Em 28 de junho de 1989, o candidato a presidente da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Mário Covas, marcou o início de sua campanha com o discurso que ficou famoso pelo título Choque de capitalismo. Era uma expressão da revoada – o partido assumiu o tucano como símbolo – de economistas para o ninho que estava nascendo, a chamada turma dourada do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) do final da década de 1970 e início dos anos 1980.

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Covas disse: “Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas. Basta de empreguismo. Basta de cartórios. Basta de tanta proteção a atividades econômicas já amadurecidas. Mas o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.”

O mesmo discurso ficaria famoso na boca de Fernando Collor de Mello, o ungido pelo projeto neoliberal para ser o candidato oficial da direita. Era uma repetição da ladainha de Margaret Tatcher, primeira-ministra da Inglaterra, e Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, precursores do projeto neoliberal, propagada como versão revisitada do liberalismo de Adam Smith. Seu livro Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, bíblia do liberalismo, suplantado pelo imperialismo como fase superior do capitalismo – na definição de Vladimir Lênin, líder da Revolução Russa de 1917 –, passou a circular amplamente, inclusive em exibições públicas de Collor.

Símbolo do udenismo

O PSBD foi concebido no influxo da propaganda do neoliberalismo de Tatcher e Reagan como ala do PMDB que se organizou no processo das eleições estaduais de 1982. Orestes Quércia era o principal líder do PMDB no estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Franco Montoro, eleito governador. Ficou decidido que ele seria o candidato do partido na sucessão estadual de 1986.

Um dos fundadores do MDB – transformado em PMDB com a Lei de Reforma Partidária, aprovada em 21 de novembro de 1979 –, Quércia despertou a ira dos poderosos quando foi eleito senador em 1974, vencendo de maneira acachapante Carvalho Pinto, candidato da ditadura militar e símbolo do udenismo – a organização de conservadores e golpistas chamada União Democrática Nacional (UDN) que precedeu o golpe de 1964 –, um barão da aristocracia paulista, secretário da Fazenda do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo e no estado, governador e ministro da Fazenda no final do governo João Goulart.

Na composição de 1982, Fernando Henrique Cardoso (FHC) elegeu-se senador pela sublegenda. Com a vitória de Montoro, Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta – que seria ministro das Comunicações no governo FHC – assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, em 1986, o grupo se aproximou do empresário Antônio Ermírio de Moraes, que se candidatou pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e não lançou candidatos ao Senado, um dos concorrentes de Quércia. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo estado. Foi a senha para a fundação do PSDB, em 25 de junho de 1988, uma articulação iniciada com o anúncio da vitória de Quércia em 1986.

Corrupção em São Paulo

Na campanha presidencial de Covas em 1989, os tucanos já estavam majoritariamente absortos pelo ideal do neoliberalismo. Em 1991, quando o presidente Collor emitia sinais óbvios de que o país caminhava para a ingovernabilidade, um setor tucano capitaneado por FHC defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra não surtiu efeito, mas o PSDB, impulsionado pela mídia, já articulava um projeto de poder para substituir o governo do presidente Itamar Franco, o vice-presidente eleito em 1989 que assumiu após o impeachment de Collor.

Em São Paulo, o ninho dos caciques tucanos, eles haviam arquitetado o afastamento definitivo de Quércia do posto de principal liderança política do campo que fez oposição à ditadura militar. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno das eleições para o governo do estado, disputado entre Luiz Antônio Fleury – o candidato do PMDB – e Paulo Maluf – candidato do Partido Democrático Social (PDS), o sucessor da Arena, o partido da ditadura militar – houve uma revoada de tucanos para a candidatura peemedebista.

José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury, o vencedor das eleições. Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do Banco Central para assumir a presidência do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Vladimir Rioli, obscuro personagem ligado ao tucanato, um dos caixas da campanha do PSDB, assumiu a vice-presidência de finanças do banco, do qual fora diretor na gestão Montoro, de onde saiu, misteriosamente, em 1993.

Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar US$ 14,1 milhões. Em 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no Banespa e mais tarde privatizá-lo, no processo de consolidação do Plano Real.

Liberalismo e imperialismo

A nomeação de FHC para o Ministério da Fazenda, em 1993, foi a concretização da plataforma política tucana, o molde do Consenso de Washington, receita do projeto neoliberal formulada em 1989 pelo economista norte-americano John Williamson, que seria adotada pelo governo dos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como condição para negociações das dívidas externas dos países dependentes, entre eles o Brasil, assolado por uma crise inflacionária gerada quando a conta do “milagre econômico” da ditadura militar começou a ser paga.

A receita consistia, basicamente, em arrocho fiscal – redução orçamentária de itens como Previdência Social, seguridade e investimentos públicos –, abertura comercial e financeira, privatizações selvagens e superávit primário, a garantia de pagamento dos títulos do Estado no mercado financeiro.

Quando FHC anunciou seu projeto, saudado pela mídia como a volta ao liberalismo, Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que era uma utopia. “A volta à época descrita por Adam Smith é uma quimera. Está longe da realidade. Seria a volta do capitalismo mais de um século atrás. O objetivo é confundir, para justificar o ‘modernismo’”, afirmou. Implicava a revogação de todas as teorias e práticas que contestaram o imperialismo – o sucessor do liberalismo –, como o keynesianismo (a teoria de John Maynard Keynes, economista britânico que na década de 1930 formulou a teoria do papel regulatório do Estado para minimizar as instabilidades da economia), a social-democracia e o projeto socialista.

A posse estridente de FHC se deu em meio a atropelos ao presidente Itamar, tratado pela mídia de forma desrespeitosa por sua discordância com os cânones do projeto neoliberal, como se houvesse uma espécie de carta branca para afrontas à Constituição, conforme confessou Edmar Bacha – um dos principais responsáveis pela coordenação do departamento de economia da PUC-RJ, integrante da turma que aportou no PSDB na sua fundação –,em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 30 de junho de 2024 sobre os trinta anos do Plano Real.

Ele relata que numa reunião com a equipe econômica e advogados, FHC ficou irritado e saiu dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Era a ignição do Plano Real, que já na largada afrontou o artigo da Constituição de 1988 que limitava os juros em 12% ao ano, proposta do constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP) sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, consultor-geral da República no governo do presidente José Sarney, ao propor a sua regulamentação por uma lei complementar que nunca veio.

Barões capitalistas

Assim surgiu o Plano Real, numa operação que levaria a sucessivas mutilações da Constituição, um festival de arbitrariedades. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia, basicamente, em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização monetária”, embrião do superávit primário), reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda.

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. O projeto neoliberal agora tinha sujeito, predicado e objeto direto. Renato Rabelo definiu a manobra como “unidade programática” da candidatura dos barões capitalistas e trazia o embate ideológico sobre a questão do Estado no processo de desenvolvimento. No capitalismo, disse, o Estado assumiu diferentes funções no desenvolvimento econômico, tendo em vista os interesses da burguesia e, logicamente, fazendo prevalecer a vontade dos seus setores mais fortes. “As empresas estatais a serviço do sistema capitalista, desde as ‘descobertas’ de Keynes, e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, adquiriram variadas funções. Transformaram-se, em países como o Brasil, em fator dinâmico no processo de industrialização, em instrumento de soberania econômica.”

Esse papel empresarial do Estado, prosseguiu Renato, já não servia aos capitalistas como antes, embora eles não prescindissem do concurso da ação estatal para empreendimentos que exigiam grandes investimentos, com retorno demorado. “As empresas estatais rentáveis, produtos da construção de décadas realizada pelo patrimônio público, são cobiçadas. No estágio atual, passam às mãos de grandes grupos privados, entrando no jogo das disputas intermonopolistas. Na concorrência entre eles conta, e muito, o controle de uma grande empresa estatal.”

Operação Lava Jato

A fusão monopolística abarcava setores privado e estatal, explicou Renato. “No caso dos países dependentes, como o Brasil, as empresas estatais, sobretudo as rentáveis e estratégicas, são presas de negócios vantajosos. Daí porque a propaganda neoliberal diversionista considera-as ‘ineficientes’ e ‘superadas’. Nos planos do grande capital, as estatais podem amortizar as dívidas externas dos países do Terceiro Mundo e são assumidas por grandes monopólios. Sem as estatais, esses países deixam de contar com importantes meios econômicos na sua luta pela independência”, denunciou.

O golpe, segundo Renato, era maquiado com o conceito de “Estado mínimo” e “modesto”, ou “pequeno, mas forte”, para justificar o objetivo do capitalismo de derrubar as fronteiras nacionais, transformando todas as nações em livre mercado para facilitar o acesso dos grandes conglomerados. “Além disso, o programa das tendências dominantes defende a liquidação dos monopólios estatais, mas preserva e fortalece os monopólios privados.”

Para levar adiante seu projeto, nas eleições presidenciais de 1994, o PSDB foi buscar o Partido da Frente Liberal (PFL), dissidência do PDS. Era o par perfeito, uma união em regime de comunhão de bens. FHC virou candidato único da mídia e venceu Lula – até o Plano Real, o favorito disparado nas pesquisas – no primeiro turno. Denúncias de “caixa dois” circularam amplamente, recurso repetido às claras na reeleição de FHC, em 1998. Tempos depois, a fraudulenta e corrupta Operação Lava Jato publicizou a prática dos neoliberais como “descoberta” de um grande esquema de corrupção, manobra que levaria ao golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, para a restauração da ordem neoliberal.

– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.

 

 

 

 

– O dilema juro-inflação-desenvolvimento

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 12/04/2008

O Brasil passa por mais uma discussão sobre as causas que levam o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) a cogitar mais uma alta da taxa de juros básica, a Selic. E reaviva a velha polêmica sobre o dilema inflação-desenvolvimento.

Mas data houve em que se acabaram
Os tempos duros e sofridos
Pois um dia aqui chegaram
Os capitais dos países amigos
País amigo, desenvolvido
País amigo, país amigo
Amigo do subdesenvolvido
País amigo, país amigo
E os nossos amigos americanos
Com muita fé, com muita fé
Nos deram dinheiro e nós plantamos
Só café, só café
É muita terra em que se plantando tudo dá
Mas eles resolveram que nós deveríamos plantar
Só café, só café.

Trecho da música “Canção do Subdesenvolvido”, de 1962, composta por Carlos Lyra e Francisco de Assis.

___________

À sua maneira, o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, tocou num velho dilema da economia brasileira — a possível contradição entre inflação e desenvolvimento. O assunto foi a atual elevação mundial do preço dos alimentos, segundo ele uma ”inflação boa” porque ”convoca” os países a produzir mais e atender à demanda por alimentos no mundo. Lula disse também que a alta dos alimentos não precisa ser necessariamente combatida com a alta dos juros.

A fala do presidente foi oportuna. Muita gente no Brasil ainda vê o consumo como um gesto pouco nobre. Um marciano de boa índole, que tivesse chegado à Terra pelo Brasil e estivesse estudando a humanidade munido da língua portuguesa, certamente anotaria na agenda que ”consumir” é uma das coisas ruins que se fazem por aqui. O verbo ”consumir”, segundo o Aurélio, significa ”1. Gastar ou corroer até a destruição; devorar, destruir, extinguir (…) 2. Gastar, aniquilar, anular (…) 3. Enfraquecer, abater (…) 4. Desgostar, afligir, mortificar (…) 5. Fazer esquecer; apagar (…) 6. Gastar; esgotar (…)”.

Políticas sociais tímidas e insuficientes

Os sentidos são negativos; as conotações, pejorativas. Não há uma única referência à idéia de comprar ou adquirir, de consumir mais e melhor. Muito menos uma associação com o ato de satisfazer uma necessidade ou saciar um desejo. Claro que para um país como o Brasil o ganho mais visível e imediato que a égide do consumo tem a oferecer é mesmo a elevação do nível de conforto material. Consumir mais e melhor significa também fruir arte, absorver informação, ter acesso ao patrimônio cultural da humanidade. Ou seja: obter satisfações que transcendem à mera necessidade imedita.

Por que há tantas reservas em relação ao consumo de massas no Brasil? É que o consumo popular funciona como o estopim econômico de transformações sociais. Para o povo, ele é bem-vindo também por isso. As travas brasileiras em relação ao consumo estão no fato de que ele sempre foi privilégio de poucos. Outra vez a estrutura social fendida em dois extremos, arquitetada no passado, azucrina nosso presente e atravanca nosso futuro.

A arquitetura social brasileira é caracterizada por políticas públicas tímidas e insuficientes. A força da ideologia liberal à brasileira, com traços feudais e escravocratas, é a causa dessa timidez — ou insensibilidade social. Uma das alegações dos liberais era a de que a inflação em alta impedia uma ação social mais vigorosa. Como distribuir os frutos de um desenvolvimento não realizado? Primeiro era preciso fazer o bolo crescer para só depois distribuí-lo.

Guinada ”ortodoxa” na condução da economia

No início dos anos 60, essa fantasia ganhou conotação ainda mais autoritária. Os economistas que assumiram o controle depois do golpe militar de 1964 chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio” — ou produto de fantasia; devaneio, utopia.

A política econômica da ”era militar” chegou à crise dos anos 80, que levou à guinada ”ortodoxa” da linha de condução da economia quando o país ingressou na “era neoliberal”. Foi pelo caminho da prioridade à política de “estabilização monetária” em detrimento da postura desenvolvimentista, iniciado no governo do presidente Fernando Collor de Mello, que o Brasil chegou ao Plano Real e ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Naquela campanha, FHC brandiu a ”estabilidade” como se fosse a sua grande contribuição à humanidade.

Uma inflação de 1,75% em setembro de 1994 e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante.

Divisa da campanha do projeto neoliberal

Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC. Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma ”reforma” de cunho liberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas.

Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo. Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos — como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as ”conquistas” da ”estabilidade” para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego.

Era conversa sobre corda em casa de enforcado, como no provérbio. Mas a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as ”conquistas” da ”estabilidade” e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.

Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.

Críticas a regulamentações aprovados pelo Senado

O projeto neoliberal reavaliou o rumo da campanha, enfatizou os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC — as questões sociais — e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC. Quando ele se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de mudança de rumo tacitamente prometida.

Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu em 2002 e se reelegeu em 2006 — empunhando as bandeiras das questões sociais. O país, no entanto, continuou praticando a mesma política monetária — basicamente centrada na autonomia do Banco Central (BC) para domar o comportamento da inflação pela taxa de juros, segundo metas definidas arbitrariamente. Apesar de poucas alterações, esta política persiste e tem reanimado o debate sobre os rumos da economia brasileira.

No dia 9 de abril, o Senado aprovou a regulamentação da emenda 29, que adiciona R$ 5,5 bilhões em gastos no setor de saúde já em 2008 e mais R$ 17,5 bilhões até 2011; a extensão a todos os aposentados e pensionistas do INSS dos benefícios da política de valorização do salário mínimo (reajustado pela variação do INPC mais o crescimento do PIB de dois anos antes); e a extinção do fator previdenciário — um dos feitos mais nefastos da “reforma” previdenciária realizada na gestão FHC. E por isso vem sofrendo mais uma saraivada de pontapés.

A sentença de um tucano: produzir um esfriamento na economia

Para os liberais, essas medidas representam um desvio do rumo traçado pela política de “estabilização”. E uma ameaça à “responsabilidade fiscal”. O fundo desta grita interesseira é o velho dilema inflação-desenvolvimento. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 11 de abril, o economista tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros, que foi um dos esteios da “era FHC”, disse que “pela primeira vez, em muitos meses, as expectativas de inflação superaram o centro da meta que orienta os passos do Banco Central”. E culpa o “superaquecimento da economia”.

Segundo ele, é consenso que um aumento dos juros nas próximas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC deve levar a taxa Selic para perto de 13% ao ano. Mendonça de Barros diz que “o consumo das famílias e os gastos do governo Lula estão se expandindo a taxas de mais de dois dígitos — em termos reais — e, com os gastos relativos aos investimentos privados, criam uma pressão muito grande sobre alguns mercados importantes”.

O economista tucano escreveu também que já havia alertado sobre o “nível de absorção interna de bens e serviços”, pelo qual as tensões chegariam a setores não defendidos pelas importações. Resultado, segundo ele: a inflação média começaria a se elevar. “Ao longo dos últimos meses, essa dinâmica aprofundou-se, também no mercado de trabalho e pelo crescimento do crédito ao consumo”, afirmou. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

A alternativa é plantar ”só café, só café”, como na música?

Seguir à risca a receita liberal seria repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, que partiu o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor para ilustrar a convicção e o sectarismo monetarista do que a teoria do bolo — seus defensores têm o ar de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era FHC” vimos isso com nitidez.

Dizia-se, com a habitual obviedade para encaixar um sofisma, que o bolo (a economia nacional) era um só e tinha de ser dividido em partes iguais. Não adiantava querer aumentar as partes enquanto o bolo fosse o mesmo. A análise monetária-culinária que faziam tinha como mandamento principal a contenção da inflação, sacrificando o desenvolvimento. E era ilustrada com um exemplo matemático — diziam que o bolo tem 100 unidades, logo deve ser dividido em partes que somam 100 ao final. Esta foi, por exemplo, a propaganda da “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que blindou o superávit primário. Um engodo, está claro.

A teoria era a de que quando são destinadas 80 unidades para consumo e 40 para investimentos, o resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na “era FHC” — o então presidente da República chegou a dizer que a “Marcha dos 100 mil”, que inundou Brasília com um mar de gente para protestar contra a sua política econômica, era “ a marcha dos sem rumo”. Qual seria a alternativa? Segundo eles não havia, a não ser plantar “só café, só café” — como na letra da música que citei acima. Ou seja: produzir superávit primário.

Uma ou duas causas da inflação e do desenvolvimento

Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento de um povo que habita uma região cheia de riquezas naturais. A política econômica de um país não pode ser determinada por simples conceitos monetários. Esta auto-suficiência dos neoliberais esclarece muitas coisas dos problemas sociais e econômicos do Brasil. E sucita novas indagações sobre a atualidade do dilema infação e desenvolvimento — as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda não lhe trouxe solução.

Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição da existência deste diagnóstico é o erro fundamental dos neoliberais — que tratam política econômica e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente do BC na ”era FHC”, Gustavo Franco, certa vez afirmou que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico mas emocional e religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nestes últimos anos do governo Lula.

Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira sob a orientação desta teoria monetária. Já é alguma coisa saber disso. E já se sabe não apenas que esta é a grande questão como também que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência dos neoliberais na ”era FHC”, quando todo o tempo foram afirmadas teses ditas únicas para a economia brasileira que chegaram a resultados melancólicos.

Soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta

Com o desmentido de promessas feitas em tom de profecias, cresceram as evidências de que o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores dessa política na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente, que empolgaram-se e sectarizaram-se na defesa de teses ”ortodoxas” — talvez por supor que estavam no exercício de um poder absoluto —, foram repudiados por todos os que não rezavam pela cartilha neoliberal. Eles incorreram na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e por isso cantavam para que o sol nascesse.

Desse modo, incorreram em um erro de análise econômica, decorrente de um erro muito maior de análise política — passaram a ser elogiados por todos que apoiaram a ”era FHC” e criticados pelos apoiadores do governo Lula. A saída de Palocci do governo arejou o ambiente na equipe econômica, mas a economia do país ainda é dependente do conservadorismo do Copom. Isso ocorre porque o projeto democrático e popular de sociedade ainda é algo que está para florescer no Brasil. E, na mesma medida, a construção de uma sociedade fundada na defesa dos interesses nacionais, disposta a erigir sistemas que sustentem a longo prazo o desenvolvimento econômico e a distribuição da riqueza produzida. Ou seja: desenvolvimento com valorização do trabalho.

PIB cresce 5,4%: isso é muito ou pouco?
Osvaldo Bertolino *

A economia brasileira passa por uma fase importante. O crescimento do PIB, no entanto, precisa traduzir-se em desenvolvimento — um conceito que obrigatoriamente deve abranger a valorização do trabalho. Uma melhor distribuição da renda nac

O crescimento de 5,4% da economia brasileira no ano passado, divulgado nesta quarta-feira (12) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fez o Produto Interno Brasileiro (PIB) — a soma de todos os bens e serviços produzidos pelo país — atingir R$ 2,6 trilhões. O resultado ficou acima do que havia previsto o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Na semana passada, durante evento no Rio de Janeiro, ele disse que número ficaria entre 5,2% e 5,3%.

Mais importante do que os números é a consequência desta arrancada. Mantega afirmou que a resistência da economia brasileira à crise internacional depende do comportamento dos países “emergentes”. ”Porque nós já sabemos que a economia americana está em desaceleração e poderá entrar em recessão. Até agora, nós não fomos atingidos por isso. E nós fazemos parte de um bloco de países emergentes que está indo muito bem”, disse ele.

O ministro também afirmou que enquanto a China for bem, a Índia for bem, a Rússia for bem e o Brasil for bem, os “emergentes” podem sustentar o crescimento da economia internacional. “E até substituir o papel dos países avançados. E é isso o que tem sido feito até agora”, enfatizou.

Histeria inaugurada nos anos 80

A rigor, Mantega repetiu um diagnóstico feito na terça-feira (11) pelo presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, em reunião realizada na Basiléia, na sede do Banco de Compensações Internacionais (BIS). Trichet disse que os países “emergentes” se transformaram na aposta dos xerifes da economia mundial para evitar que uma desaceleração do PIB dos Estados Unidos afete a economia global.

O presidente do Banco Central brasileiro, Henrique Meirelles, também comentou o assunto. Segundo ele, a China terá um ”papel-chave” para determinar até que ponto os demais “emergentes” serão ou não impactados pelas turbulências no mercado financeiro. Meirelles disse ainda que o Brasil ”está mostrando grande resistência e é um exemplo particularmente brilhante”. Mas ressalvou: se a China não resistir, não há dúvida de que o cenário será outro para o Brasil. ”Se o mundo todo desacelerar ao mesmo tempo, isso terá um certo efeito no Brasil”, afirmou.

Uma das características mais marcantes deste cenário é a passagem para uma nova fase da economia, distinta daquela histeria inaugurada nos anos 80 pelos governos neoliberais de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos). Ali começou a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. A justificativa para isso era a suposição arbitrária de que os defeitos dos governos seriam mais perversos à sociedade do que as falhas do mercado.

O bem-estar da população

A essa idéia somou-se uma outra: a de que os países menos desenvolvidos deveriam afrouxar os controles para a circulação de capitais em suas fronteiras. Essa tese, um tanto paranóica, serviu a ideologias que vêem o mundo numa fase final da história, na qual só resta o caminho da conformação do eterno conflito entre ricos e pobres, entre centro e periferia. De acordo com esse raciocínio, a causa da pobreza de muitos não seria mais os instrumentos que garantem a riqueza de poucos.

O prêmio Nobel de economia de 1995, Robert Lucas, chegou a proclamar: “Quando se começa a pensar em crescimento, é difícil pensar em qualquer outra coisa.” Ou seja: para ele, diante da importância do crescimento seria difícil dar ênfase a outras políticas econômicas. O efeito extraordinário do crescimento econômico, no entanto, não pode obscurecer questões importantes para medir o seu efetivo benefício para o conjunto da sociedade.

A constatação de que o impacto do crescimento econômico sobre o bem-estar da população é decisivo leva imediatamente à pergunta (particularmente importante para os países com muitas pessoas pobres, como é o caso do Brasil): como distribuir esta riqueza de forma eficiente? Entre os fatores determinantes para a melhor utilização dos recursos disponíveis estão o papel do Estado como um ente preparado para a prestação de serviços sociais, os investimentos em infra-estrutura e a elevação dos salários.

Conceito de valorização do trabalho

No fundo, esse é o debate que realmente interessa. Economias do tamanho da brasileira não costumam crescer a taxas acima de 5% ao ano. Mas o Brasil não só precisa dessa taxa como precisa que ela seja contínua — conceito que alguns chamam de “crescimento sustentável”. Para reduzir a pobreza, elevando a renda per capita, estudos mostram que o PIB precisa crescer entre 5% e 6% ao ano apenas para incorporar a mão-de-obra que está entrando anualmente no mercado de trabalho — além de absorver parte dos desempregados.

É aí que entra a importância do conceito de valorização do trabalho para o desenvolvimento nacional. Crescimento não é igual a desenvolvimento. Entre o final dos anos 60 e o início da década de 80, o Brasil cresceu a taxas anuais superiores a 8%. Nem por isso as desigualdades de renda diminuíram na mesma proporção. A Finlândia não cresceu tanto, mas sua população de 5 milhões de habitantes tem uma renda per capita em torno de 20 mil dólares, segundo o Banco Mundial. Sob diversos parâmetros — expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, índices de escolaridade —, os finlandeses têm características de país muito mais desenvolvido que o Brasil.

Para crescer e desenvolver-se, um país precisa, antes de tudo, aumentar a sua produtividade. Isso é feito, basicamente, pela incorporação de máquinas mais modernas, pela qualificação da mão-de-obra e pela adoção de formas mais eficientes de produzir. E a riqueza produzida precisa ser melhor distribuída por meio de investimentos sociais e infra-estruturais, e da elevação da renda para quem vive de salários.

Exportações de produtos básicos

Recentemente, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulgou um cálculo ilustrativo. Se o crescimento da produtividade fosse igual a zero, as economias da região precisariam crescer a uma taxa anual de 2,1% até o ano 2015, apenas para evitar um aumento do desemprego. Se a produtividade crescesse no ritmo de 3,7% ao ano (média do período 1950/1973), então o PIB precisaria variar 5,8% ao ano. Como a produtividade brasileira vem crescendo em média 7% anuais, é claro que o crescimento do PIB precisa ser ainda maior, apenas para não criar mais desempregados.

E será que uma economia de R$ 2,6 trilhões pode se dar a esse luxo? É claro que tamanho faz diferença, mas é preciso aqui fazer uma outra constatação. Países desenvolvidos já possuem usinas de energia, estradas e outras infra-estruturas para atender a suas necessidades. Nesses casos, o crescimento tende a ser naturalmente mais lento. Mas no Brasil ainda há muito o que fazer. O país precisa, desesperadamente, de melhorias infra-estruturais. Ou seja: o Brasil não só pode como deve crescer acima de 5%.

A Cepal identificou que, ao menos no médio prazo, o crescimento da América Latina pode ser assegurado pelas altas dos preços internacionais das commodities. A região é dona de grandes reservas minerais. Na avaliação da Cepal, os países latino-americanos deveriam aproveitar o momento mais favorável para reforçar sua presença internacional e rever alguns modelos mais frágeis que ainda servem de sustentação econômica. Entre as prioridades estariam reduzir a dependência das exportações de produtos básicos.

Assédio institucionalizado

O pensamento progressista latino-americano há tempos discute os obstáculos impostos à industrialização do sub-continente. A Cepal foi a referência maior nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos.

Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu parque industrial, mas manteve largos segmentos inteiramente à margem do processo produtivo, sem acesso às benesses do crescimento. Com poucos governos de visão social, o Estado esteve por muito tempo ausente não apenas da tarefa de distribuir renda mas também da de habilitar toda a sociedade a participar da dinâmica produtiva.

A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”, o assédio institucionalizado de setores privilegiados aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê refém do privado.

Essa situação começou a mudar com o governo Lula. Com o avanço da cidadania, a sociedade também avançou. Multiplicaram-se as instâncias de representação. Os movimentos populares abriram espaços cada vez mais amplos para o debate público, atuando como uma verdadeira ágora desses novos tempos.

Estado do mal-estar social

Mas o Estado ainda precisa ser mais bem cobrado no desempenho de suas tarefas. Os nichos historicamente privilegiados devem estar sob o crivo de segmentos sociais mais vigilantes para impor limites à privatização do Erário. O governo federal tem feito esforços para democratizar o Estado, para que ele se torne mais transparente e responsável.

Iniciou a concertação do poder público com os movimentos sociais. A descentralização administrativa e orçamentária também concorreu para aproximar a população do gestor público. No entanto, o governo precisa acelerar a recuperação da capacidade do Estado cumprir seu papel. Ou melhor: o Estado precisa se credenciar para cumprir finalmente a meta de universalização dos serviços públicos.

Pode-se dizer que estamos passando de um Estado do mal-estar social para a possibilidade de se ter um Estado virtuoso, que assegure a todos os brasileiros condições satisfatórias de vida. Mas o ritmo ainda é lento. Ainda temos uma política monetária indomada e uma condução tímida das diversas políticas públicas — condições que implicam em temor sobre a longevidade e eficiência do crescimento do PIB.