PCdoB cento e três anos: as lideranças das gerações comunistas

Prólogo do livro Renato Rabelo – vida, ideias e rumos

O sorriso largo não deixava dúvida. João Amazonas estava feliz ao receber uma placa homenageando seus quase sessenta e sete anos de militância comunista, perto de completar quarenta anos como principal dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Pouco antes, estivera na tribuna do X Congresso do Partido, realizado entre 9 e 12 de dezembro de 2001 no Centro de Convenções Riocentro, Rio de Janeiro, para apontar, com voz serena e embargada, Renato Rabelo, então vice-presidente, como seu substituto. A quarta geração de dirigentes estava assumindo o comando do Partido.

Os mais de oitocentos delegados, representando em torno de duzentos mil filiados, além dos convidados e trinta e duas delegações estrangeiras, ouviram, em silêncio absoluto, Amazonas dizer que Renato era um bom camarada, que vinha se destacando no Partido e procurando seguir suas tradições de luta.

Em pé, trajando terno e gravata, com as mãos apoiadas na mesa, Amazonas falou, num breve discurso, que completaria noventa anos de idade em 1º de janeiro de 2002 e não tinha mais condições físicas para ocupar o cargo máximo da direção partidária. Pediu aos seus camaradas dispensa da função. Não havia cargo vitalício no PCdoB, mas não estava pedindo aposentadoria, comunicou. Queria morrer em sua banca de trabalho, continuando a luta pelos ideais que procurou defender durante a vida. Seguiria membro do Comitê Central, agora no simbólico posto de presidente de honra.

Agradeceu pelo apoio que sempre teve “nas fileiras do glorioso e heroico Partido Comunista do Brasil” e virou-se para a esquerda, onde estava sua companheira de jornada, Elza Monnerat. Sentou-se lentamente. Com o gesto, retirou-se simbolicamente do posto que ocupava desde 1962, quando o Partido foi reorganizado. Às suas costas, um painel do Congresso ostentava as imagens de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lênin.

Em cem anos de atividades do Partido Comunista do Brasil, passaram por sua direção, antes de Renato, à frente de gerações de dirigentes, Astrojildo Pereira – que liderou a fundação e os primeiros anos do Partido –, Luiz Carlos Prestes – que assumiu na Conferência da Mantiqueira, de 1943, na reconstrução após a ditadura do Estado Novo – e Amazonas, uma das lideranças da reorganização na Conferência extraordinária de 1962.

Nas duas conferências – de 1943 e de 1962 –, os comunistas recomeçavam praticamente do zero, uma atividade de construção e reconstrução do Partido que Amazonas comparava à mitológica Fênix, a ave da literatura grega que renasce de suas cinzas.

Passagem para Renato Rabelo

Na passagem de comando para Renato, Amazonas destacou o papel dos camaradas da direção coletiva na sua geração, dos quais lembrava com saudades e respeito pela sua combatividade. Citou Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luís Guilhardini e outros tantos que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade – a ditadura militar – para defender os interesses do povo.

Com os assassinatos daqueles camaradas, coube a ele maiores responsabilidades. O ingresso de Renato e outros dirigentes da Ação Popular (AP) no Partido, no começo da década de 1970, reforçou a direção. Foram recebidos com entusiasmo. Estavam entrando para o PCdoB em um momento de alto risco, quando a repressão atacava ferozmente os comunistas. A caçada aos que, de uma forma ou de outra, estavam ligados à Guerrilha do Araguaia era uma obsessão da ditadura militar.

Começava ali o trajeto que levaria à quarta geração de dirigentes, reunindo remanescentes da incorporação da Ação Popular e novas lideranças. Quando Renato ingressou no PCdoB, encontrou na direção quadros experientes, marcados por combates que vinham dos anos 1930. Não conheceu Grabois, morto em ação armada na Guerrilha do Araguaia, mas foi recebido por Amazonas, Pedro Pomar e Elza Monnerat, sobreviventes das matanças promovidas pela ditadura e antigos dirigentes comunistas.

Amazonas ingressou no Partido em Belém do Pará, sua terra Natal, onde fora preso em atividades da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que organizava o Levante de 1935, assim como Pomar. Elza Monnerat viera do Rio de Janeiro. Ingressara no Partido em 1945. Foram lideranças da reorganização de 1962, quando o Partido enfrentou um surto revisionista e reformista, processo iniciado em 1956 sob o influxo do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Com o golpe de 1964, diante da quase impossibilidade da luta revolucionária nas cidades, foram para o campo organizar a guerra popular, o caminho da luta armada, a resistência à ditadura. Amazonas e Elza sobreviveram à repressão à Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará. Pomar esteve em diferentes regiões do Norte e do Nordeste. Fixou-se no Vale do Ribeira, organizando bases da guerra popular nas montanhas do Sul do estado de São Paulo, e seria morto na Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976.

Liderança de João Amazonas

Amazonas assumiu a liderança da terceira geração de dirigentes, em 1962 – ao lado de Maurício Grabois, Pedro Pomar e outros –, com a experiência de membro do Comitê Central desde a Conferência da Mantiqueira, de 1943, assim chamada por ter sido realizada nas proximidades da serra com esse nome, numa casa de taipa, moradia de uma propriedade rural que pertencia a um militante comunista, no meio da mata, em Engenheiro Passos, distrito de Resende, Sul Fluminense, entre 28 e 30 de agosto de 1943. Nela, o Partido foi reconstruído após a feroz perseguição do Estado Novo, instaurado com o golpe de 1937.

Sua militância política começou na “Ala Moça” da União Popular do Pará (UPP), uma frente única organizada para participar das eleições municipais de Belém em 30 de novembro de 1935. O passo seguinte seria o ingresso no Partido Comunista do Brasil, tendo como caminho a ANL, organizadora do Levante de 1935, liderada por Luiz Carlos Prestes. Ingressou também na União dos Proletários.

Quando a ANL surgiu com força no país, Amazonas participou de uma ação ousada ao içar, à noite, uma bandeira da organização nos mastros dos reservatórios de água da Lauro Sodré, local com ampla visibilidade na cidade, com vinte metros de altura. O jornal Folha do Norte de 19 de dezembro de 1935 noticiou o fato notado pelo público desde a manhã do dia anterior. Os participantes do protesto escreveram, segundo a Folha do Norte, com tinta arroxeada, várias inscrições – como Viva Luiz Carlos Prestes, Viva a ANL e Viva o comunismo.

Na repressão que se instalou no país após o Levante, Amazonas foi preso na Cadeia de São José, descrita pela Folha do Norte como “um antigo e inqualificável pardieiro, uma ignomínia”. Um ano depois, a Justiça mandou soltá-lo, quando terminou o estado de guerra. Mergulhou na clandestinidade, mas logo seria preso novamente.

Segundo o inquérito que determinou a sua prisão, nas palavras da Folha do Norte, “João Amazonas agia no preparo de matrizes e boletins subversivos da propaganda moscovita, matrizes que eram entregues a Pedro de Araújo Pomar, detido há dias passados”, encarregado “de mimeografá-los em grande quantidade para os espalhar sorrateiramente pelos bairros da cidade”. Eram “pouquinhos, mas teimosos os adeptos do credo sinistro”.

Foram para a prisão de Umarizal, em Belém, de onde fugiram e, numa longa e penosa viagem, chegaram ao Rio de Janeiro para se juntar aos comunistas que reconstruíam o Partido, ainda na vigência do Estado Novo, liderados por Maurício Grabois. A decisão foi tomada após a informação de que a Alemanha nazista invadira a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 22 de junho de 1941. Fugiram em 5 de agosto. Chegaram ao Rio de Janeiro e se integraram à Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), criada por Maurício Grabois e outros comunistas para reestruturar o Partido desarticulado pelo Estado Novo.

Amazonas empregou-se como auxiliar de contabilidade, no centro da cidade. Era uma forma de fazer algum recurso enquanto a CNOP pavimentava os caminhos para o início de uma nova jornada. Logo foi para Minas Gerais. Recebeu alguns mil-réis e a passagem de trem que o levaria para as terras onde deveria fazer rebrotar as raízes comunistas. Outro ponto visitado por Amazonas foi a Bahia, de onde partiu o dirigente Diógenes Arruda Câmara para se integrar à CNOP. O objetivo era realizar uma Conferência Nacional e eleger um Comitê Central.

Os comunistas ressurgiam com força, presentes em organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), além da Liga de Defesa Nacional – uma frente com vários departamentos, entre eles o sindical, assumido por Amazonas, embrião do Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT). O Partido priorizava a organização de células nas empresas, formando uma grande base de trabalhadores.

De 1941 a 1945 foram anos de luta aguda contra o liquidacionismo – os que pretendiam liquidar o Partido, dissolvendo-o numa frente contra o nazifascismo –, disse Amazonas. “É preciso dizer que a desvantagem era grande. Vencemos porque a verdade estava do nosso lado”, afirmou. A nova equipe que assumia a defesa do Partido – registrou Amazonas – eram pessoas desconhecidas quase completamente. “Afinal, essa nova equipe – Arruda, Grabois, Pomar, eu etc. – eram pessoas que não tinham nenhuma posição no Partido, na época, a não ser locais, naqueles lugares onde tínhamos atuado.”

Na Conferência da Mantiqueira Amazonas assumiu a Secretaria Sindical e de Massas. A direção eleita contava também com Grabois, Pomar, Arruda, José Medina Filho, Álvaro Ventura, Jorge Herlein, Francisco Campos, Agostinho Dias de Oliveira e Lindolfo Hill.

Naquele processo, o encontro de Amazonas, Pomar, Grabois e Arruda representou as fundações de uma nova fase do Partido Comunista do Brasil. A meta era enterrar a ditadura do Estado Novo e liquidar o nazifascismo. Em 9 de agosto de 1943, o governo do presidente Getúlio Vargas decidiu organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Segundo Amazonas, os comunistas foram os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil na Segunda Guerra Mundial. “E o fizemos de maneira consequente”, constatou.

Os comunistas lideraram grandes manifestações para redemocratizar o país, defendendo uma Assembleia Nacional Constituinte, principalmente após a legalidade, em meados de 1945. Amazonas foi eleito deputado constituinte, o mais votado do Distrito Federal, sediado então no Rio de Janeiro. Depois da cassação do registro do Partido – em 1947 – e dos mandatos comunistas – em 1948 –, voltou à clandestinidade.

No debate deflagrado pelas mudanças do PCUS, Amazonas foi um dos primeiros a se pronunciar. Seu primeiro artigo, intitulado As massas, o indivíduo e a história, publicado no jornal Voz Operária em 26 de janeiro de 1957, contestou duramente a base dos argumentos daqueles que iniciaram os ataques ao Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB. Disse que eram as massas que faziam a história, mas “não se pode concluir que seja nulo ou insignificante o papel das personalidades”.

Amazonas voltaria a escrever em 2 de fevereiro de 1957 para defender a ideia de que “o Partido Comunista elabora sua orientação e enriquece seus princípios coletivamente”. “Isso dá ao Partido do proletariado uma grande vantagem sobre os partidos burgueses”, asseverou.

Nos debates do V Congresso, em 1960, também inovou ao abordar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil pela via prussiana (as análises de Marx e Engels sobre o desenvolvimento capitalista no espaço da Prússia e do que viria a ser a Alemanha sem alterações na propriedade da terra).

Segundo ele, as Teses do Congresso se equivocavam ao definir “que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas”. “O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio. Pode também o capitalismo crescer, substituindo a dependência do país ao imperialismo”, escreveu. “Não é o crescimento do capitalismo que leva à independência e às transformações democráticas, como se afirma implicitamente nas Teses.”

Os debates do V Congresso evoluíram para o “racha” e a reorganização. No jornal do Partido A Classe Operária, Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização, revelando nuances daquela batalha. Os que assumiram o controle partidário elaboraram um novo Programa e novo Estatuto para a criação de outro partido, o Partido Comunista Brasileiro, que assumiu a sigla PCB. Segundo Pomar, toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

A atitude revoltou os comunistas que combateram a linha vitoriosa no V Congresso. Imediatamente enviaram à nova direção um documento denominado Em defesa do Partido, com cem assinaturas – que ficaria conhecido como Carta dos cem –, solicitando a revogação das mudanças anunciadas. O documento classificava as medidas como uma “violação frontal dos princípios partidários, aberta infração das decisões do V Congresso (que) ferem a disciplina e atingem a própria unidade do Partido”.

De acordo com o documento, “as mudanças feitas no nome, no Programa e nos Estatutos objetivam o registro de um novo partido e, por isto, se suprime tudo que possa ser identificado com o Partido Comunista do Brasil, de tão gloriosas tradições”. “Ora, precisamente o partido que deve conquistar a legalidade é o Partido Comunista do Brasil e não um arremedo de partido de vanguarda do proletariado”, asseverava.

A resposta do Comitê Central foi, como destaca Pomar, de intolerância a toda prova. “Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisionismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

Após o golpe militar de 1964, o Partido, agora com a sigla PCdoB, começou a estudar o caminho da guerra popular. “Em toda parte, em especial no campo, é preciso discutir os problemas da luta armada e, guardadas as normas de trabalho conspirativo, tomar medidas visando à sua preparação prática”, diz o texto da VI Conferência, de 1966. O PCdoB saiu a campo à procura dos melhores lugares para instalar a guerrilha, com três grupos de trabalho – um dirigido por Amazonas e Grabois, outro por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, e um terceiro por Carlos Danielli.

Amazonas se integraria ao Araguaia, Sul do Pará, onde Grabois e outros militantes do PCdoB desenvolviam o trabalho da guerra popular. Na ocasião, Amazonas e Grabois escreveram dois importantes documentos: A atualidade do pensamento de Lênin e Cinquenta anos de luta, sobre a história do Partido Comunista do Brasil.

Liderança de Luiz Carlos Prestes

Luiz Carlos Prestes assumiu a liderança da segunda geração de dirigentes comunistas na Conferência da Mantiqueira. Ainda nos cárceres da ditadura do Estado Novo, preso por ter liderado a ANL no Levante de 1935, foi eleito secretário-geral. Seu prestígio decorria da liderança na Coluna Invicta, um movimento nunca derrotado que percorreu o Brasil no final da década de 1920 combatendo os desmandos da República Velha e fermentando as condições para a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

Prestes desembarcou clandestinamente no Brasil em 15 de abril de 1935, vindo da União Soviética, onde estava exilado, para liderar o Levante. O governo Vargas baniu a ANL da legalidade e, após o malogro do movimento rebelde, desencadeou uma violenta onda repressiva.

Prestes foi preso em 5 de março de 1936, depois de uma caçada comandada pelo chefe da polícia política, Filinto Müller, que esquadrinhou o bairro do Méier e revistou casa por casa. Estava com a esposa, a alemã Olga Benário, deportada grávida para a Alemanha nazista onde morreu em uma câmara de gás, na cidade de Bernburg, pouco depois de dar à luz Anita Leocádia Benário Prestes.

Com a reviravolta na Segunda Guerra Mundial, quando os soviéticos começaram a empurrar os nazistas de volta para Berlim, o presidente da República foi para o lado dos Aliados – a aliança de países que combateram o Eixo nazifascista formado por Alemanha, Itália e Japão – e recebeu o reconhecimento dos comunistas. O diplomata Orlando Leite Ribeiro foi designado para ser o elo com Prestes, ainda encarcerado. Em 18 de abril de 1945, Vargas concedeu a anistia aos presos e exilados. Prestes deixou a prisão.

Tempos depois, Prestes avaliaria que o presidente da República precisava dos comunistas, uma força política à época com grande apoio popular. Havia um setor do governo que agia abertamente contra o avanço das medidas democráticas, logo transformado em conspiradores.

Prestes só assumiria de fato a função de secretário-geral no final do “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional, depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto de 1945. O Partido Comunista do Brasil puxava grandes manifestações populares, numa campanha vitoriosa pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte.

A eleição dos constituintes ocorreu em 2 de dezembro de 1945, quando também foi eleito o presidente da República. Compareceram às urnas cerca de seis milhões de eleitores. O candidato a presidente do Partido Comunista do Brasil, Yeddo Fiúza, obteve 569.818 votos, 9,7% do total de votantes. O general Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social Democrático (PSD), foi eleito com 55% dos votos e Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN), obteve 35%. Os comunistas elegeram catorze deputados federais e Prestes senador.

As perseguições anticomunistas, no entanto, recomeçaram já no início de 1946, quando dois pedidos de cassação do registro eleitoral do Partido Comunista do Brasil foram apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Prestes seguiu na liderança do Partido até 1961, quando assumiu a chefia do Partido Comunista Brasileiro.

Liderança de Astrojildo Pereira

O líder da primeira geração de dirigentes comunistas, Astrojildo Pereira, foi o fundador do Partido. Prestes entrou em contato com os comunistas por seu intermédio. Foi em dezembro de 1927, na Bolívia. Lá estavam os remanescentes da Coluna Invicta. Prestes já era conhecido como o lendário Cavaleiro da Esperança e deixaria seu nome como marca da Coluna, inicialmente chamada de Miguel Costa-Prestes, uma referência ao general que também comandou os revoltosos.

Astrojildo viajou como repórter do jornal A Esquerda, dirigido por Pedro Motta Lima – que comandaria alguns dos jornais do Partido –, levando uma mala carregada de livros de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin e outros, publicações da editora L’Humanité, do Partido Comunista Francês – no Brasil, poucas obras marxistas em português haviam sido publicadas –, possivelmente trazidas quando estivera na União Soviética, em 1924, ou recebidas pelo correio naval. O encontro ocorreu em Porto Suarez, ao lado de Corumbá, a cidade brasileira de Mato Grosso do Sul na fronteira boliviana.

Foi recebido por Prestes e dois oficiais na Coluna, vindos possivelmente da cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, conforme a memória de Astrojildo. Há versões de que os remanescentes da Coluna se instalaram numa localidade chamada La Guaíba. Em Porto Suarez, conversaram por quase dois dias, instalados numa casa simples. O dirigente do Partido Comunista do Brasil transmitiu-lhe o pensamento dos comunistas e as questões que o levaram a procurá-lo.

Segundo Astrojildo, o motivo da conversa era, em suma, o problema político da aliança entre os comunistas e os combatentes da Coluna Prestes, a união do proletariado revolucionário, sob a influência dos comunistas, e as massas populares – especialmente os camponeses – influenciadas pela Coluna e seu comandante.

O PCB estava saindo de um período de clandestinidade, iniciado logo após a sua fundação com a adoção do estado de sítio em julho de 1922, uma resposta do governo Epitácio Pessoa ao movimento tenentista que entrou para a história como a “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, e extinto em 15 de novembro de 1926, já no governo de Washington Luís.

De janeiro a agosto de 1927, o PCB liderou um ciclo de greves operárias. O jornal A Nação, em cuja redação trabalhavam três ou quatro membros do Comitê Central, segundo Astrojildo, divulgava amplamente as ações dos comunistas. Com a chamada “Lei Celerada”, editada em 12 de agosto de 1927, os comunistas voltaram à ilegalidade e tiveram seu jornal fechado.

Nos meses seguintes, o Comitê Central chegou à conclusão de que a derrota sofrida se devia basicamente às posições sectárias do Partido, relatou Astrojildo. Era preciso buscar aliados. Essa era a missão na Bolívia. A essência da conversa, publicada como entrevista em janeiro de 1928 no jornal A Esquerda, alinhava os pontos principais de um programa de frente única, democrática e nacionalista.

Prestes, contudo, foi para a Argentina, onde trabalhou como engenheiro e participou de atividades políticas. Em 1930, lançou um manifesto apontando o caminho da revolução agrária e anti-imperialista, sob a hegemonia da classe operária. Expulso da Argentina, exilou-se na União Soviética e, em 1º de agosto de 1934, foi oficialmente aceito como membro do Partido Comunista do Brasil. No VII Congresso da Internacional Comunista, em agosto de 1935, passou a integrar o seu Comitê Executivo.

A militância anarquista de Astrojildo começou em 1910, no movimento sindical. Trabalhou como tipógrafo de jornal, linotipista, revisor, repórter e redator. Como um dos líderes das greves de 1918 e redator do jornal Voz do Povo, foi preso e processado. Recebia informações da III Internacional Comunista antes mesmo da fundação do PCB, segundo ele pela “correspondência internacional”.

A revista Movimento Comunista, sob sua direção, começou a circular em 1º de janeiro de 1922 com notícias vindas da União Soviética. Em 1924 viajou para a pátria do socialismo. Tomou o navio na Praça Mauá, Rio de Janeiro, precisamente no dia da morte de Lênin, em 21 de janeiro. Como a partida seria à noite, pôde ler a notícia nos jornais vespertinos. De Moscou, enviou matérias para os jornais O Paiz e Correio da Manhã, relatando aspectos do nascente socialismo e comentando como a imprensa anarquista no Brasil distorcia os propósitos da Revolução.

Ele mesmo egresso do anarquismo, via aquele movimento como superado pelo marxismo, compreensão que o havia levado a organizar as primeiras ações visando à fundação do Partido Comunista do Brasil, um movimento conhecido como “os doze astrojildistas”, nominação recebida de Octávio Brandão, outro importante dirigente do PCB daquela geração. De acordo com Astrojildo, em 1921 já havia “acalorados debates nos sindicatos operários” que resultaram na fundação, em 7 de novembro daquele ano – aniversário da Revolução Russa de 2017 –, de um grupo chamado “Centro Comunista”.

A primeira ideia de criar o Partido Comunista do Brasil, diz Astrojildo, havia sido lançada cerca de três anos antes, mas não estava ainda madura e “gorou no nascedouro”. De 1917 em diante, a influência da Revolução Russa tornou-se decisiva, sobrepondo-se pouco a pouco à hegemonia anarquista. Uma onda de greves iniciada naquele ano ficou marcada por manifestação de apoio aos comunistas russos.

Intelectuais também se manifestaram, entre eles Lima Barreto, que, em 1919, publicou um artigo intitulado Manifesto maximalista, com grande repercussão. Segundo Astrojildo, tudo levava a crer que o escritor, falecido em 1º de novembro de 1922, tomaria posição a favor do Partido.

Naquele clima de debates, houve a cisão no anarquismo e a criação do “Centro Comunista”. Os “doze astrojildistas” entraram em contato com comunistas de outras regiões do país e lançaram a revista mensal Movimento Comunista, importante veículo de ligação e preparação política entre os grupos que elegeram delegados para o Congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil.

Depois de seis meses de preparação, nove delegados reuniram-se dias 25 e 26 de março de 1922 no Rio de Janeiro. A reunião final ocorreu dia 27 na pequena sala de visitas da residência de Astrojildo, na Rua Visconde de Rio Branco, número 651, Niterói. Terminados os trabalhos, os delegados levantaram-se e cantaram a Internacional Comunista.

De acordo com Astrojildo, a formação do Partido se deu em pleno fogo da luta de classes e, ao mesmo tempo, sob o fogo de uma dura luta ideológica, reflexo, no Brasil, e segundo as condições brasileiras, da luta ideológica travada no plano mundial pela III Internacional Comunista. Em 1º de maio de 1925, circulou pela primeira vez o lendário jornal do Partido A Classe Operária, do qual Astrojildo era o principal redator.

O jornal surgiu após o ingresso do PCB na Internacional, no seu V Congresso, em 1924. Astrojildo, mesmo ausente, foi eleito para a Comissão de Controle do Comitê Executivo e o PCB passou a ser reconhecido como membro efetivo da organização.

Astrojildo tornou-se um escritor refinado, descrito pelo analista Sylvio Rabello, num texto publicado nos jornais do grupo Diários Associados, como “de uma simplicidade ideal, uma simplicidade que está em boa correspondência com as suas doutrinas e com o curso de sua argumentação, ao mesmo tempo de um virtuosismo do escritor preocupado com a disciplina e o rigor de sua arte”.

Especializou-se na obra de Machado de Assis, com quem esteve pouco antes de sua morte. O encontro foi descrito por Euclides da Cunha em uma homenagem ao escritor no Jornal do Comércio de 30 de setembro de 1908: “Chegou, não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois de algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.” Machado de Assis, disse Astrojildo, foi “o escritor que melhor refletiu em sua obra a vida social e o espírito da sociedade brasileira do seu tempo”.

Astrojildo voltou à União Soviética em 1929, onde permaneceu de março até o final de dezembro. Os acontecimentos no pós-contato com Prestes na Bolívia, segundo ele, “puseram à prova o que havia de tremendamente falso” na concepção da direção do PCB, “que levou o Partido a uma completa e criminosa passividade diante dos acontecimentos de outubro de 1930 (a Revolução liderada por Getúlio Vargas) e às terríveis oscilações da direita para a esquerda e da esquerda para a direita que se seguiram durante meses e anos”.

Naquele ziguezague tático, a direção acusou o Partido de seguir a linha política do “astrojildismo menchevista”. Com a chegada de Prestes, o Partido Comunista do Brasil iniciou nova fase. Astrojildo estava afastado e só voltaria na década de 1940. Sobreviveu do comércio de bananas, numa quitanda do Rio de Janeiro, condição que mereceu de Manuel Bandeira o seguinte poema:

Bananeiras – Astrojildo esbofa-se –
Plantai-a às centenas, às mil:
Musa paradisíaca, a única
Que dá dinheiro neste Brasil.

Em 1945, Astrojildo descreveu o Partido com essas palavras: “O fio d’água desceu minguadinho por entre as pedras, seguiu o seu destino por montes e vales, cresceu de vulto passo a passo, com a afluência de novas águas, engrossando por efeito mesmo das tempestades que sobre ele se formaram, e ei-lo hoje, o grande rio brasileiro, sulco profundo na terra do Brasil, artéria vital no sistema político do nosso país – o Partido Comunista do Brasil.”

Coletivo dirigente

Renato assumiu o comando desse “grande rio brasileiro”, liderando a quarta geração de dirigentes comunistas, no curso natural das águas. Anunciou que o faria ainda mais caudaloso. Os que bebem nessa fonte de interpretações marxistas e progressistas desde 1922 teriam agora uma nova fase de desafios, representados por mudanças de largo espectro nas conjunturas nacional e internacional. “Tentarei dar desenvolvimento ao pensamento político do nosso Partido na nova situação e reunir as inteligências e os meios necessários para enfrentar os novos desafios que nos apresentam. Manteremos a linha revolucionária e flexível que nos possibilitará conquistas ainda maiores”, resumiu.

Amazonas trabalhou a sua sucessão com a dedicação de sempre. Envolveu o coletivo dirigente no processo e fez a transição seguro de que seus métodos como principal liderança do Partido garantiriam a continuidade da marcha revolucionária iniciada em 1922.

Uma de suas principais preocupações, naquele momento, era a tática para as eleições presidenciais de 2002. João Amazonas defendia, desde a campanha de 1989, quando se formou a Frente Brasil Popular (PT, PCdoB e PSB) liderada pelo candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, que, nas condições brasileiras, inseridas na conjuntura da América Latina e do mundo, seria muito difícil a esquerda sozinha ganhar eleições presidenciais.

Amazonas ficou contente quando soube que Lula, na articulação de sua quarta campanha, procurava ampliar a frente. Disse-lhe pessoalmente, na sede do PCdoB, em São Paulo – a última vez que se encontraram –, que a escolha de José Alencar para seu vice era uma boa decisão. Amazonas não chegou a ver a vitória de Lula nas eleições de 2002 – faleceu, cinco meses antes, de causas naturais, no dia 27 de maio de 2002.

Amélia, mulher comunista de verdade

Por Osvaldo Bertolino

Ninguém fazia a menor ideia de quem era aquele casal andando pelas ruas de Mossoró, Oeste do Rio Grande do Norte. Ele um cego e ela sua guia, uma mulher de barriga volumosa, aparentemente perto de dar à luz. Os disfarces escondiam o professor Raimundo Reginaldo da Rocha e sua filha, Amélia Gomes Reginaldo, de dezoito anos de idade, com a roupa com enchimento de pano, fingindo-se grávida. Fugiam das perseguições desencadeadas em Natal, onde participaram do Levante da Aliança Libertadora Nacional (ANL), deflagrado em 23 de novembro de 1935, de armas nas mãos.

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As ideias marxista-leninistas foram lançadas no Rio Grande do Norte por Raimundo, que iniciou a organização do Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB, em 1928. Em Mossoró, incentivou os irmãos a entrarem para o Partido, formando o grupo que ficou conhecido como irmãos Reginaldo. Ingressaram, além de Raimundo, Lauro Reginaldo – que ficaria conhecido como Bangu e seria importante personagem nos primeiros anos do Partido em âmbito nacional –, Jonas Reginaldo, Antônio Reginaldo e Glicério Reginaldo.

O Levante teve importante ponto de apoio na União Feminina Brasileira (UFB), à época organizada clandestinamente em várias cidades do país, que chegou a Natal também sob orientação do professor Raimundo, incumbência que teria recebido de representantes da ANL que foram ao Rio Grande do Norte tomar pulso da situação e incentivar a organização aliancista. Núcleos da UFB se espalharam pela cidade, organizados por homens e mulheres comunistas. Na residência de Raimundo, ocorreram as primeiras reuniões, quando foram debatidas as ideias da ANL. Conhecido por Tomé – seu nome clandestino –, ele foi auxiliado pela esposa, Luiza Gomes, e a filha, Amélia, com o nome clandestino de Clotilde.

Em panfleto com o título Convite, o diretório da União Feminina do Brasil, com “seção no Rio Grande do Norte”, convidou as excelentíssimas famílias “a tomarem parte na União Feminina, a única que luta por Pão, Terra e Liberdade”, o lema da Insurreição. Como todos os boletins, o Convite terminou com proclamações de “viva” a Luiz Carlos Prestes, à Aliança Nacional Libertadora, ao 21º Batalhão de Caçadores – o epicentro do Levante – “e ao povo em armas” – além, claro, à União Feminina.

Amélia assumiu a importante função de coordenadora da correspondência com as demais cidades insurretas – Rio de Janeiro e Recife –, falando em nome do Comitê Revolucionário, que havia se instalado na Vila Cincinato, sede do governo. De acordo com a denúncia do procurador criminal da República no Rio Grande do Norte, Carlos Gomes de Freitas, Amélia e outras mulheres invadiram o 21º Batalhão de Caçadores fardadas e portando armas pesadas. Como secretária do Comitê Popular Revolucionário, contribuiu na edição do jornal A Liberdade, o órgão oficial do Levante. Foi a única condenada, das mulheres que participaram do Levante, e recebeu pena de cinco anos de reclusão. Sua prisão foi decretada em 4 de setembro de 1936.

Além de Amélia, Leonila Felix – segundo Graciliano Ramos, no livro Memórias do cárcere, uma mulher branca, nova, bonita –, esposa de Epifânio Guilhermino, motorista de táxi responsável por reunir carros e caminhões para os revoltosos, se destacou por participar do Levante fardada e portando arma.

Raimundo Reginaldo e Amélia dirigiram-se à cidade de Picos, no Piauí. Havia, por parte do governador Rafael Fernandes, uma particular sede de vingança contra ele. Também originário de Mossoró, o governador tentara cooptá-lo, oferecendo-lhe a inclusão do seu nome numa chapa eleitoral pela qual seria eleito deputado estadual. Diante da recusa, foi transferido para lecionar na Casa de Detenção, em Natal, posto que lhe possibilitou a soltura dos presos para ajudar no Levante.

A fuga de Raimundo e Amélia começou antes do amanhecer de 27 de novembro de 1935. Com eles estava um garoto, chamado Eucário, que morava com a família, segundo Amélia em carta enviada ao tio Lauro, o Bangu. Passaram pela casa de um simpatizante do Partido, onde ficaram por certo tempo, ela escondida num quarto e eles no mato. Chegou a informação de que as residências de suspeitos estavam sendo revistadas e Amélia se juntou a Raimundo e Eucário. Alimentavam-se de frutas e do que o menino conseguia comprar.

Três meses depois, voltaram à casa do simpatizante, que comprou roupas e alimentos para que prosseguissem na fuga. Conseguiram tomar um trem com destino a Recife, viajando um distante do outro, até perceberem que estavam sendo observados por policiais. Numa parada, saltaram e se refugiaram num matagal. Decidiram caminhar na direção contrária, rumo a Natal, para despistar a polícia, onde foram recebidos por simpatizantes do Partido.

Raimundo foi trabalhar com um grupo de madeireiros. Comprou uma casa de palha e lá ficou até ser reconhecido. A polícia montou um cerco, mas, percebendo a movimentação estranha, ele fugiu pouco antes do ataque. Passou na casa onde estava Amélia e partiram, com destino a Juazeiro, no Ceará. Foi quando cruzaram Mossoró.

O menino Eucário possivelmente ficou em Natal. Seu destino não consta da carta de Amélia ao tio, mas em seu relato ele deixa de acompanhá-los. Com a polícia no encalço, que prendera e torturara parentes, chegaram a Juazeiro e fixaram residência. Raimundo montou uma “bodega” e Amélia foi morar na casa de um parente em Crato, cidade vizinha a Juazeiro.

A esposa, Luiza, ficara em Mossoró e Reginaldo decidiu visitá-la. Mesmo com toda cautela, a informação chegou à polícia, que divulgou a informação de que ele estaria por lá à frente de um grupo de bandidos, ameaçando assaltar fazendeiros. Mas foi e voltou sem incidente. Logo chegou a informação de que a caçada a eles se estendia por toda a região e decidiram rumar para o Piauí. E por lá ficaram.

Algum tempo depois, Raimundo faleceu de ataque cardíaco. Amélia relata que, quando ele começou a se sentir mal, pediu para ela cantar A Internacional Comunista, o hino de sua paixão, que relembrava suas lutas, seus ideais de redenção do povo brasileiro. “Notando que ele estava muito comovido, eu não quis cantar. Ele insistiu e eu não pude continuar me esquivando. Comecei a cantar. Aí as lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Eu parei de cantar e procurei mais uma vez reanimá-lo. Passado algum tempo, ele começou a passar mal. A agonia de que vinha se queixando, voltou forte, violenta”, detalha.

Amélia casou-se – passou a se chamar Amélia Nogueira Feitosa –, teve filhos e não se apartou da sua biblioteca, que começou a montar assim que se estabeleceu no Piauí. Renato Duarte, no livro Picos – os verdes anos cinquenta, diz que Amélia singularizava-se como pessoa simples e recatada, ao mesmo tempo culta. “Leitora ávida de livros e revistas, possuía uma das poucas bibliotecas particulares da cidade”, uma “mulher diferente dos padrões de comportamento feminino de então”.

O hábito da leitura vinha de quando fora líder estudantil na Escola Normal de Mossoró. Recebeu inicialmente o nome de Rosa de Luxemburgo e cresceu em meio às lutas populares. Entre suas leituras, estavam Victor Hugo, Euclides da Cunha, Jorge Amado, Karl Marx e Vladimir Lênin. À frente da União Feminina do Brasil, foi a principal protagonista do Levante. Amélia faleceu em 11 de novembro de 1978, de problemas causados por hipertensão e diabetes.

Adaptado do livro Rio Vermelho – raízes potiguares do Brasil democrático e progressista desde o Levante de 1935  

Biografia de Renato Rabelo retrata frondosa árvore da notável floresta socialista

Biografia de Renato Rabelo: Frondosa árvore de uma notável floresta

Por Adalberto Monteiro

Quando uma árvore, por seu porte, por suas raízes profundas, por inúmeras floradas e iguais colheitas proporcionadas, por tantas sementes dela germinadas, desponta-se em uma alta floresta, vem de quem a enxerga a indagação de quanto disso e daquilo ela teve de enfrentar e vencer para adquirir aquela presença destacada, valorizada, naquela paisagem por si só rica e diversa.

A biografia de Renato Rabelo, pelo trabalho arguto e meticuloso do historiador e biógrafo Osvaldo Bertolino, dá-nos acesso às páginas da vida deste destacado dirigente do PCdoB e ao mapa de uma longa e realizadora militância revolucionária. O livro é uma realização da Fundação Maurício Grabois, da qual Renato é, hoje, o presidente de honra.

Trata-se de um trabalho de mais de três anos, alicerçado em pesquisas, apoiado em fontes, muitas até então inéditas; além, é claro, de horas e horas de gravação com o biografado. Osvaldo, não fosse historiador, biógrafo, poderia ter sido roteirista de cinema. Por vezes, leitor, leitora, a fluência do texto nos faz ver, enxergar, assistir, sentir fatos vividos por Renato. Riqueza de detalhes, reconstituição de cenários e circunstâncias, mas sempre marcando o significado de cada episódio.

As minúcias são na verdade chaves através das quais somos transportados aos portais do tempo. Quais a senha e a contrassenha que os/as estudantes delegados/as tinham que pronunciar para ter acesso ao clandestino XXVIII Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE)? Quem é o personagem da palavra de ordem entoada pelas passeatas estudantis de meados dos anos 1960: Osso, osso, abaixo o sem-pescoço?

A biografia de Renato flui, pela maestria de Bertolino, carne e unha com a história do Brasil, entrelaçada com as histórias da Ação Popular (AP), da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, também, do movimento comunista internacional. Vê-se a presença destacada de Renato em batalhas e confrontos decisivos para o Brasil e para o proletariado, a luta pelo socialismo nas últimas seis décadas e um rol de feitos e realizações de sua militância.

O Índice Onomástico da obra evidencia um conjunto numeroso de nomes de quadros e lideranças da AP e do PCdoB, que torna patente o trabalho coletivo que Renato sempre valorizou como método de trabalho; e, também, de personalidades dos campos democrático e popular do país que, por sua vez, refletem a política de alianças amplas do PCdoB da qual Renato é um dos elaboradores e protagonistas na aplicação. Os textos, neste livro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidente Dilma Rousseff bem simbolizam a dimensão destas relações de aliança, bem como a estatura do legado político de Renato.

Um dos méritos da obra de Bertolino, aliás um dos traços também presentes em biografias anteriores, é não circundar nenhuma auréola em torno da cabeça do biografado. Movimenta-se, então, um Renato substantivamente humano, terrestre, como você, ele, ela e eu, que tem família, que se diverte, que se embevece com uma taça de vinho, que se entristece, que tem saúde, que adoece, que trabalha muito, acerta e erra. A vida sempre modesta, por vezes, duramente difícil, de Renato e da família.

Em diferentes circunstâncias, a biografia ressalta duas características dominantes da personalidade de Renato: a empatia e a imensa capacidade de ouvir e de, assertivamente, interagir com a ideias a ele apresentadas, mesmo que delas tenha divergência; e a coragem política, a firmeza de tomar decisões.

Uma essência transborda da biografia de Renato: sua maior obra e legado é ter aportado, ao acervo teórico, político e ideológico do Partido Comunista do Brasil, importantes contribuições teóricas e políticas que enriqueceram o pensamento tático, estratégico e programático da legenda comunista, como também a práxis de sua edificação e atuação na arena da luta de classes. A isso se soma um elenco de quadros comunistas em relação aos quais o papel de Renato foi destacado para formá-los, seja na Escola Nacional João Amazonas, seja na estrutura do Partido, seja nas frentes de atuação, notadamente no movimento estudantil.

E este aporte alinhava o fluxo da biografia, revelando-nos em que circunstâncias, no curso de quais confrontos da luta de classes, no Brasil e no mundo, o legado de Renato foi se erguendo.

E, temporalmente, isso se dá ao longo de mais de sessenta anos de militância. O marco zero deste itinerário é o final dos anos 1950, quando, no interior da Bahia, no último ano do colégio, assumiu a secretaria geral do grêmio estudantil. Segundo Osvaldo Bertolino, Renato “queria conhecer Salvador, ver o Brasil, tomar pulso do mundo”. Sonho que, como se sabe, concretizou-se.

A sua jornada de lutas se inicia no âmbito da juventude católica, orientada pela Teologia da Libertação. E, logo a seguir, nas fileiras revolucionárias da Ação Popular, e, a partir de 1973, após incorporação desta organização à legenda comunista, no núcleo dirigente do PCdoB. Trajetória essa que chega ao ápice no período de dezembro de 2001 a maio de 2015, quando, por indicação de João Amazonas, liderança histórica dos comunistas, Renato é eleito pelo Comitê Central para exercer a presidência do Partido Comunista do Brasil.

Uma vida longa é a um só tempo privilégio e desafio. Desafio, pois que, quaisquer que sejam as vicissitudes, a liderança comunista é chamada a descrever uma linha de coerência. Da primeira página até a última do livro, o que costura o itinerário de lutas de Renato são três palavras: coerência, convicção e compromisso, com ideais do comunismo, com um projeto de nação, de um Brasil democrático, soberano, socialista, que abraçou com ardor e consciência desde a juventude.

A maturação da têmpera revolucionária de Renato, o processo cumulativo de suas qualidades respondendo às responsabilidades cada vez mais elevadas de mandatos oriundos do coletivo, deram-se consoante, sobretudo, à dinâmica da luta política do país, mas também sob os impactos dos conflitos e confrontos que se irromperam na realidade mundial e, é claro, das vicissitudes do movimento comunista brasileiro e internacional com suas vitórias, mas, também, com suas divisões e seus reveses.

O retrato de Renato, pelos traços de sua biografia, revela uma liderança de ação, de combate, de verdadeira gana por intervir nas principais lutas sociais, políticas, ideológicas, travadas no país nas últimas seis décadas. E, ao mesmo tempo, sistematiza e generaliza a prática transformadora, estuda, elabora, a partir do marxismo, formulações que buscam responder aos nexos principais da luta de classes em cada momento histórico, jamais se deixando aprisionar por verdades pétreas.

E sempre que a prática e o curso da história revelam erros ou insuficiências, com base no método leninista da crítica e da autocrítica, abraça ou participa da gênese do novo, que faz a teoria e a prática avançarem.

Para completar, o terceiro traço do retrato se avulta: construtor do Partido Comunista do Brasil, com a seiva da luta política e de massas, com a teoria marxista-leninista a toda carga, com sua essência transformadora iluminando a prática revolucionária.
Finalmente, a biografia de Renato é um acervo vivo e pulsante de ideias e práticas transformadoras, de convicções e de energia revolucionárias que nos convidam, nos convocam, a prosseguir as jornadas de lutas pela construção do socialismo em nosso país.

Adalberto Monteiro é jornalista e poeta, secretário nacional de Formação e Propaganda do PCdoB

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Serviço:

Título: Renato Rabelo – vida, ideias e rumos
Autor: Osvaldo Bertolino
ISBN: 978-65980456-4-7
Publicação: Fundação Maurício Grabois
Ano de publicação: 2025
Páginas: 848

Fonte: www.gradois.org.br

Diário de Maurício Grabois: espírito de Armando Falcão paira sobre a revista CartaCapital

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 09/07/2011

Já se passaram mais de dois meses desde que formalizei o pedido de resposta ao uso indevido do meu nome na farsa do jornalista Lucas Figueiredo publicada pela revista CartaCapital durante a polêmica sobre o suposto diário de Maurício Grabois.

Até agora tem prevalecido, possivelmente encarnado no redator-chefe da revista, Sergio Lírio, o espírito de Armando Falcão — o porta-voz da linha-dura nos tempos da censura da ditadura que tinha “nada a declarar” como expressão predileta.

Além da adulteração do meu texto pelo jornalista, a revista publicou que ele estava respondendo a um “funcionário da Fundação Maurício Grabois”, ignorando que escrevi como pessoa física, no meu blog particular, O outro lado da notícia. O Portal Vermelho e o blog Luis Nassif Online reproduziram meu texto — o segundo a meu pedido — e indicaram devidamente a fonte.

O redator-chefe de CartaCapital, Sérgio Lírio, respondeu ao meu pedido de resposta em tom agressivo e fez duas ameaças: que poderia ignorar meu pleito ou publicar o texto que enviei com respostas do Lucas Figueiredo e dele próprio. Cumpriu a primeira. Disse, cinicamente, que “Lucas Figueiredo apenas respondeu a um texto seu (meu)”. “Portanto, cabia a ele um ‘direito de resposta’, delirou, sem considerar que a revista não publicou nenhuma palavra dos meus vários pedidos.

Mais adiante, CartaCapital publicou um texto do presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, com link no rodapé para a falsificação do Lucas Figueiredo.

Diário de Maurício Grabois: resposta de Lucas Figueiredo tem pernas curtas

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 29/04/2011

Quem jacta-se de si mesmo pouco tem do que jactar-se. A frase atribuída a Honoré de Balzac cai como uma luva para o título Quando o jornalismo incomoda da resposta do jornalista Lucas Figueiredo em seu blog aos comentários que fiz sobre sua matéria na revista CartaCapital comentando o suposto diário de Maurício Grabois. O que menos existe em sua argumentação é jornalismo.

Já de saída ele recorre a uma manobra diversionista ao declarar que, “vinda de dois flancos que se abrigam numa mesma trincheira”, recebeu “uma saraivada de críticas”. (Segundo o dicionário Houaiss, “diversionismo” é, entre outras coisas, um estratagema usado para impedir que se discuta algo ocupando todo o tempo ou desviando-se a atenção dos participantes para assunto diferente do que está sendo tratado.) Refere-se ao editorial do Portal Vermelho sobre o tema e aos meus comentários, misturando alhos com bugalhos.

Com sua habitual modéstia, Lucas Figueiredo informa que em sua matéria destrincha “o até então inédito diário que o comandante da Guerrilha do Araguaia, Maurício Grabois, escreveu entre abril de 1972 e dezembro de 1973 em seus esconderijos (sic) na mata”. “O diário é um documento histórico de grande importância pois cobre 605 dias de luta no Araguaia”, complementa. Em seguida parte para o ataque ao Portal Vermelho, “ponta de lança do PCdoB na internet” — assunto que, tenho absoluta certeza, será muito bem respondido pelo veículo atacado.

Não trabalho no Portal Vermelho já há algum tempo. Fico só na resposta à parte em que o jornalista se refere ao meu texto. Como desinformação é a sua arma, ele começa ignorando que escrevi os comentários para o blog O outro lado da notícia, que publico desde maio de 2008 e está sob a minha exclusiva responsabilidade. Não recebe nem paga uma moeda para ser publicado. Tampouco possui qualquer vinculação com instituições ou veículo de comunicação. “O outro texto que me ataca (Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista da CartaCapital), publicado no mesmo Vermelho.org e no blog do Luis Nassif é assinado por Osvaldo Bertolino, que se apresenta como jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois, editor do portal Grabois.org.br e biógrafo de Maurício Grabois”, escreve Lucas Figueiredo.

Tanto o Portal Vermelho como o blog do Luis Nassif transcreveram — o segundo a meu pedido — o texto. Bastaria um clique para saber onde estava a publicação original. Mas, para Lucas Figueiredo, ignorar O outro lado da notícia foi mais conveniente. Escrevi em tom pessoal, com informações pessoais. O Portal Vermelho transcreveu e, dignamente, citou a fonte. O blog do Luis Nassif disponibilizou o acesso para o original. Forçar a barra para institucionalizar, como sendo do PCdoB, o que escrevi não passa de desfaçatez. Como diz o povo, tentou matar dois coelhos com uma só cajadada ao atribui a “saraivada de críticas” a “dois flancos que se abrigam numa mesma trincheira”. A trincheira — sabemos, mas é bom ressaltar — é o PCdoB.

Depois ele usa o velho recurso de atacar o mensageiro para evitar a mensagem. Se fosse jornalismo mesmo, Lucas Figueiredo não teria dito que o texto foi “assinado por Osvaldo Bertolino”. Quem teria escrito? Vai saber… O jornalista também poderia constatar quem sou e o que faço para evitar uma agressão gratuita ao dizer que me apresento “como jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois, editor do portal Grabois.org.br e biógrafo de Maurício Grabois”. É o famoso tiro pela culatra.

Depois ele diz que começo “tentando desqualificar o furo (sic) de CartaCapital ao dizer que o assunto do diário ‘não é novo’”. “Ele mesmo, antes de mim, já teria recebido anonimamente trechos do diário, mas não os utilizara dada a ‘impossibilidade de verificar a veracidade do documento’, escreve. “Pois eu consegui verificar a veracidade do documento e fui o primeiro a torná-lo público, na íntegra, no site de CartaCapital”, complementa. Como, não explica. E nada fala da versão do jornalista Hugo Studart, em artigo publicado pela revista Brasil História na edição de março de 2007.

(Segundo Studart, o diário foi encontrado pelas tropas que mataram Grabois, dentro de suas roupas, já estufado pela umidade. O documento chegou a Marabá no final da tarde de 25 de dezembro de 1973 para ser encaminhado na primeira hora do dia seguinte ao Centro de Informações do Exército (CIE),em Brasília. Umcapitão da área de informações pediu o material emprestado aos colegas para examiná-lo e, sem consultar os superiores, convocou cinco soldados para que atravessassem a madrugada copiando o conteúdo à mão. Pela manhã devolveu o documento. O diário original desapareceu dos arquivos do CIE, provavelmente destruído no crematório ocorrido em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel para ocultar os combates no Araguaia. Restou a cópia (mais tarde datilografada), preservada nos arquivos pessoais daquele capitão. Três oficiais superiores, antigos membros da Comunidade de Informações que tiveram acesso aos originais antes da cremação, atestam a autenticidade do conteúdo que consta na cópia.)

Os ataques ao mensageiro continuam. “Em seu texto, Bertolino se revela um apaixonado por seu objeto de estudo, condição perigosa para um pesquisador. O comandante da guerrilha seria ‘um homem à frente do seu tempo’ e que vivia ‘totalmente envolvido’ na ‘luta pelo futuro’. Para Bertolino, Grabois fazia parte de uma casta especial, a dos ‘verdadeiros heróis’”. De novo, Lucas Figueiredo apela para as citações descontextualizadas para fugir da essência da polêmica. Inventa citações.

Transcrevo a íntegra do parágrafo para comprovar a falta de rigor do jornalista:

Para escrever a biografia (de Grabois), consultei muitas fontes, conversei demoradamente com pessoas que conviveram com Grabois e mergulhei fundo em seus escritos. A impressão que fiquei é de um homem à frente do seu tempo, de rara capacidade intelectual, de caráter sólido e totalmente envolvido com a causa que embala a humanidade desde tempos imemoriais: a luta pelo futuro. É daqueles que, como disse o escritor Monteiro Lobato na carta enviada a Caio Prado Júnior quando este estava na prisão, quanto mais a gente conhece, mais admira. “A regra é ao contrário: à proporção que a gente vai conhecendo um homem, vai se decepcionando — vendo-lhe as falhinhas…”, disse.

Outra rata: quando o meu texto fala em “verdadeiros heróis”, a citação está entre aspas, atribuída a João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz. Transcrevo o Parágrafo na íntegra:

Grabois escreveu até o dia do seu último combate, em 25 de dezembro de 1973, quando, segundo João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz, o Brasil vivia o tempo dos assassinos, dos curiós, dos sérgios fleury e congêneres. Era “também o tempo dos verdadeiros heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de pé, olhando a morte na cara”. Grabois morreu no grande combate que ficou conhecido como o “Chafurdo de Natal”.

Considero, sim, Maurício Grabois um “verdadeiro herói”. Reafirmo que ele “morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras”. Concordo, portanto, integralmente com o que disse João Quartim de Moraes. Mas Lucas Figueiredo não tem o direito, como jornalista, de atribuir, com aspas e tudo, a um o que outro escreveu. É o mau jornalismo escancarado, flagrante.

Em seguida ele se faz de vítima. “Desinformação, descaso, preconceito, artificialismo, confusão primária, devaneio… Tudo isso está em mim e na minha reportagem, segundo ele”, escreve. As palavras são pinçadas e alinhadas como se nada mais, antes ou depois, fora escrito. Mais um flagrante de mau jornalismo.

Depois Lucas Figueiredo volta a jactar-se. “Não importa o fato – fato, repito – de que, nas 150 páginas datilografadas de seu diário, Grabois tenha feito 113 menções a comida (e não apenas quando ela faltava, mas também quando raleava, empobrecia, enriquecia ou sustentava um banquete). Para Bertolino, escrever o óbvio – Grabois se mostrou um obcecado por comida – significa ‘atacar’ o mito do PCdoB.”

Aqui parece que o desespero tomou conta do jornalista. Em nenhuma das “113 menções” Maurício Grabois refere-se a comida fora do contexto em que os guerrilheiros viviam. É triste ver como Lucas Figueiredo insiste em uma farsa, em uma tese que tem a consistência de uma bolha de sabão. Mais: é um desrespeito ao comandante da Guerrilha tratá-lo como um glutão, um obcecado por comida. Isso não é “atacar”. É desrespeitar não o comandante, mas a pessoa.

Nessa passagem, há outro detalhe relevante, que revela mais um caso de mau jornalismo. Em nenhum momento escrevi que mostrar Grabois como um “obcecado por comida” significa “atacar” o mito do PCdoB. Mais uma vez, transcrevo o parágrafo na íntegra:

O texto (de Lucas Figueiredo) se lança em outros devaneios de menor intensidade, como as descrições de Grabois sobre as dificuldades enfrentadas na mata e a busca incessante por comida. Aí Lucas Figueiredo voa tão baixo que é impossível alcançá-lo. “O diário revela um guerrilheiro obcecado por comida”, diz ele. Depois dessa triste passagem, ele volta a atacar Grabois, “um comandante rigoroso, sobretudo com os outros”.

Há uma diferença oceânica, amazônica, entre o que escrevi e que ele diz que escrevi. A mesma diferença aparece na passagem em que Lucas Figueiredo diz que, “ainda de acordo com Bertolino, é um ‘descaso’ de minha parte relatar que, de seu esconderijo (sic) na mata, Grabois ouvia a propaganda comunista da Rádio Tirana, da Albânia, e a tomava por ‘melhor fonte de informações’ sobre a Guerrilha do Araguaia. Não sei como poderia ter feito diferente se foi o próprio Grabois quem escreveu que a Tirana era sua ‘melhor fonte de informações’.

Não sou professor de ninguém. Procuro apenas cumprir minhas obrigações. Uma delas é ser rigoroso com os fatos. Nesse caso, creio que o assunto ficou bem claro. Vejamos:

Lucas Figueiredo descreve Grabois como um ser tão incapacitado intelectualmente que passava horas de seu dia a ouvir as transmissões da Rádio Tirana e acreditava nas notícias que chegavam “da distante e fechada Albânia comunista”. “Grabois chega a acreditar que não só ele e seus companheiros ouvem a propaganda vermelha da Tirana (sic), a ‘melhor fonte de informações’”, escreve. Aqui a desinformação assusta. Bastaria uma rápida busca na internet para saber que o PCdoB montara um sofisticado sistema de transmissão de informações, via Rádio Tirana, que vinham exatamente de onde Grabois estava.  Dizer, como faz Lucas Figueiredo, que Grabois tomava propaganda como informação é o cúmulo do descaso.

Tomado pelo raciocínio turvo, Lucas Figueiredo passa a me chamar de “apaixonado biógrafo” e puxa uma polêmica que não se sustenta. Diz ele que o acusei “de cair em devaneio ao dizer que o veterano dirigente do PCdoB se revelava um iludido em relação às ‘massas’ (expressão de Grabois) que pretendia recrutar no Araguaia”. “Deixemos que o diário fale por si. No dia 21 de maio de 1972, Maurício Grabois escreveu o seguinte: “Aqui <no Araguaia>, temos que intensificar a propaganda revolucionária, recrutar novos co <combatentes> para as Forças Guerrilheiras e amigos para a nossa causa. E isso não é difícil de realizar. As condições parecem favoráveis”, escreve ele.

Repetio o que disse no primeiro texto:

Já no início da matéria ele (Lucas Figueiredo) deduz que Grabois ilude-se sobre o ânimo das “massas”, que seriam “a miserável população local que quer cooptar para fazer a revolução comunista no Brasil”. Devaneio maior, impossível. Bastaria raciocinar não mais que cinco minutos para saber que uma “revolução comunista” era o que menos estava em questão naquele movimento. Se for para ser mais rigoroso, é possível dizer que Lucas Figueiredo não se deu sequer ao trabalho de evitar chutes teóricos para qualificar a luta armada no Sul do Pará. Seria o caso de perguntar: onde ele leu, ouviu ou obteve tal informação? Se diz que Grabois e seus camaradas queriam “fazer a revolução comunista”, deveria explicar o que vem a ser isso. É o velho vício da mídia, de disparar preconceitos sem a menor preocupação.

É óbvio que a Guerrilha trabalhava para recrutar novos “combatentes” e “amigos” para a sua causa. Só faltava ser o contrário. Daí a dizer que os guerrilheiros pretendiam cooptar “a miserável população local (…) para fazer a revolução comunista no Brasil” há muito devaneio.

Transcrevo, como prova, um trecho de um dos documentos da Guerrilha:

Coloca-se na ordem do dia para todos os patriotas, democratas e revolucionários a tarefa de (…) intensificar a luta contra a ditadura. A derrubada desse regime — eis aquilo de que o povo brasileiro mais necessita. O seu aperfeiçoamento e institucionalização é (sic) grave ameaça ao futuro do Brasil e aos interesses populares.

Lucas Figueiredo fecha a resposta com chave de ouro. “O último parágrafo do texto de Bertolino, transcrito abaixo em negrito, talvez seja o mais revelador de sua real intenção: 

Morreu <Maurício Grabois> por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui, da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido – como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.”

O mau jornalismo não poderia deixar de dar as caras nesse encerramento.

Veja o que escrevi:

Grabois não merecia isso tudo. Se pudesse dizer algo para o comandante da Guerrilha do Araguaia, utilizaria idéias e palavras de Monteiro Lobato na carta a Caio Prado Júnior. Cada ato seu o eleva mais. Morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido — como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.

A última frase é dirigida diretamente a mim. “Se sua intenção, Bertolino, é pintar um deus onde há apenas um homem, não conte mesmo comigo”, finaliza. Não contarei, Lucas Figueiredo. Mas informo que essa não é a minha intenção. Seu chute, mais uma vez, atingiu a bandeirinha de escanteio.

Diz o axioma que dois erros nunca se anulam. Aliás, geralmente somam-se para dar um resultado ainda pior. A enorme massa de invencionices dos textos de Lucas Figueiredo sobre Maurício Grabois, submetida ao crivo dos fatos, foi se dissolvendo e, de tudo o que escreveu, quase nada ficou de concreto. Se sobram teorias, faltam fatos — matéria-prima indispensável a qualquer jornalista que se preze.

Esse jornalismo rarefeito é bem conhecido no Brasil. Ataques pessoais, intrigas, falsidades, invenções, erros de fato e mentiras, puras e simples, são a sua base. Quem aprecia esse estilo de fazer jornalismo pode até reencenar, irresponsavelmente, aquele juvenil orgulho dos tempos da adolescência. Mas isso não passa de demagogia barata, conluio com a desinformação e falta de seriedade.

O diário de Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista de CartaCapital

Por Osvaldo Bertolino, Portal Vermelho,  22/04/2011

Por coincidência, acabo de ler o que seria o diário de Maurício Garbois, no exato momento em que a revista CartaCapital chega às bancas com este tema como matéria de capa. O texto, intitulado Devaneio na selva e assinado por Lucas Figueiredo, comenta “O diário do Araguaia”, tema anunciado como “exclusivo”. O assunto, no entanto, não é novo. Quando escrevi a biografia de Maurício Grabois, publicada em 2004 pela editora Anita Garibaldi, deparei com informações que davam conta desse diário.

Recebi, anonimamente, trechos do que seriam as anotações do comandante militar da Guerrilha do Araguaia, mas, impossibilitado de verificar a veracidade do documento, não usei as informações.

Segundo o jornalista Hugo Studart, que escreveu o livro A Lei da Selva, trata-se uma cópia preservada por um militar. Em artigo publicado pela revista Brasil História, edição de março de 2007, ele diz que o destino e principalmente o teor do diário ficaram ocultos por três décadas. “O diário foi encontrado pelas tropas que mataram Grabois, dentro de suas roupas, já estufado pela umidade. O documento chegou a Marabá no final da tarde de 25 de dezembro de 1973, para ser encaminhado na primeira hora do dia seguinte ao Centro de Informações do Exército (CIE), em Brasília”, diz ele.

Segundo Studart, um capitão da área de informações pediu o material emprestado aos colegas para examiná-lo e, sem consultar os superiores, convocou cinco soldados para que atravessassem a madrugada copiando o conteúdo a mão. Pela manhã devolveu o documento. O diário original desapareceu dos arquivos do CIE, provavelmente destruído no crematório ocorrido em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel, para ocultar os combates no Araguaia. Restou a cópia (mais tarde datilografada), preservada nos arquivos pessoais daquele capitão. Três oficiais superiores, antigos membros da Comunidade de Informações que tiveram acesso aos originais antes da cremação, atestam a autenticidade do conteúdo que consta na cópia.

O último combate

O jornalista diz que Grabois começou o diário três semanas após a chegada do Exército. Ele esmerou-se nos detalhes dos crimes cometidos pela repressão no Araguaia, a principal razão que levou os generais do regime militar a mandar destruir a maior parte dos documentos sobre a Guerrilha, incluindo o diário do seu comandante militar. Studart descreveu o documento como rico em relatos de receitas de alimentos e de medicamentos utilizadas pelos guerrilheiros, assim como na transcrição de poemas e letras de canções invocadas no cotidiano das selvas.

Grabois escreveu até dia do seu último combate, em 25 de dezembro de 1973, quando, segundo escreveu João Quartim de Moraes no prefácio da biografia que fiz, o Brasil vivia o tempo dos assassinos, dos curiós, dos sérgios fleury e congêneres. Era “também o tempo dos verdadeiros heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de pé, olhando a morte na cara”. Grabois morreu no grande combate que ficou conhecido como o “Chafurdo de Natal”.

Descrevi, no livro, a cena nestes termos:

“No início da operação, batizada de ‘Sucuri’, instalou-se na região um sujeito chamado Marco Antônio Luchini, enviado como engenheiro do Incra. Era na verdade o major Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, ferrenho anticomunista que em 1961, como tenente, foi preso por participar da trama que tentou impedir a posse presidencial de João Goulart. No golpe de 1964, ele participou ativamente da conspiração e chegou ao CIEx. Frio e sanguinário, ficou famoso na região por receber de pistoleiros as cabeças, mãos e dedos decepados dos guerrilheiros para os quais pagava de 10 a 50 mil cruzeiros – dependendo da importância política da vítima.

Por trás da operação estava o general Antônio Bandeira. Curió foi, possivelmente, a figura que mais encarnou o espírito da “guerra suja”, que rasgou todas as leis e princípios que regem os conflitos militares e os direitos básicos do ser humano. Curió ainda iria participar de outras atrocidades praticadas pela ditadura – como a “chacina da Lapa”, quando em 1976 a repressão assassinou dirigentes do PCdoB em São Paulo – e se estabelecer na região, onde foi eleito deputado, dominou o garimpo de Serra Pelada à força e fundou uma cidade em homenagem ao seu nome – Curionópolis.

No dia 25 de dezembro de 1973, Curió comandava a patrulha que, no final daquela manhã chuvosa, por volta das onze horas e vinte cinco minutos, encontrou o grupo de guerrilheiros. O major viu entre eles aquele que o relatório do CIEx classificou como o comandante militar da Guerrilha, que destacava-se dos demais pela idade – estava com 61 anos. Maurício Grabois recebeu um tiro de fuzil no braço esquerdo, abaixou-se, puxou o revólver e de joelhos atirou até ser atingido mortalmente na cabeça. Apropriadamente, o oficial que presenciou a cena proclamou: ‘Foi a morte de um lutador’.

No início do dia 25 de dezembro de 1973, exatamente seis anos depois do desembarque de Maurício Grabois no Araguaia, dos 69 guerrilheiros enviados à região 41 estavam vivos, 20 mortos, 7 presos e um – João Carlos Borgeth, o “Paulo Paquetá” – havia fugido. No tiroteio contra a Comissão Militar naquela manhã de Natal, dos 15 que estavam no grupo dez sobreviveram. Os mortos foram, além de Maurício Grabois, seu genro Gilberto Olímpio Maria, Líbero Giancarlo Castiglia, o “Joca” – que chegou com ele e Elza Monnerat à região em 1967, e possivelmente foi preso ainda com vida –, Paulo Mendes Rodrigues e Guilherme Gomes Lund. Os demais guerrilheiros estavam acampados num local mais abaixo ou realizando tarefas nas redondezas.”

Para escrever a biografia, consultei muitas fontes, conversei demoradamente com pessoas que conviveram com Grabois e mergulhei fundo em seus escritos. A impressão que fiquei é de um homem à frente do seu tempo, de rara capacidade intelectual, de caráter sólido e totalmente envolvido com a causa que embala a humanidade desde tempos imemoriais: a luta pelo futuro. É daqueles que, como disse o escritor Monteiro Lobato na carta enviada a Caio Prado Júnior quando este estava na prisão, quanto mais a gente conhece, mais admira. “A regra é ao contrário: à proporção que a gente vai conhecendo um homem, vai se decepcionando – vendo-lhe as falhinhas…”, disse.

Formulação de Karl Marx

No caso de Grabois e de seus contemporâneos que reorganizaram o Partido Comunista do Brasil em 1943, na Conferência da Mantiqueira, e em 1962, aplica-se muito bem a formulação de Karl Marx, na obra O dezoito brumário de Luis Bonaparte, de que a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”, diz ele.

Esse é ponto: Grabois se destaca nos noticiários por ter participado até à morte naquela que é considerada a mais dura linha de resistência à ditadura de 1964, a Guerrilha do Araguaia, mas o seu legado oprime o cérebro dos que procuram esvaziar as suas ideias. O conjunto da sua obra nem sempre é devidamente valorizado – uma opção da mídia que, sabemos muito bem, não tem o menor interesse em retratar o alcance da Guerrilha do Araguaia.

Chutes teóricos de Lucas Figueiredo

O que causa estranheza é a opção de CartaCapital de entregar esse assunto ao jornalista Lucas Figueiredo, que se revelou um desconhecedor das elementares informações que possibilitariam um juízo mais em conformidade com os fatos descritos no diário. Já no início da matéria, ele deduz que Grabois ilude-se sobre o ânimo das “massas”, que seriam “a miserável população local que quer cooptar para fazer a revolução comunista no Brasil”. Devaneio maior, impossível.

Bastaria raciocinar não mais que cinco minutos para saber que uma “revolução comunista” era o que menos estava em questão naquele movimento. Se for para ser mais rigoroso, é possível dizer que Lucas Figueiredo não se deu sequer ao trabalho de evitar chutes teóricos para qualificar a luta armada no Sul do Pará. Seria o caso de perguntar: onde ele leu, ouviu ou obteve tal informação? Se diz que Grabois e seus camaradas queriam “fazer a revolução comunista”, deveria explicar o que vem a ser isso. É o velho vício da mídia, de disparar preconceitos sem a menor preocupação.

O esperto jornalista

Para Lucas Figueiredo, “tudo conspirava contra os guerrilheiros”, mas o ingênuo Grabois “julgava que a situação era ‘favorável’”. O esperto jornalista diz que “fica patente” no diário “que, entre o sonho e a realidade, Grabois abraça o primeiro e renega a segunda, um gesto bonito para um idealista, mas fatal para um comandante militar”. Bem, quando o assunto chega a esse tom professoral, é preciso tomar cuidado. Como sabemos, professores nem sempre gostam de ser contestados. Mas alguns pontos são tão falseados que, mesmo com esse risco, não dá para não comentar.

Lucas Figueiredo descreve Grabois como um ser tão incapacitado intelectualmente que passava horas de seu dia a ouvir as transmissões da Rádio Tirana e acreditava nas notícias que chegavam “da distante e fechada Albânia comunista”. “Grabois chega a acreditar que não só ele e seus companheiros ouvem a propaganda vermelha da Tirana (sic), a ‘melhor fonte de informações’”, escreve. Aqui a desinformação assusta. Bastaria um rápida busca na internet para saber que o PCdoB montara um sofisticado sistema de transmissão de informações, via Rádio Tirana, que vinham exatamente de onde Grabois estava. Dizer, como faz Lucas Figueiredo, que Grabois tomava propaganda como informação é o cúmulo do descaso.

Uma confusão primária

Para o jornalista, a capacidade do comandante “de se entregar ao autoengano parece infinita”. “O diário mostra que ele confundia o apoio logístico dado pela população local, que realmente existiu durante um tempo, com a nunca efetivada adesão à luta”, diz ele. Lucas Figueiredo poderia ter assistido ao documentário Camponeses do Araguaia – a Guerrilha vista por dentro (veja no canal O outro lado da notícia, no Youtube), do qual participei como responsável pelas entrevistas, para ver que Grabois tinha razão. Deveria também ler os documentos sobre o caráter daquela resistência para saber que ninguém, muito menos o comandante, queria que a população aderisse “efetivamente” à luta. É uma confusão primária, sabe-se lá com qual propósito.

O texto se lança em outros devaneios de menor intensidade, como as descrições de Grabois sobre as dificuldades enfrentadas na mata e a busca incessante por comida. Aí Lucas Figueiredo voa tão baixo que é impossível alcançá-lo. “O diário revela um guerrilheiro obcecado por comida”, diz ele. Depois dessa triste passagem, ele volta a atacar Grabois, “um comandante rigoroso, sobretudo com os outros”.

Palavreado rasteiro, chulo

Aparece novamente um ser ingênuo e incapacitado a ponto de escrever regras como “garantir o autoabastecimento” e “levar a cabo ações armadas contra o inimigo”. “Espera que os estudantes e profissionais liberais de pouca idade levados pelo PCdoB para a mata sejam verdadeiros Rambos”, escreve. “E quando não o são, Grabois os chama de ‘problema’, ‘acovardado’, ‘pouco desenvolto’ ‘ingênuo’ e ‘um tanto lerdo de raciocínio’”, diz o jornalista, fazendo citações descontextualizadas e demonstrando que leu o diário de forma artificial.

Mas, segundo Lucas Figueiredo, Garbois era tão estulto que “quando se tratava de analisar a si próprio como comandante e o PCdoB como Estado-Maior da guerrilha, era generoso”. O palavreado é rasteiro, chulo. “Se os 69 combatentes ‘inexperientes’ – pelo menos isso ele admitia – seguissem à risca as ordens emanadas da cúpula vermelha e da inspiração do ‘mestre da guerra popular’ Mao Tse Tung, seria ‘impossível’ perder a luta contra o rolo compressor liderado pelo Exército e apoiado pela Aeronáutica, Marinha, Polícia Federal e as PMs (Polícia Miitar) de três estados”, escreve. Quantos devaneios!

Dignidade humana personalizada

Para finalizar, Lucas Figueiredo atribui às chuvas as derrotas sofridas pela repressão em suas duas primeiras campanhas. E na operação final fica-se com a impressão de que os bandos comandados por Curió estavam certos. “Em fevereiro de 1973, às vésperas do início da campanha definitiva dos militares, (Grabois) aceita em sua mente (sic) o jogo do tudo ou nada. ‘No final, como nos filmes de mocinho, tudo acabará bem. Se não acabar… azar nosso’”, escreve ele.

Grabois não merecia isso tudo. Se pudesse dizer algo para o comandante da Guerrilha do Araguaia, utilizaria ideias e palavras de Monteiro Lobato na carta a Caio Prado Júnior. Cada ato seu o eleva mais. Morreu por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui, da minha insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido – como se beijasse a mão da própria dignidade humana personalizada.

Parabéns, Renato Rabelo, por seus 83 anos de vida bem vivida

Por Osvaldo Bertolino

Da biografia que escrevi dele recentemente:

Acomodado na mesa da pequena sala do seu apartamento, em São Paulo, com uma pilha de livros ao lado, Renato começou a falar. Parecia incansável. De meados da tarde até a noite avançada, lembrou detalhes de sua vida e do seu pensamento. Era muita coisa. Foi preciso retomar em outro dia. Novamente faltou coisa. E assim a cena se repetiu, até que tudo fosse falado.

Renato se define como pessoa reservada, que não gosta de aparecer, o mais tímido dos irmãos. “Quando comecei a assumir o trabalho político, tive de fazer um esforço muito grande para ser uma pessoa com capacidade pública maior. Era essencial para a minha atividade. Acho que consegui não só por intervenções públicas como na relação política com grandes lideranças, como presidentes da República, presidentes da Câmara e do Senado, gente como o José Alencar, ministros. Todos me atendiam com muito respeito.”

Essa relação de confiança se devia ao prestígio do PCdoB, segundo Renato. “Então, eu ia sentindo que estava fazendo o papel necessário. Compreendi que estava fazendo um papel importante. Isso me deu muita segurança. Tinha certa autoridade.”

Um dos momentos mais decisivos de sua vida foi a indicação de Luciana Santos para assumir a presidência do PCdoB. “Foi uma das atitudes mais serenas e mais justas que tomei. Não foi uma corrida de revezamento”, comenta ao falar das pacientes consultas e dos debates no âmbito da direção do Partido. Para ele, esse processo guarda semelhança com a sua indicação para presidente do Partido por João Amazonas.

Renato recorda de seus camaradas com emoção, especialmente Haroldo Lima. “Haroldo teve também um papel importante para eu ingressar na luta. Eu poderia ficar por ali mesmo, em Salvador, estudando, ser um médico. Foi um ponto importante na minha vida”, relata, mostrando a foto da capa do livro autobiográfico de Haroldo, inconformado com a sua morte por uma causa que poderia ser evitada, a Covid-19.

Falou também da relação com os filhos, muito atenciosos. “Sempre foram muito compreensivos, pelo que eles passaram. A relação conosco mostra a grandeza deles.”

Renato cita a experiência vivida na China, quando jovem, como fundamental para a sua militância. “Uma experiência da envergadura da Revolução Chinesa ensina muito”, afirma. As visitas ao Vietnã também lhe causaram forte impressão. “Fiquei impressionado com o povo vietnamita. Não é por acaso que expulsaram três imperialismos. Essa ideia de nova luta pelo socialismo é deles.”

Segundo Renato, foram conhecimentos que ajudaram muito na sua compreensão sobre a tática e a estratégia. “O tempo que passei na França foi também importante, porque o exílio é uma escola. O povo francês é muito testado. É a terra das revoluções. Eles têm uma tradição de luta gigantesca. A vivência com um povo desse ensina muito para a gente”, afirma.

Mulheres heroínas nas biografias do PCdoB

Por Osvaldo Bertolino

Escrevi oito biografias de lideranças do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – Carlos Nicolau Danielli, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Aurélio Peres, Vital Nolasco, Antônio Almeida Soares (Tom), Péricles de Souza e Renato Rabelo. Nelas, adotei como método situar a vida dos biografados nas dimensões pessoais e familiares, nas conjunturas por eles vividas e nas circunstâncias das organizações nas quais atuaram. Em todas, aparecem mulheres como importantes alicerces da história, em geral pouco notadas. No PCdoB, foram elos essenciais, sem os quais as histórias narradas não existiriam ou teriam tomado outros caminhos.

Procurei dar a elas o espaço devido, mostrando como, muitas vezes, seguraram a barra na retaguarda, além de, em alguns casos, militarem na linha de frente. Com as que convivi, criei laços de amizade e camaradagem. Com as que não tive o privilégio de conviver, fiquei com a sensação de que também teriam a mesma atitude.

Marilda Costa Danielli

A primeira delas foi Marilda Costa, esposa de Carlos Nicolau Danielli, com quem convivi, em 2001, por aproximadamente quinze dias, em Niterói, Rio de Janeiro. Mulher de gestos cordiais, memória privilegiada e de convicção sólida, ajudou muito para que na biografia do marido constasse o máximo de informações. Mãe de três filhos – Wladimir, Waldenir e Wladir –, Marilda se viu só, de uma hora para outra, com o brutal assassinato de Danielli no Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, em 31 de dezembro de 1972.

Recebi dela, em reconhecimento pela biografia, uma comovente carta me considerando membro da família. Uma grande honra, que comentei em artigo no Portal Vermelho, dia 24 de março de 2006, para homenageá-la quando soube de sua morte, intitulado A perda de uma guerreira: morre Marilda Costa Danielli. Escrevi:

“Os vizinhos gostavam daquela família solidária e unida. Na casa em frente, duas jovens estudantes sempre se socorriam da presteza de Danielli para os trabalhos escolares. Na manhã do dia 27 de dezembro de 1972, ele tomou o café da manhã e fumou um cigarro. Marilda já estava no tanque lavando roupa quando ele se despediu e avisou que possivelmente voltaria dali a um ou dois dias. Não voltou. (…) No dia 5 de janeiro de 1973, uma sexta-feira, ela fazia crochê na sala quando ouviu Sérgio Chapelin (um dos apresentadores do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão) anunciar com voz grave: “Morto em São Paulo o terrorista Carlos Nicolau Danielli”. (…) Sem parentes, sem conhecidos e com três crianças, Marilda resolveu procurar as vizinhas estudantes. Ao saber da verdadeira história, uma delas se dispôs a levá-la com as crianças para o Rio de Janeiro.”

Marilda foi presa em São Gonçalo, na casa de uma irmã, onde estava com os filhos. Algemada e encapuzada, foi levada para algum lugar no Rio de Janeiro. Dois dias depois, foi encaminhada para o DOI-Codi paulista, onde ficou por dez dias. Ao voltar para a casa da família, no bairro Jabaquara, viu, desolada, que praticamente nada restava. Voltou para o Rio de Janeiro para recomeçar a vida como revendedora de cosméticos. Para as crianças, o pai estava viajando e um dia voltaria.

Alzira da Costa Reis Grabois

A esposa de Maurício Grabois, Alzira da Costa Reis, também atuou intensamente no Partido. No começo da noite de 28 de dezembro de 1972, Danielli deu a ela notícias de Maurício Grabois e de seu filho, André, trazidas pela guerrilheira Criméia Alice Schmidt de Almeida, em um “ponto” na Rua Marselhesa, na Vila Clementino, próximo à Vila Mariana, antes de se dirigir  à Rua Loefgreen, onde foi preso. A operação fazia parte do restabelecimento de contatos entre os dois dirigentes do PCdoB, após o ataque da repressão à Guerrilha do Araguaia em 12 de abril de 1972. Danielli era o secretário de Organização do Partido, responsável pela infraestrutura da Guerrilha.

Alzira militava no Partido antes de conhecer Grabois. O casal teve os filhos Victória e André (também morto no Araguaia). No dia que Maurício Grabois teve o seu mandato de deputado federal cassado, em 1948, ela enfrentou a repressão, que estava pronta para prendê-lo. Ele saiu da Câmara direto para a cama, acometido de mononucleose, doença provocada por vírus que causa dores nas articulações e ínguas pelo pescoço. O estado de saúde do agora ex-líder da bancada do Partido era considerado muito grave pelo médico que o atendeu, José Sarmento Barata.

Mas a situação não impediu que ele fosse levado para a delegacia, detido por policiais que invadiram a sua residência. Na frente dos agentes do delegado José Piccoreli, Alzira telefonou para José Sarmento Barata, que comunicou a eles que o paciente estava proibido de sair de casa. Mas de nada adiantou. Maurício Grabois foi arrastado, de pijama, sem poder andar e escorado por policiais, protestando contra aquela atitude arbitrária.

O vandalismo policial atraiu a vizinhança, que se aglomerou em frente à residência. Alzira, acompanhada dos filhos de quatro e dois anos de idade, fez um discurso contra o autoritarismo do governo do general Eurico Gaspar Dutra. Em seguida, dirigiu-se à Câmara dos Deputados para denunciar a prisão. Lá protestou veementemente e foi recebida pelo deputado Flores da Cunha (UDN-RS), que localizou Maurício Grabois na Delegacia de Segurança Política, levado para prestar “esclarecimentos” sobre o Partido. O parlamentar gaúcho telefonou para o ministro da Justiça e exigiu sua libertação.

Alzira também foi atingida pela repressão. Ela participava da Associação Feminina da Gávea, com forte influência do Partido, e, em uma atividade na favela da Praia do Pinto, foi presa com outras quatro pessoas. Na hora, ela se pôs a protestar, mas o grupo foi levado, fichado e posto à disposição do delegado, que mandou recolher todos ao xadrez, onde passaram a noite. Alzira também seria demitida sumariamente do cargo que ocupava, havia mais de cinco anos, no Serviço Florestal do Ministério da Agricultura.

Pouco depois, a polícia voltou à residência de Maurício Grabois, onde também estava o ex-senador do Partido, Luiz Carlos Prestes. Percebendo a aproximação da repressão, os dois pularam o muro dos fundos e fugiram. Quando a polícia entrou na casa, encontrou Alzira revoltada, segurando André, chorando, no colo. Maurício Grabois e Prestes foram parar no Hotel Glória, no apartamento do ex-deputado e governador da Bahia Octávio Mangabeira que, por telefone, exigiu do presidente da República o fim da perseguição policial aos ex-parlamentares comunistas.

Alzira participou da Federação de Mulheres do Brasil, foi advogada trabalhista e dirigente do Partido no estado do Rio de Janeiro. No desdobramento da crise do movimento comunistas na segunda metade da década de 1950, quando grupos revisionistas tentaram liquidar o Partido, Alzira foi “expulsa” do Parido Comunista Brasileiro (PCB), criado por eles em 1961. O jornal Novos Rumos publicou a seguinte nota: “Os comunistas de Niterói, capital do Estado do Rio, comunicam aos trabalhadores e ao povo que Lincoln Cordeiro Oest (que também seria morto na operação que assassinou Danielli) e Alzira Reis Grabois não mais pertencem às fileiras do movimento comunista, das quais foram expulsos em virtude de suas atividades fracionistas e contrárias aos interesses da classe operária e do povo.”

Catharina Patrocínia Torres Pomar

Pedro Pomar igualmente teve na esposa, Catharina Patrocínia Torres, também militante do Partido desde antes de se conhecerem, um apoio decisivo. O casal teve os filhos Wladimir, Eduardo, Jonas e Carlos Alberto. Ainda no Pará, quando o marido e outros dirigentes locais do Partido foram presos ela encaminhava cartas para serem distribuídas pelo país afora denunciando os abusos da repressão.

Era uma mulher de reconhecida coragem. Quando o presidente Getúlio Vargas visitou Belém, ela entregou-lhe um documento de protesto. A ousadia custou-lhe uma queda do bonde, quando estava nos últimos meses da gravidez do segundo filho, Eduardo. Catharina foi também um elo importante no estabelecimento de contatos entre Grabois – que estava reorganizando o Partido no Rio de Janeiro, após a repressão do Estado Novo – e Pomar e Amazonas. “Já conhecia a Catharina (…) antes mesmo de eles se casarem, pessoa também muito amiga, muito estimada”, disse Amazonas ao jornal Tribuna da Luta Operária.

Na fuga da prisão, liderada, entre outros, por Pomar e Amazonas, Catharina foi um elo fundamental. Ela se encarregou de falar com o médico Raimundo Silas de Andrade, amigo dos comunistas, que seria outro ponto-chave do plano. Faria uma receita para adormecer os guardas. Catharina providenciou carteiras de trabalho com nomes falsos para todos e comprou duas passagens para Marabá, uma para Monte Alegre, duas para São Benedito, em Faro, no Baixo Amazonas. Cada um sabia o destino a tomar depois da fuga. Pomar e Amazonas foram para o Rio de Janeiro. A data da fuga coincidiu com a partida dos barcos – 5 de agosto de 1941.

O escritor comunista Dalcídio Jurandir conta que, em meados de setembro de 1945, quando se dirigia ao Paraná para representar a direção nacional na instalação do Comitê Estadual, passou por São Paulo e foi recebido por dirigentes locais, entre eles Jorge Amado. “Uma grande amiga corre para abraçar-me. É Catharina Pomar. Que alegria na sua voz e a recordo, no Pará, quando a via carregando papéis ilegais, quando foi jogada no chão pelo policial, quando levava horas e horas no Umarizal (onde estavam presos Pomar, Amazonas e outros) à espera de que os policiais lhe trouxessem o companheiro”, disse.

Pomar era amigo dos  escritores Jorge Amado e Zélia Gattai e lhes disse que gostaria que Catharina e as crianças fossem passar uma temporada no sítio do casal, entre São João de Meriti e Caxias. “Catharina está precisando descansar, os meninos andam pálidos… Vão te fazer companhia”, teria dito ele, segundo Zélia em seu livro Um chapéu para viagem. Ela conta que a família de Pomar era unida. O amor reinava entre marido e mulher, pais e filhos. Zélia Gattai diz que concordou com satisfação. Gostava de Catharina e sua presença seria bem-vinda.

Durante três ou quatro semanas que passou no sítio, a “sofrida” mulher de Pomar contou-lhe sua vida. Os momentos de amor, as horas terríveis que vivera, como esposa de um dirigente comunista perseguido, preso várias vezes, condenado. Desde que haviam se casado, somente após a anistia aos presos políticos conseguiram viver juntos, em uma vida estável, em paz.

Uma das distrações de Catharina era conversar com o papagaio do sítio. Segundo Zélia Gattai, nem sempre ela entendia o que o louro dizia. Certa vez, achou que ouvira pirarucu. Mas a conversa nada tinha a ver com peixe. Tratava-se de uma frase indecente, grosseira. Recordações dos tempos em que o papagaio convivia com mulheres da vida e boêmios. Diante da gargalhada de Zélia Gattai, Catharina prestou mais atenção e entendeu: ofendeu-se até o fundo da alma. “Vai você, seu louro vagabundo!”, teria respondido. Foi a última vez que Catharina se dirigiu ao papagaio. Cortou relações com ele, conta Zélia Gattai.

Antes da Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, quando Pomar foi assassinado pela repressão, ele estava de viagem marcada para o exterior, em missão do Partido. Mas Catharina foi diagnosticada com aneurisma cerebral e precisava passar por uma delicada cirurgia. Pomar trocou a viagem com Amazonas. Catharina faleceu em 1984, em decorrência do agravamento do aneurisma.

Maria da Conceição Peres

Maria da Conceição, esposa de Aurélio Peres, iniciou a militância política no trabalho de formação de lideranças populares nos bairros mais afastados da zona Sul paulistana, uma iniciativa da ala progressista da Igreja Católica. O casal teve os filhos Leni e Marco Aurélio. O trabalho começou em 1970 e evoluiu para os clubes de mães e o Movimento do Custo de Vida, mais tarde transformado em Movimento Contra a Carestia, sob a liderança de Aurélio Peres.

Quando ele foi preso em sua residência por agentes do DOI-Codi, em 1974, Conceição foi para a rua e gritou denunciando o ocorrido e saiu a procura de ajuda de advogados ligados ao movimento de resistência organizado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Foi uma heroína, nas palavras de Aurélio. Ao relatar esses fatos, Aurélio fez esforço para segurar as lágrimas, que insistiam em avermelhar seus olhos. Os músculos da face crisparam e o olhar se perdeu no infinito. Ao seu lado, Conceição mexia as mãos, com olhos marejados, revelando a mesma angústia e impotência de quando o marido foi arrancado de casa por agentes da repressão.

Maria Ester Nolasco

Maria Ester também já era militante política quando conheceu Vital Nolasco. O casal teve os filhos Patrícia, Daniel e Iara. Ester foi comerciária e ingressou numa empresa metalúrgica, como operária, seguindo a diretriz da Ação Popular (AP), a organização a qual pertenciam, de integração à produção. Vital diz que faziam os chamados comícios relâmpagos: subiam em um banquinho num lugar de concentração popular, como o Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, São Paulo, e metiam o pau na ditadura e na carestia. Falavam rápido e sumiam. Ester, como é chamada, só soube o nome completo de Vital no dia do casamento civil. Até então, era somente Vicente (nome clandestino) ou Vital, conforme a ocasião.

Quando ele estava preso no DOI-Codi paulista, recebeu a visita da mãe, Diva Zanandreis Nolasco, e soube que Ester e a filha, Patrícia, estavam com seus familiares em Belo Horizonte. Para que ela não visse as marcas da tortura, os agentes da ditadura montaram uma farsa: providenciaram uma camisa de mangas compridas.

Para não ficar exposta à repressão, Ester pegou a filha, passou a mão nas coisas que pôde levar e se mandou para a casa de um padre amigo da família. Dali, foram levadas para um convento de freiras. A Patrícia tinha um ano e pouco e foi para uma creche. Depois de certo tempo, arrumaram um esquema para dona Diva pegá-las e levá-las para Belo Horizonte. Foram no mesmo ônibus, mas não se falaram por razões de segurança.

Assim que saiu da prisão, Vital foi reencontrá-las em Belo Horizonte. Quando nasceu o filho, homenagearam Danielli, de quem Vital ouviu falar muito na prisão por sua postura de enfrentar os torturadores, com o nome de Daniel. Vital voltou a trabalhar como operário e Ester ficou em casa para cuidar dos filhos e se reaproximou do Movimento do Custo de Vida. Ester continua na militância do PCdoB.

Anna Martins

Anna Martins também era militante da AP quando conheceu Antônio Almeida Soares, o Tom. Tiveram os filhos Juliana e Pedro. Foi operária e o casal se integrou à produção como camponeses em Livramento de Nossa Senhora, Bahia, logo após o casamento. De volta a São Paulo, trabalhou como operária e liderou lutas sociais históricas nas periferias paulistanas. Ela e Tom foram essenciais para a reestruturação do PCdoB, na luta contra a ditadura militar, na organização e formação dos comunistas.

Filha de agricultores, se integrou à Juventude Operária Católica (JOC), uma das vertentes que criaram a AP. Como estudante, participou também da Juventude Estudantil Católica (JEC). Na década de 1970, integrou-se aos movimentos comunitários e participou dos clubes de mães e do Movimento Contra a Carestia. Foi diretora da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam) e presidente da Federação Estadual das Associações Comunitárias de São Paulo. Pelo PCdoB, cumpriu três mandatos de vereadora em São Paulo e elegeu-se deputada estadual.

Carmilce Miriam Carneiro de Souza

Carmilce Míriam Brito Carneiro e Péricles de Souza se conheceram na militância estudantil. Algum tempo após o golpe militar de 1964, já militantes da AP, foram se integrar à produção na região do Bico do Papagaio – confluência dos estados do Pará, Maranhão e Norte de Goiás (atualmente pertencente ao estado de Tocantins) – e fixaram residência no município maranhense de Imperatriz. Carmilce assumiu o nome de Clea, atuando como professora num projeto de alfabetização de adultos e crianças.

No processo de incorporação da AP ao PCdoB, o casal se estabeleceu em São Paulo. Carmilce se integrou à equipe de “serviços” – os bastidores do trabalho organizativo – da direção nacional. Era também responsável pelo trânsito da produção e distribuição do jornal da AP, Libertação. Cumpria a ela levar os pacotes do jornal impresso a um ponto, onde era recolhido pelo sistema de organização para a distribuição.

Nesse sistema, Carmilce também se tornou um elo importante com os militantes que chegavam em São Paulo, fazendo o controle dos “pontos” de rua e da rede que garantia a segurança da organização. Os contatos não eram estabelecidos diretamente. Havia um sistema de senhas e símbolos, como a cor da camisa, o tipo de jornal ou revista embaixo do braço, o gesto de tomar café numa padaria e assim por diante.

Após a anistia, com a família de volta a Salvador, Carmilce foi trabalhar na Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba), como instrutora de ensino. Antes, trabalhou como auxiliar administrativa na rede de supermercados Paes Mendonça, de 1º de dezembro de 1979 a 9 de agosto de 1980, e passou dois meses na Secretaria de Educação do estado. Na Coelba, fez parte do sistema de direção do Sindicato dos Eletricitários. Se aposentou no começo dos anos 2000 e continuou participando da Associação dos Aposentados da empresa e de atividades sindicais da categoria.

Conceição Leiro Vilan (Conchita)

Conceição Leiro Vilan, a Conchita, e Renato Rabelo também se conheceram no movimento estudantil. Juntos, enfrentaram a investida da ditadura militar e foram, clandestinos, para Belo Horizonte, em 1966, organizar o 28º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), no qual Renato foi eleito vice-presidente. Casaram-se em 1967 e foram morar no Rio de Janeiro. Tiveram os filhos André e Nina. Ela também se integrou ao “serviço” da AP após uma dura experiência de integração à produção na região de Formoso e Trombas, em Goiás.

No episódio da Chacina da Lapa, em 1976, quando Renato estava fora do país e não pôde retornar, Conchita se viu só, com duas crianças. A família havia se estabelecido em Belém, Pará, numa operação montada pelo Partido para que Renato tentasse contato com eventuais sobreviventes da Guerrilha do Araguaia. A residência era precária, vizinha a um local em que porcos eram criados ao ar livre. Não raro apareciam ratos em profusão nos arreadores. Poucos dias após a mudança para Belém, de coração partido – diria Renato mais tarde – ele deixou a esposa com as crianças e os ratos para participar de reuniões da direção do Partido, em 1976, e viajar ao exterior.

Conchita tomou conhecimento da Chacina da Lapa andando pelo centro de Belém. Avistou, numa banca de jornais e revistas, as manchetes sobre o caso. Na busca por notícias de Renato, soube que ele estava na França. Com ajuda de familiares e de entidades solidárias aos perseguidos políticos conseguiu se juntar ao marido em Paris. As crianças foram em seguida. Lá, enfrentou também a dura situação da prisão de Renato, acusado de portar documentos falsos. Ficaram no exílio até a anistia, em 1979.

Assim como Renato e outros militantes da resistência democrática, Conchita continuou vigiada pela ditadura. Nos arquivos da repressão consta que em 1982 ela esteve entre as pessoas que contribuíram para o “agravamento do processo subversivo e contestatório ao regime vigente”. Os espiões relataram sua participação em uma reunião de mulheres, em 1984, num curso de “capacitação política” organizado pelo PCdoB em Campos do Jordão, São Paulo, e a citação do seu nome em uma reportagem intitulada Desempregados invadem prefeitura de Embu, onde ela trabalhava. Cita também sua participação em diversas atividades do PCdoB.

Em 4 de abril de 2014, Renato participou da sessão da Comissão de Anistia que anistiou filhos de presos políticos durante a ditadura militar, na Câmara Municipal de São Paulo. Entre eles estavam os filhos e Conchita, homenageada “pela destacada atuação na luta em prol da democracia e contra a opressão promovida pelo golpe de 1º de abril de 1964”, conforme descreve um certificado assinado pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.

Edíria Carneiro Amazonas

Na França, Conchita fez amizade com Edíria Carneiro, esposa de João Amazonas, sempre visitada por ela. A amizade se fortaleceu quando Conchita se aposentou como assistente social da prefeitura de São Paulo e passou a visitá-la semanalmente. “Nos tornamos muito amigas. Ela ficava numa alegria grande quando eu chegava. A gente papeava a tarde inteira. Ela servia Chá e a conversa continuava”, lembra Conchita.

A biografia de Amazonas foi escrita por Augusto Buoinicore, mas fiz uma bela amizade com Edíria na busca de informações para escrever as biografias de Danielli, Grabois e Pomar. Na biografia de Pomar, escrevi:

“Foi uma paciente consultora quando minhas limitações eram desafiadas pela história. Conheci essa figura generosa e simpática na manhã fria e ensolarada de 5 de agosto de 2002, quando preparava a biografia de Carlos Danielli. Desde então, tornou-se, além de consultora, uma amiga carinhosa. As conversas com ela eram sempre agradáveis, permeadas por suas tiradas de humor e olhares no espaço, buscando recordações que em seus olhos apareciam como doces lembranças.

Ela se foi sem cumprir uma promessa que me fez quando iniciei a redação final deste livro. Em uma agradável noite de verão, dona Ediria me recebeu em sua casa para trocarmos ideias sobre alguns detalhes que surgiram no curso das pesquisas. Conversamos longamente. Sempre revelava algo novo em nossos contatos. Falou da admiração de Catharina por Pedro Pomar, comentou alguns episódios em que o aqui biografado agiu com exagerado rigor moral e falou da generosa cordialidade do casal.

Deixei com ela cópias da revista Seiva (ligada ao Partido, na Bahia), na qual trabalhou como ilustradora nos anos 1940, gentilmente cedidas por João Falcão, seu diretor, com quem estive em sua residência na cidade de Salvador. Fiquei imaginando como reagiria ao ver seus trabalhos muitos anos depois. Pedi para ela ler os originais deste livro, como fez com as duas primeiras biografias que escrevi (de Danielli e de Grabois). Aceitou de pronto e com indisfarçável satisfação.

Seus olhinhos vivos, seu sorriso discreto quase permanente, sua voz pausada e suas ideias compunham uma doce criatura. Estive com ela pela última vez em 25 de agosto de 2011, no lançamento da sua exposição – era uma refinada artista plástica – no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Pouco mais de dois meses depois, recebi a notícia de que estava internada. Travou uma dura batalha pela vida, foi vencida e faleceu na noite de Natal de 2011. Perdi uma colaboradora e, mais que tudo, uma amiga que me cativou profundamente. O Brasil perdeu uma lutadora, uma socialista de raro brilho intelectual e artístico. Este livro ficou menos completo sem as suas preciosas observações.”

Tenho de todas elas as melhores recordações e os mais elevados sentimentos, assim como de irmãs, filhas ou mulheres de outros graus de parentesco dos biografados. As que convivi foram de um carinho imenso. Com as que continuo me comunicando, sempre me emociono com suas mensagens transbordantes de generosidade, graça e delicadeza. E, acima de tudo, o reconhecimento pelo esforço para retratá-las nas biografias, método que adoto para dar visibilidade a essas personagens invisibilizadas pelas durezas da vida e, sobretudo, pela estrutura social que esconde essas maravilhosas mulheres heroínas. Um beijo carinhoso em cada uma delas.

Motivos e fatos da reorganização do PCdoB em 1962

Passados 63 anos da Conferência extraordinária que reorganizou o PCdoB, ocorrida em 18 de fevereiro de 1962, a versão de que o Partido foi “fundado” nessa data já não reina em regime de monopólio, superada pela força dos fatos.

Por Osvaldo Bertolino

Carlos Nicolau Danielli, um dos primeiros dirigentes comunistas a opinar sobre o cisma ocorrido com os impactos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), escreveu que naquele processo estava em questão a defesa dos princípios do Partido Comunista do Brasil. Segundo ele, os princípios deveriam ser defendidos sob pena de o Partido perder suas características essenciais de um partido revolucionário.

Outros dirigentes comunistas – principalmente João Amazonas – também rejeitaram com ênfase a tese superficial daquela primeira vertente revisionista. Pode-se afirmar com segurança que havia naquele primeiro embate uma manipulação dos fatos com uma finalidade mal escondida – a liquidação do Partido Comunista do Brasil.

Maurício Grabois escreveu, em 1960, durante o debate do V Congresso do PCdoB, que nas discussões de 1956/57 surgiram entre os comunistas ideias antipartidárias. Seus porta-vozes eram basicamente militantes que atuavam na imprensa do Partido.

Grabois conta que ideias reformistas e revisionistas do debate de 1956/57 acabaram se impondo no Partido. Mas no debate do V Congresso elas ganharam uma formulação claramente mais sofisticada.

O antológico texto de Grabois Duas concepções, duas orientações políticas resume a questão. Para ele, a nova orientação traçada pelo Comitê Central em março de 1958, com a Declaração de Março, defendia uma linha “oportunista de direita”. A polêmica evoluiu para o “racha”.

Já no V Congresso, doze dos vinte e cinco membros do Comitê Central – além de vários suplentes – não foram reeleitos. Entre eles estavam Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara.

Mais tarde, foram afastados também Pedro Pomar, Danielli e Ângelo Arroyo. E, mais adiante, uma nova leva de dirigentes – Lincoln Oest, José Duarte, Walter Martins e Calil Chade – também seria destituída.

Era a consolidação da direção que defendeu a nova linha política pós-XX Congresso do PCUS. No dia 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos publicou um suplemento com o programa e os estatutos do Partido Comunista Brasileiro, de inspiração visivelmente revisionista. A direção eleita no V Congresso pretendia, com os novos documentos e a mudança de nome, obter a legalidade da nova agremiação.

O problema é que esse ato contrariava o artigo 32 dos Estatutos do Partido. “As decisões do Congresso são obrigatórias para todo o Partido e não podem ser revogadas, no todo ou em parte, senão por outro Congresso”, dizia o documento.

Em resposta, os comunistas que combateram a linha política da Declaração de Março organizaram um abaixo-assinado – Carta dos Cem – pedindo à nova direção a revogação das medidas anunciadas. Na Carta, eles disseram que a mudança de nome do Partido era “uma séria concessão às forças reacionárias”.

De fato, quando a repressão lançou os comunistas na ilegalidade, em 1947, o principal pretexto foi o de que o nome deixava claro que o Partido Comunista do Brasil era um instrumento da política externa da União Soviética. “Na realidade, essa alteração tem sentido mais grave – procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista”, diz a Carta.

No encerramento do debate do V Congresso, Pedro Pomar escreveu que ele tinha esperanças de que a defesa feita por Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral, no único artigo por ele publicado, de uma “justa linha política revolucionária para o Partido”, viesse a se concretizar.

O texto da Carta dos Cem termina com esta conclamação: “Ao adotar essa posição, confiamos que nas fileiras do próprio Partido existam forças suficientes para derrotar as tendências errôneas e encontrar o acertado caminho para resolver as dificuldades que o Partido enfrenta”.

No longo debate interno – iniciado em 1956/57 e encerrado em 1960 – fica facilmente perceptível que os principais fatores que levaram à cisão eram de fato predominantemente internos.

O problema é que no curso do processo do V Congresso solidificou a tendência revisionista, culminando na criação do novo PCB – o que não deixou aos antigos dirigentes alternativas à reorganização do Partido.

Pedro Pomar afirmou que a Conferência de 1962 fora convocada para debater e enfrentar graves problemas do movimento comunista no Brasil, decorrente de um longo processo que culminara na formação de um novo partido.

Outra missão seria a discussão da necessidade de reorganizar “o nosso velho e glorioso Partido e de indicar o caminho da luta capaz de conduzir o proletariado e povo à sua emancipação nacional e social”.

Segundo Pedro Pomar, em comentário no jornal A Classe Operária, não seria possível compreender o significado da Conferência sem estabelecer conexão com os acontecimentos anteriores, sobretudo os dos anos 1950.

Fora um período difícil para país, constatou ele, que exigiu dos comunistas esforços para vencer os obstáculos “que o Partido teve de transpor para cumprir sua missão revolucionária”.

Fora também uma fase rica de ensinamentos, na qual muitos militantes manifestaram grande abnegação, “mas a direção do Partido não teve a capacidade de encontrar o melhor caminho da revolução e deixou que se perdessem magníficas oportunidades para elevar o nível da ação combativa das massas”.

Naquela época já se podia observar certo desalento nas fileiras comunistas e perceber que a linha política claudicava diante dos acontecimentos que se precipitavam, como os de 24 de agosto de 1954 e os de 11 de novembro de 1955, analisou.

O Programa do Partido, aprovado no IV Congresso, na opinião de Pedro Pomar passou a ter uma interpretação sui generis, que não afinava com as diretrizes essenciais nele contidas. “Nessas condições é que nos surpreendeu a ofensiva da reação imperialista e o surto revisonista”, afirmou.

Pedro Pomar constatou que nas fileiras comunistas propagou-se rapidamente uma sensação de frustração, sobretudo nos setores da intelectualidade ligada aos comunistas ou sob a influência do Partido. “Cresceu a confusão ideológica em face das enormes vacilações da direção partidária e da sua impotência para enfrentar os ataques dos revisionistas”, comentou ele.

Pedro Pomar fez uma minuciosa análise dos acontecimentos que levaram à reorganização do Partido Comunista do Brasil, revelando nuances que permitem visualizar as entranhas da batalha desenvolvida no processo do V Congresso.

Segundo ele, o debate no “movimento comunista” começou por iniciativa dos revisionistas e, “embora contivesse aspectos positivos e revelasse o sentimento internacionalista e revolucionário de diversos camaradas, não contribuiu para esclarecer devidamente os problemas controvertidos”.

Ao contrário, gerou mais desorientação, disse ele. “Tudo isso contribuiu para que fosse declinando a influência dos comunistas no movimento operário e democrático. As forças populares, sem liderança efetiva, se tornaram objeto da traficância dos demagogos burgueses e pequeno-burgueses. O movimento de massas ia sendo empolgado, cada vez mais, pelo nacionalismo. As publicações comunistas de massa despareceram e o próprio nome do Partido Comunista do Brasil passou a ser omitido, sendo substituído pela expressão ‘movimento comunista’ ou pela assinatura de um único dirigente”, escreveu.

Toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria, disse Pedro Pomar. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática.

“O Programa do Partido foi considerado superado em sua totalidade pelos corifeus do revisionismo, sob a acusação de que não refletia as novas condições do mundo e do Brasil. No que se refere à situação internacional, os revisonistas afirmavam que, na base de uma falsa apreciação, havíamos exagerado o perigo de guerra, que o poderio do socialismo era de tal magnitude que todas as reformas sob o capitalismo favoreciam o socialismo e que, portanto, a ditadura do proletariado e a revolução proletária deixaram de ser indispensáveis.”

O culto à personalidade de Prestes, que segundo Pedro Pomar os comunistas estimularam durante muitos anos, tornou-se um fator primordial para que as ideias revisionistas acabassem se impondo.

“Por ironia, um dos aspectos negativos da atividade do Partido e que os revisionistas diziam combater é que lhes propiciou a arma mais poderosa para empolgar a direção e depois o conjunto do Partido. Justamente graças à adesão de Prestes ao grupo revisionista, em 1957, é que este passou a predominar no Partido.”

Pedro Pomar revelou que os dirigentes do grupo revisionista, de acordo com Prestes na reunião do Comitê Central em agosto de 1957, acusaram quatro integrantes do antigo Presidium de serem os principais responsáveis pelos erros do Partido.

“Embora em conversas privadas confessassem outra coisa, consideraram Prestes como vítima de uma conspiração, como um homem não informado. Os ‘cabeça de turco’ (locução de uso popular que significa teimoso, obstinado, resistente) foram apontados no Partido e alijados de seus postos e aquele que era de fato o maior responsável, não só como decorrência do posto que ocupava, mas, sobretudo, pelo sistema de culto à personalidade, foi inocentado, ou considerado capaz de recuperação”, detalhou.

Apelando para a esperteza e utilizando sofismas, disse Pedro Pomar, os revisionistas continuavam rendendo o mesmo culto à personalidade, acusando, entretanto, os que se mantinham fiéis às tradições revolucionárias do Partido como “saudosistas desejosos da volta do passado”.

“Com esses estribilhos monótonos, aplicavam a torto e a direito o método mandonista por eles tão condenado. Velhos quadros e militantes foram vítimas de uma política discriminatória mais absurda e hipócrita. Empregando tais processos, os revisonistas conseguiram impor no 5º Congresso a linha reformista, apesar da vigilância dos elementos revolucionários e de sua crescente resistência diante do que ocorria no Partido. Tanto assim que os Estatutos então aprovados ainda conservaram, no fundamental, os princípios e as normas leninistas consagrados pelo movimento comunista internacional.”

Era preciso ressaltar a resistência aos revisionistas para se apreciar de modo correto o que aconteceu quando o Comitê Central eleito no V Congresso resolveu alterar o nome do Partido e criar um novo partido, que não se regeria mais pelos princípios do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário, ponderou Pedro Pomar.

“Nessa ocasião, grande número de militantes se dirigiu ao Comitê Central para condenar essa tentativa de formar um novo partido, sob o pretexto de obter seu registro eleitoral. Simultaneamente, esses militantes solicitaram a convocação de um novo Congresso, única instância que podia decidir a questão caso a direção não quisesse voltar atrás de seus propósito liquidacionista.”

A resposta do Comitê Central a essa petição dos que divergiam de sua conduta foi de uma intolerância a toda prova.

“Entrou pelo terreno das sanções disciplinares, da acusação de divisionismo, até o ponto de pretender expulsar do movimento comunista honrados lutadores da causa revolucionária do proletariado. Assim, os reformistas consumavam o divisonismo no movimento comunista. Não restava outro recurso aos que se mantinham firmemente nas posições revolucionárias do marxismo-leninismo senão o da convocação de uma Conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil que tratasse, fundamentalmente, da sua reorganização diante das graves consequências da política e dos métodos aplicados pelos revisionistas.”

O marxismo e a emancipação da mulher

Por Osvaldo Bertolino

Feminismo e emancipação feminina. Eis uma questão que atravessa os tempos e desafia as formulações políticas que enfrentam a histórica ordem econômica e social regida pela opressão. Compreender o conceito de emancipação é o primeiro passo. Ele tem no entendimento de que a dicotomia opressores e oprimidos não é natural, uma condição que pode ser superada pelo domínio da ciência sobre as leis que determinam os fenômenos sociais, conhecido na história como socialismo científico, a grande síntese do pensamento sobre a igualdade social, desde a Antiguidade Clássica.

O tema está no livro Trajetória teórica e política do feminismo emancipacionista, publicação da Secretaria Nacional da Mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), uma coletânea de textos do período entre 1954 e 2012, infelizmente pouco conhecido. É uma espécie de síntese daquilo que Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, definiu como “base teórica clara e precisa” do movimento feminino. A secretária da Mulher, Liège Rocha, explica na apresentação que os textos foram publicados em revistas, jornais, boletins e outros veículos, além de informes de congressos do Partido.

O marxismo como síntese

São 403 páginas de textos de especialistas no tema: Ana Rocha, Clara Araújo, Iracema Ribeiro, Jô Moraes, Liège Rocha, Lilian Martins, Loreta Valadares, Lúcia Rincón, Mary Garcia Castro, Milton Barbosa, Olga Maranhão e Sara Romero da Silva. O texto que abre o livro, de Jô Moares, intitulado A origem da opressão da mulher, é uma espécie de apresentação da ideia emancipacionista. À indagação sobre se o homem é por natureza opressor, ela responde: “Nos movimentos de mulheres sempre surge a ideia de que a nossa luta é contra os homens. O preconceito com que a maioria da população vê o termo ‘feminismo’ vem daí.”

Loreta Valadares, no texto A ‘controvérsia’ feminismo-marxismo, é enfática. “As críticas à pretensa ‘insuficiência’ do marxismo sobre a questão da mulher se fazem presente em quase todas as análises sobre a situação de dependência e inferioridade na sociedade, bem como sobre as origens de sua opressão. Evidentemente, as diversas teorias feministas não param somente na crítica à interpretação do marxismo sobre o processo de transformação da sociedade, mas, sobretudo, investem contra o caminho apontado pelo marxismo para a luta de emancipação da mulher”, escreve.

Sara Romero da Silva, no artigo A classe operária e a questão de gênero, ressalva que no campo da teoria marxista vai sendo evidenciado o esgotamento de uma série de modelos teóricos e práticos, “sem o suficiente desenvolvimento científico do próprio marxismo por parte de seus seguidores”. “O marxismo-leninismo afirma, e a vida, tanto no mundo capitalista como das experiências socialistas, tem confirmado que a exploração de classe é decisiva em relação à opressão de gênero e que esta última não se resolverá sem que se resolva a exploração de classe.”

A questão é compreender o marxismo como síntese do pensamento social na história. “O marxismo apresentou a primeira formulação sistematizada acerca da opressão da mulher”, escreve Liliam Martins no artigo As mulheres e o socialismo. “Incorporando ideias formuladas pelas primeiras feministas, pelos socialistas utópicos, como Fourier, desvendou a origem dessa opressão como intrinsecamente ligada ao surgimento da propriedade privada, à formulação das classes sociais.”

O poder da reprodução humana

No artigo Gênero, trabalho e pobreza: para além dos direitos iguais, Clara Araújo constata que “as crises do capitalismo agravam sobremaneira as adversas condições de vida da maioria das mulheres”. “A chamada globalização tem como um dos pontos constantemente abordados o argumento de que, em uma economia internacionalizada, de mercados transnacionais, o Estado vai perdendo sua razão de ser, assim como o próprio conceito de soberania”, diz. “A ideologia neoliberal é, portanto, contrária à própria essência das reivindicações materiais das mulheres, que dependem de iniciativas de cunho social.”

Pelo mesmo viés, Lúcia Rincon comenta, no artigo O papel da maternidade, que “o poder da reprodução humana sempre foi alvo privilegiado de preocupações daqueles que detêm o poder econômico e político e que procuram dominá-lo e controlá-lo”. “Na sociedade patriarcal e, depois, na sociedade capitalista, muitos foram os cientistas e ideólogos que se dedicaram a compreender e a explicar a reprodução humana”, escreve.

Nos textos, o ponto de vista marxista é o norte das argumentações, mas não são poucas as observações críticas sobre leituras artificias do conceito emancipacionista. Mary Garcia Castro destaca, no artigo Feminismo marxista – mais que um gênero em tempos neoliberais, que o marxismo é uma teoria científica e um movimento social crítico das sociedades de classe, em particular contra o capitalismo. “A referência no feminismo de corte liberal e social-democrata e mesmo dito ‘radical’, porque destacaria sexualidade e diferenças, é uma mulher genérica, desterrada da classe e raça. Mas em tendências no feminismo socialista, que se pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica. Sem circulação na raça ou em outras identidades marcadas por sistemas político-econômico-culturais de opressões.”

Sara Romero Silva, no artigo Origens da opressão de gênero, afirma que “houve um tempo em que militantes socialistas consideravam, em termos práticos (e até teóricos), que a luta de classes explicava tudo”. “No entanto, Marx e Engels trazem o ensinamento de que é preciso conhecer melhor a realidade, não fechar o ângulo de visão. O próprio surgimento das ideias marxistas sobre a questão da família e da mulher traz essa lição também.”

Milton Barbosa, no bem ilustrado artigo Pequena contribuição metodológica ao feminismo emancipacionista, escreve que “durante um tempo demasiadamente longo e enfadonho, a filosofia e a ciência, com seus mais ilustres e melhores representantes, desqualificaram a mulher, tornando-a uma obviedade desinteressante para a investigação racional”. “Mais do que isso, a apropriação privada pré-capitalista e capitalista, que inicialmente aprisionou-as à vida doméstica, impedindo-as de desenvolver uma visão ampla da sua existência e de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino um meio de acesso à vida pública para eternizá-la como objeto de desejo dos machos, velhos e novos.”

Uma vida livre e feliz

Ana Rocha encerra o livro com o texto Impactos da ideologia neoliberal na subjetividade feminina. “Vimos que a mulher avançou sua presença no espaço público, mas que a questão da dupla jornada permanece como um problema crônico, que tem afetado a vida da mulher, aumentando seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e traz uma ameaça de retrocesso na condição feminina é necessário abordarmos em que consiste a vitória ideológica-cultural do neoliberalismo no mundo.”

Antes, o livro tem dois textos do 4º Congresso do Partido, realizado em 1954. O primeiro é uma intervenção de Iracema Ribeiro. “O trabalho de ganhar milhões de mulheres para o Programa (do Partido) só poderá se desenvolver com pleno êxito quando deixar de ser apenas tarefas das seções do trabalho feminino e das organizações de base femininas e for incluído entre as tarefas permanentes e diárias de todos os organismos do Partido.”

Olga Maranhão, também em intervenção no 4º Congresso, disse que o Partido Comunista do Brasil é herdeiro das gloriosas tradições de luta do povo e dirige “as lutas das massas femininas pelos direitos e interesses da mulher, pela paz, pelas liberdades democráticas e pela independência nacional”. “O Partido nos ensina que a ação unida e organizada das grandes massas femininas é indispensável para assegurar às mulheres uma vida livre e feliz.”

Mulheres contra os homens

Um ponto abordado em algumas passagens do livro, referente à indagação de Jô Moares sobre a natureza opressora do homem, representa um dilema histórico. O que se convencionou chamar de “sexismo” é tratado por ela no artigo A nova etapa do feminismo como “ruptura”, que se dá, “fundamentalmente, com o chamado feminismo da igualdade na sua expressão liberal-reformista”. “A concepção da universalidade da condição feminina reforçou-se com a ideia da ‘irmandade de mulheres’, que constituía o modelo feminino de fazer política. Expressa com força no feminismo americano, a ideia da irmandade se desenvolveu amplamente pelo mundo”, relata.

Jô Moraes traz um conceito que, às vezes, tenta se impor pelas palavras, tirando do debate o arejamento das ideias e o exercício reflexivo. Essa discussão, na verdade, é antiga. No Partido Comunista do Brasil ela aparece, por exemplo, numa sabatina do então deputado constituinte comunista Carlos Marighella, em 1946, em Salvador. “Com a presença de grande número de mulheres, operárias, donas de casa, elementos femininos progressistas de várias classes sociais e representantes da Liga Femina Democrática, além de pessoas outras, teve lugar na sede da Associação dos Empregados do Comércio, a sabatina com o deputado Carlos Marighella com as mulheres baianas”, noticiou a agência de notícias do Partido, Iter Press.

Segundo Marighella, a mulher só poderia se libertar “procurando se organizar e conseguindo participar da produção, porque então obterá uma situação de independência econômica, de onde decorrerão todas as outras situações de liberdade e vida digna e moderna”. Citou como exemplo a União Soviética, onde, mesmo após a vitória do socialismo, persistiu a violência contra a mulher. Mas “as mulheres mais esclarecidas se organizaram e se uniram às companheiras e, após séria luta organizada, conseguiram a sua independência”. E falou do falso feminismo, que se dizia disposto a emancipar as mulheres, um movimento de mulheres contra os homens.

Marighella citou o exemplo de mulheres no parlamento na França e na União Soviética para dizer que, com o atraso político no Brasil, mulher alguma tomava assento no Legislativo, a exemplo da dirigente comunista Adalgisa Cavalcanti, de Pernambuco, cuja candidatura à Assembleia Constituinte não foi reconhecida. Era um momento em que o Partido promovia debates sobre a emancipação da mulher. O Barão de Itararé, nome mais conhecido de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, era um dos palestrantes.

Destruir Cartago

Em 1956, A Editoria Vitória, ligada ao Partido, publicou, em livreto, uma coletânea de textos de Lênin, sob o título O socialismo e a emancipação da mulher. Num dos textos ele diz que “a verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começa onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado) contra a pequena economia doméstica, ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista”.

Em outra passagem, ele relata que “em dois anos, em um dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, por sua igualdade com o sexo ‘forte’, mais do que haviam feito todas as repúblicas avançadas, cultas, ‘democráticas’, do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos”.

O livreto inclui um cativante artigo de Clara Zetkin (personagem histórica do feminismo marxista), intitulado Lênin e o movimento feminino, relatando uma longa conversação com ele em 1920. Vale reproduzir essa pérola: “Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas consequências e estigmatizar, além disso, a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a essa conclusão: ‘É preciso destruir Cartago.’ Lênin sorria e fazia com a cabeça sinais de aprovação.”