– As big techs e as gerações que vêm com tudo

Por Osvaldo Bertolino

No interessante livro Big tech – a ascensão dos dados e a morte da política, que reúne os principais artigos de Evgeny Morozov, um dos mais influentes especialistas em tecnologia e internet do mundo, consta um amplo painel sobre a aliança entre o neoliberalismo e o Vale do Silício. Ele problematiza o que define como lógica do chamado “solucionismo” tecnológico, que enxerga a tecnologia como panaceia para problemas que instituições falharam em resolver. Na verdade, é uma possibilidade que pode servir de ferramenta contrária à democracia. O alerta suscita reflexões sobre a inter-relação da economia com a política – a clássica economia política –, sem a qual uma e outra se artificializam.

O poder do neoliberalismo, decorrente da elevação em grau máximo da influência do capital financeiro sobre o capital industrial, se traduz numa luta política que implica atuar levando em conta a dimensão dessa aliança. Atuar de forma isolada em determinanda esfera sem atentar para essa inter-relação significa limitar a abrangência do combate. O que se nota nessa conjuntura é uma luta de resistência, que exige uma organização popular interagindo com a realidade de cada local, produzindo conteúdo e acúmulo teórico. Em síntese: criar canais para a atuação política apontada para a superação das contradições da contemporaneidade.

A principal delas é o desenvolvimento nacional, um projeto de múltiplas interfaces. Lutar pela democratização da comunicação – ou pela guerra cultural e o debate ideológico – é uma exigência que passa por esse caminho. A combinação simultânea e proporcional da economia com a política possibilita categorias que armam ideologicamente a luta de classes, com suas complexidades, um conceito que abrange a conjuntura internacional e seus tentáculos, determinante para o entendimento do que está em questão em âmbito nacional.

Macacada reunida

O ponto mais decisivo nesse universo é o binômio emprego e renda, que espalha controvérsias, gerando ascensões de forças políticas que negam a civilização, potencializadas por estagnações econômicas e carregadas de obscurantismos. Chamadas de extrema-direita, são, a rigor, manifestações de antagonismos que se agudizam com a evolução dos dilemas do capital. Seu principal efeito pode ser visto às claras entre a juventude que chega ao mundo do trabalho enfrentando desafios inéditos.

São gerações que nasceram sob a interatividade e o virtualismo, desligadas da lógica dos seres analógicos pré-anos 1990. Em suma: estão familiarizadas com um mundo pequeno, conectado, desenhado em interfaces amigáveis, que lhes chega mediado pela tela de alta resolução. Mas, quando falam de seus problemas, o fazem de modo a deixar evidente a questão principal: o desemprego. Ouça-se Jota Quest, um porta-voz da primeira geração dessa juventude no Brasil: “Macacada reunida/Galera pelejando e dançando/Procurando uma saída (…) Que tá faltando emprego no planeta dos macacos.”

Mesmo quando ocupados, podemos verificar que são destinados aos jovens as posições de baixa qualificação e remuneração. Uma parcela significativa deles que precisa trabalhar sob essas condições compromete sua escolarização sem completar sequer os ciclos educacionais compatíveis com a sua idade.

Gerações digitais

É a face do chamado McJob, nome genérico que nos Estados Unidos e na Europa se dá a empregos de baixa especialização e de baixa remuneração no setor de serviços, que se espalhou no Brasil. A prova disso está disponível em qualquer loja do McDonald’s – e congêneres -, onde se vê punhados de adolescentes brasileiros frequentemente vistos como um grupo mal preparado e de pouco futuro. Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs simbolizam uma geração que enfrentou dificuldades para trocar seu diploma universitário por um bom emprego. Eles chegaram ao mercado de trabalho com um currículo cinco estrelas e tiveram que se virar com um emprego destinado a quem tem pouca formação escolar.

Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs geralmente complementam os rendimentos de quem está cursando o colégio ou mesmo a universidade. No Brasil, não. O McDonald’s, por exemplo, tem mais de 30 mil funcionários no país – 85% trabalham como atendentes nos cerca de 500 restaurantes brasileiros da rede. Cada loja tem em média 70 funcionários, e quase todos têm entre 16 e 21 anos, ganhando salários irrisórios. Por esses dados, é possível visualizar o maior drama da juventude brasileira – a entrada no mercado de trabalho. Quem são e o que pensam esses jovens?

Eles compõem as primeiras gerações digitais da história, que emergem no Brasil e em vários outros países com uma força avassaladora. Trata-se de uma moçada que nasceu com hábitos específicos, com jeitos e objetivos muito próprios, e que vai, em breve, tomar as rédeas do país e imprimir a ele suas ideias e seus estilos. Essas gerações vão, muito provavelmente, chacoalhar regras e certezas estabelecidas. Elas impõe um desafio ao mesmo tempo simples e crucial: incorporar essa moçada nas lutas progressistas.

O desafio está na aprendizagem da linguagem e dos seus anseios. E está também na desaprendizagem das práticas que caducaram ou estão caducando. Essas geraçôes romperam com a tradição de sua espécie, que é analógica desde seus primórdios. Raciocinam e se movimentam vida afora a partir de novas e inéditas coordenadas. Essa turma já nasceu sendo filmada, virando registro eletrônico, e cresce na frente de um aparelho de alta tecnologia. São jovens que se divertem com vários programas e tornam-se exímios com um teclado antes mesmo de entrar na escola.

Desânimo e violência

Os dados têm um efeito devastador sobre os jovens quando saem da frieza do papel. Uma pesquisa do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) mostrou que o maior temor dos estudantes de São Paulo é terminar seus cursos e não conseguir emprego. A pesquisa entrevistou 500 jovens de 16 a 25 anos. Desse total, 42% disseram temer não conseguir uma colocação no mercado de trabalho. Um índice bem mais alto do que o de outras preocupações, como obter independência financeira (15%) ou melhorar a qualidade de vida (14%). Segundo as estimativas mais otimistas, para melhorar essa situação o Brasil precisaria retomar um crescimento econômico de 6% ao ano.

Um dos efeitos mais nocivos do desemprego é a combinação de desânimo com violência. Muitas vezes, os jovens fazem a sua parte ao estudar, mas a falta de perspectiva os leva à depressão, à inatividade e ao desespero da droga e do crime. Os governos Lula iniciais tentaram amenizar o drama. Em 2006, o Ministério do Trabalho e Emprego assinou 13 convênios com entidades do movimento social para a execução em 2007 dos Consórcios Sociais da Juventude.

No atual governo, o Ministério do Trabalho e Emprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) lançaram, o Pacto Nacional pela Inclusão Produtiva das Juventudes. A iniciativa pretende unir esforços para impulsionar a empregabilidade e formação profissional para jovens em situação de vulnerabilidade no país até 2030 e conta, também, com o apoio do Pacto Global das Nações Unidas, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e da Secretaria Nacional de Juventude.

Papel do jovem

Segundo o Censo Demográfico 2022, o Brasil conta com 45,3 milhões de adolescentes e jovens de 15 a 29 anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostram que um em cada cinco brasileiros nessa faixa etária não estudava e nem estava ocupado em 2022, um universo de 10,9 milhões pessoas, o equivalente a 22,3% da população nacional. Deste, 43,3% eram mulheres pretas ou pardas, 24,3% homens pretos ou pardos, 20,1% mulheres brancas e 11,4% homens brancos. Havia 4,7 milhões deles que não procuravam trabalho e nem gostariam de trabalhar, entre eles dois milhões de mulheres cuidando de parentes e dos afazeres domésticos, 61,2% pobres, 47,8% pretas ou pardas.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que o desemprego entre jovens no Brasil é, na média, o dobro da população geral historicamente. De acordo o relatório sobre empregabilidade de jovens da OIT, chamado Global Employment Trends for Youth, publicado dia 11 de agosto de 2022, o número global de jovens desempregados pode chegar a 73 milhões. A projeção para 2022 era de que 27,4% das mulheres jovens em todo o mundo estariam empregadas, em comparação com 40,3% dos homens jovens. O fenômeno é mais notado nos países de renda média baixa.

Não é somente a falta de crescimento econômico que mingua os empregos. A tendência de enxugamento de postos de trabalho – acentuada pela onda de fusões e aquisições das grandes corporações – e a redução da oferta de cargos públicos, tanto pelos “ajustes” do projeto neoliberal a que os governos foram submetidos com a brutal Lei da Responsabilidade Fiscal quanto pelas privatizações – têm impacto direto sobre o emprego. É verdade que há muito mais coisas que o governo pode fazer. E os sindicatos também. E a sociedade também. Mas nada substitui o papel do próprio jovem nesse processo.

– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.