Um artigo do jornalista, professor titular da USP e consultor político Gaudêncio Torquato no jornal O Estado de S. Paulo, edição do dia 11 de novembro, sobriamente intitulado “A esperança lá e cá”, oferece uma boa oportunidade para se ver como a opinião p
Virou moda para a pregação elitista culpar o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva por tudo. No noticiário político diário aparecem os que achincalham as instituições democráticas agora que elas não estão mãos elitistas, os revoltados com o socialismo, com o MST, com a MPB, bem como os insatisfeitos em geral, seja com o campeonato brasileiro de futebol ou com o atraso do trem, a acne juvenil, a aftosa e o bicho-do-pé. Ou seja: tudo é culpa do governo. Foi assim que o professor jogou nas costas das “platéias assumidamente lulo-petistas” a culpa pela comparação entre Lula e o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama.
Segundo o professor, “se a eleição do primeiro presidente negro e o 44º da história dos Estados Unidos se reveste de simbolismo, por representar uma mudança profunda no paradigma da política norte-americana, a conquista de dois mandatos presidenciais pelo ex-metalúrgico brasileiro também se impregna de extraordinária força simbólica”. Mas, segundo decreta Gaudêncio Torquato, a semelhança termina aí. “Se os dois viveram uma infância humilde, Obama pôde estudar em boas escolas, formando-se em Direito, em 1991, em Harvard, centro educacional de excelência, freqüentado pela elite norte-americana e internacional. Lula minimiza o fato de não ter estudado. Obama não é o Lula americano”, ensina o professor.
Palavras ao vento
Depois de uma adjetivada aula sobre “a nova esquerda internacionalista, sob a qual se abrigam as bandeiras do aborto, do desarmamento, do diálogo com inimigos, dos direitos de minorias, etc.,” o professor decreta que “o discurso mudancista do lulismo (…) deu com os burros n’água”. Em seguida, Gaudêncio Torquato mostra, sem meias palavras, o que de fato ele representa. “As estacas macroeconômicas fincadas no ciclo FHC foram bem conservadas e até aperfeiçoadas, trazendo conforto ao país, que conseguiu zerar sua dívida externa. Trata-se de mérito inegável do governo Lula, não significando, porém, alentados avanços”, revela o professor.
Gaudêncio Torquato volta a soltar palavras ao vento ao mencionar que “o patrimonialismo continua a dar as cartas, sob o império do presidencialismo de coalizão, que torna o Parlamento refém do Executivo” (como?). E ataca “os jovens que, por ocasião das diretas-já e do impeachment de Collor, acorreram às ruas” e agora “delas fugiram”. E chega ao mérito da questão — como dizem os advogados. “As multidões aclamam hoje o presidente não por ações inovadoras, mas porque festejam a entrega de bolsas, que expressam uma visão ortodoxa (por não apontar uma porta de saída) de política social”, ensina.
Imprescritibilidade da tortura
Em seguida, Gaudêncio Torquato aponta a sua pena para “o campo das relações de trabalho”, segundo ele “dominado por centrais de trabalhadores motivadas a manter as correntes de um sindicalismo à sombra do Estado”. E chega à “seara dos tributos”, que “é um deus-nos-acuda”. O linguajar não é dos melhores, mas, com coragem, dá para entender o que ele quer dizer: a elite foge do fisco como o Diabo da água benta. “A bocarra do leão se alarga sob os olhos concupiscentes dos burocratas. Estados e municípios se engalfinham para tirar lasquinhas dos impostos, cujas partes gordas vão para os cofres da União. E a esfera política continua a fazer círculos ao redor do Palácio do Planalto, empunhando a mão franciscana”, afirma.
Outro ponto em que a aula do professor resvala para a mediocridade, depois de decretar mais uma vez que “o simbolismo de suas vitórias (de Lula) se esgarça a olhos vistos” (onde?), é a discussão sobre a imprescritibilidade da tortura. “A era Lula nem sequer conseguiu fechar o ciclo de 64”, avisa o professor já no início do assunto. “A guerra entre torturados e torturadores, pela voz autorizada do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, ganha novos atores: os grupos terroristas”, diz ele. A peroração de Gaudêncio Torquato é um primor. “Barack Hussein Obama simboliza o aceno a uma nova ordem. Que Lula prometeu e, até agora, não cumpriu. Que a esperança, lá, consiga efetivamente vencer o medo”, finaliza o professor com sua pena empostada.
Centralismo autoritário
O que devemos extrair disso tudo? Primeiro, que o professor tem todo o direito de escrever o que quiser. Tem até mesmo o direito de prescrever o que quiser para todo o mundo. Quem sonharia em impedir que Gaudêncio Torquato assumisse o partido elitista? Tem até o direito de usar um vaivém entre o Brasil e os Estados Unidos mal costurado, que resulta em uma compreensão rarefeita sobre o que ele quer de fato ensinar com isso. Destaco apenas que o professor se expressa de uma maneira curiosa. Parece que ele é mais um porta-voz da mídia, destes que têm o hábito de falar pela “sociedade”, pelo “contribuinte” ou pelo “cidadão” — seja lá o que isso quer dizer.
Eles falam assim não porque praticam o “centralismo democrático” — seria bom se o praticassem —, e sim porque têm sempre uma versão extremamente opaca de centralismo autoritário. Mas deixa isso para lá — em outra hora comento o assunto. O problema é que é difícil aceitar esse tipo de diagnóstico num país em que até há pouco tempo o governo foi uma mediocridade neoliberal em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo. No rol da ruindade presidencial, é possível que nem um outro presidente tenha superado FHC. Obviamente, esse ponto de vista vê o governo pelo ângulo esquerdo, aquele pelo qual se enxerga o povão e os interesses maiores da nação. Quem olha pelo ângulo direito, onde está enquadrada a elite, a visão é outra.
Dois insumos básicos
Mas é sempre bom prestar atenção no que dizem estes porta-vozes da direita brasileira. Em primeiro lugar porque ninguém, até hoje, perdeu alguma coisa levando-os a sério. Em segundo lugar porque o que eles dizem coloca às claras, quando se vai ao centro das coisas, o único fato realmente essencial na disputa política contemporânea: Lula na Presidência da República representa uma grande ruptura com a nossa história e tradição política. Quando Leonel Brizola o comparou a Getúlio Vargas em uma reunião petista, em 1998, ele não estava totalmente errado — ao menos no simbolismo político.
Mudanças importantes na vida dos países carecem de dois insumos básicos. O primeiro: um desejo amadurecido na sociedade de que essas mudanças aconteçam; uma espécie de consenso coletivo em relação à necessidade de mudar. O segundo insumo: alguém que tome a frente e as realize. Um líder que tenha vontade e competência para sintetizar o desejo da maioria e concretizá-lo. É desse cruzamento que surgem as grandes reformas, os grandes avanços. O governo Lula se formou com a bandeira social, símbolo de esperança. Politicamente emparedadas pela extensão do apoio popular ao presidente, as oposições, como seria de prever, contra-atacam com o refrão de que ”só a economia se salva”. É uma pobreza de dar pena!