– A mãe de Lula e o tio da mídia

Por Osvaldo Bertolino

As recorrentes citações pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do exemplo da mãe, dona Lindu, como fez ele ao falar da pressão da direita para taxar os pobres e ampliar os ganhos dos ricos de todas as escalas, vão além do sentido didático. Tem o componente social. Dona Lindu era a ministra da Fazenda da casa, a administradora dos envelopes de pagamentos dos filhos. Agia com rigor, destinando os poucos recursos para cada necessidade da família. Dona Lindu, de acordo com Lula, é o seu exemplo para compreender como funciona as finanças do Estado. Elas têm mais complexidades, mas, na essência, é isso mesmo.

A mídia deu grande destaque a essa máxima do presidente em entrevista após a cúpula do G7 na Itália, quando ele falou da pressão para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adote “corte de gastos”. Lula disse que está aberto a analisar propostas, mas não fará “ajustes fiscais” à custa dos pobres. E lembrou que a taxa de juros acima de 10% “num país com inflação de 4%” não faz sentido. “Fazem uma festa com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) em São Paulo. Novamente, os que foram na festa devem estar ganhando dinheiro com a taxa de juros”, agulhou.

Epicentro político 

A “festa” foi uma homenagem ao presidente do Banco Central na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que posteriormente participou de um jantar oferecido pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas. Um ato político que vai além de reunir os que ganham dinheiro com a taxa de juros. Foi uma tentativa de sinalizar aos interessados no “ajuste fiscal” que aquele grupo da direita poderia abrir caminho para a organização política da oposição ao governo Lula. Sobretudo após o espocar de fogos da mídia para saudar o recente “ajuste fiscal” de Tarcísio.

A manobra não surtiu efeito e chegou a ser criticada pela própria mídia, que não gostou da exposição política de Roberto Campos Neto. A questão de fundo é a ligação de Tarcísio com Bolsonaro, um estorvo para eventuais pretensões à sucessão de Lula. Além da base social e política bolsonarista do governador, pesam as limitações organizativas em âmbito nacional, pressuposto básico para um projeto da direita capaz de se apresentar como viável politicamente para disputar a sucessão presidencial. Tarcísio teria de formar outro epicentro político, completamente divorciado de Bolsonaro, personagem desgastado pelos escândalos e desastres de seu governo.

Ataques sistemáticos

A direita mira em outra direção, a ideia de que governo Lula, que deveria ter trilhado o caminho do “ajuste fiscal” assim que saiu o resultado das urnas, já se mostrou inviável por ser um gastador inconsequente. E por não aceitar a imposição de que o presidente foi eleito não pelas ideias de esquerda, mas pelo projeto da direita contido na “frente ampla”. Trata-se de uma empulhação, presente diuturnamente na mídia, falsificação grosseira do movimento que se formou em 2022 para derrotar Bolsonaro. Era óbvio que Lula não adotaria a agenda da direita, embora soubesse das limitações conjunturais, sobretudo pela composição do Congresso Nacional.

Com o tempo, a diferença se transformou em ataques sistemáticos a Lula. A mídia adotou a linha de fazer oposição frontal, muitas vezes com apologia explícita ao golpismo. O “ajuste fiscal” passou a ser uma imposição implacável, espécie de tudo ou nada. Acionaram o sistema de projeção do mercado financeiro, chamado de Relatório Focus – segundo o Banco Central, as “expectativas” de mercado coletadas regularmente, na verdade manipulações de projeções de inflação e juros por agenciadores da especulação financeira –, para apresentar um futuro sombrio, o descontrole da dívida pública pela elevação da taxa de juros para “acalmar os investidores”. Surgiu até o fantasma da inflação alta pela demanda crescente com empregos, rendas, reajuste do salário-mínimo e outros investimentos públicos.

Tríade autocrática

Por trás de tudo está a política monetária, o controle da economia pela gestão do Banco Central dito “independente”, que administra uma “meta fiscal” draconiana, o chamado superávit primário, enormes recursos orçamentários abocanhados pelo mercado financeiro por decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre a taxa de juros. É um jogo bruto contra o povo e o país, sem que o governo ou qualquer outra instância de poder possam agir. A tríade Banco Central “independente”, Relatório Focus e Copom forma um poder paralelo, uma autocracia poderosa e inescrupulosa.

A mídia é a grande porta-voz desse autoritarismo. Em nome do “déficit” orçamentário, apresentado como o Armagedon, anunciam de forma peremptória que é preciso “cortar gastos”, mirando questões como o reajuste da aposentadoria, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência, além das verbas para a Saúde e a Educação. Tudo isso martelado em regime de monopólio midiático, sem espaço para o debate e sem a visão do conjunto da economia e da administração da política econômica.

Árvore mágica de dinheiro

O livro O mito do déficit, de Stephanie Kelton, professora de Economia e Políticas Públicas, explica bem a falácia do “ajuste fiscal”. Ela parte de uma citação da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 1983, segundo a qual o Estado “não tem fonte de dinheiro que não o dinheiro que as pessoas ganham”. “Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo se tomar emprestado as suas economias ou se tributá-lo ainda mais”, completou. Segundo Thatcher, “não existe dinheiro público”, mas “dinheiro do contribuinte”.

O mesmo discurso seria repetido mais adiante pela também primeira-ministra Theresa May. O governo não possui uma “árvore mágica de dinheiro”, disse ela. Para bancar investimentos ou políticas públicas o governo precisa pegar mais “do nosso dinheiro”. É a ideia de que se o governo gasta mais do que arrecada em impostos precisa emprestar recursos do “mercado”. Na verdade, taxar e fazer empréstimos vêm primeiro, explica a autora. É o modo convencional de pensar pelo que ela chama de (TE)G: Tributos e Empréstimos precedem os Gastos.

O resumo, de acordo com o que Stephanie Kelton denomina Teoria Monetária Moderna (TMM), é que existem o emissor de moedas (o Estado) e o usuário. Num sistema de controle autocrático da política monetária, o principal usuário é o mercado financeiro, destinatário de grandes somas de dinheiro – o mercado de títulos públicos – que empresta ao governo e cobra o juro determinado pelo Banco Central “independente”. Os demais destinatários, os serviços e investimentos públicos, ficam na dependência dos interesses do mercado financeiro para definir como gastar. Cumpre-se, assim, o ciclo da (TE)G.

Falsa imagem do Tio Sam

Stephanie Kelton relata projeções de aumento da dívida pública dos Estados Unidos de dezesseis trilhões de dólares em 2019 para vinte e oito trilhões em 2029. Enquanto isso, a repetição sistemática de que o governo não tem dinheiro se intensifica. Ela relata que a citação se espalhou pelo país, com a imagem do Tio Sam de bolsos das calças para fora, do avesso. “Muitas pessoas passaram a acreditar que nosso governo está totalmente falido, que seu orçamento não dá conta dos assuntos mais importantes da nossa atualidade.”

Essa falsa imagem do Tio Sam sem dinheiro é a ideia que a mídia tenta cravar como verdade absoluta no Brasil. O controle da economia por essa política monetária autoritária confronta o projeto de governo eleito em 2022 e vai se transformando em dilema. Há uma evidente tentativa de cooptar Haddad, amplificando declarações da ministra do Planejamento, Simone Tebet, numa clara manobra para isolar Lula e criar crises políticas para desestabilizar o governo, inviabilizando a aplicação do seu programa.

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– O dilema juro-inflação-desenvolvimento

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 12/04/2008

O Brasil passa por mais uma discussão sobre as causas que levam o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) a cogitar mais uma alta da taxa de juros básica, a Selic. E reaviva a velha polêmica sobre o dilema inflação-desenvolvimento.

Mas data houve em que se acabaram
Os tempos duros e sofridos
Pois um dia aqui chegaram
Os capitais dos países amigos
País amigo, desenvolvido
País amigo, país amigo
Amigo do subdesenvolvido
País amigo, país amigo
E os nossos amigos americanos
Com muita fé, com muita fé
Nos deram dinheiro e nós plantamos
Só café, só café
É muita terra em que se plantando tudo dá
Mas eles resolveram que nós deveríamos plantar
Só café, só café.

Trecho da música “Canção do Subdesenvolvido”, de 1962, composta por Carlos Lyra e Francisco de Assis.

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À sua maneira, o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, tocou num velho dilema da economia brasileira — a possível contradição entre inflação e desenvolvimento. O assunto foi a atual elevação mundial do preço dos alimentos, segundo ele uma ”inflação boa” porque ”convoca” os países a produzir mais e atender à demanda por alimentos no mundo. Lula disse também que a alta dos alimentos não precisa ser necessariamente combatida com a alta dos juros.

A fala do presidente foi oportuna. Muita gente no Brasil ainda vê o consumo como um gesto pouco nobre. Um marciano de boa índole, que tivesse chegado à Terra pelo Brasil e estivesse estudando a humanidade munido da língua portuguesa, certamente anotaria na agenda que ”consumir” é uma das coisas ruins que se fazem por aqui. O verbo ”consumir”, segundo o Aurélio, significa ”1. Gastar ou corroer até a destruição; devorar, destruir, extinguir (…) 2. Gastar, aniquilar, anular (…) 3. Enfraquecer, abater (…) 4. Desgostar, afligir, mortificar (…) 5. Fazer esquecer; apagar (…) 6. Gastar; esgotar (…)”.

Políticas sociais tímidas e insuficientes

Os sentidos são negativos; as conotações, pejorativas. Não há uma única referência à idéia de comprar ou adquirir, de consumir mais e melhor. Muito menos uma associação com o ato de satisfazer uma necessidade ou saciar um desejo. Claro que para um país como o Brasil o ganho mais visível e imediato que a égide do consumo tem a oferecer é mesmo a elevação do nível de conforto material. Consumir mais e melhor significa também fruir arte, absorver informação, ter acesso ao patrimônio cultural da humanidade. Ou seja: obter satisfações que transcendem à mera necessidade imedita.

Por que há tantas reservas em relação ao consumo de massas no Brasil? É que o consumo popular funciona como o estopim econômico de transformações sociais. Para o povo, ele é bem-vindo também por isso. As travas brasileiras em relação ao consumo estão no fato de que ele sempre foi privilégio de poucos. Outra vez a estrutura social fendida em dois extremos, arquitetada no passado, azucrina nosso presente e atravanca nosso futuro.

A arquitetura social brasileira é caracterizada por políticas públicas tímidas e insuficientes. A força da ideologia liberal à brasileira, com traços feudais e escravocratas, é a causa dessa timidez — ou insensibilidade social. Uma das alegações dos liberais era a de que a inflação em alta impedia uma ação social mais vigorosa. Como distribuir os frutos de um desenvolvimento não realizado? Primeiro era preciso fazer o bolo crescer para só depois distribuí-lo.

Guinada ”ortodoxa” na condução da economia

No início dos anos 60, essa fantasia ganhou conotação ainda mais autoritária. Os economistas que assumiram o controle depois do golpe militar de 1964 chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio” — ou produto de fantasia; devaneio, utopia.

A política econômica da ”era militar” chegou à crise dos anos 80, que levou à guinada ”ortodoxa” da linha de condução da economia quando o país ingressou na “era neoliberal”. Foi pelo caminho da prioridade à política de “estabilização monetária” em detrimento da postura desenvolvimentista, iniciado no governo do presidente Fernando Collor de Mello, que o Brasil chegou ao Plano Real e ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Naquela campanha, FHC brandiu a ”estabilidade” como se fosse a sua grande contribuição à humanidade.

Uma inflação de 1,75% em setembro de 1994 e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante.

Divisa da campanha do projeto neoliberal

Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC. Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma ”reforma” de cunho liberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas.

Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo. Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos — como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as ”conquistas” da ”estabilidade” para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego.

Era conversa sobre corda em casa de enforcado, como no provérbio. Mas a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as ”conquistas” da ”estabilidade” e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.

Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.

Críticas a regulamentações aprovados pelo Senado

O projeto neoliberal reavaliou o rumo da campanha, enfatizou os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC — as questões sociais — e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC. Quando ele se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de mudança de rumo tacitamente prometida.

Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu em 2002 e se reelegeu em 2006 — empunhando as bandeiras das questões sociais. O país, no entanto, continuou praticando a mesma política monetária — basicamente centrada na autonomia do Banco Central (BC) para domar o comportamento da inflação pela taxa de juros, segundo metas definidas arbitrariamente. Apesar de poucas alterações, esta política persiste e tem reanimado o debate sobre os rumos da economia brasileira.

No dia 9 de abril, o Senado aprovou a regulamentação da emenda 29, que adiciona R$ 5,5 bilhões em gastos no setor de saúde já em 2008 e mais R$ 17,5 bilhões até 2011; a extensão a todos os aposentados e pensionistas do INSS dos benefícios da política de valorização do salário mínimo (reajustado pela variação do INPC mais o crescimento do PIB de dois anos antes); e a extinção do fator previdenciário — um dos feitos mais nefastos da “reforma” previdenciária realizada na gestão FHC. E por isso vem sofrendo mais uma saraivada de pontapés.

A sentença de um tucano: produzir um esfriamento na economia

Para os liberais, essas medidas representam um desvio do rumo traçado pela política de “estabilização”. E uma ameaça à “responsabilidade fiscal”. O fundo desta grita interesseira é o velho dilema inflação-desenvolvimento. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 11 de abril, o economista tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros, que foi um dos esteios da “era FHC”, disse que “pela primeira vez, em muitos meses, as expectativas de inflação superaram o centro da meta que orienta os passos do Banco Central”. E culpa o “superaquecimento da economia”.

Segundo ele, é consenso que um aumento dos juros nas próximas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC deve levar a taxa Selic para perto de 13% ao ano. Mendonça de Barros diz que “o consumo das famílias e os gastos do governo Lula estão se expandindo a taxas de mais de dois dígitos — em termos reais — e, com os gastos relativos aos investimentos privados, criam uma pressão muito grande sobre alguns mercados importantes”.

O economista tucano escreveu também que já havia alertado sobre o “nível de absorção interna de bens e serviços”, pelo qual as tensões chegariam a setores não defendidos pelas importações. Resultado, segundo ele: a inflação média começaria a se elevar. “Ao longo dos últimos meses, essa dinâmica aprofundou-se, também no mercado de trabalho e pelo crescimento do crédito ao consumo”, afirmou. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

A alternativa é plantar ”só café, só café”, como na música?

Seguir à risca a receita liberal seria repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, que partiu o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor para ilustrar a convicção e o sectarismo monetarista do que a teoria do bolo — seus defensores têm o ar de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era FHC” vimos isso com nitidez.

Dizia-se, com a habitual obviedade para encaixar um sofisma, que o bolo (a economia nacional) era um só e tinha de ser dividido em partes iguais. Não adiantava querer aumentar as partes enquanto o bolo fosse o mesmo. A análise monetária-culinária que faziam tinha como mandamento principal a contenção da inflação, sacrificando o desenvolvimento. E era ilustrada com um exemplo matemático — diziam que o bolo tem 100 unidades, logo deve ser dividido em partes que somam 100 ao final. Esta foi, por exemplo, a propaganda da “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que blindou o superávit primário. Um engodo, está claro.

A teoria era a de que quando são destinadas 80 unidades para consumo e 40 para investimentos, o resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na “era FHC” — o então presidente da República chegou a dizer que a “Marcha dos 100 mil”, que inundou Brasília com um mar de gente para protestar contra a sua política econômica, era “ a marcha dos sem rumo”. Qual seria a alternativa? Segundo eles não havia, a não ser plantar “só café, só café” — como na letra da música que citei acima. Ou seja: produzir superávit primário.

Uma ou duas causas da inflação e do desenvolvimento

Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento de um povo que habita uma região cheia de riquezas naturais. A política econômica de um país não pode ser determinada por simples conceitos monetários. Esta auto-suficiência dos neoliberais esclarece muitas coisas dos problemas sociais e econômicos do Brasil. E sucita novas indagações sobre a atualidade do dilema infação e desenvolvimento — as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda não lhe trouxe solução.

Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição da existência deste diagnóstico é o erro fundamental dos neoliberais — que tratam política econômica e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente do BC na ”era FHC”, Gustavo Franco, certa vez afirmou que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico mas emocional e religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nestes últimos anos do governo Lula.

Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira sob a orientação desta teoria monetária. Já é alguma coisa saber disso. E já se sabe não apenas que esta é a grande questão como também que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência dos neoliberais na ”era FHC”, quando todo o tempo foram afirmadas teses ditas únicas para a economia brasileira que chegaram a resultados melancólicos.

Soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta

Com o desmentido de promessas feitas em tom de profecias, cresceram as evidências de que o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores dessa política na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente, que empolgaram-se e sectarizaram-se na defesa de teses ”ortodoxas” — talvez por supor que estavam no exercício de um poder absoluto —, foram repudiados por todos os que não rezavam pela cartilha neoliberal. Eles incorreram na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e por isso cantavam para que o sol nascesse.

Desse modo, incorreram em um erro de análise econômica, decorrente de um erro muito maior de análise política — passaram a ser elogiados por todos que apoiaram a ”era FHC” e criticados pelos apoiadores do governo Lula. A saída de Palocci do governo arejou o ambiente na equipe econômica, mas a economia do país ainda é dependente do conservadorismo do Copom. Isso ocorre porque o projeto democrático e popular de sociedade ainda é algo que está para florescer no Brasil. E, na mesma medida, a construção de uma sociedade fundada na defesa dos interesses nacionais, disposta a erigir sistemas que sustentem a longo prazo o desenvolvimento econômico e a distribuição da riqueza produzida. Ou seja: desenvolvimento com valorização do trabalho.

PIB cresce 5,4%: isso é muito ou pouco?
Osvaldo Bertolino *

A economia brasileira passa por uma fase importante. O crescimento do PIB, no entanto, precisa traduzir-se em desenvolvimento — um conceito que obrigatoriamente deve abranger a valorização do trabalho. Uma melhor distribuição da renda nac

O crescimento de 5,4% da economia brasileira no ano passado, divulgado nesta quarta-feira (12) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fez o Produto Interno Brasileiro (PIB) — a soma de todos os bens e serviços produzidos pelo país — atingir R$ 2,6 trilhões. O resultado ficou acima do que havia previsto o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Na semana passada, durante evento no Rio de Janeiro, ele disse que número ficaria entre 5,2% e 5,3%.

Mais importante do que os números é a consequência desta arrancada. Mantega afirmou que a resistência da economia brasileira à crise internacional depende do comportamento dos países “emergentes”. ”Porque nós já sabemos que a economia americana está em desaceleração e poderá entrar em recessão. Até agora, nós não fomos atingidos por isso. E nós fazemos parte de um bloco de países emergentes que está indo muito bem”, disse ele.

O ministro também afirmou que enquanto a China for bem, a Índia for bem, a Rússia for bem e o Brasil for bem, os “emergentes” podem sustentar o crescimento da economia internacional. “E até substituir o papel dos países avançados. E é isso o que tem sido feito até agora”, enfatizou.

Histeria inaugurada nos anos 80

A rigor, Mantega repetiu um diagnóstico feito na terça-feira (11) pelo presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, em reunião realizada na Basiléia, na sede do Banco de Compensações Internacionais (BIS). Trichet disse que os países “emergentes” se transformaram na aposta dos xerifes da economia mundial para evitar que uma desaceleração do PIB dos Estados Unidos afete a economia global.

O presidente do Banco Central brasileiro, Henrique Meirelles, também comentou o assunto. Segundo ele, a China terá um ”papel-chave” para determinar até que ponto os demais “emergentes” serão ou não impactados pelas turbulências no mercado financeiro. Meirelles disse ainda que o Brasil ”está mostrando grande resistência e é um exemplo particularmente brilhante”. Mas ressalvou: se a China não resistir, não há dúvida de que o cenário será outro para o Brasil. ”Se o mundo todo desacelerar ao mesmo tempo, isso terá um certo efeito no Brasil”, afirmou.

Uma das características mais marcantes deste cenário é a passagem para uma nova fase da economia, distinta daquela histeria inaugurada nos anos 80 pelos governos neoliberais de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos). Ali começou a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. A justificativa para isso era a suposição arbitrária de que os defeitos dos governos seriam mais perversos à sociedade do que as falhas do mercado.

O bem-estar da população

A essa idéia somou-se uma outra: a de que os países menos desenvolvidos deveriam afrouxar os controles para a circulação de capitais em suas fronteiras. Essa tese, um tanto paranóica, serviu a ideologias que vêem o mundo numa fase final da história, na qual só resta o caminho da conformação do eterno conflito entre ricos e pobres, entre centro e periferia. De acordo com esse raciocínio, a causa da pobreza de muitos não seria mais os instrumentos que garantem a riqueza de poucos.

O prêmio Nobel de economia de 1995, Robert Lucas, chegou a proclamar: “Quando se começa a pensar em crescimento, é difícil pensar em qualquer outra coisa.” Ou seja: para ele, diante da importância do crescimento seria difícil dar ênfase a outras políticas econômicas. O efeito extraordinário do crescimento econômico, no entanto, não pode obscurecer questões importantes para medir o seu efetivo benefício para o conjunto da sociedade.

A constatação de que o impacto do crescimento econômico sobre o bem-estar da população é decisivo leva imediatamente à pergunta (particularmente importante para os países com muitas pessoas pobres, como é o caso do Brasil): como distribuir esta riqueza de forma eficiente? Entre os fatores determinantes para a melhor utilização dos recursos disponíveis estão o papel do Estado como um ente preparado para a prestação de serviços sociais, os investimentos em infra-estrutura e a elevação dos salários.

Conceito de valorização do trabalho

No fundo, esse é o debate que realmente interessa. Economias do tamanho da brasileira não costumam crescer a taxas acima de 5% ao ano. Mas o Brasil não só precisa dessa taxa como precisa que ela seja contínua — conceito que alguns chamam de “crescimento sustentável”. Para reduzir a pobreza, elevando a renda per capita, estudos mostram que o PIB precisa crescer entre 5% e 6% ao ano apenas para incorporar a mão-de-obra que está entrando anualmente no mercado de trabalho — além de absorver parte dos desempregados.

É aí que entra a importância do conceito de valorização do trabalho para o desenvolvimento nacional. Crescimento não é igual a desenvolvimento. Entre o final dos anos 60 e o início da década de 80, o Brasil cresceu a taxas anuais superiores a 8%. Nem por isso as desigualdades de renda diminuíram na mesma proporção. A Finlândia não cresceu tanto, mas sua população de 5 milhões de habitantes tem uma renda per capita em torno de 20 mil dólares, segundo o Banco Mundial. Sob diversos parâmetros — expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, índices de escolaridade —, os finlandeses têm características de país muito mais desenvolvido que o Brasil.

Para crescer e desenvolver-se, um país precisa, antes de tudo, aumentar a sua produtividade. Isso é feito, basicamente, pela incorporação de máquinas mais modernas, pela qualificação da mão-de-obra e pela adoção de formas mais eficientes de produzir. E a riqueza produzida precisa ser melhor distribuída por meio de investimentos sociais e infra-estruturais, e da elevação da renda para quem vive de salários.

Exportações de produtos básicos

Recentemente, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulgou um cálculo ilustrativo. Se o crescimento da produtividade fosse igual a zero, as economias da região precisariam crescer a uma taxa anual de 2,1% até o ano 2015, apenas para evitar um aumento do desemprego. Se a produtividade crescesse no ritmo de 3,7% ao ano (média do período 1950/1973), então o PIB precisaria variar 5,8% ao ano. Como a produtividade brasileira vem crescendo em média 7% anuais, é claro que o crescimento do PIB precisa ser ainda maior, apenas para não criar mais desempregados.

E será que uma economia de R$ 2,6 trilhões pode se dar a esse luxo? É claro que tamanho faz diferença, mas é preciso aqui fazer uma outra constatação. Países desenvolvidos já possuem usinas de energia, estradas e outras infra-estruturas para atender a suas necessidades. Nesses casos, o crescimento tende a ser naturalmente mais lento. Mas no Brasil ainda há muito o que fazer. O país precisa, desesperadamente, de melhorias infra-estruturais. Ou seja: o Brasil não só pode como deve crescer acima de 5%.

A Cepal identificou que, ao menos no médio prazo, o crescimento da América Latina pode ser assegurado pelas altas dos preços internacionais das commodities. A região é dona de grandes reservas minerais. Na avaliação da Cepal, os países latino-americanos deveriam aproveitar o momento mais favorável para reforçar sua presença internacional e rever alguns modelos mais frágeis que ainda servem de sustentação econômica. Entre as prioridades estariam reduzir a dependência das exportações de produtos básicos.

Assédio institucionalizado

O pensamento progressista latino-americano há tempos discute os obstáculos impostos à industrialização do sub-continente. A Cepal foi a referência maior nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos.

Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu parque industrial, mas manteve largos segmentos inteiramente à margem do processo produtivo, sem acesso às benesses do crescimento. Com poucos governos de visão social, o Estado esteve por muito tempo ausente não apenas da tarefa de distribuir renda mas também da de habilitar toda a sociedade a participar da dinâmica produtiva.

A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”, o assédio institucionalizado de setores privilegiados aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê refém do privado.

Essa situação começou a mudar com o governo Lula. Com o avanço da cidadania, a sociedade também avançou. Multiplicaram-se as instâncias de representação. Os movimentos populares abriram espaços cada vez mais amplos para o debate público, atuando como uma verdadeira ágora desses novos tempos.

Estado do mal-estar social

Mas o Estado ainda precisa ser mais bem cobrado no desempenho de suas tarefas. Os nichos historicamente privilegiados devem estar sob o crivo de segmentos sociais mais vigilantes para impor limites à privatização do Erário. O governo federal tem feito esforços para democratizar o Estado, para que ele se torne mais transparente e responsável.

Iniciou a concertação do poder público com os movimentos sociais. A descentralização administrativa e orçamentária também concorreu para aproximar a população do gestor público. No entanto, o governo precisa acelerar a recuperação da capacidade do Estado cumprir seu papel. Ou melhor: o Estado precisa se credenciar para cumprir finalmente a meta de universalização dos serviços públicos.

Pode-se dizer que estamos passando de um Estado do mal-estar social para a possibilidade de se ter um Estado virtuoso, que assegure a todos os brasileiros condições satisfatórias de vida. Mas o ritmo ainda é lento. Ainda temos uma política monetária indomada e uma condução tímida das diversas políticas públicas — condições que implicam em temor sobre a longevidade e eficiência do crescimento do PIB.