O marxismo e a emancipação da mulher

Por Osvaldo Bertolino

Feminismo e emancipação feminina. Eis uma questão que atravessa os tempos e desafia as formulações políticas que enfrentam a histórica ordem econômica e social regida pela opressão. Compreender o conceito de emancipação é o primeiro passo. Ele tem no entendimento de que a dicotomia opressores e oprimidos não é natural, uma condição que pode ser superada pelo domínio da ciência sobre as leis que determinam os fenômenos sociais, conhecido na história como socialismo científico, a grande síntese do pensamento sobre a igualdade social, desde a Antiguidade Clássica.

O tema está no livro Trajetória teórica e política do feminismo emancipacionista, publicação da Secretaria Nacional da Mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), uma coletânea de textos do período entre 1954 e 2012, infelizmente pouco conhecido. É uma espécie de síntese daquilo que Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, definiu como “base teórica clara e precisa” do movimento feminino. A secretária da Mulher, Liège Rocha, explica na apresentação que os textos foram publicados em revistas, jornais, boletins e outros veículos, além de informes de congressos do Partido.

O marxismo como síntese

São 403 páginas de textos de especialistas no tema: Ana Rocha, Clara Araújo, Iracema Ribeiro, Jô Moraes, Liège Rocha, Lilian Martins, Loreta Valadares, Lúcia Rincón, Mary Garcia Castro, Milton Barbosa, Olga Maranhão e Sara Romero da Silva. O texto que abre o livro, de Jô Moares, intitulado A origem da opressão da mulher, é uma espécie de apresentação da ideia emancipacionista. À indagação sobre se o homem é por natureza opressor, ela responde: “Nos movimentos de mulheres sempre surge a ideia de que a nossa luta é contra os homens. O preconceito com que a maioria da população vê o termo ‘feminismo’ vem daí.”

Loreta Valadares, no texto A ‘controvérsia’ feminismo-marxismo, é enfática. “As críticas à pretensa ‘insuficiência’ do marxismo sobre a questão da mulher se fazem presente em quase todas as análises sobre a situação de dependência e inferioridade na sociedade, bem como sobre as origens de sua opressão. Evidentemente, as diversas teorias feministas não param somente na crítica à interpretação do marxismo sobre o processo de transformação da sociedade, mas, sobretudo, investem contra o caminho apontado pelo marxismo para a luta de emancipação da mulher”, escreve.

Sara Romero da Silva, no artigo A classe operária e a questão de gênero, ressalva que no campo da teoria marxista vai sendo evidenciado o esgotamento de uma série de modelos teóricos e práticos, “sem o suficiente desenvolvimento científico do próprio marxismo por parte de seus seguidores”. “O marxismo-leninismo afirma, e a vida, tanto no mundo capitalista como das experiências socialistas, tem confirmado que a exploração de classe é decisiva em relação à opressão de gênero e que esta última não se resolverá sem que se resolva a exploração de classe.”

A questão é compreender o marxismo como síntese do pensamento social na história. “O marxismo apresentou a primeira formulação sistematizada acerca da opressão da mulher”, escreve Liliam Martins no artigo As mulheres e o socialismo. “Incorporando ideias formuladas pelas primeiras feministas, pelos socialistas utópicos, como Fourier, desvendou a origem dessa opressão como intrinsecamente ligada ao surgimento da propriedade privada, à formulação das classes sociais.”

O poder da reprodução humana

No artigo Gênero, trabalho e pobreza: para além dos direitos iguais, Clara Araújo constata que “as crises do capitalismo agravam sobremaneira as adversas condições de vida da maioria das mulheres”. “A chamada globalização tem como um dos pontos constantemente abordados o argumento de que, em uma economia internacionalizada, de mercados transnacionais, o Estado vai perdendo sua razão de ser, assim como o próprio conceito de soberania”, diz. “A ideologia neoliberal é, portanto, contrária à própria essência das reivindicações materiais das mulheres, que dependem de iniciativas de cunho social.”

Pelo mesmo viés, Lúcia Rincon comenta, no artigo O papel da maternidade, que “o poder da reprodução humana sempre foi alvo privilegiado de preocupações daqueles que detêm o poder econômico e político e que procuram dominá-lo e controlá-lo”. “Na sociedade patriarcal e, depois, na sociedade capitalista, muitos foram os cientistas e ideólogos que se dedicaram a compreender e a explicar a reprodução humana”, escreve.

Nos textos, o ponto de vista marxista é o norte das argumentações, mas não são poucas as observações críticas sobre leituras artificias do conceito emancipacionista. Mary Garcia Castro destaca, no artigo Feminismo marxista – mais que um gênero em tempos neoliberais, que o marxismo é uma teoria científica e um movimento social crítico das sociedades de classe, em particular contra o capitalismo. “A referência no feminismo de corte liberal e social-democrata e mesmo dito ‘radical’, porque destacaria sexualidade e diferenças, é uma mulher genérica, desterrada da classe e raça. Mas em tendências no feminismo socialista, que se pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica. Sem circulação na raça ou em outras identidades marcadas por sistemas político-econômico-culturais de opressões.”

Sara Romero Silva, no artigo Origens da opressão de gênero, afirma que “houve um tempo em que militantes socialistas consideravam, em termos práticos (e até teóricos), que a luta de classes explicava tudo”. “No entanto, Marx e Engels trazem o ensinamento de que é preciso conhecer melhor a realidade, não fechar o ângulo de visão. O próprio surgimento das ideias marxistas sobre a questão da família e da mulher traz essa lição também.”

Milton Barbosa, no bem ilustrado artigo Pequena contribuição metodológica ao feminismo emancipacionista, escreve que “durante um tempo demasiadamente longo e enfadonho, a filosofia e a ciência, com seus mais ilustres e melhores representantes, desqualificaram a mulher, tornando-a uma obviedade desinteressante para a investigação racional”. “Mais do que isso, a apropriação privada pré-capitalista e capitalista, que inicialmente aprisionou-as à vida doméstica, impedindo-as de desenvolver uma visão ampla da sua existência e de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino um meio de acesso à vida pública para eternizá-la como objeto de desejo dos machos, velhos e novos.”

Uma vida livre e feliz

Ana Rocha encerra o livro com o texto Impactos da ideologia neoliberal na subjetividade feminina. “Vimos que a mulher avançou sua presença no espaço público, mas que a questão da dupla jornada permanece como um problema crônico, que tem afetado a vida da mulher, aumentando seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e traz uma ameaça de retrocesso na condição feminina é necessário abordarmos em que consiste a vitória ideológica-cultural do neoliberalismo no mundo.”

Antes, o livro tem dois textos do 4º Congresso do Partido, realizado em 1954. O primeiro é uma intervenção de Iracema Ribeiro. “O trabalho de ganhar milhões de mulheres para o Programa (do Partido) só poderá se desenvolver com pleno êxito quando deixar de ser apenas tarefas das seções do trabalho feminino e das organizações de base femininas e for incluído entre as tarefas permanentes e diárias de todos os organismos do Partido.”

Olga Maranhão, também em intervenção no 4º Congresso, disse que o Partido Comunista do Brasil é herdeiro das gloriosas tradições de luta do povo e dirige “as lutas das massas femininas pelos direitos e interesses da mulher, pela paz, pelas liberdades democráticas e pela independência nacional”. “O Partido nos ensina que a ação unida e organizada das grandes massas femininas é indispensável para assegurar às mulheres uma vida livre e feliz.”

Mulheres contra os homens

Um ponto abordado em algumas passagens do livro, referente à indagação de Jô Moares sobre a natureza opressora do homem, representa um dilema histórico. O que se convencionou chamar de “sexismo” é tratado por ela no artigo A nova etapa do feminismo como “ruptura”, que se dá, “fundamentalmente, com o chamado feminismo da igualdade na sua expressão liberal-reformista”. “A concepção da universalidade da condição feminina reforçou-se com a ideia da ‘irmandade de mulheres’, que constituía o modelo feminino de fazer política. Expressa com força no feminismo americano, a ideia da irmandade se desenvolveu amplamente pelo mundo”, relata.

Jô Moraes traz um conceito que, às vezes, tenta se impor pelas palavras, tirando do debate o arejamento das ideias e o exercício reflexivo. Essa discussão, na verdade, é antiga. No Partido Comunista do Brasil ela aparece, por exemplo, numa sabatina do então deputado constituinte comunista Carlos Marighella, em 1946, em Salvador. “Com a presença de grande número de mulheres, operárias, donas de casa, elementos femininos progressistas de várias classes sociais e representantes da Liga Femina Democrática, além de pessoas outras, teve lugar na sede da Associação dos Empregados do Comércio, a sabatina com o deputado Carlos Marighella com as mulheres baianas”, noticiou a agência de notícias do Partido, Iter Press.

Segundo Marighella, a mulher só poderia se libertar “procurando se organizar e conseguindo participar da produção, porque então obterá uma situação de independência econômica, de onde decorrerão todas as outras situações de liberdade e vida digna e moderna”. Citou como exemplo a União Soviética, onde, mesmo após a vitória do socialismo, persistiu a violência contra a mulher. Mas “as mulheres mais esclarecidas se organizaram e se uniram às companheiras e, após séria luta organizada, conseguiram a sua independência”. E falou do falso feminismo, que se dizia disposto a emancipar as mulheres, um movimento de mulheres contra os homens.

Marighella citou o exemplo de mulheres no parlamento na França e na União Soviética para dizer que, com o atraso político no Brasil, mulher alguma tomava assento no Legislativo, a exemplo da dirigente comunista Adalgisa Cavalcanti, de Pernambuco, cuja candidatura à Assembleia Constituinte não foi reconhecida. Era um momento em que o Partido promovia debates sobre a emancipação da mulher. O Barão de Itararé, nome mais conhecido de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, era um dos palestrantes.

Destruir Cartago

Em 1956, A Editoria Vitória, ligada ao Partido, publicou, em livreto, uma coletânea de textos de Lênin, sob o título O socialismo e a emancipação da mulher. Num dos textos ele diz que “a verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começa onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado) contra a pequena economia doméstica, ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista”.

Em outra passagem, ele relata que “em dois anos, em um dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, por sua igualdade com o sexo ‘forte’, mais do que haviam feito todas as repúblicas avançadas, cultas, ‘democráticas’, do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos”.

O livreto inclui um cativante artigo de Clara Zetkin (personagem histórica do feminismo marxista), intitulado Lênin e o movimento feminino, relatando uma longa conversação com ele em 1920. Vale reproduzir essa pérola: “Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas consequências e estigmatizar, além disso, a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a essa conclusão: ‘É preciso destruir Cartago.’ Lênin sorria e fazia com a cabeça sinais de aprovação.”

Livro de José Genoino distorce história do PCdoB e da Guerrilha do Araguaia

Por Osvaldo Bertolino

O ano era 2003. O então presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Genoino, disse, ao explicar o governo então recém-iniciado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às delegações internacionais numa conversa reservada durante o 8º Congresso nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que seu partido era “radicalmente reformista”. Referia-se às “reformas” privatistas do Estado que tramitavam em Brasília, uma agenda do governo anterior, herança do projeto neoliberal.

Segundo ele, o PT representava a “esquerda democrática”, social-democrata, e se diferenciava da esquerda “dogmática”, que defendia a “revolução armada”, de onde ele vinha “O PT me mudou”, disse. Genoíno falava do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ao qual pertenceu desde antes do seu ingresso nos preparativos da Guerrilha do Araguaia, no final dos anos 1960.

Genoino revelou desconhecimento das causas que levaram o PCdoB ao caminho da guerra popular, debate que percorreu suas fileiras desde o seu surgimento, em 1922, e ferveu quando o assunto compareceu nas Teses do seu 5º Congresso, em 1960. A linha que reorganizou o Partido, em 1962, reafirmou, em essência, que a passagem ao socialismo assumiria formas conforme os obstáculos no caminho do processo revolucionário, que poderiam ser pacíficas ou não.

As pessoas e o Partido

Ele volta ao assunto em seu livro de memórias, com duzentas e sete páginas, recém-publicado pelas editoras Kotter e Letra Selvagem, organizado por Salvio Kotter e Nicodemos Sena, intitulado José Genoino – uma vida entrevista, narrado na primeira pessoa. Cada passagem é descrita em detalhes, com ênfase em sua militância política desde o final da década de 1960.

O PCdoB ocupa grande parte da história, descrito com certo amargor, sobretudo quando o assunto é a Guerrilha do Araguaia, atribuindo ao Partido comportamentos pessoais. “A minha responsabilidade foi, ao ser preso e identificado como Genoino, ter falado que estava lá (no Araguaia) e reconhecer companheiros que estavam lá e os locais onde eu andava foram queimados. Nem que quisesse saberia dizer onde estava a Guerrilha. Nenhum dos depósitos que eu conhecia foi descoberto. Isso me dava certa tranquilidade, mas não o fato de ter admitido meu nome verdadeiro, o fato de ter admitido a minha militância, o fato de ter admitido a minha relação com os companheiros do Araguaia, aquilo me perturbava a cabeça, e essa perturbação era acrescida com as cobranças do PCdoB”, afirma, no capítulo 59, intitulado Zezinho do Araguaia, relatando sua convivência com o guerrilheiro sobrevivente Micheas Gomes de Almeida.

As “cobranças do PCdoB” aparecem em outras passagens, sempre de maneira enigmática. No capítulo 14, com o título A culpa do sobrevivente, Genoino descreve “dramas” acumulados “ao longo do tempo” e relata “a culpa de estar sobrevivendo aos companheiros que haviam tombado”. “Esse drama até o próprio PCdoB jogou na minha cara”, diz. Cita também o “drama de ficar sabendo, indiretamente, através das famílias ou dos advogados, que você está sendo acusado de estar entregando os companheiros nos depoimentos”. “As pessoas jogam isso, sem nenhuma base, mas o efeito que gera é muito cruel”, comenta.

O que “as pessoas jogam” de fato pode ser mais do que cruel. Pode ser inconsequente mesmo, perverso até. Mas esse juízo não pode se estender ao PCdoB. Não consta que o Partido tenha emitido alguma opinião ou tomado posição nesse sentido. Atribuir à organização o que, segundo ele, pessoas disseram não é correto, por mais que existam cicatrizes daqueles tempos. O PCdoB, como bem sabe Genoino, não toma posição ou emite opinião sem submetê-las aos seus coletivos de organização e direção.

Entrevero com Rogério Lustosa

No Capítulo 20, sob o título Dramático rompimento com o PCdoB, Genoino se estende sobre o assunto. Começa descrevendo de forma totalmente distorcida a “Chacina da Lapa”, o cerco da ditadura militar à reunião do Comitê Central nos dias 15 e 16 de dezembro de 1976 que resultou em mortes e prisões de dirigentes do Partido. “Por não admitir a derrota (no Araguaia), o PCdoB não queria prestar contas aos familiares dos mortos e desaparecidos e não concordava com o que eu comecei a fazer”, afirma, referindo-se às suas conversas com jornalistas.

Ele possivelmente sabe que esse assunto foi amplamente debatido no PCdoB e as conclusões estão relatadas nas biografias de Pedro Pomar e Maurício Grabois, e no livro Guerrilha do Araguaia – verdades, fatos e histórias, de minha autoria. Jamais houve alguma deliberação que omitisse os acontecimentos no Araguaia, obviamente resguardando as condições de segurança de dirigentes e militantes do Partido. Também omite as reuniões do Comitê Central que avaliaram a experiência da Guerrilha e distorce o conteúdo e a forma dos debates ao dizer que “a maioria da direção do Partido foi morta, ou no Araguaia ou na Chacina da Lapa, de modo que a minoria virou maioria”.

Genoino se apoia na recorrente invectiva de que havia no PCdoB uma divisão sobre a avaliação da Guerrilha, tomando divergências pontuais e naturais em qualquer debate – entre os comunistas, sempre intenso – como algo petrificado, fora das circunstâncias. Nas reuniões da direção do PCdoB que trataram do assunto – e de muitos outros, sem ligação com a Guerrilha –, as posições nunca se consolidaram como “maioria” e “minoria”. No máximo agrupavam-se conforme o tema, sem se constituírem em grupos ou frações. Nenhuma delas negou a Guerrilha. Tampouco defendeu omissão sobre os acontecimentos.

Mas, para Genoino, havia omissão. “Comecei a ser malvisto por defender que o PCdoB devia discutir publicamente a experiência da Guerrilha do Araguaia, bem como prestar contas às famílias e homenagear os guerrilheiros. Foi guerra, não teve jeito nem volta. Isso coincidiu com o surgimento do PT, em 1980. Fui direto para os movimentos que deram origem ao PT. A barra pesou. Fui tachado como traidor pelo pessoal do PCdoB”, relata. No Capítulo 24, intitulado Reaprendendo a voar, ele afirma que até sua esposa, Riocco Kayano, “foi retirada porque era minha companheira, e isso a machucou muito”.

Genoino não diz quem era o “pessoal do PCdoB”, mas lembra de “um companheiro do PCdoB, o Rogério Lustosa, que esteve preso comigo e era muito solidário e amigo”. “Ele dirigia o Tribuna Operária, jornal do PCdoB, e eu dava aulas na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, pertinho da sede do PCdoB. Fui lá cumprimentar o Lustosa e, quando botei a cara, ouvi: ‘Não aperto a mão de traidor.’ Fiquei tonto, dando voltas no quarteirão, sem saber o que fazer. Foi muito violento aquilo. Isso ficava martelando na minha cabeça. O PCdoB batia duro porque eu estava saindo do Partido para entrar no PT.”

Vias de fato com Rogério Lustosa

O relato deixa entrever que Rogério Lustosa se referia ao Araguaia, mas havia outro episódio, não mencionado por Genoino, que tem mais a ver com a cena descrita. Havia no PCdoB um grupo de dirigentes e militantes, do qual ele fazia parte, que na prática defendia a negação do Partido. João Amazonas, então o principal dirigente do PCdoB, disse que era “uma facção que mergulhou nas águas do eurocomunismo”, vertente liquidacionista de alguns partidos comunistas ocidentais. Um documento da reunião do Comitê Central de março de 1980 expôs críticas ao grupo, considerado capitulacionista e com concepções liberais. E fez um chamamento ao conjunto do Partido para que se unisse politicamente e ideologicamente.

Renato Rabelo, posteriormente o principal dirigente do PCdoB, lembra de lances dramáticos daquele processo. “Ozéas Duarte, Nelson Levy e um companheiro do Rio de Janeiro que vivia em Buenos Aires diziam que o Partido tinha que passar por uma grande reformulação. Nossa participação no processo de democratização era muito questionada. Mas eram pessoas sem muita influência de massa, algo localizado no Rio de Janeiro, Bahia e um pouco em São Paulo, na ‘estrutura um’ (na qual ficaram os militantes que não vieram da Ação Popular (AP) na incorporação dessa organização ao PCdoB em 1973, a “estrutura dois”, entre eles Genoino). Tivemos reuniões muito duras e acesas”, lembra. Segundo Renato, Rogério Lustosa “enfrentou esse pessoal”. “Numa reunião, Ozéas quis ir às vias de fato com Rogério e nós apartamos”, relata.

As Resoluções do 6º Congresso do PCdoB, realizado no início de 1983, informam que o grupo agia desde antes da 7ª Conferência, que ocorreu na Albânia entre o final de 1978 e início de 1979, manifestando “ideias e concepções políticas de cunho direitista, fazendo avaliações negativistas da trajetória do Partido, particularmente no período de enfrentamento do fascismo e da luta armada no Araguaia”. E mais: “Aproveitando-se das dificuldades orgânicas por que passava o Partido após a queda da Lapa em dezembro de 1976 e o fato de que parte do Comitê Central encontrava-se no exterior, alguns desses elementos tentaram criar uma direção paralela de âmbito nacional para dividir o Partido.” O grupo foi expulso.

No mesmo Capítulo 20, Genoino, reiterando que havia “posições divergentes”, diz que “a avaliação do PCdoB (sobre a Guerrilha) ficou dividida”, com o argumento de que “a vanguarda do Partido, os quadros mais preparados haviam morrido na Guerrilha (1972-1974) e na Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976”. “O que de melhor o Partido tinha gerado foi eliminado pela ditadura militar. Foi um drama. Na verdade, uma tragédia. A avaliação sobre o que realmente aconteceu com a Guerrilha mexeu com as relações pessoais.”

Gloriosa jornada de lutas

As “relações pessoais” na verdade envolviam posições do Partido e do grupo que estava em processo de confrontação. Sua versão sobre “o que realmente aconteceu com a Guerrilha” também não bate com os fatos. Já na reunião do Comitê Central de dezembro de 1976, quando houve a chacina, um documento da Comissão Executiva, derivado de um relato de Ângelo Arroyo – dirigente do PCdoB que estava no Araguaia –, intitulado Gloriosa jornada de lutas, foi aprovado. Pedro Pomar, que seria um dos mortos, informou que o documento era um esforço para responder a algumas preocupações e perguntas.

Genoino cita também, no Capítulo 58, intitulado Mais preparados para morrer, uma reunião com João Amazonas, com quem conviveu no Araguaia, realizada em 1979, depois da Anistia. “Nessa época, eu já estava explicitando divergências com o PCdoB e me inclinando a ir para o PT, que estava em processo de formação. Também fazia uma avaliação de que o PCdoB tinha que realizar uma avaliação e prestar contas do que aconteceu na Guerrilha. Essa conversa com João Amazonas foi muito tensa, muito mesmo, praticamente de ruptura, porque ele não aceitava as minhas opiniões e nem o fato de externá-las, o que considerava uma traição, e, somando-se a isso, o mais grave, para ele, era eu ir para o PT.”

Genoino toma o que avalia como posição de Amazonas o que era opinião do PCdoB, mais uma vez omitindo documentos e avaliações que vinham desde 1975, passaram pela 7ª Conferência e estavam em andamento. Mas o problema, segundo ele, eram suas opiniões e sua ida para o PT. “Por causa disso, durante certo tempo, o PCdoB me hostilizou. Não digo que o PCdoB mentiu ou usou as pessoas e as famílias dos guerrilheiros desaparecidos, porque as famílias queriam encontrar seus familiares lá. O PCdoB não estava errado em dizer que era o Partido da Guerrilha, pois a Guerrilha foi composta por seus militantes. Mas o PCdoB fez da Guerrilha um trunfo político para se cacifar, crescer e ser legalizado.”

São afirmações que afrontam a realidade. “O Partido Comunista do Brasil não faz proselitismo em função do Araguaia. Nosso Partido achou que cumpriu o seu dever, de procurar, em condições difíceis, o caminho da resistência, preparando o fim do regime de tirania implantado no Brasil. O Partido Comunista simplesmente cumpriu o seu dever, e cumprirá em qualquer circunstância, porque é um Partido integrado com as raízes do nosso povo e que aspira a um regime de liberdade, de justiça social, de esperança para a nossa gente tão sofrida e humilhada, sujeita a um processo de degradação que horroriza a todos nós. Que vivam eternamente na lembrança dos brasileiros os feitos gloriosos dos guerrilheiros do Araguaia”, disse Amazonas.

Três bandeiras do Partido

Genoino ignora também a luta do PCdoB por verdade, justiça e memória, desde 1975, com o documento intitulado Levar adiante e até o fim a luta contra a ditadura, a Mensagem aos brasileiros. Na reunião da Lapa, Pomar disse que o PCdoB deveria aplicar uma política de unidade de ação e frente única, com as três bandeiras do Partido: Assembleia Constituinte, anistia e abolição das leis repressivas da ditadura. Deveria também continuar a propaganda pelo fim da ditadura. Genoino insiste no proselitismo inconsequente ao recorrer insistentemente nos mesmos argumentos, aparentando estar disposto a firmar suas opiniões à força de repetição. Chega às raias da difamação ao dizer, negando evidências facilmente encontráveis, que o PCdoB abandonou familiares e se ausentou da autocrítica sobre erros na Guerrilha.

Ainda no Capítulo 20, ele afirma “que quando a Guerrilha foi derrotada, o PCdoB deveria ter feito uma prestação de contas à sociedade contando o que tinha ocorrido de maneira real, pois afirmar a história do Araguaia era uma maneira de defender o heroísmo, a bravura, a generosidade e o desprendimento dos guerrilheiros, uma homenagem a todos os que tombaram”. “Deveria apoiar a reivindicação legítima das famílias em recorrerem aos instrumentos jurídicos para localizarem os corpos, bem como fazer uma avaliação crítica da experiência, prestar contas e homenagear aos que entregaram suas vidas pela causa. Isso era possível, até porque nem toda a direção do Partido sabia do que tinha acontecido e só três da Executiva sabiam”, diz, numa sequência inacreditável de negação da realidade.

A Guerrilha no 6º Congresso do PCdoB

A avaliação da Guerrilha do Araguaia foi um dos principais pontos do 6º Congresso do PCdoB, realizado em 1983. O documento aprovado, intitulado Estudo crítico acerca da violência revolucionária, é denso. Abrange o amplo debate que começou em 1974, condensado no documento Gloriosa jornada de luta, aprovado nas instâncias do Partido e oficializado na 7ª Conferência. Foi um “ponto de partida para a sistematização daquela experiência”, conforme declaração de Amazonas ao jornal Movimento.

O documento aprovado no 6º Congresso registra as tentativas de luta armada na resistência à ditadura e destaca o Araguaia como “a expressão mais avançada”. “Apesar da férrea censura imposta aos meios de comunicação, o movimento guerrilheiro repercutiu intensamente em várias regiões do país e serviu de estímulo a muitas formas de resistência camponesa na luta pela terra”, ressaltou.

No primeiro item, intitulado As classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução, o documento cita a utilização da luta armada pelo povo como recurso histórico das grandes transformações sociais, a exemplo da Revolução Francesa, da Revolução Russa, da Revolução Chinesa e mesmo dos Estados Unidos, que se constituíram como regime capitalista com o emprego das armas. Citou também o Vietnã, o Laos, o Cambodja, a África e a “nossa independência”, que “não pôde prescindir da luta armada patriótica em alguns estados”.

O segundo item entrou na experiência do Araguaia, iniciando-se com a análise do documento Guerra popular – caminho da luta armada no Brasil, da 6ª Conferência, de 1966. Faz uma descrição dos combates e destaca que em muitos aspectos o Exército surpreendeu o comando guerrilheiro. “A substituição de recrutas por soldados das chamadas ‘tropas de elite’ e o emprego de armamento moderno fizeram com que o conflito direto entre os dois lados de contendores resultasse em crescentes perdas para os guerrilheiros”, avaliou. Também refuta as críticas errôneas, referindo-se às versões que circulavam com base em informações deformadas do debate no PCdoB.

O terceiro item, intitulado Indicações gerais sobre o caminho revolucionário, aborda basicamente estratégia e tática. “As forças sociais em presença, sobretudo o proletariado e o campesinato, com o aprofundamento da crise econômica e social e sob a influência de fatores objetivos, vão amadurecendo a sua consciência política e encontrando novas formas de combater seus inimigos. As seguidas medidas antipopulares e antinacionais do governo, as represálias e brutais repressões policiais encarregam-se de ‘educar’ em pouco tempo o proletariado, as pessoas simples das cidades, o campesinato, preparando-os para as formas de luta revolucionária”, resumiu.

O quarto e último item analisa “o movimento revolucionário nas condições atuais”, apontando o papel do PCdoB diante da violência contrarrevolucionária das classes dominantes. “O centro da estratégia do Partido, expresso no Manifesto-programa e desenvolvido em particular na 7ª Conferência Nacional, é a conquista de um regime de democracia popular, rumo ao socialismo. Deste objetivo desprende-se o eixo da orientação tática do Partido, definido na orientação de derrubada do regime militar e na conquista das mais amplas liberdades políticas, tática relacionada com uma situação objetiva em agravamento”, afirma.

Há setenta e sete anos, Câmara dos Deputados cassou mandatos comunistas

70 anos da cassação dos mandatos do Partido Comunista do Brasil - Congresso em Foco

Bancada comunista protesta contra cassação

Por Osvaldo Bertolino

A bancada comunista brilhou na sessão da Câmara dos Deputados de 29 de dezembro de 1947 quando o projeto de cassação dos mandatos comunistas foi a discussão. O Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB, passava por uma dura perseguição, resultado do contexto de expansionismo do regime dos Estados Unidos, o imperialismo, conhecido como Guerra Fria, o anticomunismo da Doutrina Truman, formulada pelo então presidente norte-americano, Harry Truman. O registro do Partido havia sido cassado em 7 de maio daquele ano. Não demorou e a artilharia dos perseguidores dos comunistas mirou os mandatos dos eleitos pelo PCB.

Discursando em nome da bancada comunista, Carlos Marighella comentou que contradição mais absurda não poderia existir: cancelou-se o registro do Partido Comunista do Brasil, mas os representantes comunistas no parlamento continuavam defendendo o mesmo programa apresentado aos seus eleitores. O problema em si merecia outros comentários, disse Marighella, não fosse o fechamento do PCB uma decisão meramente política do Judiciário, sob a coação do Executivo. E já Rui Barbosa dizia: “Justiça política equivale a justiça de partido, justiça de interesse, justiça de desforra, justiça de crueldade.”

O Conselho Nacional do Partido Social Democrático (PSD), liderado pelo presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, reuniu-se a portas fechadas e decidiu criar uma comissão de cinco “juristas” para dar um parecer sobre a cassação dos mandatos comunistas, uma trama golpista denunciada pelo PCB como conjura na qual estavam envolvidos, entre outros, o chefe do Gabinete Militar do governo Dutra, Alcio Souto; o ministro da Justiça, Costa Neto; o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, o magnata da indústria paulista Morvan Dias de Figueiredo; e o famigerado Pereira Lira, o chefe de polícia.

A derrota eleitoral do PSD em São Paulo, com a eleição de Adhemar de Barros pelo Partido Social Progressista (PSP), atribuída pelo grupo à aliança com o PCB, acendera o sinal de alerta sobre o potencial dos comunistas nas eleições futuras. Diante da derrota do PSD, Dutra pensou em formar um novo partido, uma maneira de expurgar do seu projeto político a corrente getulista que se abrigava na agremiação partidária que herdara.

O líder pessedista na Câmara dos Deputados, Nereu Ramos, se opôs à ideia, alertando o presidente que o PCB representava um perigo maior. O plano era transformar o governo em algo parecido com o que fizera o ditador Higino Morínigo no Paraguai, sustentado em um sistema monopartidário. O PSD seria o Partido Colorado brasileiro. Para isso, o regime de força teria de ser restaurado e o principal empecilho precisava ser removido. O alvo estava definido: a bancada do Partido Comunista do Brasil. Para cassá-la, o senador Ivo de Aquino (PSD) apresentaria um projeto de lei.

Parábola de Monteiro Lobato

O PCB começou a se preparar para mais uma campanha de resistência. Comícios foram programados em diferentes pontos do país, muitos proibidos pela polícia. Em São Paulo, os líderes comunistas Pedro Pomar e João Amazonas discursaram no “comício da unidade democrática”, realizado no Vale do Anhangabaú em junho de 1947. “A política da reação é: depois de nós, o dilúvio”, disse Pomar. Segundo ele, Dutra poderia ser derrotado porque as condições internacionais não eram favoráveis à ditadura.

No comício foi lida a parábola História do Rei Vesgo, escrita por Monteiro Lobato especialmente para aquele evento. O povo ouviu:

Na frente do palácio de certo Rei do Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse Rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem”; vontade tão grande que ele não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrasar o morro. Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis, nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do Rei. Sem ele o Rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham como um grande mal. Mas aquele Rei, que além de vesgo era malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cavouqueiros, aos quais disse:

— Tirem-me um pouco de terra desse morro, ali há umas touceiras de craguatá espinhento. Se o povo protestar contra a minha mexida no morro, direi que é para destruir o craguatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.

Os cavouqueiros arrancaram os pés de craguatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam: “Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma”.

Vendo que não houve protesto, o Rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra — ele fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra… Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o Rei por muito tempo naquela política de “extirpação das plantas daninhas do morro”, e as foi arrancando, sempre “com terra”, até que um dia…

— Que é do morro?

Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, estender o seu olhar vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente — não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas pelo de trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.

Isso foi no Oriente. Mas nada impede que aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. É preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos Reis vesgos não as arranquem “com terra”. Do contrário o morro se acaba — e… como é? Ditadura outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paizinho dos pobres outra vez?

Este comício tem essa significação. É um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso Rei, sob o pretexto de arrancar o craguatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície.

E se tal acontecer e esse soba instituir o relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-se pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.

O preço da liberdade é uma vigilância barulhenta como a dos gansos do Capitólio.

O PCB estimou em setenta mil o número de participantes do comício, uma multidão que se estendeu por todo o Vale do Anhangabaú, o “vale do povo”.

Palavras de Rui Barbosa

O Senado aprovou o projeto de Ivo de Aquino por trinta e cinco contra dezenove votos. Segundo Maurício Grabois, líder da bancada comunista na Câmara dos Deputados, os senadores votaram, na verdade, o suicídio daquela Casa, uma medida em grande parte devida ao golpe de 29 de outubro de 1945, afastando Getúlio Vargas da Presidência da República, que manteve em posições-chave da administração pública fascistas notórios. “Nós, comunistas, estamos tranquilos; não tememos de maneira alguma aquela votação, porque sabemos que cumprimos nosso dever para com o povo brasileiro. A nação, amanhã, ou hoje mesmo, irá julgar esses senadores que não foram capazes de honrar seus mandatos”, afirmou.

Na sua avaliação, a votação do projeto, tanto no Senado como na Câmara, tinha o poder de mostrar ao povo quem respeitava sua vontade e quem passava por cima da legalidade democrática para impor tiranias. “O povo brasileiro está com os olhos voltados para esse parlamento, e no dia em que a Câmara votar – se, por acaso, assim fizer – a cassação dos mandatos, não mais merecerá – sobre isso não tenho dúvida – a consideração e o respeito do nosso povo. Nosso mandato não foi obtido ilegalmente, por meios fraudulentos; não o conseguimos enganando o povo. Nosso mandato resultou do sufrágio de seiscentos mil brasileiros que deram seus votos conscientes aos representantes eleitos sob a legenda do Partido Comunista do Brasil.”

Grabois foi à tribuna da Câmara dos Deputados no começo de novembro de 1947 para antecipar-se à chegada do projeto em plenário, conforme anunciou no início do discurso. “Hoje, senhor presidente, quando comemoramos a passagem de mais um aniversário da maior figura das letras jurídicas brasileiras – Rui Barbosa – podemos ajustar algumas de suas palavras, relativamente a governos de sua época, ao do senhor general Dutra que permite, em vésperas de eleições, que homens como o senhor Adhemar de Barros criem um clima de desordem e insegurança na principal unidade da federação brasileira.”

As posições que o governador paulista vinha adotando eram embaraçosas para os comunistas. Dois dias depois da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que cassou o registro do PCB, Adhemar de Barros recebeu do ministro da Justiça, Benedito Costa Neto, uma mensagem por rádio instruindo o governo paulista sobre como a polícia deveria agir. A ordem era fechar e interditar as sedes comunistas e arrolar “bens, papéis e documentos encontrados” e lacrar “outros quaisquer locais em que o Partido porventura passe a exercer atividades”. Uma das condições para a aliança do PCB com o governador era a defesa da “existência legal de todos os partidos”. Mantida na gaveta durante o processo de cassação do registro, depois da ordem do ministro da Justiça Adhemar de Barros jogou-a no lixo e assumiu o papel de verdugo dos comunistas.

Em 1947, São Paulo seria tabuleiro de uma jogada eleitoral decisiva para a sucessão do presidente Dutra. As eleições para vereador, prefeito e vice-governador atraíam a atenção de todas as forças políticas do país. Com os olhos voltados para os movimentos políticos no estado, o governo federal pressionava Adhemar de Barros, exigindo que ele eliminasse a força dos comunistas. Estes, por sua vez, conclamavam as forças democráticas para que cerrassem fileiras contra novos golpes na democracia.

O clima estava exaltado quando o PCB tentou organizar comícios no estado para defender seus mandatos e fazer “propaganda dos candidatos recomendados pelo senador Luiz Carlos Prestes”. O ambiente de “intranquilidade” era fomentado pela passagem do governador para o posto de simples interventor de Dutra. Seria um daqueles delegados tão comuns na época do Estado Novo, um concorrente do “louco de Maceió”, segundo Pomar, numa referência ao governador de Alagoas, Silvestre Péricles de Góis, que ameaçou atirar em Prestes e mandou cercar a Assembleia Constituinte do estado com policiais portando metralhadoras, um clima que lembrava “a Alemanha de Hitler”.

Segundo Grabois, o grupo ao qual agora Adhemar de Barros também pertencia, obcecado pelo ódio insaciável aos comunistas, empregava todos os esforços “no sentido de fazer desaparecer da política brasileira, e mesmo da própria face geográfica do Brasil, mais de quinhentos mil compatrícios que concorreram às eleições de 2 de dezembro de 1945 e 19 de janeiro de 1947”.

“Por isso, senhor presidente, na data em que se comemora o nascimento de Rui Barbosa, gênio das letras jurídicas de nossa pátria, não há melhor homenagem a esse grande brasileiro do que ler algumas palavras por ele preferidas, acusando o governo de então, também de incapaz e inepto. Assim permito-me ler o seguinte trecho de discurso proferido no Supremo Tribunal Federal, a 23 de abril de 1892:

Não há mais justiça, porque o governo a absorveu. Não há mais processo, porque o governo o tranca. Não há mais defesa, porque o governo a recusa. Não há mais códigos nem leis, porque os governo as substitui. Não há mais Congresso, porque o governo é senhor da liberdade dos deputados. O governo… o governo, o oceano do arbítrio em cuja soberania desempenham todos os poderes, se afoga todas as liberdades, se dispersam todas as leis. Anarquia vaga, incomensurável, tenebrosa como os pesadelos das noites de crime. De toda parte a desordem, por todos os lados a violência. E flutuando apenas à sua tona, expostas à ironia do inimigo, as formas violadas de uma Constituição, que os seus primeiros executores condenaram ao descrédito imerecido e à ruína precoce.

Senhor presidente, essas palavras do grande Rui Barbosa se aplicam hoje, sem dúvida, à situação presente, quando já podemos dizer que não vivemos mais sob o império da lei, não temos mais um governo que respeite à Constituição. O que temos é uma ditadura terrorista, à frente da qual se encontra um homem cujo passado não é dos mais democráticos, porque ninguém pode contestar ter sido o senhor Eurico Gaspar Dutra um dos executores do golpe de 10 de novembro de 1937, que apoiou durante longo período o Estado Novo com as suas perseguições e todos os seus atos antidemocráticos. E só desembainhou a espada quando a democracia já estava vitoriosa em nossa terra. Só soube desembainhá-la no dia 29 de outubro de 1945.”

As palavras de Rui Barbosa eram bastante oportunas, reforçou Grabois, principalmente naquele momento em que a Câmara dos Deputados teria a necessidade de se manifestar sobre o projeto de lei enviado do Senado que, segundo ele, surgiu sob a inspiração direta do Catete e, “podemos afirmar, do bolso do senhor general Eurico Gaspar Dutra”, que não dormia, não descansava enquanto ele não fosse aprovado. “Assim, não só perderão os mandatos os representantes comunistas como também será ferida a Constituição e liquidada a democracia em nosso país.”

Estado de sítio

Grabois considerava possível a confirmação de uma informação do deputado comunista José Maria Crispim dando conta de que, caso o projeto não fosse aprovado, logo após chegaria à Câmara dos Deputados o pedido de estado de sítio, sob ameaça de dissolução do Congresso Nacional. “Devemos compreender, portanto, que esse projeto de cassação de mandatos é, sem dúvida, repito, profundamente político. A partir disso, querem utilizar o projeto como pretexto para novos assaltos à democracia. O Poder Executivo – esse grupo fascista que tem à frente o senhor Eurico Gaspar Dutra – pretende assim encobrir sua inépcia administrativa, a desorganização em que vive o país, as dificuldades econômicas que atravessa nossa pátria.”

Os comunistas compreendiam o projeto, disse Grabois, como objetivo profundamente político, cortina de fumaça. “Não tenho pretensões a cultor de letras jurídicas e a envolver-me em discussões de caráter puramente constitucional. Vindo do seio do povo, escolhido pela população do Distrito Federal para representá-la nesta Casa, aqui, no trato com os constitucionalistas, tenho aprendido algumas noções referentes aos problemas jurídicos. No entanto, qualquer estudioso do assunto, por certo, observará que esse projeto de cassação de mandatos, de autoria do ‘luminoso’ senhor Ivo de Aquino, sem dúvida, é uma chicana, constituindo mesmo um ridículo lançado à face da nação e que cobre mais que a seu próprio autor, o Congresso Nacional.”

Grabois citou uma matéria do jornal A Noticia classificando o projeto “de uma vergonha e mesmo de acinte, porque procurava regulamentar aquilo que não exige regulamentação”. “Visa-se, para arrecadar as cadeiras dos parlamentares comunistas, forjar uma lei, criar uma teoria sui generis para os casos de extinção de mandatos. Como bem afirmou ao jornal Diretrizes o deputado pessedista senhor Vieira de Melo (PSD), ‘procura-se forçar uma porta aberta’.”

Em tom irônico, Grabois comentou superficialidades e contradições primárias do projeto. Segundo ele, Ivo de Aquino fez uma grande descoberta quando dizia que, passados oito anos, seria extinto o mandato do senador. “Depois, o supersábio senador – e digo supersábio porque sua excelência ultrapassou em sabedoria aqueles famosos cinco sábios que enviaram a petição em nome do Conselho Nacional do Partido Social Democrático ao Superior Tribunal Eleitoral –, como cultor das letras jurídicas, também fez notável descoberta ao declarar que o mandato se extingue por morte do representante do povo. Acreditará sua excelência que uma alma do outro mundo possa ocupar no parlamento a cadeira, vaga por falecimento de um deputado ou senador? Não terá sido preenchido pelo respectivo suplente o lugar daquele saudoso senador desaparecido durante os trabalhos de elaboração da Constituição? Pensou, àquele tempo, o senhor Ivo de Aquino ser indispensável que o representante falecido mantivesse ainda seu mandato? É inconcebível, senhor presidente, pretender-se elaborar uma lei estabelecendo que, pelo fato de um membro do parlamento morrer, fica extinto o mandato de representante do povo.”

Com esse conteúdo, afirmou Grabois, o projeto era um conjunto de chicanas, constituindo afronta à mentalidade jurídica do parlamento. Quando ele foi discutido no Senado, poucas vozes se levantaram “para defender a indecorosa e inconstitucional proposição”. “Homens cujos méritos pessoais serão desconhecidos da população brasileira anônima, cujos argumentos não convencerão a ninguém e cujas afirmações são superficiais e vazias de conteúdo. Que fazem eles? Servem a interesses dos poderosos que querem desmoralizar o parlamento, dos que desejam acabar com a democracia em nossa terra.”

Em contraposição, disse, nomes esclarecidos da pátria, figuras respeitadas de juristas com grande folha de serviços prestados à democracia, estavam contra o projeto. “Não procurarei mais argumentos para demonstrar a inconstitucionalidade de tal projeto, porque nenhum assunto foi tão debatido, com tão vasta literatura, como o da cassação dos mandatos. Quase todos os juristas já se manifestaram sobre ele. Tive oportunidade de comparar as afirmações de senadores e juristas consagrados, relativamente à questão”, asseverou. Mas, para que a Casa ficasse bem elucidada, ele citou mais “algumas opiniões abalizadas”. “Assim, senhor presidente, inúmeros representantes do povo e juristas deram sua opinião contrária à cassação de mandatos. Poderia citar o parecer do desembargador Vieira Ferreira, do advogado Sobral Pinto, enfim, de muitos juristas e políticos de nossa pátria com autoridade para afirmar que este projeto é inconstitucional e ofende a democracia.”

Capítulo amargo

A votação do projeto foi marcada para 8 de janeiro de 1948. Um dia antes, Grabois foi à tribuna da Câmara dos Deputados para dirigir a voz, conforme afirmou na primeira frase do discurso, não para os deputados, pelo menos a maioria deles, mas, sim, diretamente ao povo brasileiro, à imensa massa dos trabalhadores do Brasil. “Porque estou certo de que minhas palavras neste recinto não terão a virtude de convencer aqueles homens que já traçaram seu roteiro, sua posição em face do projeto de cassação dos mandatos. Não tenho ilusões sobre o caráter tremendamente reacionário que orienta a maioria parlamentar, nem espero que a minha palavra possa convencer a esses homens que se esqueceram da dignidade do parlamento nacional, da soberania desta Casa do Congresso Nacional, permitindo a sua automutilação e com seu voto favorecendo a liquidação do próprio regime democrático em nossa pátria.”

O discurso foi rápido. Afirmou que nunca, no cenário político do Brasil, um parlamento tomara uma atitude como aquela, que sem dúvida passaria à história como sendo de conivência com os traidores da pátria. “Não tenhamos ilusões: o historiador saberá julgar essa maioria parlamentar que não ouve os reclamos da população, não é o intérprete da vontade popular, e não faz outra coisa senão se submeter, de maneira subserviente, aos imperativos desse grupo fascista que infelicita nossa pátria, levando o país para o caos e a catástrofe.”

Para Grabois, ali estava se encerrando mais um capítulo amargo da história do Brasil. “Sim, senhor presidente, usando esta tribuna não me dirijo a essa maioria parlamentar incapaz de defender o regime democrático, porque sei que não é a capitulação desta Câmara, a que se pode aplicar o qualificativo que Silveira Martins deu a uma determinada Câmara, que há de servir para a salvação do regime democrático; nesta hora em que se debate o projeto de cassação de mandatos, minha voz se volta para o povo brasileiro, para esse povo que a 2 de dezembro de 1945 acorreu às urnas cheio de esperanças, cheio de entusiasmo, certo de que as eleições iriam trazer para nossa pátria uma nova época de progresso e de liberdade. Logo após o pleito, empossado o candidato eleito através de acordos eleitorais, porque não tinha nenhum prestígio popular, que vimos? A marcha do Brasil no sentido da ditadura, no sentido da reação, a fim de liquidar com todas as conquistas obtidas pelo nosso povo na gloriosa jornada de 1945.”

Nos dias que antecederam à votação, a bancada comunista fez uma marcação cerrada sobre o projeto. Enquanto ele era discutido na Comissão de Constituição e Justiça, os deputados do PCB revezavam-se para denunciar, todos os dias, na tribuna, o que representava aquela medida proposta. O governo tinha pressa. Seu líder, Acúrcio Torres, corria de deputado em deputado, de bancada para bancada, a fim de impedir que os comunistas continuassem a falar. A mídia seguia a procissão e acusava a bancada do PCB de “sabotar os trabalhos parlamentares”.

A precaução contra a revolta do povo brasileiro fazia sentido. Segundo Grabois, ao falar em um comício no Parque Treze de Maio, no Recife, ele viu que a “numerosa multidão verberou o imperialismo e o grupo fascista no poder”. O PCB organizara uma bateria de manifestações pelo país, muitas vezes enfrentando as restrições policiais, com a presença de seus dirigentes nacionais, para que a força do povo se erguesse contra os atentados à democracia e à Constituição. Grabois esteve também em Salvador. “Os comícios de que participei em Recife e em Salvador estão mostrando que o povo está compreendendo que a defesa da democracia e agora, particularmente, a luta contra a cassação dos mandatos está em suas próprias mãos”, disse ele.

As manifestações ganhavam apoio das massas mesmo com a repressão fazendo vítimas por todo o país. Em Salvador, relatou Grabois, havia um ambiente de intranquilidade por conta das provocações policiais que tinham empastelado o jornal local do PCB, O Momento. “Em Salvador, onde o senhor Mangabeira (governador do estado pela UDN) afirma querer realizar um governo democrático, paira um ambiente de intranquilidade em face das ameaças dos mesmos fascistas que, servindo-se das armas da nação, empastelaram O Momento e continuam impunes. Assim, durante o comício na Liberdade, corriam boatos de que esse mesmo grupo pretendia dissolver o comício. No entanto, o povo deu a resposta merecida, comparecendo ao comício e aplaudindo os oradores”, disse.

Pomar, eleito deputado federal em 1947 na aliança com Adhemar de Barros em São Paulo, denunciara que “um bando de criminosos, envergando a farda do Exército para enxovalhá-lo, invadiu e empastelou o jornal O Momento, destruindo implacavelmente todo material do referido órgão da imprensa baiana”. No Recife, informou Grabois, a polícia proibiu comícios nos bairros, o que não impediu que uma multidão comparecesse ao Parque Treze de Maio, embora houvesse muito pouca preparação. “Após o comício, a grande massa, demonstrando mais uma vez a grande fibra de luta do povo pernambucano, saiu em passeata pelo centro da cidade, exigindo a renúncia do ditador. Ao fim da passeata, policiais espancaram alguns manifestantes, demonstrando, mais uma vez, que estamos em ditadura, contra a qual ergue-se o povo.”

Na capital pernambucana, uma “malta de vagabundos e policiais”, segundo disse Grabois na tribuna da Câmara dos Deputados, ameaçava o jornal local do PCB, a Folha do Povo. Ele presenciou “um assassino conhecido, velho agente de polícia” que contava em sua folha de serviço com “numerosos assassinatos, inclusive o do jornalista José Lourenço Bezerra, irmão do senhor Gregório Bezerra, e de operários presos em 1935”, colocar-se “à frente de cinquenta desocupados, ameaçando empastelar a Folha do Povo”. “O povo mobilizou-se em frente à redação do referido jornal, esperando que a malta de provocadores fosse atacar esse órgão de imprensa, para lhe dar a resposta merecida”, discursou.

Grabois asseverou que para os comunistas o parlamento era um lugar de luta contra o capital estrangeiro reacionário e os contratos lesivos ao progresso do país. “É, igualmente, a tribuna para defesa da indústria nacional ameaçada pela concorrência estrangeira. E finalmente o meio constitucional indicado para o início da reforma agrária, capaz de enfrentar o problema da concentração da propriedade rural nas mãos de alguns poucos latifundiários e assegurar aos lavradores sem terra do interior a área necessária ao seu sustento e a sua família. No parlamento os comunistas defenderam melhores salários para os trabalhadores, medidas eficazes de combate à carestia, uma política objetiva de fomento à produção de melhoramento dos transportes, de facilidades à distribuição, de combate aos especuladores, de defesa e amparo aos consumidores e dos produtores.”

Segundo ele, não houve um único problema de interesse do Brasil discutido no parlamento que não tinha recebido a melhor atenção da parte dos comunistas. “Tendo como objetivo exclusivo a defesa do país e do povo, souberam os comunistas desmascarar as manobras lesivas à economia nacional, evitando pela vigilância e firmeza muitos golpes solertes do imperialismo. Ainda nestas últimas semanas, quando a luta pela defesa dos mandatos e da soberania do Poder Legislativo lhes consumia o melhor de suas energias não cessaram os comunistas na sua batalha em prol da economia nacional. Consultem-se os anais desses dias memoráveis e lá se lerá a palavra dos comunistas mostrando como o projeto de cassação dos mandatos nada mais é que uma cortina de fumaça para encobrir a inércia administrativa do governo Dutra, cuja incapacidade se traduz nesta simples verdade: há hoje mais fome, mais doença e mais miséria no Brasil do que antes de sua chegada ao poder.”

Pomar disse que, se dependesse de Dutra o Brasil já teria se transformado em um campo de concentração e as forcas estariam nas praças erguendo os corpos de patriotas, especialmente o de Prestes. “Mas é a posição firme, é a posição enérgica, é a posição corajosa dos comunistas que tem impedido, até o presente momento, que o país enverede pelo caminho que quer a ditadura, o grupo fascista e o senhor Dutra”, discursou. Lembrou que ao espírito unitário dos comunistas, à política de ausência de ressentimentos e de mão estendida, a ditadura respondia com perseguições, brutalidades, violências, espaldeiramentos e assassinatos em praça pública.

A declaração de voto de José Maria Crispim, deputado comunista por São Paulo, foi implacável. Em um copioso discurso, ele esmiuçou o projeto e contestou, detalhe por detalhe, as argumentações de Ivo de Aquino. Nos dias seguintes, a bancada comunista fez uma marcação cerrada sobre o projeto. Os deputados comunistas revezavam-se para denunciar, todos os dias, na tribuna da Comissão de Constituição e Justiça, o que representava aquela medida proposta. O governo tinha pressa. Seu líder, Acúrcio Torres, corria de deputado em deputado, de bancada para bancada, a fim de impedir que os comunistas continuassem a falar. A mídia seguia a procissão e acusava a bancada do PCB de “sabotar os trabalhos parlamentares”.

Coveiros da democracia

Os debates começaram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Os deputados comunistas se revezaram na tribuna para fazer um diagnóstico profundo do país e do papel das forças progressistas. Dados, fatos, números, citações e análises formaram o conjunto da defesa da bancada. Em alguns momentos, os ânimos se exaltaram. O jornal do Partido A Classe Operária reproduziu um áspero entrevero iniciado pelo deputado comunista Pedro Pomar com o líder do governo na Câmara dos Deputados, Acúrcio Torres, que discursava de maneira efusiva para tentar justificar o projeto:

— Vossa Excelência está lendo um discurso de encomenda.

Acúrcio Torres esbraveja.

Diógenes Arruda interrompe suas cavilações de rábula do imperialismo, gritando-lhe:

— Vossa Excelência se diz patriota, mas está falando em nome do “partido americano”.

Marighella acrescenta:

— Se dinheiro tivesse cheiro, o projeto Ivo de Aquino teria cheiro de dólares.

E Gregório Bezerra:

— Vossa Excelência diz que não conhece os americanos, mas conhece o dinheiro americano.

Acúrcio Torres sua, desconversa, torna-se patético. O líder do PSD.

Amazonas interrompe:

— A liberdade de Vossa Excelência é a liberdade de fazer negociata.

O “líder” queremista continua aos trancos e solavancos.

Diógenes Arruda o desmascara:

— As palavras de Vossa Excelência e as palmas da maioria revelam o medo que Vossas Excelências têm da bancada comunista e dos comunistas que sempre defenderam e defenderão os interesses do proletariado e do povo. Vossas Excelências têm medo.

A “maioria” cumpre o seu triste papel: vota, passando por cima do próprio regimento.

No encerramento da discussão, a bancada comunista grita:

— Maioria subserviente a Dutra e ao imperialismo americano! Coveiros da democracia!

O Jornal de Notícias disse que na confusão que se estabeleceu houve uma nuvem de palavras ásperas trocadas entre Gregório Bezerra e Pereira da Silva, do PSD, que sacou um revólver contra o deputado comunista. Benedito Valadares, também do PSD, igualmente sacou sua arma em defesa do companheiro de partido. Outros deputados e até jornalistas se envolveram no quiproquó. Indagado se o uso de arma era permitido no plenário, o presidente da Câmara, Samuel Duarte (PTB), respondeu que não podia revistar os parlamentares.

No dia da votação do projeto, Grabois fez seu último discurso. Lembrou que no dia anterior, no encerramento da sessão, tinha conseguido usar da palavra durante cinco minutos. “Naquele exíguo espaço de tempo, tive ensejo de recordar palavras de uma das figuras políticas de nossa história, Gaspar Silveira Martins, que, ao se dirigir à Câmara de sua época, considerava-a uma Assembleia de servis. E, neste instante, senhor presidente, não há outras palavras senão aquelas pronunciadas por Silveira Martins, para dirigir-me a uma Assembleia que se dobra aos imperativos e à vontade do grupo que se encontra encastelado no Catete, levando o país para a catástrofe e para o caos.”

Era com esse espírito que ocupava a tribuna, asseverou Grabois, compreendendo que já não falava para um parlamento soberano capaz de defender a democracia, capaz de defender sua dignidade. “Por isso, usando da palavra, dirijo-me, não a essa maioria que liquida com a democracia, mas, particularmente, ao povo brasileiro, porque, nesta hora, em que o regime democrático está em completa derrocada, somente o povo – e somente ele organizado – é capaz de assegurar a democracia em nossa pátria.”

Grabois homenageou os homens do povo, anônimos, que deram seus votos aos comunistas para representá-los no parlamento, para que defendessem o regime democrático e que nas ruas clamavam contra o “crime monstruoso” da cassação dos mandatos, “o qual irá golpear, temporariamente, a democracia em nossa pátria, mas só temporariamente, porque a democracia é invencível”. “Quero render minhas homenagens àqueles homens que estão vertendo sangue para que a democracia não pereça, olhos voltados para o operário Anísio Dario, morto pela polícia de Aracajú, o qual perdeu a vida clamando contra o crime que se pretende perpetrar com a cassação dos mandatos de representantes legitimamente eleitos.”

Grabois repetiu o argumento de que os comunistas eram vítimas de uma trama contra a democracia. “Não assomamos à tribuna para nos defender, nem fazer a defesa de nossa posição dentro do Parlamento, porque, senhor presidente, se aqui estamos é mais para acusar, pois somos o alvo desse grupo fascista, dessa maioria subserviente. Se sairmos desta Casa, será com nossa consciência tranquila, com a cabeça erguida, porque temos a certeza de haver cumprido o nosso dever, fiéis ao nosso eleitorado e ao povo brasileiro, defendendo, palmo a palmo, suas reivindicações e a própria Constituição.”

O golpe de violência anticonstitucional, por parte dos maiores inimigos da democracia, disse, seria temporário. “Estou certo, porém, de que, amanhã, em outra eleição, quando a democracia ressurgir em nossa pátria — não essa democracia de fachada, que serve a meia dúzia de politiqueiros e generais fascistas, que estão entregando o Brasil ao imperialismo norte-americano —, quando ressurgir a verdadeira democracia, a democracia do povo, quando for respeitada sua vontade, podem estar certos os senhores representantes que neste instante cassam nossos mandatos de que voltaremos, não apenas com uma bancada de dezesseis deputados, mas com número bem maior, capaz de derrotar todos os reacionários que infelicitam o povo brasileiro e impedem o progresso nacional.”

Grabois afirmou que não alimentava ilusões de reverter a decisão da maioria. “Senhor presidente, inoperante, sem nenhum resultado, seria desenvolver nesta altura dos debates, argumentos jurídicos para atacar o projeto de cassação de mandatos. As maiores figuras da cultura jurídica nacional já se manifestaram, demonstrando a inconstitucionalidade do projeto – homens como o Ministro Eduardo Spinola, como João Mangabeira, como o Desembargador Vieira Ferreira, como o Professor Homero Pires, como o Desembargador Bianco Filho, como o professor Luiz Carpenter, como o doutor Sobral Pinto, como o professor Jorge Americano e inúmeros constitucionalistas de reconhecido valor. Não há, na consciência de qualquer homem honesto, a convicção de que este projeto seja constitucional e venha beneficiar a democracia. Aqui mesmo, neste parlamento, poucos são os representantes do povo, mesmo aqueles que opinam pela cassação de mandatos, que estejam convencidos da constitucionalidade do projeto.”

Os votos seriam por motivos políticos, disse, por interesses próprios e pessoais. “É uma verdadeira farsa querer fazer debate jurídico em torno dessa monstruosa proposição, porque tem a sua origem, não na vingança de um homem, como o senhor Barreto Pinto (obscuro deputado do PTB que iniciou a patranha que resultou na cassação do registro do Partido), mas nos círculos reacionários encastelados no Catete e diretamente inspirados nos trustes e monopólios norte-americanos. Essa a origem do projeto, deste golpe contra a democracia em nosso país. Há outros homens que estão defendendo seus interesses e procuram manter suas posições sob a máscara da constitucionalidade. Sabemos mesmo que não há nenhuma convicção nesse argumento.”

Grabois fez um alerta à nação contra o “grupo fascista que aí está no poder e aproveita-se da ofensiva imperialista, no mundo inteiro, para liquidar com as liberdades e instaurar a mais feroz ditadura em nosso país”.  Está à frente de tal grupo um fascista (o presidente Dutra), conhecido homem que foi condecorado por Hitler e recebeu a espada dos samurais das mãos dos militaristas do Japão, homem que só no último instante, sob a pressão das massas, foi capaz de concordar com o envio das forças expedicionárias para combater o nazismo no solo da Itália.” Dutra, afirmou, transformado por obra do acaso em presidente da República em virtude da instabilidade política em que vivia o país, era um homem de tendências fascistas, que não fazia outra coisa a não ser aplicar diretrizes políticas que favoreciam ao imperialismo.

A atitude dócil do Congresso Nacional diante do autoritarismo do presidente da República, disse Grabois, seria desastrosa para o próprio parlamento. “Neste discurso, desejo ainda lembrar que o parlamento está assumindo grandes responsabilidades. Em 1937, ele não foi capaz de defender sua dignidade, curvando-se às vontades dos senhores que dominavam no Catete. Foi ele que votou as leis de segurança, o estado de sítio e o de guerra, permitindo a prisão e processo de membros seus. Esse parlamento, portanto, sucumbiu, apodrecido, sem o protesto popular, porque quando a polícia cercou este mesmo Palácio do Congresso, nenhuma voz do povo se levantou para proteger um parlamento incapaz de defender suas próprias prerrogativas. Os fatos se repetem de maneira muito mais trágica e mais séria, porque esta Casa se mostra muito abaixo daquela de 37. Aquele cedeu ao futuro ditador, votando leis de arrocho e exceção; o atual corta na própria carne, expulsando de seu seio homens legitimamente eleitos pelo voto popular, sem contestação alguma.”

Uma vez consumado o crime, o parlamento não mereceria o respeito da opinião pública, disse. Seria um parlamento desfibrado, que o povo não levaria a sério. E, quando os inimigos da democracia procurassem implantar uma ditadura sem aparência legal, bastaria simplesmente um vigilante noturno para fechá-lo, pois nenhuma voz seria capaz de se interessar por um parlamento de capitulação e de traição nacional, analisou. “Atrás de todo esse projeto de cassação, entretanto, esconde-se toda uma política contrária aos interesses do povo. Quando encerramos a última sessão legislativa tive oportunidade de dizer que este parlamento não votou nenhum projeto de caráter social. Durante quase um ano de funcionamento, só se votaram as mensagens enviadas pelo Executivo, solicitando abertura de créditos para o governo, ou isenção de direitos para empresas imperialistas. É um parlamento que serve aos poderosos; não se viu aqui aprovado nenhum projeto que viesse beneficiar o povo brasileiro. Esta a realidade palpável.”

Ao votar a cassação dos mandatos, afirmou Grabois, o Congresso nacional assumia uma conduta reacionária. “Incomoda aos representantes da classe dominante ouvir a voz da classe operária e do povo brasileiro que tem assento neste parlamento. Dói aos reacionários, aos negocistas, aos exploradores, ouvir a voz rude, às vezes mal formulada, dos operários que têm assento nesta Casa, do deputado negro Claudino Silva, do ferroviário Agostinho de Oliveira, porque é a voz do povo que aqui está vigilante, desmascarando as manobras do senhor Dutra e do grupo fascista contra o país. Aqui também está a origem do projeto de cassação de mandatos: se votam por subserviência, também o fazem por interesses pessoais para afastar a voz do povo, do proletariado, do recinto desta Assembleia. Mas podem estar certos de que este parlamento, sem os representantes da classe operária, sem os representantes que vêm do povo, não merecerá mais o respeito e a devida consideração, não será mais o terceiro poder, mas um apêndice podre da ditadura do senhor Eurico Gaspar Dutra.”

Jogo de palavras

Grabois denunciou o jogo de cena que a maioria dos deputados fazia ao falar de democracia demagogicamente. “Senhor presidente, a democracia não é um jogo de palavras. A democracia são os fatos, a prática diária e concreta do respeito à nossa Constituição e da defesa dos interesses do povo, e não a subserviência, o calar ante as manobras e as violências dos poderosos. Estou certo de que os acordos e arranjos, que tiveram como objetivo principal facilitar a marcha deste indecoroso projeto, não darão resultado, porque as contradições aumentarão. As posições são poucas e os cargos não chegam para todos. As divergências prosseguirão, porque, para contemplar a UDN (União Democrática Nacional), se descontentará o PSD.”

Ele comentou também a discriminação social manifestada por alguns deputados. “O nobre deputado senhor Munhoz da Rocha (PR), em discurso aqui proferido afirmava que todos nós falamos uma só linguagem. É verdade. Falamos a linguagem do povo, do interesse nacional. Mas todos nós, da bancada comunista, saímos dos mais diferentes setores da sociedade. Lá não estão os negocistas, os industriais reacionários e advogados de empresas imperialistas. Lá estão homens como Gregório Bezerra com sua vida dedicada ao povo pernambucano; Abílio Fernandes, operário metalúrgico; Jorge Amado, uma das glórias da literatura nacional; Alcedo Coutinho, médico, que honra a ciência pátria; João Amazonas, Pedro Pomar, Diógenes Arruda e Carlos Marighella, provados lutadores da causa democrática; Henrique Oest e Gervásio de Azevedo, heróis da FEB (Força Expedicionária Brasileira); Claudino Silva, Francisco Gomes, Agostinho Oliveira e José Maria Crispim, a voz patriótica da classe operária.”

Grabois encerrou dizendo que a vitória seria do povo e não de Dutra, com seu parlamento de ficção, simples chancelaria do Catete, visando apenas aos atos do governo. “Não será o senhor Dutra nem esta maioria – repito – que acabarão com o movimento comunista no Brasil, porque nós somos a vanguarda das forças do progresso e da democracia. Somos a juventude do mundo, os homens que lutam pelo progresso do Brasil. Somos soldados do grande Prestes. Sabemos que a luta para muitos, será difícil, muitos serão sacrificados; mas outros ocuparão nossos lugares, erguerão a bandeira de defesa da democracia e do nosso povo e o triunfo será certo e decisivo. O governo do senhor Dutra cairá sob a pressão das massas e será execrado por todos os brasileiros e por toda a humanidade.”

Segundo Pomar, o anticomunismo do governo era a bandeira com a qual seus integrantes justificavam os maiores crimes contra a Constituição e a soberania da pátria, como fizeram Petáin e Weygand quando entregaram a França a Hitler. Com a mesma cegueira política com que participou do golpe de 10 de novembro de 1937, com que quis impedir a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e resistiu à democratização do país, Dutra queria arrastar a nação para as aventuras guerreiras do imperialismo americano, antes arruinando a indústria nacional, cedendo o petróleo e o ferro, aumentando a fome e o desemprego das massas, sufocando as liberdades democráticas e subordinando as Forças Armadas ao plano de “cooperação” militar do governo dos Estados Unidos, denunciou.

Ataques a Pomar

O anticomunismo raivoso havia sido abraçado também pelos jornais conservadores, principalmente O Globo e A Noite. O jornal do senhor Roberto Marinho esmerava-se nas mais torpes invencionices para atribuí-las aos comunistas e reforçar a tese que os “cinco sabichões” do PSD estavam preparando. A Noite chegou ao ponto de protestar com virulência quando Pomar assumiu a presidência dos trabalhos em uma sessão da Câmara dos Deputados na ausência dos demais membros da mesa. Segundo o jornal, “quando o fato ocorreu houve no ambiente uma sensação de mal-estar”. “O que admira, não tendo havido nenhum protesto imediato, é que ninguém tivesse lembrado ao menos de requerer a suspensão dos trabalhos para que não continuasse perante os olhos da assistência estupefata aquele espetáculo de uma Câmara democrática presidida pelo representante de um partido fora da lei”, vituperou.

O jornal A Noite disse ainda que “houve um grande erro político por parte das correntes democráticas da Câmara em permitir a participação dos bolchevistas na mesa daquela casa legislativa”. “O erro agravou-se, porém, quando em seguida à decisão do Superior Tribunal Eleitoral não se procedeu ao imediato expurgo dos agentes vermelhos, não só da mesa como das comissões internas da Câmara”, esbravejou. “Aquele que outro dia se exibiu na cadeira da presidência da Câmara não é apenas um líder comunista. É um agitador conhecido e o diretor responsável de um jornal que segue, entre nós, as diretrizes do Pravda de Moscou, jornal que prega diariamente a subversão do regime, o desrespeito aos poderes públicos, o ódio de classe e que naturalmente é solidário com o ponto de vista de seu chefe, o que pegaria em armas contra o Brasil, a favor da Rússia”, praguejou o jornal.

Mandado de segurança

O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados por cento e oitenta e um a setenta e quatro votos. Depois da votação, a bancada comunista subiu nas poltronas e, de pé, com o braço esquerdo levantado e a mão fechada, brandiu: Viva o Partido Comunista do Brasil! Viva Prestes! Viva o proletariado! Nós voltaremos! Uma comissão de deputados, indicada pela Mesa, se encaminhou ao Palácio do Catete para que o presidente da República sancionasse a lei aprovada. Em uma cerimônia simples, Dutra assinou a sentença contra a bancada comunista precisamente às vinte e duas horas do dia 8 de janeiro de 1948. Estavam presentes, entre outros, os ministros da Justiça, do Trabalho e da Agricultura; os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado; o chefe do Gabinete Militar Alcio Souto e o chefe da Casa Civil, José Pereira Lira.

Os comunistas estavam fora da Casa especialmente construída sob a invocação de Tiradentes para servir de sede à Câmara dos Deputados e do Palácio Monroe, a sede do Senado. Na Câmara dos Deputados, das catorze vagas abertas sete ficaram com o PSD, cinco com a UDN, uma com o PR e uma com o PTB. A vaga de Prestes no Senado ficou para a UDN. Quarenta e oito horas depois da sanção presidencial, os tribunais regionais da Justiça Eleitoral (TREs) oficiariam as assembleias legislativas e as câmaras municipais, enviando a relação dos eleitos pelo Partido Comunista do Brasil. Ao receber a lista, os presidentes daquelas casas deveriam declarar vagas as cadeiras dos citados.

Um mandado de segurança – assinado por Maurício Grabois, Abílio Fernandes, Agostinho Dias de Oliveira, Alcedo Coutinho, Carlos Marighella, Gervásio Gomes de Azevedo, Gregório Lourenço Bezerra e José Maria Crispim – foi impetrado pelo advogado Sinval Palmeira no Supremo Tribunal Federal apontando a inconstitucionalidade da lei, que nunca seria julgado.

Resistência armada

Tão logo a cassação dos mandatos se consumou, o regime de Dutra voltou a mostrar as garras. O temor maior era o de Prestes ser preso quando pisasse fora do edifício da Praça Paris, onde funcionava o Senado, sem o mandato. Amazonas organizou um comando armado que, com três veículos, foi esperá-lo em uma porta lateral. Pomar e Arruda, que preservaram os mandatos por terem sido eleitos pelo PSP de Adhemar de Barros, foram buscar o senador comunista no interior do prédio. Já era noite. Prestes, escoltado pelos dois deputados, entrou imediatamente em um dos veículos. Amazonas seguiu atrás, em outro. Um terceiro abriu caminho, deixando o que conduzia Prestes no meio da caravana. Em velocidade máxima permitida, levaram o secretário-geral para um esconderijo.

No dia seguinte à cassação dos mandatos — os deputados do PCB só deixariam formalmente suas cadeiras depois do acatamento pela mesa diretora da Câmara dos Deputados da comunicação do Superior Tribunal Eleitoral, em 10 de janeiro de 1946 —, José Maria Crispim, falando como “eventual líder” da bancada comunista, denunciou que na madrugada daquele dia agentes da polícia política invadiram as oficinas da Tribuna Popular, jornal do PCB, para cumprir uma determinação do ministro da Justiça, alegando que um jornal ilegal — a Imprensa Popular — estava sendo impresso.

“Sabe vossa excelência, senhor presidente, e a Casa, que a Tribuna Popular está suspensa por determinação arbitrária do senhor ministro da Justiça, determinação ilegal e, por isso mesmo, violenta, que mostra bem o governo que o Brasil suporta nesta hora grave da vida nacional. Sem poder funcionar a Tribuna Popular, em suas oficinas vem sendo impresso um novo órgão – a Imprensa Popular –, que há vários dias circula na capital da República e nos estados”, afirmou.

Segundo ele, naquela madrugada “a polícia de bandidos”, armada até os dentes de metralhadoras e bombas de gás, com armas de guerra, realizou uma verdadeira batalha, assaltando as oficinas do jornal, “onde se encontravam máquinas para a sua impressão e meia dúzia de trabalhadores”.  O deputado comunista Henrique Cordeiro Oest comentou que entre os trabalhadores das oficinas estava o ex-tenente da FEB Salomão Malina, que fora ferido em combate na Europa, e era o vice-presidente e presidente em exercício do Conselho da Associação dos Ex-Combatentes do Brasil. “É o protesto que faço diante da prisão deste camarada a quem a democracia e o Brasil muito devem”, registrou.

Crispim voltou a falar no dia seguinte, em 9 de janeiro de 1948, para dar mais detalhes da ocorrência. Ao pedir a palavra para fazer “uma comunicação relevante”, foi informado pelo presidente que a Câmara dos Deputados estava “na ordem do dia” e que ele, de acordo com o Regimento, só poderia usar a questão de ordem — um expediente limitado a cinco minutos. Crispim respondeu que o Regimento da Casa assegurava aos líderes de bancada “a faculdade de fazerem comunicações relevantes ao plenário em qualquer fase” dos trabalhos. Mesmo com a interferência de outros deputados, em meio a uma áspera troca de palavras, o presidente manteve a posição inicial.

O deputado comunista informou que houve uma chacina nas oficinas da Tribuna Popular. “São gráficos que nessa hora se encontram entre a vida e a morte, pois foram intoxicados, ao máximo, pelo uso de bombas de gás lançadas pela polícia”, denunciou. Estavam todos nos porões da Polícia Central. Gregório Bezerra aparteou: “Quando vossa excelência falar nos porões da Polícia Central, use a expressão ‘casa de torturas’, pois é o que de fato representa neste governo do ditador Dutra.” Salomão Malina estava, segundo Crispim, além de intoxicado incomunicável. Todos corriam o risco de morrer; quatro deles feridos à bala, internados em estado grave. Ele informou também sobre várias prisões ocorridas pela cidade e relatou casos de detenções e espancamentos das pessoas que assistiram à sessão que cassou os mandatos.

Depois de quatro horas presos, os funcionários da Tribuna Popular foram surpreendidos por um flagrante de apreensão de quatro armas consideradas de guerra. O fato repercutiu na Câmara dos Deputados, onde uma moção repudiando a repressão policial foi assinada por Afonso Arinos, Hermes Lima, Jaci Figueiredo, Monteiro de Castro, Café Filho, Gurgel do Amaral, Nelson Carneiro e outros parlamentares. Pomar, então diretor do jornal, comandou a resistência. Ele telefonou para o presidente da Câmara dos Deputados, Samuel Duarte, comunicando o ocorrido, dizendo que sua vida estava em risco. O presidente se dirigiu ao local dos fatos e comunicou-se com o chefe de polícia, Lima Câmara, pedindo a ele que garantisse a imunidade parlamentar a Pomar.

Prisão de Gregório Bezerra 

A polícia política também andou espalhando que Gregório Bezerra seria preso tão logo pusesse os pés fora da Câmara dos Deputados. As ameaças não foram cumpridas porque ele saiu escoltado por Pomar, Arruda e mais alguns deputados. Mas as aperreações – como ele dizia – logo começariam. Passou a ser seguido pela polícia ostensivamente e não fora preso porque Pomar era uma espécie de guardião dos seus passos. No dia 17 de janeiro de 1948, tomaram café na residência de Luiz Carlos Prestes, onde morava o ex-deputado pernambucano, e foram para o escritório da “fração parlamentar”. Gregório Bezerra ficou no local e Pomar foi para a Câmara dos Deputados.

Ao meio dia, Pomar passou no escritório e ambos saíram para o almoço. O combinado era de que o carro oficial da Câmara dos Deputados estaria esperando-os em frente ao antigo prédio do Senado, na Cinelândia. Por algum motivo, houve um atraso e a polícia política não perdeu a oportunidade. Quando se deram conta, estavam cercados por um bando de policiais, em pela Avenida Rio Branco, uma das principais artérias do centro da cidade do Rio de Janeiro. Pomar protestou, Gregório Bezerra reagiu, mas os “tiras”, em maior número, acabaram vencendo.

Nesse momento, chegou o carro da Câmara dos Deputados e Gregório Bezerra se atirou para o seu interior. Um policial ainda tentou agarrá-lo pela janela, mas teve os dedos prensados na portinhola do veículo. Diante da brutalidade crescente, Pomar comprometeu-se a levar Gregório Bezerra à Polícia Central. Ao chegar, o ex-parlamentar comunista foi brutalmente arrancado do carro e preso em um minúsculo cofre de aço. Depois de protestar a plenos pulmões, foi levado para uma cela. Ficou incomunicável por três meses. Transferido para o Recife, foi julgado pelo Conselho da Justiça Militar e cumpriu dois anos de detenção.

A prisão fora ordenada por ninguém menos que o ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa, que agia como cão de guarda de Dutra. Gregório Bezerra era acusado de haver incendiado o quartel do 15º Regimento de Infantaria em João Pessoa, no estado da Paraíba, a dois mil quilômetros da cidade em que se encontrava e dela não saíra. Segundo ele, a polícia política do general Lima Câmara, desonestamente, negou as informações que provavam sua inocência. Desde que saíra da Câmara dos Deputados, estivera na residência de Prestes, “a casa mais vigiada do Brasil”, ambos protegidos pelas imunidades parlamentares de Pomar e Arruda. Com o incêndio e o processo farsesco que seria montado, a intenção era incompatibilizar o Exército com o Partido Comunista do Brasil, disse Gregório Bezerra. Os autores do incêndio, portanto, deveriam ser procurados entre os “fascistas do governo”, denunciou.

O caso do “reichstag mirim” — uma alusão ao famoso incêndio do parlamento alemão provocado pelos nazistas, em 1933, e atribuído aos comunistas — fez Pomar ocupar a tribuna da Câmara dos Deputados sistematicamente para exigir notícias do “bravo filho de Pernambuco”. “Afinal de contas, o que ocorre com Gregório Bezerra? Por que lhe cassam o direito de defesa?”, indagou. Segundo Pomar, o grupo “militar-fascista” criou uma novela para espalhar calúnias contra os comunistas. “Há três dias, enviamos um advogado à Paraíba. Até agora, o causídico (o doutor Sinval Palmeira) não teve oportunidade de verificar se o senhor Gregório Bezerra lá se achava porque o inquérito se processa sob sigilo”, denunciou.

Ao fazer o histórico dos acontecimentos, Pomar disse que todos os partidos, com exceção de poucos democratas, se atiraram de maneira indigna sobre aquilo que não lhe pertencia — as cadeiras tomadas da bancada comunista. Desde o PTB, dito de oposição e mais interessado do que qualquer outro nas vagas pecebistas, até a UDN, o partido da “eterna vigilância” que mal procurava salvar as aparências para fingir amor à Constituição. Os udenistas, segundo Pomar, marcharam vergonhosamente de sacola na mão atrás dos “senhores da ditadura”, agiram como juristas do “acordo interpartidário” que repartiu as cadeiras que pertenciam aos comunistas.

– Biografia conta a vida e a luta de Péricles de Souza pela democracia e o socialismo

O livro, de autoria do jornalista e historiador Osvaldo Bertolino, intitulado Péricles de Souza – uma vida uma luta, fala, em quatrocentos e quarenta páginas, da geração que entrou na juventude na década de 1960, enfrentando uma das fases mais complexas da história do Brasil e do mundo. Narra a vida de Péricles de Souza no contexto daqueles jovens nascidos na conjuntura da Segunda Guerra Mundial e que viviam no auge da “era de ouro”, os anos de crescimento ininterrupto das principais economias, que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “trina anos gloriosos”, o período de 1945 a 1975. Geração também influenciada pela cultura erudita, a música, o cinema, a literatura e as revoluções socialistas na China (1949) e em Cuba (1959).

Filho de uma família de Vitória da Conquista que se mudara para Salvador quando o Brasil vivia os impactos das transformações promovidas pelo governo de Getúlio Vargas, eleito em 1950, em segunda passagem pela Presidência da República depois de liderar a Revolução de 1930. Péricles presenciou, aos dez anos de idade, a professora e o pai tomados pela emoção com o suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954. A cena representou o início do seu despertar político. Logo ingressaria no movimento estudantil e, quando a Ação Popular (AP) surgiu, no começo da década de 1960, ele estava entre seus fundadores.

Os militantes da juventude católica se destacavam na Bahia, um dos principais pontos da resistência às ameaças golpistas ao presidente João Goulart. No golpe de 1964, Péricles estava entre os estudantes que foram para Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, organizar a resistência, que seria comandada pelo prefeito Francisco Pinto, um foco que se somaria à resposta dos governadores de esquerda em Pernambuco e Rio Grande do Sul, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Frustrados, pela ocupação da cidade pelos militares golpistas voltaram para Salvador.

Após um episódio de enfrentamento dos estudantes com o ministro das Relações Exteriores da ditadura, Juraci Magalhães, ex-interventor e ex-governador do estado, Péricles foi para clandestinidade e se instalou no Bico do Papagaio, região Sul do estado do Maranhão, para organizar o que seria um ponto da guerra popular contra a ditadura. A AP transitava para a incorporação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), num momento em que estava em preparação, no Sul do Pará, a Guerrilha do Araguaia.

Com a incorporação, em 1973, Péricles foi para Comitê Central e se mudou para Sergipe, de onde comandaria a reorganização do PCdoB no Nordeste. Por um acaso se livrou de estar na reunião de dezembro de 1976, quando a ditadura metralhou a casa em que a direção comunista se reunia em São Paulo, no bairro da Lapa, matando alguns dirigentes e prendendo outros.

Péricles retornou a Salvador após a anistia de 1979 e assumiu a direção do PCdoB no estado. Ao mesmo tempo, como membro do Comitê Central, participou dos principais eventos que levaram o país a transitar para a redemocratização, elaborar a Constituição de 1989, enfrentar o neoliberalismo dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso e eleger e reeleger os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Osvaldo Bertolino é autor de treze livros, entre eles oito biografias de lideranças comunistas que combateram a ditadura militar. É jornalista e historiador, com experiência em assessoria sindical e parlamentar. É pesquisador de temas relacionados à política, à economia e à história, com destaque para o período da formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil.    

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– Guerrilha do Araguaia: o burro que comia jornais

Por Osvaldo Bertolino

Outra torpeza. Assim é o mais recente ataque do jornalista Leonencio Nossa ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e à minha biografia de Maurício Grabois, publicado no jornal O Estado de S. Paulo neste sábado (2). Carregado de agressões gratuitas, o texto parece ter sido escrito como vingança tardia a uma contestação que fiz sobre falsificações publicadas por ele no mesmo jornal em 6 de maio de 2013, parte da coletânea do meu livro Guerrilha do Araguaia – fatos, verdades e histórias.

Na época, flagrei seus erros no jornal e apontei distorções primárias em seu livro Mata!, também sobre o assunto. “A começar pela citação de informações sem revelar a fonte, como é o caso da origem da família Grabois, pesquisada por mim para a biografia do comandante militar da Guerrilha do Araguaia intitulada Uma vida de combates. Há evidências de que ele usou também informações do documentário Araguaia – a Guerrilha vista por dentro, igualmente sem citar a fonte”, escrevi. A denúncia motivou uma ligação dele para tentar me explicar o inexplicável.

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Neste artigo, Leonencio Nossa se utiliza de mais um embuste ao dizer, já no título, que “a China abandonou guerrilheiros no Araguaia para se aliar à ditadura”. Depois de afirmações desconexas e óbvias, como a de que o principal parceiro comercial do Brasil “vive momento de desaceleração econômica e mantém relação pragmática e foco nos negócios, que hoje se concentram na compra de commodities”, ele engata a falácia de que “um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, foi convidado pelo regime de Mao Tsé-Tung, nos anos 1960, para treinar guerrilha na Academia Militar de Pequim”.

Não foi convite “do regime”, tampouco treinamento de guerrilha. Curso político-militar é outra coisa, bem diferente. Feito a pedido do PCdoB em Nanquim, não em Pequim. Além do desconhecimento dessa premissa básica, Leonencio Nossa se mostra, mais uma vez, péssimo analista de história. “Num idioma e numa cultura completamente diferentes, os brasileiros tiveram mais aulas de política internacional que de tiros e emboscadas. O anfitrião liderara, décadas antes, uma Longa Marcha a partir do interior chinês e vencera uma guerra civil que implantou o comunismo”, escreve, concentrando uma quantidade espantosa de desinformações em duas frases medíocres.

Parecer do Itamaraty

Aparentando escrever do que não sabe, como a repetição da invectiva sobre “guerrilha maoista” no Araguaia, ele chega a devaneios como o de que “Pequim não formou homens para guerra na selva”. E afirma que “o apoio da China à guerrilha começou a se esfacelar quando os diplomatas do país procuraram o Itamaraty para abrir mercado”, possivelmente tentando se apoiar na afirmação de que, ao defender a reaproximação com a China, um parecer do Itamaraty citou Maurício Grabois como integrante da “subversão” que tinha a República Popular da China como influenciadora, destacando que os chineses se comprometeram a não interferir na política interna.

Há uma farta documentação da época, utilizada em minhas biografias de Maurício Grabois e de Pedro Pomar, comprovando que a Guerrilha do Araguaia foi um movimento gestado e realizado por iniciativa do Partido Comunista do Brasil, reforçado pelos estudos das experiências revolucionárias na Rússia, na China, no Vietnã e em Cuba. Há uma teoria histórica, filosófica e política, que explica a Guerrilha. Mas isso é demais para Leonencio nossa, não à toa reincidente em grosserias como essas.

A coisa fica pior quando ele chega ao ataque à minha biografia de Maurício Grabois. “A biografia dele, feita dentro do partido, registra um equívoco em sua primeira edição (sic) ao dizer que a infantaria o teria matado”, escreve, tentando desqualificar a obra com a versão falsa sobre a sua origem e omitindo despudoradamente o autor, além de não citar a descrição minuciosa que fiz da operação que resultou em sua morte na publicação de 2012.

Nesse ponto, Leonencio Nossa parte para a baixaria sem freios. Diz que “o livro ainda registra que o comunista nascido em Campinas era de Salvador”, valendo-se de um dado incorreto, corrente quando a versão resumida circulou em 2004, e sonegando a informação de que, na obra completa, de 2012, esse fato foi por mim pela primeira vez devidamente esclarecido. E agride: “Leitor de Albert Camus, Grabois preferia o Estadão às publicações comunistas para se informar. Merecia um perfil decente, tipo tijolaço.” O que vem depois é um festival de desinformação e de propaganda contra a China e o PCdoB, bem condizente com a sua reincidência em grosserias.

Lenda do escravo

O jornalismo já foi definido, quando o jornal surgiu com força, como língua de papel, algo que lembra a lenda do escravo, de Esopo. A língua, bem utilizada, é, realmente, a maior das virtudes. Mas relegada a planos inferiores, se transforma no pior dos vícios. Com ela, as verdades mais santas, por ela mesma ensinadas, podem ser corrompidas.

Benjamim Constant, professor e estadista brasileiro, considerava o jornal um dos mais poderosos explosivos do século XIX. Mas houve também quem lhe deu o nome de “toalha da civilização”. Como qualquer instrumento, o jornalismo pode ser utilizado para o bem ou para mal.

O cronista Humberto de Campos conta uma historieta em que um engenheiro do Nordeste ensinou seu burro a comer jornal e que, por esse modo, conseguia atravessar a região devastada pela seca. Pela manhã, dava ao animal um exemplar do Jornal do Brasil e a tarde um do Pais. Um dia ele apareceu sem o burro. Indagado sobre a causa da morte do animal, respondeu que ele morrera de indigestão depois de comer um exemplar do Jornal do Comércio, edição de Natal.

Se alguém tiver ideia semelhante, que tome o cuidado de não levar o exemplar do Estadão com o artigo de Leonencio Nossa.

– A vida de combates de Maurício Grabois

Por Osvaldo Bertolino

O dia 2 de outubro de 2024 assinala a passagem dos cento e doze anos de nascimento de Maurício Grabois, um dos principais pilares da história do Partido Comunista do Brasil. Nascido na cidade paulista de Campinas e acidentalmente registrado pela segunda vez em Salvador (BA), era filho de judeus vindos da Ucrânia fugindo das perseguições antissemitas e dos castigos da guerra do Império Russo com o Japão.

Em 1930, Maurício Grabois desembarcou no Rio de Janeiro para fazer o “Curso Anexo” da Escola Militar do Realengo, onde ingressou em 1931. Mandado para o 1º Regimento de Infantaria em 1932, neste mesmo ano integrou-se à Federação da Juventude Comunista e logo assumiu a direção nacional de comunicação da organização. Por esta porta, Maurício Grabois entrou para o Partido Comunista do Brasil, à época com a sigla PCB.

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No Levante da Aliança nacional Libertadora (ANL) de 1935, Maurício Grabois estava no olho do furacão. Em seguida, mergulhou na clandestinidade para ajudar a manter o fio que sustentaria o mínimo de organização do Partido Comunista do Brasil — o jornal A Classe Operária. Mesmo nos tempos mais duros da repressão do Estado Novo, ele e mais alguns jovens intrépidos — entre eles, Amarílio Vasconcelos — mantiveram na ativa o órgão central do Partido.

Com a prisão de todo o Comitê Central, Maurício Grabois e Amarílio Vasconcelos começaram a articular a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), que seria integrada, mais tarde, por João Amazonas e Pedro Pomar, vindos do Pará; Diógenes Arruda Câmara, vindo da Bahia; e Luis Carlos Prestes, que estava na prisão. O objetivo era reorganizar o Partido Comunista do Brasil, meta alcançada com a realização da Conferência da Mantiqueira, em 1943.

Delegação na URSS

A vitória da democracia na Segunda Guerra Mundial criou as condições para o fim da estrutura do Estado Novo. Maurício Grabois e seus camaradas organizaram um grande movimento de massas que conquistou a anistia aos presos políticos — entre eles, Prestes —, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e a realização de eleições em 2 de dezembro de 1945.

Em 1º de fevereiro, ele e mais quatorze deputados, além do senador Luis Carlos Prestes, entraram no Palácio Tiradentes, no Distrito Federal — Rio de Janeiro, à época —, para tomar posse como constituintes eleitos. Quase oito meses depois, o país recebeu a Constituição que enterrou os entulhos do Estado Novo. Imediatamente depois, Maurício Garbois assumiu a liderança da bancada comunista na Câmara dos Deputados e liderou uma batalha gigantesca contra o que ele chamava de “restos fascistas”. Nesse período, escreveu intensamente para desmascarar as manobras anticomunistas. Além da Tribuna Popular, propôs o relançamento d’A Classe Operária, o que ocorreu em 9 de março de 1946.

Ao final da refrega iniciada logo nos primeiros dias de 1946, o Partido Comunista do Brasil perdeu seu registro legal no Tribunal Superior Eleitoral e todos os comunistas eleitos foram cassados. Em meados de 1955, Maurício Grabois chefiou o terceiro grupo, de 51 integrantes, que fez um curso de duração de mais de um ano em Moscou, ministrado pela Escola Superior do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Caminho da luta armada

Em 1960, no processo do V Congresso, ele iniciou a série de artigos de um grupo que recusou a revisão da linha revolucionária do Partido Comunista do Brasil, iniciada com a publicação da Declaração de Março, em 1958. Maurício Grabois foi o primeiro a escrever e deixou bem claro que havia no Partido Duas Concepções, Duas Orientações Políticas — título do seu artigo inicial.

Na Tribuna de debates, publicada no jornal Novos Rumos, cristalizaram-se duas posições antagônicas: de um lado ficaram, além de Maurício Grabois, entre outros, João Amazonas, Pedro Pomar, Carlos Nicolau Danielli e Ângelo Arroyo; de outro, estavam nomes como Luis Carlos Prestes, Mário Alves e Jacob Gorender. A polêmica evoluiu para a criação do Partido Comunista Brasileiro e a reorganização do Partido Comunista do Brasil — agora um PCB e outro PCdoB.

A chegada do golpe de Estado em 1964 fez com que o PCdoB optasse pelo caminho da luta armada. Maurício Grabois, João Amazonas, Ângelo Arroyo e Elza Monnerat foram para a selva do Araguaia, no Sul do estado do Pará, preparar a implantação de um núcleo do que seria a guerra popular. Além das tarefas práticas, Maurício Grabois e João Amazonas escreveram os estratégicos textos Atualidade do pensamento de Lênin Cinquenta anos de Luta — o primeiro uma crítica à tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como “nova etapa do marxismo” e o segundo um retrospecto das atividades ininterruptas do Partido Comunista do Brasil.

Para João Amazonas, Maurício Grabois foi o grande amigo, o grande camarada. “O Maurício Grabois foi um dos maiores propagandistas que o Partido já teve, um homem de muitas ideias”, afirmou. Em sua sala, na velha sede nacional do PCdoB na Rua Major Diogo, em São Paulo, João Amazonas conservava um quadro com a foto de Maurício Grabois em posição mais destacada entre outras referências comunistas. Ele também lembrou da constituinte de 1946, “na qual Maurício Grabois teve uma presença de espírito muito grande”.

Engraçado e pessoa distinta

Nas entrevistas que fiz para o livro Maurício Grabois — uma vida de combates, a admiração por ele foi unânime. Segundo Renato Rabelo, ex-presidente nacional do PCdoB e da Fundação Maurício Grabois, João Amazonas lembrava dele em tudo. “Era, na opinião dele, talvez o maior dirigente que o Partido teve”, disse. “Eles deviam ter uma ligação de amizade muito forte”, afirmou.

Edíria Carneiro, a companheira de João Amazonas, ao buscar na memória lembranças de Maurício Grabois estampava no rosto um semblante de carinho e bom humor. “Ele era muito engraçado”, disse ela, com o pensamento longe. Armênio Guedes, que morou com ele nos tempos da revista Continental, dos anos 1940, lembrou: “Era de um temperamento afável no trato com as pessoas, um sujeito de muita compreensão com o lado humano do militante. O Grabois e o Amarílio eram educados, não eram mandonistas.”

Do mesmo modo, Jacob Gorender lembrou de Maurício Grabois com reverência. “Tenho dele as melhores recordações. Era afável, fácil de se conversar. Foi um grande camarada, isso é fora de dúvida”, disse. Na sala de sua residência repleta de livros, de pé na porta, com a entrevista já encerrada, Gorender disse: “Não esqueça de registrar minha grande admiração por Maurício Grabois. Foi uma pessoa distinta. Estivemos em campos diferentes, mas isso nada tem a ver com sua integridade, simpatia e camaradagem.”

Atividade político-ideológica

Diógenes Arruda Câmara, em artigo publicado no jornal A Classe Operária de setembro/outubro de 1978, disse que “considerável foi sua atividade, tanto político-ideológica como prática, no trabalho de reorganização marxista-leninista do Partido de 1961 a 1962, contribuindo de forma destacada, juntamente com o camarada Amazonas, para o esclarecimento de importantes problemas da revolução brasileira e na elaboração do Programa do Partido, aprovado na Conferência Nacional Extraordinária de fevereiro de 1962”.

Sobre a atuação de Maurício Grabois na Guerrilha do Araguaia, Arruda afirmou: “Ali esteve desde os primeiros momentos, ali conviveu com as massas exploradas e oprimidas e sentiu sua grande revolta, ali atuou abnegadamente ombro a ombro com todos os camaradas, ali colaborou na elaboração de valiosos documentos políticos e militares, ali comandou as Forças Guerrilheiras do Araguaia, ali tombou como um bravo. Caiu com glória, caiu de arma na mão naquele campo de batalha da luta de classes, no Araguaia — ponto alto da referência da luta revolucionária e libertadora de nosso povo.”

– Aurélio Peres, símbolo do PCdoB na resistência à ditadura militar

 

A biografia de Aurélio Peres, escrita pelo jornalista Osvaldo Bertolino, traça o perfil desse combativo líder popular no contexto dos grandes enfrentamentos com a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980.

Primeiro ele liderou a criação dos Clubes de Mães na zona Sul de São Paulo e depois o Movimento do Custo de Vida, que se espalhou pela cidade e chegou em outros estados.

Foram ações que visaram basicamente o combate à alta dos preços dos chamados gêneros de primeira necessidade, que castigava principalmente os lares das periferias.

Nesse processo, Aurélio Peres, como militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e depois do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), se incorporou também à luta sindical, transformando-se em importante liderança dos metalúrgicos de São Paulo, ao lado de personagens como Santo Dias e Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão. Acabou preso e brutalmente torturado do DOI-Codi e no Dops.

Foi salvo por sua ligação com lideranças progressistas da Igreja Católica — sobretudo o cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns —, que acionaram o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e que, numa atitude corajosa, enfrentou os assassinos dos porões da ditadura militar para livrar Aurélio Peres da morte.

Em 1978, Aurélio Peres se elegeu deputado federal pelo então MDB, com uma surpreendente votação para quem fez a campanha praticamente sem recursos.

Na Câmara dos Deputados, ele se destacou como umas das vozes atuantes na defesa dos trabalhadores e no combate à ditadura militar. Na campanha pela anistia, Aurélio Percorreu o país junto com o senador Teotônio Vilela, defendendo a volta da democracia e denunciando os crimes do regime.

Em 1982, se reelegeu deputado federal, com uma votação ainda mais expressiva, e participou com destaque das “Diretas já!” e do movimento que elegeu Tancredo Neves presidente da República.

O livro tem 558 páginas e descreve a vida de Aurélio Peres desde a sua infância nas lavouras de café no interior paulista, passando pela sua vida de seminarista e se estendendo por sua profícua atuação nos movimentos populares e sindical, ativismo que não abandonou quando exerceu seus dois mandatos de deputado federal.

Osvaldo Bertolino, com a experiência da produção de outras biografias, faz um retrato minucioso desse importante personagem da vida democrática brasileira, num período que pode ser considerado decisivo para os avanços obtidos com a Constituição de 1988, agora sob forte ameaça.

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Aurélio Peres autografa livro de sua biografia escrita pelo jornalista Osvaldo Bertolino

– A história da relação entre Getúlio Vargas e o Partido Comunista do Brasil

Por Osvaldo Bertolino

A primeira avaliação dos comunistas sobre Getúlio Vargas ocorreu no processo da Revolução de 1930, tida como oposta à tática de fazer uma terceira revolta após o levante do Forte de Copacabana em 1922 e o movimento de São Paulo e do Rio Grande do Sul de 1924, uma sequência da Coluna Prestes. Maurício Grabois, uma das principais lideranças históricas do Partido, avaliou que durante a campanha da Aliança Liberal, o movimento político de Getúlio, os comunistas não poderiam tomar posição ao seu lado devido às suas debilidades.

Tomasse posição ao lado de Getúlio, disse, o Partido estaria na prática servindo de ala esquerda e de agitação para o golpe da Aliança Liberal. “Ao tomar essa posição independente, apresentando candidato próprio à presidência da República (Minervino Pereira), o Partido desmascarou o caráter reacionário da Aliança Liberal e a posição antidemocrática do governo de Washington Luis. Também justa foi a posição de (Luiz Carlos) Prestes, não participando do movimento armado de 1930 e desmascarando seu conteúdo imperialista. Com esta atitude, Prestes aumentou seu prestígio em contraste com a desmoralização crescente dos participantes do golpe de 1930.”

Prestes, adepto da ideia de que o Brasil precisava passar por reformas estruturais, fora consultado por Getúlio para acompanhá-lo. Mas optou por um caminho próprio e no começo de 1930 lançou o célebre Manifesto de Maio — no qual defendeu um governo baseado nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros — e criou a Liga de Ação Revolucionária.

O Partido recebeu o documento de Prestes com um misto de apoio e críticas. Para os comunistas, conforme nota publicada no jornal A Classe Operária em 5 de julho de 1930, o Manifesto desmascarava ainda mais o “caráter reacionário” da Aliança Liberal de Getúlio. “Para nós, o Manifesto representa apenas a comprovação mais segura do aprofundamento da marcha para a esquerda, agravada pela penetração cada vez maior dos imperialismos inglês e norte-americano”, dizia o texto.

Revolução Constitucionalista

O documento reconhecia, “sem confessar abertamente”, a “justeza da linha política do Partido Comunista”. Mais adiante, as críticas: “Nós temos o direito de pensar que Luiz Carlos Prestes seja de novo arrastado para o jogo da Aliança e do imperialismo. Sua categoria social, a pequena burguesia, suas ligações com os elementos reacionários da Coluna Prestes e com a Aliança Liberal, suas vacilações anteriores justificam essa nossa opinião, que temos o dever de apontar às massas.”

Grabois reconheceria, em 1972, que aquela avaliação estava errada. Um documento escrito por ele e João Amazonas – outra liderança histórica do Partido –, intitulado Cinquenta anos de luta, diz que a dubiedade decorria de duas lacunas históricas: a pouca experiência política da classe operária e o precário conhecimento do marxismo. Como consequência, o Partido não compreendeu aquele processo político e não descortinou naquelas lutas o movimento por transformações democrático-burguesas.

Considerou que o proletariado nada tinha a ver com os fatos em desenvolvimento no país e adotou posições sectárias, se ausentando da situação real. Aplicando mecanicamente as teses da Internacional Comunista, defendeu a criação de um governo apoiado em sovietes de operários e camponeses. O Partido se isolou, principalmente após o levante de São Paulo em 1932, a chamada “Revolução Constitucionalista”, quando Getúlio abria caminho para consolidar o seu governo. O Partido só daria um passo adiante quando foi ajudado pela política da Internacional Comunista que orientava a formação de frente única contra o fascismo.

De acordo com Grabois e Amazonas, a política ampla, com o gume dirigido contra o fascismo e o imperialismo, levou à organização da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que agrupou extensos setores populares e numerosos civis e militares que participaram da Revolução de 1930. Uma parte dos tenentes aderiu de vez ao governo de Getúlio, mas muitos ajudaram a fundar a ANL, que preparou e dirigiu o Levante antifascista de 1935.

O plano do capitão

Após a derrota da ANL, Getúlio jogou pesado contra os comunistas. Em quatro vezes sucessivas ele pediu — e conseguiu — ao Congresso que prorrogasse o estado de sítio por mais noventa dias. Prestes, que havia ingressado no Pàrtido, foi preso em 5 de março de 1936, depois de uma caçada comandada por Filinto Müller, o chefe da polícia política, que esquadrinhou o bairro do Méier, no Rio de Janeiro, e revistou casa por casa. Ele estava com a esposa, a alemã Olga Benário, que foi deportada grávida para a Alemanha nazista e morreu pouco tempo depois de dar à luz a menina Anita Leocádia Prestes, na câmara de gás da cidade de Bernburg.

Na prática, a onda anticomunista atingia a todos os que se opunham, minimamente que fosse, ao governo. Por qualquer motivo, os acusados eram considerados adeptos do “credo soviético” e encarcerados. Quando Carlos Marighella foi preso, em 1º de maio de 1936, a polícia alegou que encontrara em seu poder artigos datilografados, prontos para a impressão. Na Polícia Central ele foi amarrado e açoitado. Com um potente foco de luz apontado para os olhos, um torturador invisível dizia que Getúlio estava louco para saber onde se imprimia A Classe Operária, o órgão central do Partido.

Em 10 de novembro de 1937, como pretexto para contrapor-se a um novo plano dos comunistas de tomada do poder pela força, Getúlio proclamou a ditadura do Estado Novo. Na preparação do golpe, o governo interveio nos estados do Maranhão e Mato Grosso, e no Distrito Federal. O presidente da República transferiu comandantes militares de sua confiança para os estados onde seu controle era menor e em setembro de 1937 o Estado-Maior do Exército revelou o documento forjado sobre um novo plano de levante comunista — conhecido como Plano Cohen. Nos primeiros dias de outubro de 1937, a mídia divulgou o documento com grande alarde.

O texto fora redigido pelo capitão Olympio Mourão, integralista e membro do serviço de informações do Exército. O Congresso foi fechado, os partidos proscritos e uma nova Constituição, decretada pelo rádio na calada da noite do golpe, passou a conferir poderes ditatoriais ao presidente. Apesar da dura repressão, os comunistas mantiveram-se na ativa. A Classe Operária de fevereiro de 1938 publicou texto na capa com o título O “Estado Novo” não consegue consolidar-se. “A ditadura fascista de Getúlio é o mais nefasto governo que já pesou sobre a nação”, dizia o jornal.

Bloco pujante

Havia também mudanças significativas no cenário mundial. Pouco antes do Pacto de Munique, tratado assinado na cidade homônima em 29 de setembro de 1938 entre a França, a Inglaterra e a Alemanha nazista para isolar a União das Rapúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o Partido advogou, no jornal 16 de julho de março de 1938 — A Classe Operária estava temporariamente nas mãos dos trotskistas, em São Paulo —, a unificação das forças democráticas “num só bloco pujante” para “seguir o caminho das potências democráticas, especialmente os Estados Unidos, contra o fascismo e todas as potências fascistas”. No Brasil, os fascistas também davam o ar da graça. Depois de flertar com o governo, em 11 de maio de 1938 os integralistas tentaram derrubar Getúlio e foram rechaçados.

Em um Manifesto do Birô Político, o Partido cobrou uma posição do presidente, que não poderia ficar calado diante do avanço nazifascista. “Os pan-americanistas de coração não podem ficar surdos aos apelos de Litvinov (Maxim Maximovich Litvinov, ministro das Relações Exteriores soviético), Roosevelt (Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos) e Cárdenas (Lázaro Cárdenas del Río, presidente do México), três personalidades marcantes entre os mais insignes estadistas da atualidade”, disse. “Por que só o nosso presidente se cala?”, perguntou o documento. Segundo Octávio Brandão, um dos fundadores do Partido, o governo era irresoluto, contraditório e vacilante entre as suas alas fascista e democrática.

Os fascistas estavam ativos. O jornal O Estado de São Paulo disse que os líderes da repressão, Filinto Müller e o capitão Felisberto Batista Teixeira, diretor da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), moravam “no coração dos brasileiros”. Segundo o Jornal do Brasil, a nação contraiu uma dívida com a polícia pela defesa da “nacionalidade” e da “civilização cristã”. As “atividades extremistas” deveriam ser condenadas por sua “incomparável e diabólica aptidão para corromper e envenenar”.

Como denunciaria Amazonas, a reação fascista escolhera justamente o dia 7 de novembro, aniversário da Revolução Russa, para conduzir Prestes brutalmente ao nefasto Tribunal de Segurança Nacional, em 1940. “Mas Luiz Carlos Prestes reafirmou-se na sua grandeza: perante o nefasto Tribunal, saudou os imortais povos soviéticos, prestou sentida e profunda homenagem à Revolução Socialista, dando-nos, assim, com sua corajosa atitude, um exemplo que jamais será esquecido e que os comunistas sempre terão presente em sua luta contra o nazifascismo, pela democracia, progresso e bem-estar da pátria e do povo brasileiros”, afirmou.

Telegrama de Mussolini

Discursando a bordo do encouraçado Minas Gerais, em 11 de junho de 1940, Getúlio disse que o Brasil havia criado “um regime adequado às nossas necessidades”, fazendo considerações interpretadas como elogios ao governo alemão e ao italiano. O ditador da Itália, Benito Mussolini, chegou a enviar um telegrama ao presidente brasileiro cumprimentando-o por ver “a nova realidade histórica europeia como realmente é, e não como querem as chamadas democracias”.

Irritado com a repercussão de suas palavras, Getúlio fez novo pronunciamento, em 29 de junho, enfatizando que as críticas ao seu discurso partiram daqueles que interpretaram suas palavras “com comentário falseado e a publicação tendenciosa de frases isoladas”. Imediatamente após o imbróglio, o presidente determinou que o Brasil entabulasse conversações com os Estados Unidos para a defesa do hemisfério. Os norte-americanos temiam um ataque do Japão, uma das peças do Eixo nazifascista, e pretendiam aparelhar bases militares no Brasil.

O que era temor virou realidade no final de 1941, quando os japoneses atacaram Pearl Harbor. Os norte-americanos passaram à situação de beligerantes e apressaram o governo brasileiro nas negociações para permitir o uso das bases de Belém, Natal e Recife. Getúlio concordou. Estava aberta a porta para uma guinada radical da política externa brasileira.

Logo o governo adotaria uma posição de abrandamento das medidas repressivas. No teatro da Segunda Guerra Mundial, deflagrada em 1939, a URSS, invadida pelos nazistas em agosto de 1941, avançava para empurrar as forças de Adolf Hitler de volta a Berlim e as potências ocidentais se aproximavam de um concerto internacional. Getúlio determinou que o Brasil entrasse nessa aliança e entabulasse conversações com os Estados Unidos. Nos primeiros meses de 1942, o governo brasileiro deu demonstrações inequívocas de que estava caminhando para se aliar aos que combatiam o nazifascismo. Em 22 de janeiro, Getúlio decretou a pena de morte para certos atos de sabotagem. Pouco depois, o arquipélago Fernando de Noronha foi declarado zona militar.

Carne de canhão

Nos primeiros dias de fevereiro, Getúlio decretou medidas de precaução contra possíveis ataques aéreos e assinou o decreto que instituiu a base de Natal. Em 7 de março, tomou a medida mais importante — a formação da Comissão de Defesa Nacional, presidida pelo chanceler Osvaldo Aranha, com poderes extraordinários. Em meados de agosto, quando o Brasil já havia perdido uma razoável quantidade de vidas, cargas e navios, o governo reconheceu a situação de beligerância com as nações agressoras (Alemanha, Itália e Japão).

Os comunistas organizaram manifestações de rua, com faixas e slogans de protestos contra o Eixo nazifascista, para apoiar a decisão de Getúlio. O povo queria a guerra. Pela primeira vez o Brasil se engajaria em um conflito daquelas proporções e todos os brasileiros foram chamados a colaborar. Não restava dúvida de que Getúlio pendia para o lado dos aliados e recebia o devido reconhecimento dos comunistas.

Em carta a Agildo Barata em 22 de junho de 1942, Prestes disse não estar mais preocupado com seu antigo temor de que “os imperialistas quisessem fazer do nosso povo carne de canhão”. “Hoje, ao contrário, sou de opinião que só pelo sacrifício voluntário do sangue de nosso povo, pela participação ativa na luta dos povos antifascistas, onde for necessário, em qualquer parte do mundo, salvaremos nossas cidades da destruição e evitaremos o massacre de mulheres e crianças, para não falar da ignomínia que seria permitir, por omissão, a organização em nossa pátria de bases nazistas para o ataque ao povo americano”, escreveu. Para ele, seria urgente convencer o povo brasileiro da necessidade de fazer sacrifícios.

Passeata antitotalitária

Prestes também entregou uma mensagem ao comunista cubano Blas Rocas, em julho de 1942, que o visitara na prisão por arranjo de Osvaldo Aranha, dizendo que, a despeito dos sofrimentos, não estava disposto a viver em recolhimento pessoal. Considerava seu dever, e dos verdadeiros patriotas brasileiros, cessar todas as disputas de caráter interno e unir esforços para acelerar a derrocada das potências do Eixo nazifascista. A quinta-coluna, acrescentou, era mais forte no Brasil do que no resto da América, mas poderia ser imobilizada se as massas tivessem fé no programa antiEixo.

Grabois avaliou que, ao abrir caminho para o progresso do movimento patriótico e antifascista, aquelas medidas despertaram os pendores fascistas de setores do governo, nomeadamente do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, e o aparelho repressivo chefiado por Filinto Müller. Em 4 de julho de 1942, dia da Independência dos Estados Unidos, os estudantes organizaram uma “passeata antitotalitária” que contou com o apoio do ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, e a repulsa de Filinto Müller.

O chefe da repressão tentou impedir a passeata, desacatou o ministro da Justiça interino, Vasco Leitão da Cunha, foi preso e demitido. Foram demitidos também Francisco Campos, ministro titular da Justiça, e Lourival Fontes, diretor do execrado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Felisberto Batista Teixeira, o diretor do Dops, também foi afastado. O peso desse setor havia levado o governo a reagir com timidez ao torpedeamento de vários navios da Marinha brasileira por submarinos alemães.

Obsessão anticomunista

Grabois disse que a política dos comunistas de união nacional contra o nazifascismo definia bem os campos entre patriotas, independentemente dos matizes das opiniões políticas, os que aspiravam para a pátria bem-estar, progresso e cultura; e os antipatriotas, os pró-nazismo, os quinta-colunistas, os vendidos ao Eixo por dinheiro ou pela fascinação dos mitos de superioridade racial, do Estado corporativo totalitário. A união nacional haveria de realizar-se em torno do presidente, que dirigia o país em guerra.

Antigas pendências e dissensões deveriam ser postas à parte diante do quadro supremo da pátria em luta, na mais difícil e penosa de todas as guerras, afirmou. Em outra dimensão, a união nacional deveria apoiar-se em uma estrutura popular. Para enfrentar certos aspectos do esforço de guerra, era necessário compreender a importância das organizações cívicas e de classe, como a Legião Brasileira de Assistência (LBA), a Liga da Defesa Nacional, a Sociedade Amigos da América, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o movimento sindical.

Os comunistas imprimiam um ritmo acelerado na mobilização popular para liquidar o Estado Novo, mas ainda não se mostravam como corrente política organizada. A repressão ainda era intensa. Em 12 de janeiro de 1943, Dutra escreveu uma carta a Getúlio reclamando de críticas a ele por sua obsessão anticomunista pelo presidente da Sociedade Amigos da América, general Manuel Rabelo. Enviada em caráter “pessoal e secreta”, a carta queixava-se do tom ácido empregado por Rabelo em um discurso na cidade de São Paulo referindo-se ao “perigo comunista” como “espantalho e duende imaginários que serviam para distrair as atenções e deixar o povo desprevenido contra o inimigo real”.

Pacificação da família brasileira

Não era a primeira vez que os dois se estranhavam. Em 1942, o ministro da Guerra havia atacado Rabelo, também em carta a Getúlio, dizendo que ele estava “sempre cercado, em seus discursos e visitas, por elementos suspeitos de comunismo”. Em junho de 1943, quando Rabelo foi a Salvador organizar a seção local da Sociedade Amigos da América, Jacob Gorender, jornalista e futuro dirigente do Partido, fez uma entrevista com ele para a revista dos comunistas locais, chamada Seiva, publicada depois de aprovada pelo general, com críticas à indiferença do governo diante da vulnerabilidade do país depois de declarada a guerra, que resultou na prisão do repórter e dos demais integrantes da revista. “O ministro Gaspar Dutra mandou prender todos os redatores e a revista Seiva teve as portas fechadas”, rememora João Falcão, à época diretor de redação da publicação, em seu livro O Partido Comunista que eu conheci.

Rabelo escreveu a Getúlio que “a obstinada e doentia preocupação do ministro da Guerra em enxergar por toda parte o perigo comunista” era uma paranoia. “Ninguém mais sente a iminência desse perigo, sobretudo depois que a Rússia se aliou às Nações Unidas na luta contra os totalitários e principalmente depois da extinção do Comintern (a Internacional Comunista) e da adesão à Carta do Atlântico”, escreveu Rabelo, lembrando que o Brasil participava dessas alianças.

A conjuntura evoluiu para a abertura da segunda frente da guerra contra o nazifascismo, em 6 de junho de 1944, com o desembarque das tropas aliadas na Normandia. Em 17 de julho, o primeiro escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB) desembarcou em Nápoles, Itália. Era uma vitória importantíssima para os comunistas, que mobilizaram forças e organizaram grandes ações em favor desse objetivo — muitos comunistas alistaram-se e foram combater na Itália. “Fomos os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil e o fizemos de maneira consequente”, segundo Amazonas.

Para os comunistas, em 1944 já era possível falar publicamente das suas ideias. No ato do Dia Internacional dos Trabalhadores daquele ano, em 1º de maio, ocorrido no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, Armando Coutinho, antigo militante do Partido preso várias vezes, elogiou os princípios democráticos da Carta do Atlântico e pediu a “pacificação da família brasileira”. Segundo o escritor Jorge Amado, no livro Homens e coisas do Partido Comunista, em uma reunião da Liga da Defesa Nacional, realizada dia 6 de junho de 1944, representantes da UNE e o dirigente comunista Ivan Ramos Ribeiro falaram abertamente do Partido.

Pânico entre os esquerdistas

Getúlio recebia aquelas notícias com insatisfação e, como era do seu feitio, mexeu as peças no tabuleiro político para mostrar que ainda detinha as rédeas do Estado Novo. Ele trocou o chefe de polícia, Nelson de Melo, por Coriolano de Góis, famoso por ter comandado violências da polícia para reprimir manifestações contra o governo, quando havia sido secretário da Segurança Pública em São Paulo no ano anterior, que resultaram em mortes de estudantes e de outras pessoas.

Segundo o jornalista José Soares Maciel Filho, redator de grande parte dos discursos de Getúlio, a nomeação de Coriolano “indiscutivelmente” fora “uma bomba” para causar “pânico entre os esquerdistas”. “Os elementos comunistas estão infiltrados nas camadas das classes liberais, principalmente no Poder Judiciário e entre os advogados”, escreveu ele em carta endereçada ao irmão do presidente, Benjamin Vargas.

Grabois logo cairia na rede de Coriolano, que montou um programa de “arregimentação” de comunistas em prol da ordem pública. Na primeira leva de detidos, entre 5 e 17 de julho de 1944, estavam, além de Grabois, Amarílio Vasconcelos, Armando Coutinho, Roberto Morena e Iguatemi Ramos. Em 25 de julho, eles estavam na plateia que ouvia uma conferência do senador comunista chileno Salvador Ocampo na sede da Liga de Defesa Nacional quando foram presos novamente. Acusados de aplaudir entusiasticamente os conceitos expressos “por aquele extremista”, ficaram detidos dez dias.

A ofensiva de Coriolano atingiu também as publicações que criticavam o governo, um processo que a revista norte-americana Times chamou de “censura meticulosa”. O jornal Correio da Manhã foi multado por criticar a nomeação de Coriolano. Outros meios de comunicação chegaram a ser suspensos. Foi o caso da revista Diretrizes, do jornalista Samuel Wainer, que, mesmo com o apoio da UNE e do chanceler Osvaldo Aranha, não se salvou. O próprio Aranha foi atingido pela mão pesada de Coriolano quando se preparava para assumir a vice-presidência da Sociedade Amigos da América, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. A polícia invadiu o prédio e impediu a cerimônia. Ao saber que Getúlio, seu aliado histórico, apoiava a truculência pediu demissão da chancelaria.

Ilha de autoritarismo

Segundo o dirigente do Partido Comunista da Argentina Rodolfo Ghioldi, que como representante do Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista acompanhou os primeiros anos do Partido, a renúncia de Osvaldo Aranha era um exemplo da prevalência da política do Estado Novo. A nomeação de Coriolano, de acordo com o comunicado de Rodolfo Ghioldi, foi comemorada em uma festa de aniversário do cônego Olímpio Melo que, como presidente da Câmara Municipal, assumira o cargo de prefeito do Distrito Federal quando o titular do cargo, Pedro Ernesto, foi preso pela polícia de Filinto Müller em 1936. Os reacionários “denunciaran la iminente amenaza comunista contra la família brasileña”, dizia o texto de Ghioldi.

Coriolano espalhou agentes por todos os lados, que sempre retornavam com informes dando conta da presença de inimigos do governo nas atividades políticas que emergiam pela cidade. As anotações eram minuciosas e classificavam os vigiados como comunistas ou não. Havia também os “mais ou menos comunistas”, como o padre francês Joseph Ducatillon que atraiu vários comunistas para uma palestra, todos devidamente identificados pelos agentes de Coriolano. Na ocasião, segundo as anotações da polícia, trinta oficiais militares ouviram um discurso de crítica ao governo feito pelo coronel Juarez Távora, novo chefe do Departamento Militar da Liga de Defesa Nacional. As informações também diziam que o jornalista Carlos Lacerda acreditava no fim da ditadura no Brasil com a florescente influência da URSS.

Grabois foi mais uma vez pego pelas garras de Coriolano em dezembro de 1944, depois de várias prisões dos mapeados pela polícia. O chefe da repressão tinha em mãos cem nomes de pessoas que deveriam ser detidas. Junto com Grabois foram presas mais dezessete — doze, além dele, classificadas como comunistas. Os “adeptos do credo vermelho” foram acusados de “feitura de boletins subversivos” e detidos, segundo a Delegacia de Segurança Social, “em consequência de ligações que mantinham em frequentes encontros”.

Mas o Estado Novo já era uma ilha de autoritarismo em meio ao oceano democrático que se formava com o iminente fim dos regimes do Eixo nazifascista. Essa constatação ficou evidente até para alguns próceres da ala fascista do governo, como o ex-chefe do Estado-Maior do Exército, general Góis Monteiro, e Dutra.

Retornando de Montevidéu em outubro de 1944, Góis Monteiro declarou que, conferenciando com oficiais pelo caminho, verificou “uma ansiedade geral para a volta do país a um regime constitucional legítimo”. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, disse que chegava “para acabar com o Estado Novo”. Na mesma época, Dutra visitou a FEB na Itália e ao retornar informou que estudou relatórios confidenciais sobre a situação política e aconselhou Getúlio a tomar medidas de “normalização constitucional” antes mesmo do fim da guerra.

Em 31 de dezembro de 1944, Getúlio anunciou uma evolução gradual do quadro institucional do país, com base em “ampla e livre consulta à opinião pública”, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. Mas encaixou a advertência: estava atento à “agitação prematura” e às “perturbações demagógicas”. Os anátemas do presidente contra os movimentos democratizantes não impediram os comunistas de retomar suas atividades logo após a virada do calendário.

Evasivas e restrições

Em 22 de janeiro de 1945, conforme a escritora Carolina Nabuco, as teses dos intelectuais comunistas para o I Congresso Brasileiro de Escritores, promovido pela Associação Brasileira de Escritores (ABDE), obtiveram ampla cobertura da imprensa. Dentro de poucos dias ocorreria o evento, defendendo ideias como a redistribuição da terra nas áreas rurais, o combate sem trégua ao nazifascismo, a liberdade de expressão e a restauração da república na Espanha oprimida pelo regime do general fascista Francisco Franco.

Nomes que ficariam conhecidos como intelectuais comunistas ou ligados ao Partido estavam presentes. Entre eles, Astrojildo Pereira, Dalcídio Jurandir, Cristiano Cordeiro, Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Carlos Drummond de Andrade e Nelson Werneck Sodré. Os que não eram comunistas também se posicionaram abertamente a favor da democratização do país. “Não havia diferença entre comunistas e não comunistas; éramos todos aliados”, disse o intelectual Antônio Cândido. Segundo a Declaração de Princípios do Congresso, os intelectuais consideravam “urgente a necessidade de ajustar-se a organização política do Brasil” para a conquista completa da liberdade de expressão e a eleição de um governo “pelo voto mediante sufrágio universal, direto e secreto”.

Parecia que a cabeça de Getúlio estava em sintonia com as dos intelectuais do Congresso da ABDE. Em 28 de fevereiro de 1945 ele promulgou a Lei Constitucional número 9, um Ato Adicional que abria caminho para eleições presidenciais e parlamentares. Segundo Amazonas, a decisão fora tomada de maneira dúbia, com evasivas e restrições para eventualmente complementar os órgãos do Estado Novo. No começo de março, Getúlio concedeu entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada no dia 3, defendendo o restabelecimento das relações diplomáticas com a URSS e dizendo estar disposto a considerar uma anistia política, estudando caso a caso.

O presidente se afastava do grupo mais identificado com o fascismo e, consequentemente, se aproximava do Partido. O diplomata Orlando Leite Ribeiro foi designado por Getúlio para ser o elo com Prestes, ainda encarcerado, conforme relata o capitão Agildo Barata, líder do levante da ANL no Rio de Janeiro em 1935 e mais tarde um destacado dirigente comunista, no livro Vida de um revolucionário.

Tempos depois, Prestes avaliaria que Getúlio precisava dos comunistas. Não era mais possível ignorar o prestígio da política do Partido, que mostrara seu valor nas organizações que lutavam pela paz e no movimento sindical — o Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), surgido do departamento sindical que se organizou na Liga de Defesa Nacional e dirigido por Amazonas, gozava de grande prestígio entre os trabalhadores.

Mundo político

A essa altura, Grabois já era um articulador que buscava interlocução no mundo político. Quando Getúlio fez os primeiros movimentos dando sinais de que promoveria um “ato que reestruturará o regime”, como definiu o jornal Gazeta de Notícias em fevereiro de 1945, ele participou do grupo que assinou um telegrama endereçado a José Américo de Almeida, ex-ministro da Viação e Obras Públicas e pré-candidato à presidência da República apoiado por Getúlio para as eleições que deveriam ocorrer em 1938, que declarara em entrevista ao jornal Correio da Manhã ser favorável à ampla e irrestrita democratização do país. O telegrama dizia:

Queira aceitar nossos aplausos pelos pontos de vista de unidade e democracia defendidos em sua entrevista ao Correio da Manhã. Estamos certos de que sua sinceridade e experiência política muito contribuirão para garantir uma solução democrática aos nossos problemas, evitando que paixões partidárias deem armas a elementos antidemocráticos para entravar a marcha do processo da nossa democratização. Sua precisa e inteligente interpretação dos acontecimentos de 1937, tendo em vista a falta de unidade das correntes democráticas, serve como um brado de alerta na situação atual. Dentro de um espírito de compreensão e tolerância, esquecidos os ressentimentos, tendo por base um programa que objetive a grandeza da nossa pátria, junto caminharemos, independente de nossas convicções políticas e preferências por candidaturas, no sentido de garantir a democracia tão ansiada pelo nosso povo e heroicamente defendida pela Força Expedicionária Brasileira nos campos de batalha da Europa.

Assinavam também Álvaro Ventura, Iguatemi Ramos, Ivan Ribeiro, Roberto Morena, Amarílio Vasconcelos, José Medina Filho, Júlio Homem de Morais, Spencer Bittencourt e Armando Coutinho.

Poucos dias depois, Grabois assinou outro texto de igual teor, este endereçado a Joaquim Rodrigues Neves, Grão-Mestre da Maçonaria Brasileira.

Apresentamos a vossa senhoria nossas entusiásticas felicitações pelo grande exemplo de civismo dado com sua entrevista. Os pontos de vista de unidade e os conceitos patrióticos que vossa senhoria defendeu, aliados à sua clara visão dos problemas fundamentais do Brasil, constituem motivo de satisfação pata todos os brasileiros honestos. Desta maneira, a maçonaria, coerente com seu passado de luta antifascista, veio mostrar que está integrada no movimento de união nacional destinado a assegurar uma solução democrática e unitária para o país, através de um governo de coalizão nacional capaz de garantir eleições livres dentro de um clima de liberdade e confiança.

Assinaram também Álvaro Ventura, Iguatemi Ramos, Spencer Bittencourt, Ivan Ribeiro e José Medina Filho.

Não havia mais grandes riscos de perseguição policial. Getúlio acabara de nomear João Alberto Lins de Barros, antigo companheiro de Prestes na Coluna, para a chefia de polícia no Rio de Janeiro. Ele chegou declarando que a anistia deveria ser concedida “sem restrições” e anunciou que Prestes poderia receber as visitas que desejasse. João Alberto visitou o Cavaleiro da Esperança na prisão para estender-lhe a mão do governo. “Encontrei-o muito receptivo a uma reaproximação com Getúlio, querendo esquecer as queixas do passado”, disse o novo chefe de polícia, segundo testemunho do jornalista Murilo Melo Filho. Logo em seguida Prestes telegrafou ao presidente, cumprimentando-o pelo reatamento das relações com a URSS e cobrando a anistia.

A propósito das relações diplomáticas com a URSS, Grabois liderou um telegrama a Getúlio, com os seguintes dizeres:

Excelentíssimo senhor presidente da República

Palácio do Catete

O estabelecimento de relações diplomáticas do Brasil com a União Soviética vem reforçar a coesão das Nações Unidas e contribui eficazmente para elevar o prestígio internacional da nossa pátria e ampliar as condições para o progresso e efetiva democratização do nosso país. Essa medida é a concretização de anseios longamente alimentados pelo povo brasileiro, já irmanado com as armas soviéticas na luta pelo aniquilamento do nazi-fascismo, através da gloriosa Força Expedicionária Brasileira. A nação espera que esse ato seja acompanhado pela imediata concessão de anistia ampla e irrestrita a todos os presos políticos não comprometidos com o Eixo, a fim de comparecermos mais fortes e unidos na Conferência de São Francisco (refere-se à reunião de cinquenta países que criou a Organização das Nações Unidas), ocupando o lugar de sexta potência no Conselho de Segurança Mundial.

Assinaram mais de trinta pessoas, entre elas Alzira da Costa Reis — a esposa de Maurício Grabois —, Aydano do Couto Ferraz, Armênio Guedes e Henrique Cordeiro Oest.

Problemas programáticos

A campanha pela anistia crescia rapidamente e ganhava as ruas. Em 6 de abril de 1945, a UNE, a Liga de Defesa Nacional, o MUT e outras organizações promoveram a Semana nacional pró-anistia, que terminou com um comício “monstro” no Largo da Carioca, no dia 13.

Na tarde de 18 de abril de 1945, uma aglomeração se formou em frente ao presídio Frei Caneca para presenciar a saída de Prestes, beneficiado pelo decreto assinado por Getúlio que concedia “anistia a todos quantos tenham cometido crimes políticos desde 16 de julho de 1934”. Não foi possível vê-lo. Ele saiu escoltado pelos militares Trifino Correia e Orlando Leite Ribeiro. Segundo Murilo Melo Filho, a libertação de Prestes fazia parte de um pacote negociado pelo Brasil com a URSS para o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países.

De acordo com o documento Cinquenta anos de Luta, nesse período os comunistas não abordavam as questões relacionadas à revolução. Tratavam apenas de problemas pragmáticos para um tempo limitado. Em 1944 chegaram à posição errônea de união nacional para a guerra e para a paz em torno de Getúlio, grave erro corrigido um ano depois. “Assim, ao término da guerra o Partido reconstruído realizou uma fecunda atividade entre as massas, lançando as bases para o rápido desenvolvimento de suas fileiras”, escreveram Grabois e Amazonas.

A bússola do Partido apontava para um norte bem definido: a redemocratização do país por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte livremente eleita, uma tecla na qual os comunistas batiam fazia tempo. O primeiro objetivo seria trazer Getúlio para esse caminho, uma engenharia de precisão levando em conta o comportamento arisco do presidente e os sabotadores dos avanços democráticos. O apoio às ações do governo era cuidadosamente estudado. “Adotando essa orientação (de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte), o Partido apoia, de certa forma, o governo de Vargas, que, então, tomava medidas de sentido democrático, pretendendo permanecer do poder”, escreveram Grabois e Amazonas referindo-se à Conferência da Mantiqueira de 1943.

A força dos comunistas aparecia por todos os lados. Em um curto espaço de tempo, saíram das cavernas do Estado Novo e começaram a respirar fundo o ar da democracia, sobretudo após o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, entre os dias 8 e 9 de maio de 1945. Consideráveis setores da população viam no Partido o combatente de 1935, o adversário corajoso do Estado Novo, o patriota abnegado na luta contra o nazismo e, por isso, o mais perseguido.

Segundo Grabois e Amazonas, o povo identificava nos comunistas os heroicos combatentes que, sob a direção do líder comunista soviético Joseph Stálin, foram o fator decisivo da vitória sobre o hitlerismo. “Dezenas e dezenas de milhares de homens do povo afluem ao Partido. Aos atos públicos por ele organizados comparecem verdadeiras multidões. Se criam (sic), também, numerosos Comitês Populares, que agrupam grandes massas e seguem a política do PC do Brasil. O movimento sindical, ganhando impulso, procura se libertar do controle do Ministério do Trabalho e aceita os comunistas como força dirigente. Surgem no interior diversas Ligas Camponesas”, escreveram.

Visita a Monteiro Lobato

A força do Partido se mostrou também em comícios nos estádios São Januário, Rio de Janeiro, e Pacaembu, em São Paulo. Na capital paulista, o poeta chileno Pablo Neruda leu um texto sobre o papel de Prestes. O escritor Monteiro Lobato, adoentado, leu, por telefone, uma carta, numa transmissão pelos alto-falantes do estádio. Depois, ele recebeu uma delegação do Partido integrada por Prestes, Neruda e Pedro Pomar, também liderança comunista histórica.

Além da cortesia, a visita a Lobato teve o propósito de sondar a sua disposição para se candidatar a deputado federal nas eleições de 1945. Poucos dias depois, seu nome foi anunciado na chapa apresentada pelo Comitê Estadual paulista do Partido. Lobato desistiria da candidatura por discordar do apoio dos comunistas ao governo, que ele chamou de “perdão a Getúlio”.

No Estado Novo, o escritor fora condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional depois de ter enviado cartas ao presidente da República e ao então ministro da Guerra Góis Monteiro — que precedera Eurico Gaspar Dutra no cargo — dizendo que eles cometiam crimes de lesa-pátria com a vergonhosa subserviência às imposições da Standard Oil, sabotando na prática o potencial industrial petrolífero brasileiro. Cumpriu pena no Presídio Tiradentes, em São Paulo, parte dela em regime de incomunicabilidade. Na prisão, conhecera o comunista José Maria Crispim e se aproximou do Partido.

Os comunistas defendiam a realização das eleições presidenciais depois de aprovada a nova Constituição que sairia da Assembleia Nacional Constituinte. Essa posição foi oficializada no “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto e de 1945. Em um telegrama enviado a Getúlio, cujo texto fora aprovado no pleno, os comunistas pediram uma reforma da Lei Constitucional número 9 “a fim de colocar o problema da reconstitucionalização democrática da nação nos seus verdadeiros termos, através de um decreto que convoque no menor prazo a Assembleia Constituinte, como a maneira mais acertada e segura de derrotarmos política e moralmente o fascismo e garantirmos, ampliarmos e consolidarmos o progresso e a democracia para nossa pátria”.

O Partido estava confiante na aceitação da proposta pelo presidente da República, a julgar pelas palavras iniciais do telegrama. “O Comitê Nacional do Partido Comunista do Brasil, no ato de encerramento de sua primeira reunião pública plenária, em que foram tomadas resoluções que visam acelerar a nossa marcha pacífica para a democracia, vem reafirmar a v. excia. o seu apoio e aplausos às medidas de conteúdo democrático adotadas pelo governo, principalmente a partir do início deste ano”, dizia o texto.

Pronunciamento de generais

O Informe Político apresentado por Prestes delineou a proposta, segundo ele uma sugestão da Comissão Executiva do Partido. “Reclamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, em que os verdadeiros representantes do povo possam livremente discutir, votar e promulgar a Carta Constitucional que pede a nação”, diz o texto, que reprovou a ideia de eleições presidenciais com a Constituição golpista de 1937 em vigor. “O governo que aí temos é um governo de fato e qualquer eleição presidencial, enquanto estiver em vigor a Carta de 1937, inaceitável para qualquer patriota consciente, nada mais significa do que a simples mudança de homens no poder, a substituição de um governo de fato por outro governo de fato, igualmente armado dos poderes vastos e arbitrários que confere ao Executivo a referida Carta”, lavrou o Informe.

A ameaça de entregar uma Constituição discricionária de brinde ao presidente eleito, por meio da vigência sem reforma do Ato Adicional assinado por Getúlio em 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições, era agravada pelos dois candidatos que se apresentaram para a disputa da presidência da República: o general Eurico Gaspar Dutra, que segundo Amazonas fora um dos assinantes da Carta fascista de 1937 – que, de acordo com Pomar, continha até antissemitismo indireto, consequência da marcha ascendente das forças nazifascista em todo o mundo – e o brigadeiro Eduardo Gomes. Segundo o Informe apresentado por Prestes, era evidente o desinteresse popular pelas duas candidaturas que traziam a marca de uma politicagem sem princípios, em que predominavam os interesses e paixões pessoais, servindo apenas para dividir o povo e dificultar o processo de organização das agremiações políticas.

Os comunistas corriam para acumular forças capazes de impedir um retrocesso no processo de democratização. Um sinal de que as coisas poderiam degringolar foi uma boataria que tomou conta do país a respeito de um suposto pronunciamento de generais contra a convocação da Constituinte. A Folha Carioca entrevistou Góis Monteiro, que negou o fato enfaticamente. Não era a primeira vez que se pronunciava contra essa boataria, disse. “As contradições da política não interessam às Forças Armadas”, sentenciou. O ambiente no país estava conturbado por declarações do embaixador dos Estados Unidos, Adolf Berle Júnior, na cidade de Petrópolis, contra a Constituinte e com pitacos anticomunistas.

Getúlio disse que a convocação da Constituinte era um direito do povo. A declaração ocorreu em um comício dia 3 de outubro de 1945 no Largo da Carioca, Rio de Janeiro, promovido pelo Comitê pró-candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República — um movimento que ficou conhecido como “queremista”. “Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre sementes de desordem e revolta”, disse o presidente.

Confiança nacional

Ao comentar a declaração de Getúlio, Pomar disse que o governo sabia quais eram as aspirações da maioria da nação. “O povo saberá apoiar o governo no caminho da democracia”, destacou. Segundo ele, os reacionários tudo fariam para impedir a ampliação e a consolidação da democracia. “O Partido Comunista do Brasil, porém, reafirma sua serena orientação independente e ordeira, com mais um apelo à união nacional em torno da necessidade da convocação da Assembleia Constituinte”, disse.

Pomar entrevia naquela cortina de fumaça sinais de labaredas. Apelou para a formação de um governo de confiança nacional, “capaz não só de assegurar a ordem interna e a união nacional como também enfrentar os sérios problemas da carestia e da inflação, que servem como pretextos de desordem para os agentes reacionários do capital colonizador e monopolista”. Era o que restava naquele momento, disse ele com ênfase. Suas opiniões derivavam de um telegrama que enviara a Getúlio, aplaudindo o “discurso democrático de 3 de outubro”. Em nome de Prestes, que percorria o estado do Rio Grande Sul em comícios pró-Constituinte, Pomar escreveu:

Exmo. Sr. Presidente da República, senhor Getúlio Dorneles Vargas.

Palácio Guanabara — Distrito federal

O Comitê Nacional do Partido Comunista do Brasil vem aplaudir o discurso democrático de V. Excia., ontem pronunciado, no qual, coerente com os últimos passos dados pelo governo, V. Excia. apoia e reconhece o anseio democrático crescente do povo brasileiro a favor da convocação de uma Assembleia Constituinte como melhor caminho para alcançar a democracia em nossa pátria. O Partido Comunista do Brasil, fiel à sua orientação unitária e patriótica, de ordem e tranquilidade, para derrotar os remanescentes do fascismo vem reafirmar a V. Excia. sua posição decidida em prol da modificação da Lei Constitucional nº 9 e a convocação de eleições para uma Assembleia Constituinte que a Nação reclama. O Partido Comunista do Brasil que tem suas forças empenhadas na conquista pacífica dessa conquista democrática se compromete a redobrar esforços, em ação comum com outras correntes políticas, entidades de classe e organizações populares pela mobilização cada vez maior do povo em apoio a mais esta justa medida do governo, que derrotará os reacionários, que procuram entravar a marcha da democracia no Brasil.

Atenciosas saudações

Pelo Secretário-geral

PEDRO POMAR

No comício, Getúlio disse que vinha “recebendo de todos os recantos do país, por telegramas, cartas e notícias de comícios públicos, insistentes apelos, agora reiterados pelo povo da capital federal naquela demonstração impressionante, para convocar uma Constituinte com poderes expressos para elaborar nova carta básica da organização política do país, isto é, uma nova Constituição”. Ele ouviu de um orador referência do embaixador dos Estados Unidos, Adolf Berle Júnior, a um golpe de Estado. “Nenhum diplomata estrangeiro tem o direito de interferir na nossa vida política”, disse o orador. “E isso porque nenhum diplomata brasileiro nunca protestou contra as discriminações raciais americanas”, arrematou.

Em seu discurso, Getúlio fez menção ao caso, sem citá-lo diretamente. “Sem dúvida, a eleição de uma Constituinte é um processo democrático, em perfeito acordo com as nossas tradições. Assim se fez em 1891, assim se fez em 1934, não precisamos, para isso, ir buscar exemplos nem lições no estrangeiro. Possuímos também a nossa tradição de democracia política, étnica e social”, disse.

O presidente esclareceu que para atender àqueles reclamos, manifestados na forma direta e espontânea nos verdadeiros pronunciamentos populares, o governo teria de modificar a Lei Constitucional número 9, e não poderia fazê-lo sem a posição favorável dos órgãos autorizados de opinião — os partidos, as entidades de classe, as forças organizadas. “O meu dever é cumprir a lei. Farei tudo que de mim depender para que o povo escolha livremente os seus candidatos”, afirmou.

Tom de denúncia

Getúlio mostrou desprendimento para buscar uma solução ao impasse político que se acirrava. “Perante Deus, que é o supremo juiz da minha consciência, perante o povo brasileiro com o qual tenho deveres indeclináveis, reafirmo que não sou candidato e só desejo presidir eleições dignas da nossa educação política, entregando o governo ao meu substituto legalmente escolhido pela nação. Mas, se para realizar as aspirações do povo em relação à Constituinte e abrir com a sua convocação novas possibilidades a uma melhor solução do problema eleitoral, que julgam não estar colocadas em bases democráticas, dissipando assim dúvidas e conciliando todos os brasileiros, for necessário o meu afastamento do governo não hesitarei em tomar essa resolução espontaneamente, com o ânimo sereno de quem cumpre um dever até o fim”, discursou.

O presidente finalizou em tom de denúncia. “Devo acrescentar que atravesso um momento dramático da minha vida pública e que preciso falar ao povo com prudência e lealdade. A convocação de uma Constituinte é um ato profundamente democrático que o povo tem o direito de exigir. Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre fermentos de desordem e revolta. E nós precisamos resolver o nosso problema político dentro da ordem e da lei. Devo dizer-vos que há forças reacionárias poderosas, ocultas umas, ostensivas outras, contrárias todas à convocação de uma Constituinte. Posso afirmar-vos que, naquilo que de mim depender, o povo pode contar comigo. Quero terminar apresentando-vos os meus agradecimentos por esta demonstração cívica de alta significação. Ela bem demonstra que o povo brasileiro possui educação cívica, sabe o que quer e sabe para onde vai. Diante dessa manifestação, que considero como uma delegação da vontade popular, me sinto largamente compensado das agruras que tenho sofrido por servir com devotamento ao povo brasileiro.”

Dois dias depois, o Secretariado Nacional reuniu-se na sede do Partido, na Rua da Glória número 52, para debater o assunto. Grabois disse que a fala de Getúlio foi uma vitória do povo. “O discurso do presidente Vargas, por ocasião da manifestação de 3 de outubro, foi a primeira grande vitória do povo na sua luta organizada pela convocação das eleições para uma Assembleia Constituinte. O senhor Getúlio Vargas deu mais um passo no caminho da democracia, ao afirmar que satisfará os anseios do povo. Cumpre agora à nação coroar a campanha pró-Constituinte, obtendo através das organizações políticas, sindicais e populares a vitória final, enfrentando todos os reacionários que, com medo do povo, reagem desesperadamente, tentando conduzir o país ao caos e à guerra civil. O resultado positivo da oração do presidente da República, fruto da luta do povo, deve servir de estímulo a todos os patriotas a prosseguirem no combate aos remanescentes do fascismo no país, contra a rearticulação nazi-integralista e pela união nacional”, declarou.

O pronunciamento de Getúlio reforçou consideravelmente a campanha do Partido pela Constituinte. Os comícios aprovavam uma proposta de telegrama a Getúlio pedindo que ele ouvisse os apelos populares. Segundo Grabois, nenhum acontecimento na história do Brasil teve a profundidade e a envergadura, como movimento popular, como aquela campanha. “Nem na luta pela Abolição, nem a campanha republicana. Nem mesmo a vitoriosa jornada da anistia que arrancou dos cárceres os melhores filhos do povo alcançou tal mobilização de massas”, disse.

Havia também as ameaças dos integralistas, caraterizadas como atrevimento dos nazifascistas, que levaram o Partido a mobilizar vários segmentos, inclusive o presidente da República. Telegramas foram enviados a Getúlio denunciando a rearticulação dos integralistas sob a máscara da Cruzada Brasileira do Civismo.

Poderosos reacionários

Na verdade, os comunistas enfrentavam uma batalha dura para manter em ação o projeto da Constituinte. O próprio Getúlio vacilava e deu um passo atrás ao modificar por decreto a Lei Eleitoral marcando eleições simultâneas para presidente da República, deputados e senadores. A lei também previa que os interventores outorgassem constituições estaduais. “Sem dúvida, esse decreto está em profunda contradição com o discurso do senhor Getúlio Vargas pronunciado a 3 de outubro”, denunciou Grabois.

Depois de um comício organizado pelos comunistas, a massa marchou para o Palácio da Guanabara, a residência oficial da Presidência da República, onde contestou o decreto de Getúlio. A manifestação atingiu o auge quando Getúlio apareceu. A Tribuna Popular, jornal dos comunistas, descreveu a cena assim: “Milhares e milhares de bocas prorromperam em estrondosas aclamações e o grito de ‘O povo quer a Constituinte!’ reboou uníssono e incessante, um grande grito histórico traduzindo os melhores sentimentos do povo, cada vez mais democrata e patriota. Foguetes estouravam no ar e extraordinária alegria dos homens e das mulheres, dos velhos e jovens subindo aos céus.”

Em seu discurso, o presidente lembrou o que dissera em 3 de outubro sobre a existência de poderosos reacionários contrários à convocação da Assembleia Constituinte, medida considerada por eles um golpe contra as eleições marcadas para 2 de dezembro de 1945. Segundo Getúlio, ele não podia tomar decisões que aumentassem a intranquilidade que a luta política trouxera ao país. O assunto, afirmou, precisava ser encaminhado com sabedoria e prudência, ouvindo todos os partidos políticos, as classes trabalhadoras e produtoras, todas as forças organizadas, enfim, para que elas assumissem as responsabilidades por suas atitudes perante a opinião pública.

Enquanto Getúlio falava, a multidão gritava pedindo a Constituinte. Impávido, ele prosseguiu: “Eu nunca assumiria a responsabilidade de praticar um ato que viesse provocar a luta e o derramamento de sangue dos brasileiros.” Cada um deveria estar ciente de que responderia, dali em diante, pelos seus atos, disse o presidente. “Eu vos prometo fazer essa consulta para que cada corrente de opinião assuma perante o povo a parcela de responsabilidade que lhe cabe”, afirmou.

Fora das fronteiras

Segundo o presidente, cada uma delas precisava dizer às claras se estava de acordo com os clamores populares ou se apoiava as correntes reacionárias. Foi aplaudidíssimo. Ainda encoberto pelos aplausos, Getúlio terminou: “Não vos devo, porém, prometer senão aquilo que posso fazer.” A multidão deixou o Palácio da Guanabara satisfeita com as palavras do presidente e gritando: Constituinte! O povo exige a Constituinte! O povo quer a Constituinte! Uma parte foi para a Praça do Russel, onde um novo comício foi realizado, com discursos até as 23h30.

Em um comício em Belo Horizonte, Minas Gerais, Prestes também fez severa crítica ao decreto. Em Juiz de Fora, outra cidade mineira, Prestes voltou a falar do decreto e demorou-se na contestação ao que chamou de “golpes salvadores”. “Apoiaremos o governo contra a desordem”, proclamou. Tomasse cuidado a militância para evitar pretextos. Na Tribuna Popular, Grabois chegou a dizer que o Partido Comunista do Brasil não vacilaria em desmascarar os fomentadores de desordens e greves, que procuravam iludir as massas tentando “arrastar a mocidade das escolas para uma greve sem objetivo a fim de entravar a marcha para a democracia no país”.

Mas, na falta de pretextos, os golpistas foram buscar argumentos fora das fronteiras brasileiras. Disseram que Getúlio, à semelhança do que fazia Juan Domingos Perón, na Argentina — que se preparava para as eleições que deveriam ocorrer no começo do ano seguinte —, estaria aglutinando apoio dos trabalhadores, com a ajuda dos comunistas, para conquistar o poder nas eleições presidenciais.

Com esse e outros argumentos, os candidatos à sucessão presidencial, brigadeiro Eduardo Gomes — pela União Democrática Nacional (UDN) — e o general Eurico Gaspar Dutra — pelo Partido Social Democrático (PSD) —, convenceram seus aliados militares, liderados pelo general Góis Monteiro, a deporem o presidente em 29 de outubro de 1945. Na verdade, Getúlio estava sentado no epicentro da crescente tempestade que se formava no país. Ele não desconhecia os detalhes que transformava o desenrolar da crise em complô.

Origem de classe

O problema era que o Ato Adicional de 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições se transformou em amarras que o deixava de pés e mãos atados. Só um gesto ousado, reformando a decisão anteriormente tomada, poderia dar vazão à torrente de manifestações que exigiam a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Getúlio jamais pôde explicar por que decidiu levar sua indecisão até o limite, quando já não havia mais forças para sustentá-lo na presidência da República.

Preso entre a força das massas, impulsionadas pelos comunistas, e os grupos que o ameaçavam, resolveu resignar-se quando viu que não havia mais volta e a contenda prosseguiria sem o seu protagonismo. Os golpistas temiam que ele sucumbisse à tática do Partido de marcar as eleições presidenciais para depois da promulgação de uma nova Constituição, o que poderia significar a consolidação do processo de democratização do país.

Segundo Pomar, o golpe, aparentemente dirigido contra Getúlio. foi na verdade contra os comunistas. Ao não reagir, como queria o Partido, o presidente revelou sua origem de classe, seu desprezo pelo povo, a traição que mais uma vez cometia contra as massas que nele confiavam. Tanto os generais golpistas quanto Getúlio, disse Pomar, quiseram atingir um duplo objetivo. Os golpistas, ao mesmo tempo em que sonhavam com uma nova ditadura pretendiam liquidar o Partido com um banho de sangue sobre o movimento operário nascente. Getúlio teve também as suas pretensões: voltar ao poder depois de provar aos adversários que seria impossível governar sem ele, mas antes esmagando o proletariado e seu Partido de vanguarda por meio de provocações grevistas tentadas por seus agentes.

Mas os golpistas e Getúlio viram seus sonhos desfeitos, avaliou Pomar. A democracia estava em ascensão e as grandes massas ficaram alertadas pelo trabalho de educação política em seis meses de legalidade dos comunistas. “Não assumimos nenhum compromisso formal ou secreto com Vargas. Apenas, em 1945, o movimento operário e democrático que defendíamos coincidia com as políticas de Vargas”, afirmou. “Seguíamos uma estrada paralela e por isso nos encontramos lutando em determinado instante pelos mesmos objetivos, sem fazer pacto algum”, esclareceu.

Interesses de classe

Diógenes Arruda Câmara, também histórico dirigente comunista, conta que o golpe foi preparado depois do discurso do embaixador norte-americano Adolf Berle em Petrópolis, Rio de Janeiro, dizendo que o “comunismo” era um perigo, que estava avassalando o Brasil, e deixando a entender que Getúlio fazia demasiadas concessões aos comunistas.

“Nós procuramos estabelecer um contato, e teve entendimentos antes do golpe dado contra ele em 1945. Dissemos: vamos à greve geral, vamos levantar as Forças Armadas! Nós tínhamos muita força, principalmente no Exército. E o Vargas disse: Prefiro renunciar e ir embora a fazer uma guerra civil. Porque começa comigo e vai terminar nas mãos dos comunistas. E o Vargas foi embora para a sua fazenda lá em São Borja e não quis enfrentar os golpistas no terreno que deviam ser enfrentados — através de uma greve geral, paralisando toda a vida do país, e através da luta armada. Porque os golpistas eram fracos. Quem tinha força nas Forças Armadas de fato era o Getúlio, naquele tempo, e os comunistas, o nosso Partido. E Getúlio não quis enfrentar a luta no terreno que era possível para garantir o processo democrático”, disse.

Prestes também falou que Getúlio não resistiu porque não quis. “No dia 29 de outubro, quando os tanques marchavam para depô-lo, por ordens do general Góis Monteiro, eu estava com o general Estillac Leal e o coronel Osvino Ferreira Alves. Nós mandamos um recado para ele: ‘Resista, porque alguns tanques vão virar os canhões contra o Alcio Souto, comandante das tropas. E a massa vai lhe apoiar.’ Mas ele preferiu ficar sentado de charuto na mão, esperando ordens para ir para a casa. Foi o mesmo caso de Perón, na Argentina: o povo clamava por armas para defendê-lo, em frente à Casa Rosada, mas ele preferiu fugir e abrigar-se num navio de guerra do Paraguai. Não foi para evitar derramamento de sangue que Getúlio deixou de resistir. Ele preferiu agir assim, pois compreendeu que, no choque, o nosso Partido cresceria muito. Preferiu optar pela defesa dos seus interesses de classe. Assim, ele e Perón acabaram agindo de forma semelhante: capitularam em defesa dos interesses de classe.”

Segundo Grabois, o apoio aos atos democráticos do governo Getúlio fora uma prova de que os comunistas estavam dispostos a realizar a união nacional. Por esse motivo, o golpe de 29 de outubro não mirava especificamente o presidente da República, mas o povo que apoiava seus atos democráticos e, sobretudo, o Partido Comunista do Brasil e as organizações genuinamente populares.

Angu com pimenta

Góis Monteiro falou abertamente que o golpe foi motivado pela influência que os comunistas exerciam sobre a grande mobilização popular alcançada com a campanha pró-Constituinte. “Nessa altura dos acontecimentos (quando houve o golpe) e percebendo os perigos para o país decorrentes das marchas e contramarchas, declarei várias vezes, pela imprensa e ao próprio senhor Getúlio Vargas, que não era possível pensar-se numa Assembleia Constituinte a não ser que todas as correntes partidárias estabelecessem um consenso geral nesse sentido, pois, do contrário seria deflagrar um movimento subversivo, porquanto não podiam admitir as Forças Armadas que fosse adotada a iniciativa do Partido Comunista”, declarou o general.

Nos dias seguintes, o projeto de democratizar o país com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte dançou em cima do muro. Os comícios foram proibidos. A Tribuna Popular foi invadida pela polícia e suas instalações destruídas. Sedes do Partido foram vandalizadas em diferentes localidades do país. Sindicatos e Comitês Populares sofreram ameaças. Até os integralistas se assanharam e partiram para as provocações. Em Pernambuco, nas cidades de Goiana e Arcoverde, grupos deles invadiram as sedes do Partido de armas em punho.

Mas a campanha pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte entrava em uma nova fase, um ambiente que Getúlio caracterizou como angu com muita pimenta, segundo o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias, que fora companheiro de Prestes na Coluna Invicta, o responsável por entregar ao presidente deposto o ultimato dos generais golpistas sob o comando de Góis Monteiro.

Cinco dias após o golpe, uma nota do Partido disse que a situação criada levava “a nação ao risco iminente da guerra civil, do terrível e desnecessário derramamento de sangue de seus filhos, que só não aconteceu devido à atitude firme e consequente do nosso Partido e de outras forças populares”. Pouco depois, em 10 de novembro de 1945, uma nova nota aplaudia José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que assumira o posto de Getúlio, pelos “atos positivos e as manifestações de caráter democrático” que adotara, entre eles a convocação da Constituinte. Decretos foram revogados. Artigos autoritários da Constituição foram suprimidos. E as constituições estaduais outorgadas pelos interventores foram derrogadas. O tom era bem mais ameno do que o da nota anterior.

Posição de unidade

Na verdade, as forças dos golpistas não permitiram que eles fossem além da deposição de Getúlio. Tanto que no mesmo dia 10 de novembro de 1945 o Partido obteve o registro como apto a participar das eleições. Nas eleições, os comunistas elegeram catorze deputados e Prestes como senador. Getúlio também foi eleito senador por dois estados: Rio Grande do Sul pelo Partido Social Democrático, e por São Paulo, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Mas deu as costas para a Constituinte. Grabois disse que ele recebeu muitos votos de amplas camadas populares e estava plantado em São Borja, no Rio Grande do Sul, onde se refugiou em sua fazenda. Para os comunistas, a atitude de Getúlio deixava o PTB, criado por ele, como linha auxiliar do PSD de Dutra, eleito presidente da República.

Um caso ocorreu quando o deputado e general Euclides Figueiredo (UDN-RJ) sugeriu a revogação de artigos da Lei de Anistia decretada em 18 de abril de 1945 que impedia a reintegração dos militares anistiados aos postos anteriormente ocupados. O deputado Segadas Vianna (PTB-DF), manifestando a posição da bancada trabalhista — que, segundo Grabois, entrou no Palácio Tiradentes na “garupa do ex-ditador” —, criticou a proposta.

No encaminhamento da posição da bancada comunista, Grabois disse que ao pôr em liberdade os presos políticos Getúlio não concedeu anistia. Tivesse concedido, o assunto estava encerrado. “Anistia significa esquecimento e vemos que o governo não esqueceu, mas, ao contrário, procura perpetuar mentiras contra brasileiros dignos e honestos”, afirmou. E lamentou a posição assumida pela bancada do PTB. “É triste para nós, democratas, ver que, neste recinto, tomam a defesa de uma causa ingrata aqueles que se dizem representantes dos trabalhadores e lhes pediram votos, prometendo pugnar, aqui, pelos interesses do proletariado. São esses homens que estão à vanguarda da reação no Brasil, colocando-se contra a democracia, contra os trabalhadores”, discursou.

Para Grabois, a vergonhosa decisão da bancada do PTB era uma traição também aos interesses nacionais. “Nós, comunistas, nos declaramos dispostos a esquecer todas as perseguições que sofremos. Ninguém mais do que nós, comunistas, teve o sentimento de esquecer tudo o que foi articulado contra nós, todas as torturas físicas que padecemos. Não vimos a esta tribuna desfiar as pretensões que nos foram feitas. Isso é do conhecimento de todos. Fazendo essa declaração de voto da bancada comunista, reafirmo a nossa posição de unidade, de cooperação e de paz. Achamos que o requerimento do deputado Euclides Figueiredo é o melhor teste democrático para os representantes (da Constituinte)”, finalizou, entre aplausos.

Briga na rua

Na verdade, o processo de democratização do país entrava em uma fase de declínio. A UDN, que no início do governo Dutra se opusera ao PSD e ao PTB, começava a rachar, com um grupo indo se juntar aos que atacavam os comunistas. Depois de certo tempo, Getúlio deu o ar da graça numa acalorada sessão da Constituinte. Aliomar Baleeiro (UDN-BA) apontou o dedo para Getúlio dizendo que ele era culpado pelo clima de repressão que voltava ao país. A fala incendiou a bancada getulista, cuja gritaria ganhou o reforço de alguns constituintes de outros partidos. Chegou-se às ameaças de agressão, que não se consumaram por conta da ação de outros parlamentares menos exaltados.

Ao remover águas passadas, Aliomar Baleeiro trouxera à tona velhos ressentimentos e provocara o instinto belicoso de Getúlio. Segundo o deputado baiano, se o ex-presidente quisesse se defender das acusações era só ocupar a tribuna que ele estava ocupando naquele momento. E foi o que Getúlio fez. Na tribuna, o ex-presidente começou a discursar calmamente, dizendo que quando as duas câmaras se separassem para assumir o papel legislativo ele prestaria informações ao país sobre o seu governo. Quando o ex-presidente foi aparteado pelo deputado Souza Leão (PSP-AL) dizendo que no passado ele não procedera assim, o caldo entornou.

Getúlio respondeu: “Quando for votada a Constituição, falarei ao público para definir minha posição perante a história de minha pátria. Mas, para que não suponham que haja nesta atitude qualquer vislumbre de receio, venho declarar que, se houver alguém que tiver contra mim motivos de ordem pessoal ou se julgar com direitos ao desagravo ou injúria, fora do recinto desta Assembleia, eu estarei à sua disposição.” O desafio de Getúlio, chamando seus desafetos para brigar na rua, foi recebido com espanto. Enquanto deixava o Palácio Tiradentes, o general Euclides Figueiredo, de pé no recinto, disse que se não houvesse quem aceitasse o desafio ele se candidatava ao pugilato. Foi contido por um grupo de parlamentares que o convenceu a desistir da ideia.

Logo surgiu a campanha para a cassação da legalidade dos comunistas, quando o obscuro deputado Barreto Pinto (PTB-DF) — eleito com apenas quatrocentos votos por conta da grande votação obtida por Getúlio e, segundo os comunistas, um integralista que ajudou a apunhalar o parlamento brasileiro em 10 de novembro de 1937 — defendeu a ideia em entrevista ao jornal O Globo.

O jornal foi ouvir o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Waldemar Falcão, que declarou: “Os senhores devem ler a lei eleitoral.” Mas os discípulos de Barreto Pinto, conforme diziam os comunistas, lendo ou não a lei eleitoral, com o apoio da mídia entraram de cabeça na campanha pela cassação do registro do Partido, que logo ganharia o reforço do ex-conselheiro do Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, Himalaia Virgulino — caracterizado pela Tribuna Popular como um “lombrosiano”, indivíduo que apresenta traços físicos típicos de criminoso nato, segundo a teoria do criminologista italiano Cesare Lombroso, que iniciou os estudos da antropologia criminal ao publicar, em 1874, o livro L’uomo delinquente (O homem criminoso).

Aliança em São Paulo

Prevendo dias piores, Pomar aproximou-se de Adhemar de Barros, ex-interventor do Estado Novo em São Paulo e industrial, com vistas a estabelecer uma aliança eleitoral. A ideia inicial era apoiar Prestes Maia, o candidato de Getúlio. Prestes teria conferenciado com o ex-presidente sobre o assunto, segundo os jornais paulistas. Depois de algumas vacilações, Prestes Maia declarou que não aceitaria ser candidato e Getúlio voltou-se para a candidatura de Adhemar de Barros.

Em entrevista coletiva em São Paulo no dia 13 de dezembro de 1946, Pomar afirmou: “A nossa legalidade e a democracia são o nosso primeiro objetivo. A defesa da Constituição é para nós fundamental. Compreendemos que o momento é muito grave. Ainda não há unidade das forças políticas para a defesa da ordem constitucional democrática, que é o que nos interessa, por interesse ao povo brasileiro.”

O Diário da Noite, em sua edição de 21 de dezembro de 1946, disse que Prestes Maia pedira uma conversa com Adhemar de Barros, com quem conferenciou demoradamente sobre a situação política em São Paulo. O assunto seria o lançamento da candidatura de Adhemar com o apoio dos comunistas, questão tratada com Getúlio, conforme declaração de Pomar, segundo o jornal. “Por outro lado, são bastante conhecidas as relações do senhor Prestes Maia com o Partido Comunista, pois sua própria senhora é membro militante daquela organização”, afirmou o Diário da Noite.

A aliança foi fechada na tarde do dia 3 de janeiro de 1947. As candidaturas comunistas de Pomar e Arruda para deputado federal seriam transferidas para o então recém-criado Partido Social Progressista, pelo qual Adhemar de Barros se candidataria a governador. A aliança aproximava o industrial do eleitorado trabalhador e os candidatos comunistas se protegiam das ameaças do anticomunismo. De quebra, garantiam a candidatura ao Senado de Cândido Portinari. Adhemar de Barros seria eleito, assim como Pomar e Arruda.

Traição de Adhemar de Barros

Segundo Arruda, a eleição para o Senado foi fraudada. “Nós elegemos um senador, que foi o Cândido Portinari, o grande pintor. Ele foi eleito. Basta dizer o seguinte: o Roberto Simonsen, que havia sido apoiado pelo PSD, pelo Getúlio e por todo mundo, estava atrás da votação de Portinari cerca de 50 mil votos. Essa noite ia ser fechada a ata geral das eleições em São Paulo. Na noite seguinte, para surpresa, os quase 50 mil votos de diferença a favor do Portinari haviam passado milagrosamente… ou melhor dito: foram roubados e passados para Roberto Simonsen. Quer dizer: o Roberto Simonsen não foi eleito pelo eleitorado. Foi eleito pelo Tribunal Estadual Eleitoral de São Paulo. O verdadeiro senador eleito foi Cândido Portinari”, diz ele.

Naquele ambiente tensionado, São Paulo seria um tabuleiro decisivo para a sucessão do presidente Dutra e atraía a atenção de todas as forças políticas do país. Com os olhos voltados para os movimentos políticos no estado, o governo federal pressionava Adhemar de Barros, exigindo que ele eliminasse a força dos comunistas. Estes, por sua vez, conclamavam as forças democráticas para que cerrassem fileiras contra novos golpes na democracia.

Em 18 de setembro de 1947, o governador mandara dissolver um comício comemorativo do primeiro aniversário da Constituição, no Vale do Anhangabaú, segundo Pomar um acontecimento vergonhoso. Para ele, Adhemar de Barros atentava contra a Constituição, tentando evitar, por todos os meios, que a palavra dos representantes do povo, e especialmente dos comunistas, chegasse às grandes massas.

Pomar escreveu na Tribuna Popular que o governador tomava tal atitude porque “as tradições de liberdade da gente de Piratininga” estavam contra sua posição de mero interventor da “ditadura” em São Paulo. “Adhemar de Barros, se tem memória e se de fato é bom calculista, deve compreender que as forças que o elevaram ao governo do estado em 19 de janeiro longe de se enfraquecerem tornaram-se mais poderosas. E essas forças não compactuam com a sua traição”, escreveu.

Manifesto de Agosto

Uma das campanhas anticomunistas no estado de São Paulo dava conta de suposta reaproximação dos comunistas com Getúlio. As tropelias contra os comícios que citavam o ex-presidente eram denunciadas por Pomar e outros parlamentares comunistas sempre que surgiam informações de truculências promovidas pelo governo paulista. Na Câmara dos Deputados, Pomar protestou contra um projeto que considerava feriado o dia 29 de outubro, data do golpe que tirou Getúlio da Presidência da República em 1945.

Pomar, contudo, não apoiou a volta de Getúlio à Presidência da República. Segundo ele, sua candidatura era resultado de uma solução eleitoral reacionária para a crise do país. A base de seu argumento foi o impedimento à participação nas eleições das personalidades “mais populares do povo, como Luiz Carlos Prestes, João Amazonas, Gregório Bezerra e tantos outros líderes da classe operária”, depois da cassação do registro do Partido em 1947 e dos mandatos comunistas em 1948. A outra solução seria a golpista, não levada a cabo por conta das vacilações das classes dominantes.

O caráter e o sentido das eleições, segundo a visão dos comunistas, foram comentados por Prestes no Manifesto de Agosto de 1950, lido na íntegra por Pomar na tribuna da Câmara dos Deputados. Pressionado pelo deputado Aureliano Leite (PSD-SP) a dizer em quem os comunistas votaram, Pomar afirmou que não pretendia fazer um balanço geral, mas denunciar à nação os motivos que levaram a reação a afastar os comunistas daquele processo.

Pomar explicou que era fácil verificar que os comunistas não tiveram candidatos próprios. “Então vossa excelência quer dizer, com rodeios, em outras palavras, que os comunistas não votaram nessas eleições, não compareceram ao pleito?”, indagou Aureliano Leite. Depois de uma troca ríspida de perguntas e respostas, Pomar disse: “Vossa excelência está fazendo, aqui, um papel muito conhecido.” “Qual é? O de provocador?”, insistiu o deputado do PSD. “O de trapalhão, unicamente”, tascou Pomar.

Segundo Pomar, os comunistas diziam que tanto Getúlio como Cristiano Machado ou o brigadeiro Eduardo Gomes — os três principais candidatos à Presidência da República — não resolveriam os problemas que afligiam a grande maioria do povo. A atuação de qualquer um deles seria reacionária.

Guinada radical

Os comunistas haviam tomado uma linha que seria considerada esquerdista. O Manifesto de Janeiro de 1948 dizia que a luta pelas reivindicações imediatas das massas trabalhadoras deveria ser organizada dentro das entidades sindicais já existentes ou, onde isso fosse impossível, em novas organizações profissionais criadas nos próprios locais de trabalho. A indicativa de formação de associações profissionais estava vinculada à impossibilidade de atuação nos sindicatos existentes sob a intervenção do Ministério do Trabalho.

Grabois disse, num texto intitulado Mobilizar grandes massas para defender a paz e derrotar o imperialismo e a ditadura, de agosto de 1949, que a posição de abandonar os sindicatos oficiais, que a militância sindical havia compreendido esquematicamente a importância da criação das associações profissionais. O fundamental para os comunistas era a organização por local de trabalho e as lutas pelas reivindicações econômicas imediatas dos trabalhadores.

Os comunistas, apesar das duras críticas à estrutura sindical vigente, lutavam por eleições livres para as direções sindicais, sem a intervenção direta do Ministério do Trabalho, e o fim do imposto sindical como condições para o estabelecimento da efetiva liberdade sindical.

No balanço sobre o desenvolvimento da sua política sindical desde o início de 1948, a direção do Partido foi bastante crítica. O documento Ampliar a organização e a unidade da classe operária, aprovado em julho de 1952, diz que os comunistas não haviam posto em prática a unidade do movimento operário. A própria diretiva de organização nas empresas, acertada em princípio, para ser justa deveria ter apresentado claramente como tarefa precípua o reforço da luta dos trabalhadores e levá-los à conquista de seus sindicatos e não à criação de novas associações profissionais ou de uma nova organização sindical no país.

O debate se deu num contexo de guinada radical à esquerda. Segundo Arruda, o Partido saíra de uma posição “oportunista de direita”. “Hoje se olhando verifica-se, eu pelo menos acho, que a nossa linha política do período de 1945 a 1947 foi oportunista de direita. Nós acreditávamos que podíamos conquistar o poder através de um processo democrático, eleitoral, parlamentar etc. Éramos dirigentes jovens, os êxitos subiram à cabeça. Grandes vitórias, verdadeiramente desconhecidas na história do Partido e do movimento operário brasileiro. Bem… Mas nós tivemos muitas ilusões de classe. Entretanto, não podemos considerar, não creio correto, que era errada a política que adotamos em relação ao Getúlio. Tinham aspectos que deveriam ser corrigidos. Por exemplo: falar em ordem e tranquilidade — isso era uma atitude oportunista. Não querer realizar muitas greves — outra atitude oportunista. O apoio incondicional a Vargas — também uma atitude oportunista”, diz ele.

No Manifesto de Agosto, de 1950, os comunistas reafirmaram a linha esquerdista ao proporem a formação da Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN) que conduziria a massa pelo caminho das lutas revolucionárias, “como exigia os superiores interesses nacionais”. À medida que se agravava a situação do país e aumentava o perigo de guerra no mundo inteiro, cresciam a radicalização e a combatividade das massas trabalhadoras. E à frente delas deveriam estar os democratas e patriotas, que não podiam recear as formas de lutas mais altas e vigorosas, inclusive choques violentos com as forças da reação e os combates parciais que levariam o povo à luta vitoriosa pelo poder e à libertação nacional do jugo imperialista.

Reformas de base

Naqueles dias, os jornais divulgaram que Prestes se aproximava de Getúlio. Respondendo à pergunta de um jornalista sobre uma possível intervenção dos Estados Unidos no país caso ele fosse apresentado como candidato à sucessão de Dutra, Getúlio respondeu: “Recuso-me a acreditar nisso, pois pobre seria do país que dependesse da aprovação estrangeira para a escolha de seus dirigentes.” Ao comentar uma reportagem da revista norte-americana Time sobre os principais acontecimentos da metade do século XX no mundo, Getúlio disse que para ele os fatos mais relevantes foram “a Revolução Russa de 1917, a desintegração do átomo e a descoberta da penicilina”. “Pode-se acrescentar a primeira e segunda guerra mundial, pois sem uma não seria possível a Revolução Russa e sem a outra não se teria ainda resolvido o problema da desintegração do átomo”, complementou.

A repetição da Revolução Russa fez com que ele advertisse os jornalistas para a forma de divulgar o assunto. “Veja lá como vai publicar isso, senão ainda vão me considerar comunista”, recomendou. Getúlio comentou que nas eleições de 1945 e 1947 o Partido Comunista do Brasil se colocou contra o PTB e explicou que suas teorias sobre o que chamava de “reformas de base” em nada se pareciam com o “comunismo”. Não fazia sentido, portanto, segundo o ex-presidente, os boatos dos jornais dando conta de que Prestes fora visto atravessando a fronteira rio-grandense, fato que levou o chefe de polícia do estado a cercar todos os caminhos que levavam à fazenda Itu, no município gaúcho de Itaqui, onde Getúlio morava.

Segundo ele, os jornalistas estavam divulgando declarações que nunca dera e omitindo o que dissera. Um exemplo era a própria Time, que não publicou sua resposta sobre a iminência de uma guerra — hipótese considerada improvável por Getúlio — e sua opinião contrária à cassação do registro do Partido Comunista do Brasil. “Acho que o nosso governo, que tem imitado o governo americano em tantos pontos, também poderia imitá-lo neste”, falou. Sobre a ida de Prestes em sua fazenda, afirmou: “Essa foi uma medida ridícula. Se Prestes quisesse conferenciar comigo, ele não iria se arriscar a atravessar a imensa vastidão que separa a minha fazenda de qualquer centro urbano.”

Voto em branco

Os comunistas defenderam o voto em branco, mas, segundo o historiador Hélio Silva, muitos votos do Partido migraram para o PTB.  No documento Cinquenta anos de luta, Grabois e Amazonas escreveram que o Manifesto de Agosto mesclava questões programáticas e posições táticas, o que levava, na atividade prática, a interpretações esquerdistas. Além disso, apresentava a burguesia em bloco como força inimiga. “O Partido cai em posições sectárias, abstém-se de participar das eleições presidenciais de 1950, que levam Vargas outra vez ao poder. Diante do novo governo, o Partido se define. Sem levar em conta a situação real, adota atitude rígida de combate sistemático a Vargas, que obteve expressiva votação popular e representa, em certo grau, setores progressistas da nação”, avaliaram.

Eleito, Getúlio se deparou com problemas complexos. A alta do custo de vida, que se acelerou ainda no governo Dutra, agravou os conflitos sociais. A situação da balança de pagamentos se deteriorou rapidamente. O passivo foi coberto à custa de empréstimos contraídos no estrangeiro. Ao mesmo tempo, agravaram-se a falta de energia elétrica e os problemas com o transporte, afetando o desenvolvimento da economia.

O clima de “desassossego” se manifestava no governo, reflexo da luta entre as correntes nacionalistas e entreguistas. A solução adotada por Getúlio, de forte intervenção do Estado na economia, respondia à necessidade de “suprir as deficiências da iniciativa privada, ou acautelar os superiores interesses da nação, quer contra a ação predatória destas forças de rapina, que não conhecem a bandeira nem cultuam outra religião que não seja a do lucro”, segundo mensagem enviada pelo presidente ao Congresso Nacional.

A atenção do governo estava concentrada nas medidas que asseguravam o desenvolvimento pela via da industrialização, apoiado no capital nacional e orientado para o mercado interno. A heterogeneidade, no entanto, às vezes empurrava o governo para a colaboração com o capital estrangeiro, mas o presidente reforçava o controle nacional sobre todas essas operações. Por esse meio, pretendia solucionar os problemas da falta de divisas, do desemprego e da soberania do país. Para atingir esses objetivos, o presidente apelou para a colaboração dos trabalhadores e dos empresários, sob a arbitragem do Estado.

Ampla coalizão

O país que vagueava sem rumo começava a ter nova feição. Getúlio atendeu a algumas reivindicações dos trabalhadores das camadas inferiores das cidades, angariando considerável popularidade. Em 1951, uma lei proibiu os bancos e pessoas particulares de cobrar juros anuais sobre créditos superiores a 12%. Em janeiro de 1952, o salário-mínimo, sem aumento desde 1943, recebeu um reajuste considerável. Apesar dessas medidas, o impulso da onda grevista que surgia no país aumentou. Em 1951, 264 mil trabalhadores participaram de greves. Em 1952, esse número subiu para 411 mil e, em 1953, chegaria a 800 mil.

O PTB não dispunha de maioria no Congresso Nacional. Para ter governabilidade, o presidente formou uma ampla coalizão. Mas os partidos de direita, a mídia e muitas organizações empresariais formaram uma aliança conspiradora e passaram a hostilizar Getúlio. O apoio limitado à lógica da Guerra Fria e o estabelecimento do controle nacional sobre o petróleo com a criação da Petrobras provocaram irritação nos Estados Unidos que, em 1953, retiraram seus técnicos de uma comissão americano-brasileira de cooperação econômica criada por Dutra.

Quando Getúlio voltou à Presidência da República, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria. Ele iniciou uma administração dúbia, cedendo aos setores golpistas das Forças Armadas, porta-vozes dos interesses militares norte-americanos, com o acordo militar Brasil-Estados Unidos — segundo Pomar um “tratado de colonização, de terror e de guerra”, conforme ele escreveu no jornal comunista Voz Operária —, ao passo que amainava a repressão política. Com o passar do tempo, o governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investirem no país. O clima golpista se instalou. O pavio começou a arder atrás de Getúlio.

Empedernido tirano

Ao analisar aquela conjuntura, o Partido classificou o governo de Getúlio como de preparação de guerra e de traição nacional. O presidente era um instrumento útil e necessário aos imperialistas, que facilitava a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos. Grabois, no jornal comunista Voz Operária de 9 de fevereiro de 1952, desancou Getúlio ao lembrar a passagem do primeiro aniversário da sua posse. Chamou-o de “velho opressor e explorador do povo brasileiro”, “politiqueiro”, “latifundiário”, “tirano” e “demagogo”. “Há doze meses o empedernido tirano empolgava o poder através da intensa e cínica demagogia, fazendo sem o menor escrúpulo toda espécie de promessas, explorando com a mais deslavada má fé os profundos sentimentos anti-imperialistas do nosso povo e as aspirações das grandes massas a uma vida melhor.”

O presidente, afirmou Grabois, só foi eleito porque enganou o povo. “O politiqueiro da república velha, o ditador sem entranhas no Estado Novo, as vésperas das eleições de outubro de 1950, afivelava à face nova máscara e apresentava-se sem qualquer cerimônia aos trabalhadores como defensor dos interesses nacionais e reivindicações populares. ‘Trago-vos a bandeira das reivindicações sociais e do nacionalismo econômico’, afirmava com descaramento o candidato Vargas aos eleitores que buscavam por um novo regime social e desejavam a emancipação do país do jugo imperialista. Vargas proclamava-se solenemente candidato do povo e declarava não ser candidato nem dos interesses privados de grupos.”

Segundo ele, bastou um ano de atividade do governo para confirmar em toda a plenitude e justeza das palavras de Prestes e de seu Partido, antes das últimas eleições presidenciais, de que Getúlio continuaria a política de Dutra, “política de traição nacional, de guerra e de entrega do país aos monopolistas norte-americanos, de esfomeamento e perseguições contra o povo”. “Os atos do atual governo desmentem todas as afirmações demagógicas de Getúlio e negam todas as suas promessas de candidato. Na verdade, o governo de Vargas evidenciou ser um governo dos ricos contra os pobres.”

Para Grabois, a saída era contrapor sempre às soluções das classes dominantes a “solução de Prestes”, que indicava “a todo povo brasileiro o caminho da luta por um governo democrático popular”. “Se agirmos de outro modo, as massas serão novamente ludibriadas por qualquer aventureiro que apresente uma plataforma demagógica”, afirmou. “Diante do rápido desmascaramento do demagogo Vargas, quando os trabalhadores, pela própria experiência, começam a comprovar a justeza da orientação dos comunistas, devemos nos colocar audaz e corajosamente à frente da classe operária e do povo na luta por suas reivindicações políticas e econômicas imediatas, elevando cada vez mais o nível dessas lutas, aumentando-as sempre de acordo com o amadurecimento político e o grau de radicalização das massas, no sentido da luta pela paz, contra o imperialismo ianque, por um governo democrático popular.”

Derrubada do governo

O IV Congresso do Partido, realizado em 1954, deu forma às ideias que pontuaram os documentos desta fase dos comunistas, realçando o caráter anti-imperialista da revolução naquela etapa histórica. O Programa aprovado previa a substituição do governo por outro capaz de defender a soberania nacional, expulsando do território brasileiro os domínios e as missões dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, anularia os acordos lesivos com os norte-americanos e estabeleceria relações amistosas com a URSS e demais países do campo da paz.

No início dos debates do Congresso, Grabois polemizou com o histórico membro do Partido Fernando Lacerda sobre o governo de Getúlio. “Aproveitando os debates que se processam para o IV Congresso, arremete, agora, contra o Programa do Partido. Mas na reunião de dezembro do Comitê Central que aprovou o projeto de Programa do Partido manifestou Fernando Lacerda seu apoio ao projeto em debate. Assim agindo, dá uma demonstração de leviandade, de que não prima pela coerência, nem pelo respeito ao organismo a que pertence.”

Segundo Grabois, Fernando Lacerda pretendia suprimir do Programa toda referência à derrota ou à derrubada do governo Getúlio. “Esta sugestão, aparentemente inocente, se aceita, eliminaria do Programa do Partido sua essência revolucionária. Sob o pretexto de luta contra hipotéticos ‘delírios esquerdistas’. Fernando Lacerda procura impedir a luta firme e decidida do povo brasileiro pela derrubada do governo de Getúlio para acabar com o regime dos latifundiários e dos grandes capitalistas, dos imperialistas norte-americanos.”

Não havia no projeto de Programa, disse, a diretiva imediata de derrubada do governo Getúlio. “Onde está no Programa o apelo à ação para derrubar, agora, o governo de Vargas? Fernando Lacerda dá a entender que o Programa do Partido manda preparar tecnicamente a derrubada do governo Vargas, que o Partido está organizando a insurreição e assim alimenta ‘tendências e ilusões putchistas de certos democratas e patriotas e de importantes massas que os escutam’”, afirmou.

O problema era a visão estratégica sobre o país e não aquele governo especificamente. “Admitindo-se que tudo corra normalmente e que em 1955 haja eleições para presidente da República, é justa a afirmação do Programa do Partido de que é indispensável a derrubada do governo Vargas? Sim. Esta afirmação é inteiramente correta e oportuna. O Programa proclama: ‘Se queremos viver e prosperar, se queremos que nossa pátria alcance o futuro radioso a que tem direito, se queremos nos livrar da odiosa escravidão americana e tirar nosso povo do atraso, da miséria e da ignorância em que vegeta, é indispensável acabar com o regime dos latifundiários e grandes capitalistas a serviço dos imperialistas norte-americanos, derrubar o governo Vargas’. Fica, portanto, perfeitamente claro no Programa que o povo brasileiro só se libertará do jugo dos imperialistas norte-americanos, do atraso e da ignorância em que vive, liquidando com o regime de latifundiários e grandes capitalistas a serviço do imperialismo ianque.”

Não se tratava de simples mudanças de homens do poder, mas mudar de regime, substituí-lo por outro, democrático e popular, asseverou Grabois. “Todo Programa está impregnado dessa tese. Mas a luta contra o atual regime e pela conquista do regime democrático popular não é uma coisa abstrata, nem é um objetivo longínquo pelo qual só é possível lutar daqui a alguns anos, como deseja Fernando Lacerda. A luta por este objetivo é uma luta atual, a ser realizada de acordo com as presentes condições objetivas e subjetivas. Como, no entanto, lutar contra o atual regime, sem lutar pela derrubada do governo que representa os latifundiários e grandes capitalistas a serviço dos monopólios norte-americano contra o governo de Vargas?”

Suicídio de Getúlio

Aquela era a razão por que o Programa indicava a necessidade de substituir o “governo antipopular e antinacional, o governo de Vargas, por um governo democrático de libertação nacional”. “Para derrubar o atual regime de latifundiários e grandes capitalistas a serviço dos monopólios ianques é preciso lutar, hoje, pela derrota do governo de Vargas, sem especular se o governo Vargas deixará de existir ou não em 1955. Trata-se, agora, de unificar todas as forças democráticas, progressistas, nacionais e libertadoras para substituir o governo Vargas pelo governo democrático de libertação nacional. A maior ou menor rapidez na conquista deste objetivo dependerá do ritmo de fortalecimento e unificação das forças interessadas na libertação do Brasil do jugo imperialista norte-americano e na instauração de um regime de paz e felicidade para o povo.”

Para ganhar as grandes massas para o Programa do Partido, disse Grabois, era preciso empregar uma tática a mais ampla possível, utilizando, hábil e flexivelmente, todos os meios ao alcance e todas as oportunidades que surgissem. “A campanha eleitoral é uma dessas grandes oportunidades. As eleições despertam milhões para a vida política. Cada dia que passa o povo brasileiro revela abertamente o seu descontentamento com o governo antipopular e de traição nacional de Vargas e com a proximidade das eleições, manifesta por todos os modos seu desejo de mudar a política dos atuais governantes e de encontrar a saída para seus angustiantes problemas.”

O Partido teria de digerir o suicídio de Getúlio, em 24 de agosto sw 1954. A morte dramática do presidente pegou os comunistas no contrapé. Enquanto faziam oposição pela esquerda, a direita promovia um violento ataque ao seu governo. Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou sua morte, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais, inclusive um do Partido, no Rio Grande do Sul.

O episódio ocorrera bem no auge dos debates do IV Congresso, apesar de não ter sido objeto de discussão. A proposta de Programa, no entanto, foi aprovada com a supressão das passagens em que Getúlio era pesadamente criticado. Prestes diria depois que, com o recrudescimento das ameaças da direita, os comunistas cogitavam apoiar o presidente em caso de golpe.

Força do povo

Em um Manifesto do Comitê Central, o Partido carimbou o governo do presidente Café Filho, o vice de Gertúlio, como “ditadura americana” e se disse disposto à união para salvar a democracia. E diagnosticou que novos e maiores perigos ameaçavam a vida e a segurança do povo brasileiro. Pela força das armas, os piores inimigos do povo conseguiram chegar ao poder. Os que levaram Getúlio ao suicídio eram os mais vis lacaios dos provocadores de guerra dos Estados Unidos, que protagonizaram um ato revelador da brutalidade dos métodos norte-americanos de dominação e pôs a nu a violência com que os agentes do Departamento de Estado faziam e desfaziam governos no Brasil. “Nós, comunistas, lutamos pela derrubada do atual governo e por um governo democrático de libertação nacional, mas estamos prontos a entrar em entendimentos com todas as forças políticas, líderes políticos e correntes patrióticas que queiram unir-se em torno de uma plataforma democrática a fim de derrotar eleitoralmente as forças da reação e do entreguismo”, dizia o documento.

Segundo Prestes, a mobilização popular surgida logo após a morte de Getúlio revelara aos comunistas que a real força do povo brasileiro, que estaria disposto a defender a liberdade e a independência da pátria, estava vertebrada pelos comunistas e trabalhistas, estes vistos agora como “irmãos”. “Foram os acontecimentos, portanto, que nos colocaram no mesmo terreno de luta. Trabalhistas e comunistas lutamos contra o mesmo inimigo, que é o imperialismo norte-americano, lutamos contra seus agentes em nosso país — os generais fascistas e os politiqueiros reacionários da UDN”, disse. Seria uma união contra os entreguistas, que deveriam ser derrotados nas urnas ainda em 1954, quando o país elegeria representantes para o Congresso Nacional, assembleias legislativas, câmaras de vereadores, além de alguns governadores e prefeitos.

O Comitê Central decidiu indicar ao eleitorado os nomes de Juscelino Kubitscheck e João Goulart aos cargos de presidente e vice-presidente da República. Para o Partido, em torno daquelas candidaturas poderiam ser agrupadas amplas forças que se oporiam ao golpe e defenderiam a Constituição e as liberdades democráticas para garantir a realização das eleições em 3 de outubro. Amazonas conta que ele e Lincoln Oest, este também membro do Comitê Central, conversaram com o candidato Juscelino Kubitschek. Segundo Amazonas, ele disse: “Vocês têm no Brasil o que: trezentos mil votos? Numa eleição presidencial trezentos mil votos não têm importância nenhuma. Agora, se eu for eleito vou mandar suspender essa perseguição jurídica que há aí contra vocês. Eu vou parar com isso.”

Juscelino Kubitscheck seria eleito com menos de trezentos mil votos de diferença em relação ao segundo colocado, com a vigorosa “campanha antigolpe” promovida pelo Partido. Mas a posse do presidente eleito só foi possível porque o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, com uma ação armada neutralizou o golpe que pretendia “liquidar as liberdades públicas e rasgar a Constituição” para implantar “no Brasil uma ditadura terrorista a serviço dos monopólios norte-americanos”, de acordo com uma nota do Comitê Central do Partido.

Imposições de Prestes

Nos debates do V Congresso do Partido Comunista do Brasil, em 1960, que levariam à sua reorganização em 1962, Pomar disse que a atitude diante do governo de Getúlio no período 1951-1954 não fora correta. As consequências daquele erro também ficaram visíveis, mesmo antes do suicídio do presidente. Os comunistas sofreram golpes em sua própria carne. Era uma crítica a um artigo de Prestes que, segundo Pomar, superdimensionava o erro dos comunistas, que levava à ideia de que Getúlio fora um grande líder anti-imperialista que os comunistas ajudaram a matar.

Não queria excluir a responsabilidade dos comunistas no caso, mas ela deveria ser melhor pesada, afirmou. Pomar indagou: o que revelou a crise governamental de 1954, do ponto de vista do agravamento das contradições internas e anti-imperialistas? Por que Vargas não se matou em 1945, por ocasião do golpe de 29 de outubro? Lembrou que o Partido apoiava Getúlio e manifestara disposição de resistir ao golpe. Sempre, porém, na dependência de que ele tomasse a iniciativa de resistir.

Pomar revelou que aquele erro se devia ao sistema existente no Partido, a começar pela sua direção. Tanto o Manifesto de Agosto de 1950 como a decisão de abster-se na luta eleitoral de outubro de 1950 foram aprovados contra a vontade da maioria da direção. Foram impostos porque assim queria principalmente Prestes. Entre parênteses, disse que não queria lembrar, naquele momento, a imposição sobre a luta pela renúncia de Dutra, feita por Prestes em tais termos que seria quase impossível acreditar. Recordava também que a decisão de não aliar-se ao PTB nas eleições municipais de 1951 tinha sido levada adiante com o esmagamento impiedoso dos discordantes, que mesmo timidamente manifestaram-se contra a infantilidade da posição do Partido.

Naquela época já se podia observar certo desalento nas fileiras comunistas e perceber que a linha política claudicava diante dos acontecimentos que se precipitavam, como os de 24 de agosto de 1954 (data do suicídio de Getúlio) e os de 11 de novembro de 1955 (posse de Juscelino Kubitscheck), analisou. Pomar constatou que nas fileiras comunistas propagou-se rapidamente uma sensação de frustração, sobretudo nos setores da intelectualidade ligada aos comunistas ou sob a influência do Partido. “Cresceu a confusão ideológica em face das enormes vacilações da direção partidária e da sua impotência para enfrentar os ataques dos revisionistas”, comentou.

Força que cresce: o 22º Congresso da União da Juventude Socialista (UJS)

Giovana Mondarto, Leila Márcia, Jorge Panzera, Marcelo Gavião, Tiago Morbach, Bruna Brelaz, Luciana Santos, Rafael Leal e André Tokarski

Por Osvaldo Bertolino

A consigna “manhãs de sol e socialismo” se amoldou perfeitamente ao ato político do 22º Congresso da União da Juventude Socialista (UJS), no domingo 28 de julho de 2024. Depois de três dias de intensos debates na Universidade Paulista (Unip) da Vila Guilherme, zona Norte de São Paulo, os delegados foram para o Sonora Garden, espaço de show pertentente à Associação Portuguesa de Desportos, para as atividades de encerramento do Congresso. Sob o sol radiante, a juventude cantou e dançou até o início do ato, num clima de entusiasmo e de revigoramento do ideal socialista. Por todos os lados se via a diversidade brasileira, com suas caras e sotaques, sorrisos e esperanças.

Discursaram, antes de Luciana Santos, presidenta do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), os ex-presidentes da UJS Leila Márcia, Jorge Panzera, Wadson Ribeiro, André Tokarski, Ricardo Alemão Abreu, Marcelo Gavião e Tiago Morbach. Falaram também os vereadores da UJS, eleitos pelo PCdoB, Giovana Mondarto (Criciúma, Santa Catarina), Giovani Culau (Porto Alegre, Rio Grande do Sul) e Walkiria Nictheroy (Niterói, Rio de Janeiro). Todos destacaram o relevante espaço que a UJS conquistou nos seus quarenta anos de existência, uma organização que esteve presente em todos os eventos políticos desse período.

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As carinhas da UJS e o amanhã que canta

Segundo Luciana Santos, “a UJS, mais uma vez, revelou um vigor enorme”. “É com essa alegria que a gente pode fazer luta política à altura dos desafios do nosso tempo. Mais uma vez a juventude revela juízo e muita visão de perspectiva, reafirma o socialismo como perspectiva de sociedade e sabe que no momento precisamos lutar para garantir o êxito do governo Lula, com vistas a novamente derrotar a direita em 2026 e fazer a tarefa de casa de 2024, que é eleger muitos camaradas por esse país afora nas câmaras de vereadores.”

Rafael Leal, presidente da UJS, avaliou o Congresso como um momento privilegiado do debate político nacional. “Na abertura, relembramos a Guerrilha do Araguaia, lembrando os quarenta anos da UJS. Recarregamos as baterias e reajustamos a nossa linha para os próximos dois anos. Trouxemos todos os estados. Foi um grandioso Congresso dos quarenta anos da UJS”, afirmou. Segundo o ele, o Congresso tirou uma Resolução política, apontando o desafio central do próximo período: a luta contra o fascismo e pela reconstrução do Brasil. “Além disso, a gente tem apontado uma plataforma mínima dos jovens socialistas para ser defendida nas eleições municipais deste ano.”

Rodinhas    

Numa das muitas rodinhas, estava uma das caçulas da UJS, Luiza Castro de Jesus, da cidade de Santos, de catorze anos de idade. Ela disse que chegou à UJS por influência do pai, militante da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), e da mãe, sindicalista. “A UJS é legal. Eu gosto da sua proposta”, resumiu.

Ao seu lado, Julia Sacramento Monteiro, de dezoito anos de idade, também de Santos, militante da UJS há três anos, disse que o Congresso foi mais um momento de aprendizado. “Me interessei pela UJS na escola e no trabalho de bairro que seus militantes fazem. Abracei a causa e foi muito bom. O Congresso foi mais uma grande experiência. É muito bom a gente trazer novas pessoas para se apaixonar pela UJS, como eu me apaixonei. É conquistando mentes e corações que a gente constrói a revolução”.

Michele dos Santos Souza, de dezenove anos de idade, também de Santos, com quase três anos de militância na UJS, disse que militar na organização é “incrível”. “É uma juventude que me forma, desde que comecei a militar, na escola, que pensa na transformação da nossa sociedade. Então, ela tem muito a ensinar aos jovens. São quarenta anos de uma grande história, de mudanças. Conheci a UJS quando minha escola estava sendo militarizada e a gente impediu a militarização. Lembro que chorava quando se falava que a minha escola seria militar. E a UJS fez parte disso.”

Ao lado, João Vitor Padovezi, de dezenove anos de idade, disse que veio de Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, para participar do Congresso de “uma juventude literalmente revolucionária, que vai mudar o Brasil”. “Estou amando o Congresso, porque é tudo que eu imaginava e mais um pouco. O sonho de revolucionar o Brasil aumenta cada vez que eu participo de debates como os desse Congresso”, afirmou. Com ele estava Matheus Carrieri, de dezessete anos de idade, do Itaim Paulista, zona Leste paulistana. Disse que está chegando agora na UJS. “Estou muito empolgado, conhecendo gente nova, com ideias bacanas.”

Mais adiante, em outra rodinha, Pedro Diniz, de Salvador, Bahia, estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse que está na UJS desde 2016. “Me filiei na calada do golpe de Dilma, impulsionado pela necessidade de se organizar, enquanto juventude”. “Cada um com suas particularidades, mas compartilhando o sonho comum de mudar os rumos do nosso país. Fazer com que a juventude paute o seu futuro”, resumiu. “O Congresso é incrível, um momento em que a gente renova nossas esperanças e tem a certeza de que realmente a gente está construindo um projeto mais acertado, com a política mais alinhada, mais organizada, com mais potencial para conquistar corações e mentes pelo Brasil.”

Também de Salvador, Osni Guimarães, militante da UJS desde 2017, igualmente estudante de Direito da UFBA, disse que militar na organização é como estar numa escola de formação. “Quando vi a luta da UJS, me apaixonei de cara. Para mim é uma grande alegria e hoje sou coordenador de um núcleo na UFBA. Temos caminhos muito grandiosos pela frente. Esse Congresso é grandioso, com muito debate político.”

Maurício Borges Vieira, de vinte e um anos de idade, estudante de Biologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), milita na UJS há quatro anos. “A UJS é um movimento muito importante para a formação política. Ainda mais quando vejo que a sociedade faz questão de afirmar que eu sou um homem preto. E sempre lembro de vários escritores que também são pessoas negras e falam muito sobre isso. E nesse processo para entender como corpo político, entrei na UJS. Me encontro num processo de formação incrível, de poder discutir socialismo, comunismo, na percepção da juventude.”

Jamile Almeida dos Santos, de vinte e quatro anos de idade, membra da direção da UJS na UFRB, onde estuda Engenharia Sanitária, disse que a organização é importante para inserir a juventude no debate político e mudar os rumos do país.

Kauany Serra, de dezessete anos de idade, de São Luis, Maranhão, disse que a UJS é “um movimento muito bom”. “A partir do momento que entrei, me apaixonei”, resumiu. Com ela estava Ketllen Alves, de dezessete anos de idade, também de São Lauis. Ela disse que a UJS “é uma coisa muito boa, porque luta pelos direitos da juventude”.

As carinhas da UJS e o amanhã que canta

Por Osvaldo Bertolino

Na tarde da sexta-feira (26), palestrei numa sessão do XXII Congresso da União da Juventude Socialista (UJS) sobre os quarenta anos da entidade. Falei com base no livro que escrevi sobre seus trinta anos, que agora estou atualizando, numa edição revisada e complementada por mais dez anos. A previsão é de que até o final deste ano teremos o livro publicado. Comigo na mesa, mediada por Alinne Martins, estavam Leila Márcia e Ricardo Alemão Abreu, ex-presidentes da UJS.

Foi comovente ver a plateia atenta, puxando palavras de ordem, uma diversidade de carinhas que expressava a diversidade brasileira, imagens que me acompanharão vivamente pela vida. Disse a eles que em suas carinhas estava o futuro do mundo, a continuidade do ideal de emancipação da humanidade. Falei da história da juventude brasileira, que entrou na cena política quando o corsário francês Jean François Du Clerc foi expulso do Rio de Janeiro, em 1710, depois de aportar na cidade com seis navios e mil homens de guerra.

Lembrei o papel da juventude nas lutas independentistas, abolicionistas e republicanas, uma evolução que passou pelas mobilizações sindicais do início do século XX e o início de um novo ciclo com a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922. Naquela conjuntura, despontava no horizonte o nazifascismo sombrio, fazendo contraste com o raiar de um novo tempo pelo socialismo que emergiu na Revolução Russa de 1917. Era o auge da crise do capitalismo, que levaria à quebra da bolsa de Nova Iorque e mergulhou o mundo na mais sinistra depressão da era moderna.

Mundo de paz

De passagem, premido pelo tempo, falei que os comunistas deram forma e perspectiva às aspirações da juventude. Foi um resumo da formulação do Partido Comunista do Brasil de que a juventude era uma das principais vertentes da militância comunista, um movimento que crescia por conta das ameaças de guerra e do exemplo da Primeira Guerra Mundial, que ceifou a vida de milhões de jovens. No Brasil, havia um componente a mais: o carcomido regime da República Velha, que começava a ruir estrepitosamente, enfrentava movimentos de contestação, a exemplo dos levantes dos “tenentes” em 1922 e em 1924, que desaguariam na Coluna Prestes e na Revolução de 1930.

O confronto foi inevitável, levando a juventude a novamente se levantar para combater o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Daquela experiência sangrenta surgiu novas compreensões sobre a luta de classes em âmbito mundial e os perigos para a juventude, que logo seria desafiada por novas conflagrações geopolíticas do imperialismo, como foi a Guerra da Coreia, quando o Brasil esteve perto de se envolver diretamente em mais uma carnificina, com a campanha dos setores dominantes pelo envio de jovens para aquele conflito que dizimou mais de quatro milhões de vidas.

Falei disso resumidamente para lembrar que um mundo de paz exige a luta pelo socialismo. A juventude organizada daquele tempo tinha plena consciência disso e foi às ruas para combater o avanço da ideologia da violência. Quando os violentos triunfaram, com o golpe militar de 1964, encontraram pela frente os jovens combativos, animados pelas revoluções socialistas que cintilaram na China em 1949 e em Cuba em 1959. No meio, mais uma sangrenta guerra imperialista, agora no Vietnã. A resistência democrática, no Brasil, chegou à luta armada, com destaque para a Guerrilha do Araguaia.

Vigor da juventude

A UJS surgiu, em 1984, em meio ao vendaval que estava enterrando a ditadura militar. Consequentemente, legou as esperanças e o espírito de luta da juventude revolucionária. Com esse rumo, passou, de forma altiva, por jornadas memoráveis, atravessando o projeto neoliberal e seus intentos golpistas, inclusive na defesa do ciclo de governos democráticos e progressistas dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef. O processo de enfrentamento com os golpistas e o governo bolsonarista deu à UJS novas experiências e reforçou seu ideal socialista.

Ao fazer esse resumo, vi naquelas carinhas o vigor da juventude brasileira desde a expulsão do corsário francês Jean François Du Clerc. Mas vi, sobretudo, a certeza de que é a luta pelo futuro que move o mundo. Lembrei as últimas palavras de Gabriel Peri, do Partido Comunista Francês, antes de ser fuzilado pelos nazistas: “Se tivesse que recomeçar a vida, seguiria o mesmo caminho. Esta noite creio mais do que nunca que o meu camarada Vaillant-Couturier (fundador da Casa de Cultura da França) tinha razão ao dizer que o comunismo é a juventude do mundo. Vou para preparar esse amanhã que canta.”