– Aniversário da Petrobras: o cerco histórico da direita

Getúlio Vargas no Palácio do Catete anuncia a criação da Petrobras  

Por Osvaldo Bertolino

Em 3 de outubro de 1953, exatamente três anos após ter sido eleito para o segundo governo, o presidente Getúlio Vargas sancionou a lei que criou a Petrobras. O anúncio se deu num discurso no Palácio do Catete, a sede do governo, sobre suas principais realizações. “O Congresso acaba de consubstanciar em lei o plano governamental para a exploração do nosso petróleo. A Petrobras assegurará não só o desenvolvimento da indústria petrolífera nacional como contribuirá decisivamente para limitar a evasão de nossas divisas. Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobras resulta de uma firme política nacionalista no terreno econômico, já consagrada por outros arrojados empreendimentos, em cuja viabilidade sempre confiei”, disse.

Na país havia amadurecido a consciência de que o setor energético — especialmente a indústria do petróleo — é peça-chave do desenvolvimento econômico e social. Tanto que o Projeto de Lei que criou o monopólio do setor atingiu amplo consenso, apesar das pressões dos interesses internacionais já no momento da votação no Congresso Nacional.

A Petrobras nasceu como consequência da batalha pelo controle estatal do petróleo, condição fundamental para a defesa da soberania nacional. E, por ter esse simbolismo, nunca foi aceita pelas forças conservadoras, devidamente caracterizadas como entreguistas. Os recentes ataques à estatal, agora mais intensos por conta do pré-sal, são apenas mais um capítulo dessa história

Por trás dos arroubos dos patriotas de ocasião e raivosos publicistas que manifestam “indignação” com a profusão de denúncias oportunistas que envolveram a Petrobras estão questões como a batalha mundial pelo petróleo e, em torno dela, a soberania nacional e a união do Brasil com seus vizinhos. A união energética historicamente representou um dos maiores motivos de integração entre os povos. A União Europeia, para citar um exemplo recente, começou a surgir em 1951 com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Inicialmente, a preocupação básica era o suprimento de energia.

No caso da América do Sul, há um fator que facilita essa integração: os países da região, excetuando Brasil e Chile, têm mais energia do que necessitam. Não há nada mais natural do que vender o excedente a quem precise. Para que esse comércio ocorra, contudo, são necessárias obras gigantescas, que tendem a consolidar a ligação entre os países. Só o gasoduto entre Brasil e Bolívia, para se ter uma base, custou mais de US$ 2 bilhões. Ninguém faria uma obra desse porte se não fosse para ter uma relação de longo prazo. Essa ideia, no entanto, sempre enfrentou forte oposição dos interesses que dominam a economia mundial; a indústria do petróleo, que nasceu no final do século XIX, por ser fonte constante de riqueza se tornou desde cedo essencialmente monopolista.

Monteiro Lobato

No Brasil, a luta pela soberania energética é antiga. A confirmação da existência de petróleo no país foi uma vitória das forças patrióticas e progressistas, que sempre demarcaram campo com os entreguistas. O escritor Monteiro Lobato disse em seu livro O escândalo do petróleo, de 1936, que existiam duas visões geológicas: uma paga para “engazopar” o público, outra para o uso interno dos trustes. Até então, escreveu, o Brasil vivia em regime de compartimentos estanques. A imensa extensão territorial do país e a falta de bons transportes fizeram os brasileiros serem regionais. Nasciam e morriam em um desses compartimentos e quando alguém desejava viajar corria para a Europa. As coisas começavam a mudar graça ao petróleo; o brasileiro já circulava mais, de automóvel ou de avião, e estava descobrindo o Brasil rapidamente. O país estava se transformando em uma grande coisa.

Aquele homenzinho de grossas sobrancelhas percorria o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, pregando patriotismo. “Não temos petróleo? Falta-lhe (ao governo) em olhos o que lhe sobra em traidores vendidos aos interesses estrangeiros”, escreveu. Mas, afirmou, “havemos de dar olhos ao Brasil”. “Havemos de obrigá-lo a ver, a convencer-se da existência do gigantesco lençol subterrâneo. Se a fé move montanhas, a convicção rompe o seio da terra e arranca de lá os seus tesouros. Não sei, concluí em uma das minhas pregações, que sacrifício eu não faça para ver meu país arrancado à miséria crônica e elevado ao poder e à riqueza pela força mágica do maravilhoso sangue negro da terra”, asseverou.

Impulsionado por essa ideia, Monteiro Lobato escreveu cartas ao presidente Getúlio Vargas expondo o que considerava a verdade sobre o problema do petróleo no Brasil, que lhe renderia uma prisão. “O petróleo! Nunca o problema teve tanta importância; e se com a maior energia e urgência o senhor não toma a si a solução do caso, arrepender-se-á amargamente um dia, e deixará de assinalar a sua passagem pelo governo com a realização da ‘grande coisa’. Eu vivi demais esse assunto. No livro O escândalo do petróleo denunciei à nação o crime que se cometia contra ela (…). Doutor Getúlio, pelo amor de Deus, ponha de lado a sua displicência e ouça a voz de Jeremias. Medite por si mesmo no que está se passando. Tenho certeza de que se assim o fizer, tudo mudará e o pobre Brasil não será crucificado mais uma vez”, escreveu.

Batalha mundial

A decisão brasileira de nacionalizar suas reservas foi uma resposta aos propósitos dos monopólios que se formaram com a história do imperialismo do século XIX e do início do século XX. Eram tempos de partilhas de mercados, de guerras mundiais, de modificações nas correlações de forças e de soberanias nacionais ameaçadas. Na América Latina, território historicamente cobiçado pelos norte-americanos, o México nacionalizou seu petróleo em 1938 e a Argentina já explorava suas jazidas na década de 1940. Chile e Bolívia encaminhavam-se para o monopólio do Estado.

A formação do bloco socialista tirou do campo de visão dos grupos privados importantes reservas mundiais — um dos quatro maiores lençóis de petróleo, o do Mar Cáspio, passou para as mãos dos povos soviéticos. O drama do petróleo entrava em uma fase nova, marcada pelo avanço da democracia contra o imperialismo. Já naquela época, as concessões abarcavam regiões imensas.

Uma companhia norte-americana era concessionária de toda a Abissínia — hoje Etiópia. Na Arábia Saudita, metade do país estava nas mãos de outras duas empresas dos Estados Unidos. Em 1945, o Paraguai outorgou a uma petrolífera norte-americana concessões que compreendiam dois terços do seu território. Na Venezuela, regiões imensas foram entregues às companhias norte-americanas e inglesas. Os Estados Unidos controlavam mais de 80% do petróleo do mundo capitalista, cerca de 70% de toda a produção mundial. Em muitos países, como a Venezuela, populações miseráveis vegetavam em torno de poços riquíssimos.

A luta pelo petróleo nacional, portanto, brotou em plena batalha mundial pelas reservas petrolíferas. Era uma questão que requeria a união do povo brasileiro e um governo minimamente comprometido com a independência nacional. Apoiada na tenacidade dos pioneiros — como Monteiro Lobato —, e fortalecida pelo esclarecimento das campanhas do Partido Comunista do Brasil, com ampla mobilização esdudantil organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE), a palavra de ordem O petróleo é nosso abriu caminho entre todas as barragens e emergiu como um grande movimento popular em defesa da soberania nacional.

Além da mobilização popular e das denúncias na tribuna do Congresso Nacional, os comunistas apresentaram três projetos sobre o petróleo. De autoria do deputado Carlos Marighella, o primeiro — subscrito por Maurício Grabois, Gregório Bezerra, Henrique Oest, José Maria Crispim, Jorge Amado, Abílio Fernandes e Diógenes Arruda Câmara — dizia que “as jazidas de petróleo e gases naturais existentes no território nacional pertencem à União, a título de domínio privado imprescindível”. Ou seja: só brasileiros poderiam pesquisar e lavrar petróleo e gás.

O segundo — não há registro conhecido de subscrição — declarava de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo. Isto é: a produção, importação, exportação, refino, transporte, construção de oleoduto, distribuição e comércio seriam exclusividade de empresas de capital nacional, com 51% das ações em poder do Estado.

O terceiro projeto de Marighella — subscrito por Maurício Grabois, Diógenes Arruda Câmara, João Amazonas, Henrique Oest, Gregório Bezerra, Gervásio Azevedo, Jorge Amado e Abílio Fernandes — criava o Instituto Nacional do Petróleo, entidade autárquica com ampla competência. Além destes três projetos, Abílio Fernandes apresentou outro, em nome da bancada comunista, regulamentando a aplicação dos artigos 152 e 153 da Constituição de 1946, relativos às minas e demais riquezas do subsolo.

Segundo o projeto, “os decretos de concessões de petróleo e de autorizações de lavra” seriam “conferidos exclusivamente a brasileiros ou sociedades organizadas no país”. As propostas pararam na Comissão de Constituição e Justiça e o assunto passou a ser monopolizado por uma nova legislação que seria enviada ao Congresso pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. A concretização do monopólio estatal do petróleo, contudo, só viria no segundo governo do presidente Getúlio Vargas.

Ao longo dos debates, ficou evidenciada a importância da “batalha pelas reservas”. O deputado comunista Pedro Pomar disse na tribuna da Câmara que o problema fundamental do Brasil era produzir petróleo para o consumo doméstico e assegurar reservas para qualquer emergência. Segundo Pomar, os brasileiros não podiam ficar à mercê da política agressiva e provocadora de guerra dos norte-americanos.

Pai dos neoliberais

Desde cedo, os defensores da posse do petróleo pelo Estado compreenderam a importância dessa bandeira para o desenvolvimento nacional e a defesa da soberania do país. O petróleo é a base principal da economia e do poder do Estado nacional. Por ter essa importância, os entreguistas brasileiros nunca aceitaram a Petrobrás.

Nos anos 1940-1950, as ações para impedir a posse estatal do petróleo tinham muito a ver com o desdobramento do dramático episódio conhecido como “Guerra do Chaco”, tramada pela Standard Oil. No seu final, o Brasil assinou os Tratados de 1938 pelos quais ganhou uma região para pesquisar petróleo. O governo brasileiro havia construído a estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra e recebeu a “área de estudo” como pagamento. O acordo seria desfeito em 1955, quando o governo do presidente Café Filho devolveu a área ao governo boliviano, que seria repassada à Standard Oil.

No caminho estava o pai dos neoliberais brasileiros, Eugênio Gudin, ministro da Fazenda. Ele se recusou a liberar os recursos necessários já aprovados no Congresso e destinados ao reinício das atividades do Conselho Nacional do Petróleo na região subandina boliviana. A mídia, que no Brasil combatia ferozmente o monopólio estatal do petróleo, saudou a atitude de Gudin como um gesto de “coragem e bom senso”. Em La Paz, o procedimento foi o mesmo. Festejaram, assim, o entreguismo brasileiro-boliviano, na pessoa de Gudin.

O alvo era a Petrobrás, que surgia como desmentido aos que só acreditavam nas maravilhas da iniciativa privada. Os monopólios privados sabiam que a estatal era a solução certa para o problema do petróleo brasileiro e que seria a base econômica-financeira do desenvolvimento nacional. Foi assim que começou a primeira campanha contra a Petrobras.

No início da década de 1960, no entanto, o monopólio estatal foi reforçado com a incorporação da importação de petróleo e da distribuição de derivados. A integração de todas as fases da indústria petrolífera — exploração, produção, transporte, refino e distribuição — no regime de monopólio permitiu ao país controlar a totalidade do seu petróleo. O setor evoluía em um ambiente iluminado pelo debate democrático e parecia intocável, apesar do assédio incessante das multinacionais.

Contratos de risco

Com a chegada do regime golpista de 1964, foram criadas as condições para a volta dos ataques privatistas. Já em 1965, a ditadura militar promulgou três decretos-lei: um que restituiu as refinarias estatizadas aos seus antigos proprietários e outros dois que retiraram a petroquímica e o xisto do monopólio estatal.

Em 1970, contrariando a essência da lei que instituiu o monopólio, a direção da Petrobras, cumprindo decisão do governo, reduziu o esforço exploratório, o que comprometeria o objetivo de atingir a auto-suficiência nacional. “A auto-suficiência no campo do petróleo, por mais desejável que seja, não é a missão de base da empresa”, declarou o então presidente da Petrobras, general Ernesto Geisel.

Ao mesmo tempo, a ditadura flertava com as multinacionais do setor. O primeiro resultado foi a associação da Petrobras à Mobil Oil e à National Iranian Oil Company para formar a Hormoz Petroleum Company, com atuação no Irã. Em outubro de 1975, Geisel, agora presidente da República, disse que as empresas multinacionais estavam autorizadas a explorar petróleo no Brasil, anunciando a adoção, pelo governo brasileiro, dos “contratos de ricos”.

Quatro anos depois, em dezembro de 1979, um telex da Presidência da Republica determinou à Petrobras a criação das condições necessárias à participação das multinacionais também na fase de produção. O objetivo era tornar os “contratos de risco” mais atrativos. No entanto, o país entrara na fase de lutas pela redemocratização e a decisão da ditadura provocou protestos.

Em manifesto de 28 de fevereiro de 1980, os sindipetros (sindicatos de petroleiros) disseram: “Estamos levantando a bandeira do ‘Petróleo é nosso!’, não pelo simples prazer de uma nova luta, mas pela vontade de preservar tudo o que foi conquistado com suor e sangue de nosso povo.”

Uma resolução das associações de geólogos de alguns estados e da Sociedade Brasileira de Geologia, dizia: “Conclamamos todos os colegas, principalmente aqueles que trabalham na Petrobras e outras empresas públicas, os sindicatos e associações profissionais, os parlamentares e todos os setores sociais do país para que retomemos juntos a luta: pela abolição dos contratos de risco; pela restauração integral do monopólio estatal do petróleo através da Petrobras; pelo controle da população sobre os recursos minerais e energéticos.”

De 1977 a 1988, foram assinados 243 “contratos de riscos”, que resultaram em 79 poços perfurados, em uma área de 1,5 milhão de quilômetros quadrados (superior à dos territórios da Inglaterra, Itália, Japão, Suiça, Grécia e Portugal juntos), e investimentos de US$ 1,25 bilhão, dos quais ingressaram no país US$ 350 milhões. Um resultado pífio. A Petrobras, no mesmo período, aplicou US$ 26 bilhões, perfurou 8.203 poços e descobriu os campos gigantescos de Marlin, Albacora e Barracuda — além de outros localizados onde vigoraram “contratos de risco”, nas áreas Sul-Tubarão, Estrela do Mar, Coral e Caravela.

Petrobras dividida

No governo do presidente Fernando Collor de Mello, surgiu a proposta do “Emendão”, uma tentativa de alterar a Constituição pela qual ele jurou fidelidade, que incluía a possibilidade de quebra do monopólio estatal do petróleo. O coordenador do Programa Nacional de Desestatização e presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Eduardo Modiano, disse que era possível reverter a tendência majoritária no Congresso Nacional contra a privatização da Petrobras. “Isso depende de emenda constitucional, mas acho que parlamentares e sociedade se sensibilizarão com o sucesso do programa de privatização e, aí, será viável a privatização da Petrobras”, declarou. A proposta recebeu, de pronto, o apoio do ministro do Planejamento, Paulo Haddad.

A ideia seria enterrada pelo presidente Itamar Franco, que declarou, em reunião com representantes da UNE, que a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce não seriam privatizadas. “Enquanto eu for presidente essas estatais não serão privatizadas”, declarou. Contudo, quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) assumiu o Ministério da Fazenda o assunto voltou à baila. “Esse assunto (a privatização da Petrobras) depende do Congresso, porque trata da questão do monopólio”, afirmou.

No governo FHC, a ideia de privatizar a Petrobrás surgiu oficialmente em 1996 quando Luis Carlos Mendonça de Barros, então presidente do BNDES — um tucano de alta plumagem —, desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério; ele foi um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. A privatização não se concretizou, mas a aprovação da Emenda Constitucional nº 9, em 9 de novembro de 1995, quebrou o monopólio estatal e iniciou o processo de abertura da indústria petrolífera e gasífera no Brasil.

O primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva interrompeu o processo de esfacelamento que estava sendo preparado pelos tucanos para vender a Petrobras, de acordo com José Sérgio Gabrielli, que assumiu a presidência da estatal. “A Petrobras estava sendo dividida em partes, estava em processo de esfacelamento. Eu acho que a empresa teria sido vendida se nós não tivéssemos interrompido esse processo”, disse ele. A Petrobras só alcançou tantos resultados (auto-suficiência em petróleo, anunciada em 21 de abril de 2006)) porque não foi parar no “balcão das privatizações”, destacou.

Era dos dividendos

Lula falou sobre a sensação de presenciar essa conquista da estatal. “Eu acredito que ser brasileiro, conhecer a história da Petrobras e viver o 21 abril de 2006 como eu vivi, eu acho que é uma dádiva de Deus”, afirmou. O presidente lembrou as críticas que a estatal enfrentou no decorrer de sua história. “Eu sei que a Petrobras desde 1953, com o decreto de Getúlio Vargas, foi vítima de críticas daqueles pessimistas que gostam de criticar tudo, daquele mesmo que disse que a Petrobras não ia dar certo”, comentou. Com a descoberta do pré-sal, a condição estratégica da Petrobras como esteio da soberania nacional foi elevada a um patamar nunca imaginado e ainda não totalmente dimensionado.

Após o gole de 2016, com a fraude do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a investida da direita impôs toque de silencio sobre o desmonte da Petrobras. Surgia a era dos dividendos como nova forma de saque, uma ofensiva que se utilizou das conhecidas fraudes da Operação Lava Jato. Com a volta de Lula à Presidência da República em 2023, iniciou-se a recuperação da empresa e a restauração da política de preços “abrasileirada”, sob ataque da mídia cartelizada que se reveza na artilharia, usando munições bem conhecidas desde o início da batalha pelo petróleo no Brasil.

São velharias requentadas que compõem o arcabouço das ideias que negam iniciativas do governo para a retomada dos investimentos, como o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a reindustrialização do país, a volta da indústria naval e a retomada das refinarias. Tudo revestido de adjetivações agressivas para desqualificar sobretudo o presidente Lula, um festival de impropérios que atinge todos os que de alguma forma se identificam com o desenvolvimento nacional.

– O Plano Real contra a soberania nacional

Por Osvaldo Bertolino

Multidões nas ruas, palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, bombas de gás lacrimogêneo, tumulto. Este cenário era comum nas conturbadas privatizações dos anos 1990, sobretudo após o Plano Real, o catalisador de votos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Em 1994, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato da oposição, cortava o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania, FHC desfilava na mídia prometendo o que não cumpriria. Estava em andamento, como base da “estabilização da moeda”, a preparação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), a adequação do sistema bancário ao mercado de títulos públicos, aquecido com a liberalização financeira.

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De 1º de julho de 1994, data da implantação do Plano Real, a 3 de novembro de 1995, quando o Proer foi instituído por uma Medida Provisória, o Banco Central fez 22 intervenções no sistema bancário. Em 17 de novembro de 1995, outra Medida Provisória deu ao Banco Central a obrigação e o poder de escolher os bancos que teriam solidez. De outubro de 1995 a maio de 1996, o governo liberou US$ 12,1 bilhões, salvando bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira.

Estava também em andamento o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelo presidente dos Estados Unidos George Bush – pai do também presidente George W. Bush – em 1990 e reavivada em 1994, uma resposta ao fracasso das negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que enfrentava protestos onde se reunia. Seria uma ferramenta sobressalente, reserva estratégica que permitiria entrar pela janela o que não pôde entrar pela porta, a realização em escala regional daquilo que não pôde ser feito em escala mundial, na definição da professora do Centro de Pesquisas e Estudos sobre a América Latina e Caribe (Crealc), Janete Habel.

O Brasil entregou o comércio exterior a um grupo de 45 diplomatas, nove dos quais acreditados em Genebra – onde fica a sede da OMC – e seis na missão junto à União Européia, em Bruxelas, nenhum deles especialista em Alca. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães, que seria secretário-geral do Itamaraty no governo Lula – após ser demitido do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (Ipri) pelo ministro das Relações Exteriores do governo FHC, Celso Lafer, por suas repetidas e enfáticas criticas à entrada do Brasil na Alca -, o Brasil corria o risco de adotar uma incorporação de forma subordinada e assimétrica ao sistema econômico e político dos Estados Unidos.

“Julgava-se então que o livre ingresso de bens e de capitais estrangeiros modernizaria a estrutura produtiva e geraria exportações suficientes para compensar as remessas de recursos”, disse ele. “Nosso desarmamento unilateral, pensava-se, colaboraria para o desarmamento das grandes potências. Elas, porém, continuaram a se armar e a agir cada vez mais arbitrariamente. Acreditava-se na imparcialidade de agências como a OMC e o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o que se constata é o seu viés pró-Estados desenvolvidos”, afirmou. “O projeto da Alca atende aos interesses estratégicos dos Estados Unidos para a América do Sul, mas afeta muito em especial o Brasil, devido a nossas dimensões territoriais, de população e de PIB”, comentou

A Alca colocaria em confronto direito, ainda que gradualmente, as megaempresas multinacionais americanas e as empresas brasileiras, disse ele em entrevista ao jornal Correio Braziliense de 19 de abril de 2001. “As regras internacionais que viriam a ser consagradas pela Alca levariam à impossibilidade prática de o Brasil exercer políticas comerciais, industriais, tecnológicas, agrícolas e de emprego indispensáveis à superação das extraordinárias disparidades sociais e da crônica vulnerabilidade externa”, afirmou.

Um plebiscito organizado por entidades do movimento social, precedido de uma campanha de esclarecimento, ocorreu entre 1º e 7 de setembro de 2002, em 3.894 municípios. Dos 10.149.542 votantes, 98% manifestaram-se contrários à adesão. Renato Rabelo, então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que o plebiscito era “um instrumento de divulgação para a sociedade do significado da Alca para o nosso país e suas influências na vida dos trabalhadores”. Segundo ele, a Alca representava a continuidade do Consenso de Washington, projeto do governo norte-americano para ser aplicado na década de 1990 com o objetivo de alinhar os seus interesses na América Latina. “Esse tipo de zona de livre comércio, com os Estados Unidos no centro, é o mesmo que colocar numa piscina um tubarão e várias piabas: é evidente que elas serão extintas pelo tubarão”, exemplificou.

Ataques especulativos

O Proer e a Alca eram a essência do projeto neoliberal, que cumpria um novo ciclo na América Latina, depois da condução anglo-saxã de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos) e Margaret Thatcher (primeira-ministra da Inglaterra), com os presidentes Augusto Pinochet (Chile), Carlos Menen (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Carlos Andrés Perez (Venezuela) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Alguns se tornaram foragidos da lei, abrigados pelos Estados Unidos. O segundo ciclo se iniciava novamente sob a condução anglo-saxã, desta vez com Bill Clinton (Estados Unidos) e Tony Blair (Inglaterra), cujo símbolo foi o governo do presidente Fernando de la Rua, na Argentina, que fugiu, de helicóptero, de uma revolva popular nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, deixando para trás um saldo de mais de 30 mortos, cinco deles na Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires.

Assim começou a “era FHC”, soprada pela massa do que se dizia ser o “capital da nova era”, que gira pelos países em velocidades jamais vistas e emprestou ao capitalismo nova feição. Na definição do famoso economista norte-americano John Kenneth Galbraith, essa “nova era” tornou “o mundo mais vulnerável a manifestações de insanidade”, governado por uma massa de dinheiro opulenta, que passou a ser o personagem-chave das finanças internacionais, onipresente e onisciente, para a qual barreiras e fronteiras nacionais são meras abstrações, vagando em escala planetária diariamente ao comando de teclas de computador acionadas por operadores ávidos por mais dinheiro, assombrando principalmente economias dependentes.

São fundos formados por “investidores” sem face, unidos por instituições financeiras esparramadas pelo mundo afora, os chamados “mercados”, com seus “ataques especulativos” que atingiram o Brasil de frente pelo furacão que começou a girar na Ásia em 1997. Quando a farra especulativa começou a baixar a poeira, porque não encontrava mais contrapartida na economia real (pois, afinal, quem produz valor e excedente para alimentar a especulação é a economia real), surgiu a ameaça de insolvência, isto é, os créditos apodreceram. O projeto neoliberal estava espalhando a tendência de estagnação econômica dos países centrais – sobretudo dos Estados Unidos – e gerando crises financeiras assombrosas.

Donos estrangeiros

Ao denunciar, no primeiro semestre de 1997, a “exuberância irracional” das bolsas de seu país, o presidente do Fed (o banco central norte-americano), Alan Greenpan, estava constatando o esgotamento desse processo de especulação. A bolha estourou e seus ecos se espalharam pelo mundo quando a Enron puxou a fila de empresas que protagonizaram verdadeiros escândalos financeiros nos Estados Unidos, mostrando o tamanho dos “mercados” especulativos.

Essa massa amorfa de “investimentos” começou a aportar no Brasil, ainda no governo Collor, no leito do “choque de concorrência” proporcionado pela diminuição da proteção cambial e tarifária. Símbolos do capitalismo brasileiro – como Metal Leve, Cofap, Arisco e Bamerindus – entregarem as chaves para ícones do capitalismo mundial, como Bosch-Siemens, Gessy Lever e Hongkong & Shangai Banking Corporation (HSBC). Dados divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo dia 3 de outubro de 1999 revelam que a desnacionalização da indústria e do setor de serviços no Brasil havia produzido, do início do Plano Real até então, um aumento do envio de dinheiro pelas multinacionais para fora de US$ 2,5 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões.

Em 1994, segundo o jornal, apenas 0,38% dos US$ 2,1 bilhões em investimentos externos foram para a compra de empresas já constituídas. Em 1998, o percentual já era de 74,1%. Ou seja: dos US$ 28,7 bilhões que entraram, US$ 21,3 bilhões foram usados para que empresas brasileiras passassem a ter donos estrangeiros. A desnacionalização da economia brasileira implicou outra armadilha trágica: o Brasil entrou ainda mais no beco da dívida externa. Com a economia nas mãos das multinacionais, criou-se uma sangria permanente de despesas com dólares por dois caminhos principais: a compra de peças e componentes para produtos apenas montados aqui, de acordo com as ordens das suas matrizes, e um brutal aumento das remessas de lucros e dividendos.

O método de tratamento às críticas a essa insensatez era truculento. Gustavo Franco, o arrogante presidente do Banco Central, certa vez chamou Delfim Netto de “porta-voz do Parque Jurássico” para responder a críticas sobre a apreciação cambial. Em outra, ele comentou a resistência dos portuários à privatização dos portos chamando os trabalhadores de “flanelinhas de navio”. Em resposta a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que alertou para o peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo, ele disse que ali estava um “covil de retrógrados”.

Essa política empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em vários centros industriais do país, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas. Antigas indústrias transformaram-se em galpões abandonados – ou ocupados para outros fins teoricamente não econômicos – e levas de desempregados passaram a perambular pelas ruas, sem perspectivas. Eram as vítimas da lógica neoliberal segundo a qual para que alguns possam emergir social e economicamente muitos precisam submergir na pobreza e na miséria.

Privatização da Petrobras

Nesse processo, o programa de privatizações selvagens, que vinha do governo Collor, se acelerou. O símbolo dessa política foi a ideia de privatizar a Petrobrás, que surgiu oficialmente em 1996 quando um tucano de alta plumagem – o então presidente do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luis Carlos Mendonça de Barros – desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério – ele foi um dos baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. Em seguida, os petroleiros lançaram a palavra de ordem Defender a Petrobrás é defender o Brasil, uma síntese que remontava ao despertar do país para a importância do petróleo nacional muito tempo antes.

A Petrobras foi avariada, mas os neoliberais não reuniram forças para privatizá-la. Já em 1995, acabaram com o monopólio estatal do petróleo, decisão proclamada por FHC como “página virada” na história do Brasil. Mas houve força para privatizar empresas estratégicas, como a Vale do Rio Doce, processo que enfrentou forte resistência. Em maio de 1997, em pleno auge da “era FHC”, a revista Veja divulgou uma pesquisa mostrando que 50% dos entrevistados discordavam daquela privatização. Outros 18% não tinham opinião e apenas 30% apoiavam. Ou seja: sete de cada dez brasileiros não estavam de acordo com uma ação que foi considerada outro símbolo das privatizações selvagens.

Limite da irresponsabilidade

Os escândalos de corrupção também marcaram aquele período. O mais conhecido se deu com Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e apontado como um dos arrecadadores de recursos para campanhas eleitorais do PSDB, flagrado dizendo que atuava no “limite da irresponsabilidade” no processo de privatização do sistema Telebrás. Um grampo do BNDES trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos daquela privatização.

Soube-se que “o maior negócio da República”, tramado por Luiz Carlos Mendonça de Barros – então do Ministério das Comunicações –, André Lara Resende – então da presidência do BNDES – e o banqueiro Daniel Dantas, ocorreu numa atmosfera de alto risco (“no limite da irresponsabilidade”), em meio a um linguajar raso (“se der m…, estamos juntos”) e com pitadas de truculência (“temos de fazer os italianos na marra”). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre as “vantagens” da negociata, assentiu dizendo: “Não tenha dúvida, não tenha dúvida.”

Dizia-se que seria necessário privatizar para abater a dívida pública e liberar bilhões de dólares das despesas com juros para financiar investimentos sociais. FHC afirmou que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal-nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse. Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continuou estratosférica.

Os “guardiões da moeda” garantiam que o fluxo mirabolante de capital especulativo não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico competitivo. Nada de intervencionismos do Estado, nada de incentivos à microeconomia doméstica.

O efeito cachaça

Em outubro de 1998, FHC, se aproveitando da crise que começou na Ásia, disse: “A opção é simples: fazer logo o ajuste (as reformas), enfrentando os sacrifícios necessários, e voltar a crescer o mais cedo possível. (…) O Estado se tornou incapaz de cumprir o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro.” O Brasil estava no centro do que o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, chamou de “a pior crise financeira do mundo nos últimos 50 anos”. A saída foi um acordo falimentar com o Fundo Monetário Internacional para obter empréstimo de US$ 30 bilhões, condicionado à resolução dos “problemas” a que se referia FHC, um brutal “ajuste fiscal”. Na época do acordo, o Brasil estava em destaque nos principais jornais do mundo. Na definição do The New York Times, o país constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times. O medo de que o Brasil pudesse arrastar os países centrais para uma recessão chegou a ser tema de um seminário realizado em Washington pelo Center for Strategic and International Studies, entidade privada que congregava personalidades como os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. O nome do evento foi sugestivo: Os próximos 90 dias – o efeito cachaça. Numa reunião em setembro de 1998 com os ministros da Fazenda da América Latina e dos Estados Unidos, os dirigentes do FMI deram o recado claramente ao recomendar que o rumo traçado pelo neoliberalismo deveria ser seguido rigorosamente.

Código de Bancarrota

Na Folha de S. Paulo, de 13 de junho de 1999, o economista Celso Furtado escreveu que, com essa política, “o país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida, que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos”. “É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, escreveu.

Furtado explicou que os recursos postos à disposição do Brasil aprofundaram o endividamento do país. “Diante dessa perspectiva, teríamos de reconhecer que o recurso à moratória seria um mal menor em comparação com a abdicação da responsabilidade de o país autogovernar-se”, disse. Na opinião de Furtado, o essencial seria que o entendimento com os credores fosse adequadamente programado nos planos externo e interno. “Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Caberia inspirar-se no capítulo 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos, conforme recomenda a Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de reduzir a volatilidade dos fluxos de capital a curto prazo”, escreveu.

Lembrando Lênin, ele perguntou: o que fazer? “A estratégia a ser seguida comporta uma ação em três frentes. A primeira delas visa reverter o processo de concentração patrimonial e de renda que está na raiz das distorções sociais que caracterizam o Brasil. Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão-de-obra sub-ocupada. Esses fatores dificilmente se encontram em outras partes do planeta. (…) A segunda frente a ser abordada é a do atraso nos investimentos no fator humano, atraso que se traduz em extremas disparidades entre salários de especialistas e do operário comum. (…) A terceira frente de ação refere-se à forma de inserção no processo de globalização. Esse processo traduz a prevalência das empresas transnacionais na alocação de recursos raros, decorrência da importância crescente do fator tecnológico na orientação dos investimentos”, respondeu.

Brasil se tornou adulto

O projeto da Alca foi enterrado com a ascensão da esquerda na América Latina, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998. O acordo com o FMI foi encerrado no governo Lula. “Não fizemos nenhum barulho, rompemos o acordo porque não precisávamos mais do FMI”, afirmou o presidente. Ele disse que o país agora pode dizer que “tem governo” e é “dono de seu próprio nariz”.

O Brasil já havia passado por essa experiência quando o governo do presidente Juscelino Kubitschek (JK) tentou executar o “programa de estabilização” elaborado pelo seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, e pelo diretor do Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), Roberto Campos (este último um célebre economista de direita que marcaria época no regime militar). Havia uma contradição evidente: como conciliar altos investimentos com arrocho fiscal? Argentina e Chile experimentavam o tratamento de choque do FMI e os resultados faziam com que o plano de Lopes e Campos enfrentasse forte resistência no Brasil. Mas a pressão externa era grande e JK acabou cedendo, o que resultou no inevitável conflito entre seu “Programa de metas” e a “estabilização”. Lopes e Campos se isolaram no governo.

A controvérsia acabou com as ordens do presidente da República para que as negociações com o FMI fossem rompidas. Lopes e Campos pediam a JK paciência porque a economia estava prestes a gozar dos frutos da “estabilização”, argumento que seria repetido pelos neoliberais da “era FHC”. Mas o presidente não quis saber de conversa. Em discurso no Clube Militar, palco de intenso debate sobre as duas orientações que existiam no governo, JK disse: “O Brasil já se tornou adulto. Não somos mais os parentes pobres, relegados à cozinha e proibidos de entrar na sala de visitas. Só pedimos a colaboração de outras nações. Através de maiores sacrifícios poderemos obter a independência política e, principalmente, a econômica, sem ajuda de outros.”