ESPECIAL: Trinta anos do Plano Real – O outro lado da notícia

A herança maldita do Plano Real

O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia

O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

FHC: a face da corrupção do Plano Real

O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

A visão do PCdoB sobre o Plano Real

– A visão do PCdoB sobre o Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

O plano de “estabilização da inflação” de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Plano Real, era o “esboço prático” de um projeto global, definiu o então vice-presidente Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Renato Rabelo. “Significa que esse novo governo das elites não será diferente dos precedentes.” A tentativa de juntar duas correntes dos setores dominantes – o “liberalismo” e a “social-democracia” – era um jogo de palavras, demagogia para salvar as aparências e tinha o mesmo efeito “de apresentar um círculo como se fosse um quadrado”.

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O Plano Real contra a soberania nacional

Era a expressão da aliança do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com o Partido da Frente Liberal (PFL), surgido das entranhas da estrutura partidária que apoiou a ditadura militar. Estava no cerne dessa configuração partidária a semente da “reforma política”, o controle autoritário do debate político, tese que ficaria conhecida como “Plano Real na política” para confinar a representação dos votos em poucos partidos, alijando a participação do povo, restringindo a democracia. Seria o fortalecimento de partidos sem cor e com programa descartável, conformado para eleições, a serviço dos donos do poder e do dinheiro.

A reunião do Comitê Central do PCdoB nos dias 12 e 13 de novembro de 1993 avaliou que a conjuntura das eleições presidenciais de 1994 exigia candidatura única do campo democrático e progressista para enfrentar mais uma dura ofensiva do neoliberalismo. O PCdoB procurava a unidade em torno de uma plataforma comum. Seria a maneira mais eficaz para enfrentar as classes dominantes e levar uma candidatura popular à vitória.

Ataques indiscriminados

FHC, nomeado ministro das Relações Exteriores pelo presidente Itamar Franco, assumiu o Ministério da Fazenda em maio de 1993 e unificava quase toda a direita, condição que afastou definitivamente o PCdoB do governo, do qual havia se aproximado diante das promessas de que o projeto neoliberal ostentado por Fernando Collor de Mello, deposto pelo impeachment de 1992, não teria continuidade. A relação vinha abalada desde a venda da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 2 de abril de 1993, inaugurando o ciclo das privatizações selvagens do projeto neoliberal, justificada por Itamar como inevitável por já estar programada.

Em nota, o PCdoB afirmou que o presidente dependia do Congresso, de maioria conservadora, devido à situação especial em que chegou ao Planalto, mas não concordava com as concessões à antiga política de Collor. Rejeitava ataques indiscriminados a Itamar, sem ceder na exigência de soluções dos problemas que afligiam o povo, da necessidade de união a fim de enfrentar a crise e conduzir o país no rumo da retomada do desenvolvimento, da soberania, da superação da miséria, da garantia das liberdades democráticas e da independência nacional.

Estava em curso um astuto jogo midiático que ocupou o espaço do debate político para derrubar o favoritismo de Lula, que vinha bem à frente nas pesquisas de intenções de votos. O PCdoB, que havia lançado um manifesto conclamando os partidos de esquerda e progressistas a se unificarem em torno de uma candidatura, passou a ser duramente atacado. FHC puxou o coro para se defender das consequências da aliança com o PFL, acusando os comunistas – com quem se aliara nas eleições para senador em 1978 e prefeito de São Paulo em 1985 – de “totalitários”.

As articulações oposicionistas resultaram na Frente Popular, Democrática e Nacional, lançada em 21 de abril de 1994, um passo para a ampliação da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Tratava-se de um processo eleitoral que refletia o quadro de crise multilateral que o Brasil atravessava e as dificuldades das classes dominantes para aplicar o projeto neoliberal.

Núcleo forte de esquerda

Segundo Renato, o susto que tomaram em 1989, quando Lula chegou perto da vitória, não se repetia em 1994, com o candidato da esquerda consolidado na liderança das pesquisas. “Atualmente, eles vão encontrando Fernando Henrique como alternativa para enfrentar a candidatura popular. Se utilizam dos tais predicados do Fernando Henrique, homem honesto, que veio da esquerda, um tipo ideal para as classes dominantes.”

Apesar do favoritismo de Lula, Renato entendia que a disputa seria muito difícil. “A candidatura popular vai encontrar dificuldades muito grandes, porque as elites vão fazer de tudo para barrar seu avanço. Não podemos pensar que será fácil a vitória ou que iremos facilmente ao segundo turno, conseguindo derrotar o candidato das forças reacionárias. Achamos que vai ser uma campanha muito dura. Eles vão investir pesado”, alertou.

Cabia às esquerdas e às forças progressistas se unirem, segundo Renato. “Nós pensamos que a candidatura popular deve ter um núcleo forte de esquerda, mas também audácia para ampliar e construir alianças com outras forças. Não temos a visão de que a candidatura popular deva ficar só nos marcos da candidatura de esquerda. Pelo contrário. Com base nesse núcleo, devemos buscar outras forças políticas e sociais. Não só partidos, mas também personalidades políticas de expressão.” A conclamação do PCdoB por candidatura única foi bem aceita. Apenas o PDT não deu resposta positiva, preferindo lançar Leonel Brizola.

Exclusão e marginalização

Renato chamou a atenção para o papel dos Estados Unidos como superpotência unipolar, centro do projeto neoliberal representado pela candidatura FHC. A reestruturação e o ajuste que o capitalismo procurava fazer determinavam a relação entre países dependentes e ricos como contradição mais importante.

Ele alertou para as consequências da política neoliberal, que trazia em seu bojo exclusão e marginalização de parcelas cada vez maiores da sociedade, como mostravam os exemplos do México e da Argentina, países que atravessavam graves crises econômicas e sociais. O Brasil também já vivia uma realidade social grave, com uma crescente parcela de desempregados e marginalizados, e teria uma situação explosiva caso o projeto neoliberal vencesse, alertou. O cerco e as pressões do imperialismo para enquadrar o Brasil em seus planos eram crescentes.

Aquele objetivo motivava a busca incessante da classe dominante brasileira por um novo “engate” internacional e chegava às submissões mais vergonhosas. “Tais reformas seguem receituário semelhante ao da Argentina, do México, do Chile etc. Em resumo, são assim definidas: diminuição do Estado, privatização das empresas estatais, liberalização e flexibilização das relações trabalho-capital (ou seja, a negação de importantes conquistas sociais), rápida liberalização do comércio exterior e ‘parcerias’ internacionais ou nova associação com o capital estrangeiro.”

O “ajuste” perseguido, continuou Renato, mantinha a trilha das deformações do capitalismo brasileiro, elevando e aprofundando a dependência do país. “Este tipo de ajuste gera um cenário de maior desigualdade social, com o aumento das camadas excluídas do processo econômico e a concentração ainda maior do poder de consumo. A fim de garantir os compromissos de uma dívida externa impagável, o país se submete às exigências de enormes reservas de moedas fortes (à custa de quem?) impostas pelo capital financeiro internacional, para dar garantias aos credores e lastro que possa estabilizar uma nova moeda.”

Grande susto

A formação de um bloco de forças que atualizasse as bandeiras democráticas, em defesa dos direitos das grandes massas, seria a resposta àquela situação, a continuidade do projeto de cunho popular, agora assentado em base social mais ampla e numerosa, prosseguiu Renato. Após o declínio do regime militar, boa parte dessas forças, antes amordaçadas e reprimidas violentamente, colocou-se em movimento, participando do processo de democratização política, da vitória da anistia, da convocação da Constituinte, dos êxitos na elaboração da Constituição de 1988, da grande mobilização pelas Diretas já! e da vitória da luta pelo impeachment de Collor.

Na sucessão presidencial de 1989, contando com um programa que começou a articular as bandeiras do campo popular e progressista, por meio da Frente Brasil Popular, as forças populares quase obtiveram a vitória, registrou. “As classes dirigentes foram tomadas de grande susto. Não esperavam tal desfecho e tiveram de convergir todo seu poder à candidatura Collor.”

Com aquele histórico, disse Renato, a sucessão presidencial de 1994 só podia ser compreendida a partir das raízes e características da evolução histórica do Brasil. Ela não estava desligada do processo de contradições políticas e econômico-sociais em curso, sobretudo após a Nova República. Havia uma nova crise conjuntural, marcada pelas particularidades daquele momento eleitoral. “A polarização político-econômica resulta de um processo de concentração de rendas cada vez maior”, analisou.

Era uma lógica do capitalismo, própria de sua essência, porque a globalização da economia só avançava com uma centralização financeira. “A grande oligarquia capitalista no Brasil acabou se enquadrando na nova fase e busca outras formas de associação, tornando-se, assim, centralizadora do capital, dos meios de comunicação, do poder. Nesta realidade interna, não se projetam mais os tempos da Guerra Fria, a contradição Leste-Oeste. Nela se reflete outra contradição, a Norte-Sul, como consequência das imposições reestruturantes fixadas pelos países centrais, imperialistas, aos países periféricos, dependentes, que têm de se submeter a relações cada vez mais desiguais.”

Credo neoliberal

Segundo Renato, o acirramento da polarização desencadeou o impasse. Havia uma encruzilhada, que se revelava, em termos gerais, na contraposição de dois projetos: ou prevalecia o caminho neoliberal, “que deteriora intensamente a grave situação social e submete o país à nova ordem mundial imperialista, ou a resistência na busca de um novo caminho, de base nacional, democrática e popular, que concretize, no plano interno, ampla coalizão de forças política e sociais, e, no plano externo, a formação de uma frente dos países e povos dependentes, pela retomada do desenvolvimento com independência e progresso social”.

Aquele quadro de crise e confronto de dois projetos definiria a sucessão presidencial, disse Renato. Depois do susto de 1989, as classes dominantes tudo faziam para amainar suas próprias desavenças políticas e regionais. “Articulam-se nervosamente na busca de um personagem contra Lula, esforçando-se para chegar a um candidato único, no qual pretendem concentrar todo o seu poderio”, afirmou.

As oligarquias mais poderosas encontraram seu escolhido na pessoa de FHC, que, convertido ao credo neoliberal, agia como um “cristão novo”, resumiu. “Tem de aprovar seu plano atual, que já encampa o artifício da dolarização, a última palavra em matéria de planos encomendados ao FMI para países da América Latina.”

Renato alertou que a candidatura de FHC, apresentada como de centro-esquerda pelas elites, moldada com a ênfase no seu passado de intelectual de prestígio e de esquerda, não deixava de ser burlesca. “Acabam admitindo o prestígio da esquerda, apesar da manipulação pela permanente propaganda em contrário. Dessa maneira, a fina flor dos setores mais ricos de nossa sociedade, em parceria com seus cupinchas externos (segundo o jornal Financial Times, FHC é o favorito dos ‘mercados’), monta um perfil farsante”, enfatizou.

Além de uma exclusão social sem precedente, continuou Renato, a propalada “modernidade” resumia-se à competição na era dos oligopólios, dos conglomerados gigantes. “A disputa está situada nessa escala”, disse. “A mídia internacional, porta-voz do capital, não esconde sua preferência por Fernando Henrique. E as viúvas da ditadura e os setores reacionários falam abertamente da necessidade de usar todos os meios para impedir ou ‘prevenir’ o êxito da esquerda”, disse.

A candidatura popular refletia o nível da polarização política e sintetizava a fisionomia da corrente histórica democrático-popular que vinha se construindo, principalmente após 1930. “A proposta defendida pelo Partido Comunista do Brasil de forjar uma ampla frente nacionalista, democrática e popular, que garanta e, ao mesmo tempo, vá além da vitória eleitoral, é justa e responde às necessidades atuais”, defendeu Renato. “Para alcançar o resultado favorável, é preciso ir além dos marcos de uma única força partidária. Precisamos aprender com a história”, concluiu.

Ameaça à democracia

O PCdoB avaliou a vitória de FHC como ameaça à democracia. A Resolução política do IX Congresso, de 1997, alertou para esse risco. As políticas neoliberais estavam no centro do diagnóstico da realidade mundial e brasileira. “Estas constituem flagrante ameaça à democracia, aos direitos dos trabalhadores e dos povos e à soberania nacional da grande maioria dos países, conformando um período histórico de regressão de todas as conquistas democráticas, sociais e culturais da civilização”, disse Renato

Segundo ele, o neoliberalismo tem nos Estados Unidos, precursores e principais beneficiários da política de flutuação da moeda desde 1973, o centro da liberalização e da desregulamentação financeira e cambial. “A política monetária estadunidense passou a ser, em última instância, a reguladora do mercado financeiro mundial instável e descontrolado, liquidando a possibilidade de uma política econômica e financeira autônoma para a maioria dos países do mundo.”

Cabia ao Partido, disse Renato, trabalhar por uma plataforma contra o neoliberalismo. “Lutamos, sim, pela definição de uma plataforma ampla e consequente. Neste momento, o esforço que empreendem os quatro partidos de esquerda (PCdoB, PT, PDT, PSB) na elaboração de uma plataforma comum antineoliberal é a justa conduta a trilhar”, afirmou. A ideia, segundo Renato, era formar uma frente que unisse os partidos de esquerda, intensificasse a luta política de massas e isolasse ao máximo os blocos aliados a FHC.

Denúncias de corrupção

Renato tomou a frente de um processo político que teria decisiva consequência nas eleições presidenciais de 1998 e de 2002. O PCdoB vinha conversando com os partidos de oposição para transformar os protestos que se levantaram contra o neoliberalismo num movimento unitário. Foi quando surgiu a ideia de formação da chapa com Lula candidato a presidente e Brizola, vice. “Eu e o Amazonas (João Amazonas, então presidente do PCdoB) conversamos com o Brizola, essa questão de ser o vice”, recorda Renato.

A chapa Lula-Brizola era uma opção real de poder, “um novo modelo para a sociedade e a economia brasileiras”. “Modelo que privilegia os trabalhadores, os setores produtivos e a ampla maioria da população. Modelo constituído por um governo pluripartidário, de base popular, apoiado pelos mais diversos segmentos da nação e na democratização crescente da vida nacional”, disse. “Devem ser consequentes nas denúncias e indignação com o entreguismo deslavado do governo FHC e a grave crise social por ele gerada. Desmascarar as falsidades divulgadas pela propaganda chapa branca do pensamento único.”

Enquanto a oposição se organizava, a direita se movimentava para manter FHC no poder. Num processo marcado por denúncias de corrupção, o Congresso Nacional aprovou a emenda constitucional que instituiu a reeleição para presidente da República e governador. Mas o agravamento da crise mundial jogava contra as ambições de FHC. A economia, dominada pela agenda neoliberal, enfrentava verdadeiros dramas na Ásia e na América Latina.

Em meados de 1998, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa do instituto Datafolha de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico. A mídia entrou em cena com ataques a Lula num ponto sensível: a política econômica. FHC seria reeleito no primeiro turno.

Logo depois, o governo fechou o primeiro acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mergulhando o país numa era de incertezas, inclusive institucional. Segundo Renato, as eleições tiveram uma característica forte de tentativa de despolitização e desideologização, feita pelas classes dominantes. “Contra essa tendência, houve um grande esforço de politização por parte do PCdoB, em especial das campanhas de nossos candidatos a deputado federal. Esse nosso esforço teve um resultado bastante favorável.”

FHC queria uma eleição silenciosa, sem mobilização e comícios, sem povo nas ruas, de acordo com Renato. Não houve sequer um debate nacional. “Foi uma eleição que decorreu em período extremamente curto, com um pequeno período de utilização de rádio e TV. Essa orientação governista nacional refletiu-se nas eleições estaduais, que também foram despolitizadas, abordando mais problemas localizados em cada área da Federação.”

Conto de duas cidades

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Renato lembrou a frase do romancista Charles Dickens, no livro Um conto de duas cidades, publicado em 1859 narrando uma história que se passa entre Londres e Paris no período da Revolução Francesa, para dizer que os resultados das urnas configuravam o “melhor” e o “pior” dos mundos para as distintas forças envolvidas. Ele avaliou que o resultado das urnas não fora de todo favorável ao governo.

Segundo Renato, as oposições registraram avanços no segundo turno para o governo de estados. “Um ‘terceiro turno’ vai mostrando seus contornos, com o aprofundamento da crise econômico-financeira, o início de um esgarçamento da base de apoio governista, gerando instabilidade que leva a um quadro de crise política, o ressurgimento das forças centristas com um discurso crítico ao governo FHC e as possibilidades de ampliação da frente oposicionista.”

Renato fez um minucioso relato do resultado geral das eleições e concluiu que a oposição tendia a se fortalecer. Era preciso localizar tendências e resultantes naquele quadro contraditório, observou. Tendo em conta a evolução da crise econômico-financeira, constatava-se o surgimento de um novo quadro político. “O segundo mandato de FHC já estará prenhe de ingrediente demolidor do primeiro, que se encerra. O cenário atual parece ser o de final de governo”, diagnosticou.

No fundo, delineava-se o crescimento da crise do sistema capitalista “globalizado” e seu impacto na crise em curso no Brasil, que já atingia a maioria da nação. “Esta realidade se reflete numa crise da própria concepção neoliberal, neste final de década”, avaliou Renato. “O resultado imediato será um processo depressivo de difícil reversão.”

Politicagem rasteira

Naquele cenário de rápida degradação econômica e social, FHC entregava-se à politicagem rasteira, desconsiderando a fronteira entre o público e o privado, segundo Renato. “Sobre ele se avolumam as suspeições acerca do processo de privatização, feito a toque de caixa. O governo usa todas as artimanhas para impedir que a sociedade comece a tomar conhecimento do que realmente acontece por trás dos rumorosos negócios das privatizações.”

Segundo Renato, o governo estava cada vez mais refém dos grandes magnatas financeiros e, mais uma vez, do FMI. “A sua lógica é pagar com presteza e em tempo aos investidores financeiros. Subsidiar banqueiros e, até mesmo, o capital especulativo”, falou. E mais: “Fernando Henrique rasgou a Constituição e torna-se cada vez mais autoritário. O presidente da República perde a credibilidade e vai predominando uma situação de ingovernabilidade.”

Colocava-se na ordem do dia a necessidade de fortalecer a unidade da frente oposicionista democrática e popular, consolidando “um amplo movimento em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho”. “Defendemos a substituição de FHC por um novo governo, de base democrática, patriótica e popular”, afirmou. “Vai ganhando convicção entre círculos cada vez maiores do povo de que é preciso Fernando Henrique estar fora do governo. Impõe-se a luta pelo fim mais rápido deste governo. Assim, é necessário mobilizar e conscientizar o povo para a denúncia contra o presidente da República por crime de responsabilidade, abrindo assim caminho para a vacância da Presidência e convocação de novas eleições através de medida constitucional.”

Regime ditatorial

Segundo Renato, para tornar realidade seu projeto antinacional e antipopular, o governo estava revogando, sucessivamente, em sua linha geral, a Constituição de 1988, como havia denunciado o renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Melo. “Toda Constituição tem, implícita ou explicitamente, uma linha geral. Na opinião de Bandeira de Melo, esse projeto neoliberal que foi adotado no Brasil é uma antítese dessa linha que constitui a espinha dorsal de nossa Constituição”, denunciou.

Além disso, prosseguiu Renato, FHC governava com medidas provisórias anticonstitucionais, “na opinião de parte dos juristas”. “Na realidade, o governo de Fernando Henrique vai edificando, progressivamente, o que vem sendo denominado por inúmeros juristas independentes de um regime ditatorial ‘constitucional’. As emendas constitucionais de FHC também são anticonstitucionais por ferirem o âmago da concepção de Estado subjacente à nossa Constituição de 1988.”

Com o aprofundamento da crise em todos os terrenos, FHC iniciou, na opinião de Renato, seu “novo” governo já envelhecido, numa situação de descrédito crescente diante da população e começo de erosão de sua base de sustentação política. “Não somente a crise desse modelo governista precipita as divergências entre os componentes de sua base, como também os objetivos próprios de cada setor que apoia o governo, por conquista de melhores posições e espaços políticos hoje, visando melhores condições de disputa nas eleições de 2002.”

A posição mais justa seria considerar que o governo tomara um rumo sem retorno, avaliou. “A política atual aprofunda o modelo neoliberal. A recessão imposta só vai agravar a crise social em curso, com o problema do desemprego, diminuição dos salários, aumento significativo da pobreza, falências de empresas. É preciso alertar a maioria do povo sobre a responsabilidade do governo federal por ter levado o Brasil à situação atual de retrocesso e de depressão econômico-social”, disse. “Hoje, FHC já não tem mais base de sustentação. Seu governo já nasceu morto. A base política dele entrou em erosão.”

Chantagem e intimidação

O Brasil precisava de novo rumo, de uma ruptura com aquela orientação política, de um projeto de mudanças que fosse capaz de promover a reconstrução nacional, a transformação social e a mais ampla liberdade política, indicou. “O país não aguentará mais uma metade de década de crescimento estancado e pode se tornar neocolonizado. Não se pode subestimar tamanho risco ao destino de nossa pátria. Agora, o governo FHC e seus cúmplices, apoiados em vastos recursos, sustentados por grandes interesses internos e externos, compram a cumplicidade e o apoio político, visando a manter sua base de sustentação, a retomar a iniciativa e a isolar a oposição.”

A subida de Lula nas pesquisas provocava verdadeiro sobressalto na seara do Planalto e dos grandes círculos financeiros internacionais. Começava a repetição da chantagem e da intimidação, a falácia de que a vitória da oposição traria o caos, afetando seriamente o investidor estrangeiro. “Tudo isso conduzido com grande estardalhaço pela mídia brasileira. As agências financeiras a serviço do grande capital transnacional decretaram que o Brasil aumentou de risco, rebaixaram a recomendação dos títulos brasileiros, pressionando assim para a retomada da alta dos juros já extremamente elevados”, denunciou Renato.

Eram as vozes do continuísmo, que passaram a pregar a surrada prédica do despreparo de Lula. “Porém, a verdade é que os dois governos de Fernando Henrique, com o acúmulo de seus desastres econômico e social, já não convencem a grande maioria do povo das ‘virtudes’ de sua estabilidade. Desta feita, o governo não conseguiu nem mesmo manter sua base política para o embate eleitoral de 2002. A candidatura Serra (José Serra, do PSDB) derrapa, vive uma crise de identidade, não sabendo como se apresentar: ou é continuidade ou é mudança.”

Carta entregue a FHC

O país enfrentava mais uma ameaça de crise cambial. “Essa orquestração continuou no mesmo diapasão num segundo momento, com o convite de FHC aos candidatos à Presidência da República para tentar comprometê-los com o acordo (com o FMI) e demonstrar que ainda governa”, disse.

No encontro, dia 19 de agosto, Lula entregou a FHC uma carta na qual dizia ser urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liquidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.

Renato denunciou que a mídia, como sempre comprometida com os grandes círculos financeiros, deitava loas sobre a “iniciativa democrática” do encontro dos presidenciáveis com FHC, afirmando que “a democracia está de parabéns”, que o evento foi uma demonstração de “maturidade política” e que o 19 de agosto foi um “dia histórico na vida republicana”, dentre outras coisas do gênero.

Segundo ele, a encenação, na prática, ficou restrita ao seguinte roteiro: FHC disse que todos os candidatos aceitaram o acordo; e todos os candidatos – evidentemente com a exceção do governista, José Serra – disseram que a responsabilidade pela situação atual é do governo e que é preciso outra política econômica. “Até mesmo Fernando Henrique confessou que mudaria também alguma coisa”, ironizou.

Por que aquele festival de fanfarronadas sobre “maturidade política”?, indagou Renato. “Na realidade, a crise que atravessa o país é muito, muito grave. FHC, com sua política neoliberal e seu profundo comprometimento com os grandes círculos financeiros internacionais e nacionais, levou o país a um grande impasse. O Brasil passou a viver uma situação de enorme vulnerabilidade externa, agravada com o quadro de crise financeira mundial, cujo centro hoje não é mais a periferia, mas a principal praça da economia e finanças mundial: os Estados Unidos.” A luta primordial era “pela busca de novo rumo para o Brasil”, resumiu.

– O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia

Por Osvaldo Bertolino

A comunicação foi uma das duas grandes inovações do Plano Real, além da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda. Essa afirmação consta em um artigo no jornal O Globo de 4 de julho de 2024, de autoria de Hamilton dos Santos, doutor em filosofia pela USP, diretor executivo da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje), e Leonardo Müller, economista-chefe da Aberje, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do ABC.

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Aparentemente exagerado, o diagnóstico, atribuído pelos autores a Maria Clara do Prado, coordenadora da campanha de divulgação do Plano Real, nao é de todo impreciso. A campanha de convencimento de que as medidas adotadas eram algo “genial” – como disse recentemente o jornalista da Rede Globo de Televisão, Pedro Bial, numa entrevista com Pedro Malan, Gustavo Franco e Edmar Bacha, próceres do projeto de “estabilização monetária” – precisava ser infalível.

Segundo o artigo, quem ainda acredita que a comunicação não deva ser encarada como estratégica na economia contemporânea deveria se voltar com calma para a história do Plano Real. “Para garantir que as medidas fossem bem-sucedidas, era essencial que a população compreendesse e confiasse no plano. A transparência e a clareza na comunicação ajudaram a dissipar dúvidas e a evitar surpresas, facilitando a aceitação das mudanças propostas”, disseram os autores.

Uma grande farsa

É evidente que a população não compreendeu. A confiança é uma subjetividade que não se relaciona automaticamente à compreensão. Está associada ao axioma atribuído a Joseph Goebbels, o marqueteiro de Adolf Hitler, de que mentiras se tornam verdades à força de repetição. O conceito também implica uma generalização absolutista, igualmente supostamente goebbeliana, a ideia de que é possível montar uma grande farsa dizendo apenas verdades. A aceitação das medidas adotadas esteve longe de ser unanimidade fora das versões impermeáveis que circularam na mídia.

Para os autores, contudo, esse é um ponto comum no relato de diversos atores da trama: a comunicação transparente dos objetivos, mecanismos e etapas foi elemento indispensável para o sucesso. Os fatos – mostrados nesta série sobre o outro lado da notícia dos trinta anos do Plano Real – revelam que a comunicação monopolizada pelos interessados naquela formulação do projeto neoliberal não passou sequer perto da transparência. Mas eles repetem, citando Maria Clara do Prado, que tudo foi “feito às claras”, desde o princípio.

Depois, afirmaram que antes e durante a implementação das medidas a equipe econômica usou comunicação eficaz para explicar as razões e os mecanismos das reformas. Na verdade, foi o contrário: a mídia usou a equipe econômica para amplificar as versões oficiais. “Campanhas publicitárias, entrevistas feitas com regularidade e discursos planejados para informar e engajar a população”, prosseguiram. Mais uma vez, a transparência passou longe. Em nenhum momento essa overdose de comunicação explicou questões básicas, sobretudo a inter-relação arbitrária da taxa de juros oficial e índice de inflação, uma armadilha para capturar o Estado e transformá-lo em comitê de gestão de uma brutal transferência de renda dos pobres para os ricos.

Pérola de desinformação

E assim foi, segundo eles, até a adoção, em 1999, do regime de metas de inflação. “O Banco Central (BC) instituiu um arcabouço de política monetária que tem na comunicação um de seus pilares fundamentais”, disseram, apresentando como comprovação a divulgação de comunicados e atas a cada reunião do Comitê de Polícia Monetária (Copom), além de boletins, relatórios e pesquisas de sua equipe. Na verdade, são meras formalidades, um conjunto de informações artificiais que não influenciam no debate público.

Dizem também que o presidente do BC pode ser convocado pelo Congresso e, em caso de descumprimento da meta, é obrigado a escrever uma carta aberta ao ministro da Fazenda. “Em paralelo aos instrumentos oficiais, entrevistas dos integrantes do Copom para a imprensa também são comuns. A transparência foi e é crucial para ancorar as expectativas dos agentes econômicos, reduzindo incertezas e aumentando a confiança na moeda”, afirmam, novamente apresentando informações meramente protocolares, longe de servir ao debate democrático.

E confessam que a comunicação “eficaz do Banco Central também ajuda a estabilizar os mercados financeiros”. “Ao fornecer orientação clara sobre a direção futura da política monetária, o BC é capaz de influenciar as expectativas de inflação e as taxas de juros de longo prazo, o que proporciona um ambiente mais previsível para investimentos privados”, dizem, mais uma vez deixando o distinto público distante de informações essenciais para se entender o que representam mesmo esses conceitos do vocabulário neoliberal.

E concluem com uma pérola de desinformação, atribuída a Pérsio Arida, um dos caciques do Plano Real: a “estabilidade monetária” é uma exigência da democracia. “Nela, a comunicação transparente é pilar indispensável para garantir a legitimidade das decisões de um corpo técnico não eleito – e um dos principais remédios tanto contra eventuais deslizes desse corpo como contra incursões demagógicas na gestão monetária”, sentenciam, com um raciocínio raso e obtuso sobre democracia, uma mula sem cabeça que tenta sustentar os superpoderes da tecnocracia que concentra decisões nas mãos de um autocrata, o presidente do BC.

Aparato midiático

Maria Clara do Prado também escreveu n’O Globo, dia 1º de julho de 2024. Seu artigo, intitulado Comunicação ajudou a consolidar o Real, revela alguns detalhes dos bastidores da mídia na divulgação das versões dos tecnocratas, segundo ela uma inovação “no campo da comunicação”. “Na fase mais delicada, anterior à vigência da nova moeda, contou com um ministro da Fazenda que, ao invés de falar para o mercado financeiro e os empresários falava para o povo, e com economistas dotados do mais alto preparo técnico que passaram a frequentar as páginas dos jornais com regularidade nunca imaginada”, escreveu.

Falta, nessa formulação, a regra básica de que jornalismo implica explorar o contraditório. Falar “para o povo” não é apresentar dados e números acabados, como dogmas para pronta aceitação, sem uma sistematização mínima. Com esse recurso, a imensa maioria do povo não tomou conhecimento sequer dos rudimentos das medidas que estavam sendo adotadas. “Não havia a figura de um porta-voz do plano, mesmo porque não se empresta a voz quando a credibilidade de um projeto futuro é o objetivo maior. Para dirimir as dúvidas de ordem técnica, as entrevistas eram dadas diretamente pelos formuladores do plano, donos das ideias e das soluções que levariam à estabilização”, confessa, relatando exatamente como eram as manipulações e as ocultações de informações.

Segundo ela, um verdadeiro aparato midiático foi montado para dar voz aos tecnocratas. “Toda a estratégia de comunicação foi montada na premissa de que nenhum jornalista, não importa onde estivesse, deixaria de ser atendido. Não havia verba pública para uma campanha do Real, mas nem por isso recorreu-se ao uso de expedientes como press releases ou outros tipos de comunicados oficiais que impõem a informação pronta, protegida de questionamentos”, relatou, sem dizer que os entrevistadores estavam pautados não para fazer questionamentos, mas para difundir o que estava sendo comunicado. Não havia sequer informações para se fazer perguntas abrangentes.

Numa dessas entrevistas, Rubens Ricupero, que substituiu Fernando Henrique Cardoso (FHC) no Ministério da Fazenda, resumiu, inadvertidamente, o que era essa comunicação, numa conversa informal, acidentalmente captada, com Carlos Monforte, jornalista da Rede Globo de Televisão: “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.” Era o auge da campanha eleitoral das eleições que faria a sucessão presidencial em 1994, quando a direita atuava freneticamente para atacar o candidato favorito nas pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva. A confissão de Ricupero não representou qualquer arranhão à campanha de FHC.

Com Lula foi bem diferente. Ele fez uma campanha baseada na Caravana da Cidadania, percorrendo o país, e não desceu aos subníveis da mídia. Seu candidato a vice, José Paulo Bisol, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras, mote para uma virulenta campanha contra Lula. Mais tarde, passadas as eleições, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, teve de pagar a Bisol indenização de R$ 1,191 milhão pela publicação da acusação falsa.

Ordem democrática

Segundo Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), para compreender o que se passava, as razões em geral deviam ser buscadas na nova ordem imperialista e em particular na sua nova estratégia para os países dependentes, o projeto neoliberal. A orientação ditada para o chamado Terceiro Mundo e para o Leste Europeu visava à liquidação das fronteiras nacionais desses países, integrando-os como apêndices de um mercado de grande escala dos oligopólios mundiais.

Citou a política dos sete países ricos, que considerava imprescindível solapar as bases que constituem o Estado nacional. Na América Latina, procurava-se estabelecer o “ajuste estrutural” no âmbito da economia, que impunha o desmonte do Estado, redefinindo inclusive o papel das Forças Armadas. “Logo em seguida à rebelião militar na Venezuela (o levante de 4 de fevereiro de 1992 contra o governo do presidente Carlos Andrés Pérez, que tinha Hugo Chávez entre seus líderes), o embaixador dos Estados Unidos e o seu representante na OEA (Organização dos Estados Americanos) declararam diante de um grupo de oficiais venezuelanos que já existia o ‘direito’ de intervir militarmente em qualquer país da América Latina onde se produzisse uma ‘ruptura da ordem democrática’”, denunciou Renato.

De acordo com ele, o PCdoB e as forças consequentes na defesa da independência nacional, naquelas condições do mundo, eram “alvos de ataques das forças entreguistas e imperialistas, as quais empreendem ações e campanhas para denunciá-los e isolá-los”. “Desse modo, para a necessária ampliação e fortalecimento do movimento patriótico, devemos considerar as novas alianças de forças que o curso político vai demonstrando”, considerou.

Personagem contra Lula

Segundo Renato, o acirramento da polarização desencadeou o impasse. Havia uma encruzilhada, que se revelava, em termos gerais, na contraposição de dois projetos: ou prevalecia o caminho neoliberal, “que deteriora intensamente a grave situação social e submete o país à nova ordem mundial imperialista, ou a resistência na busca de um novo caminho, de base nacional, democrática e popular, que concretize, no plano interno, ampla coalizão de forças política e sociais, e, no plano externo, a formação de uma frente dos países e povos dependentes, pela retomada do desenvolvimento com independência e progresso social”.

Aquele quadro de crise e confronto de dois projetos definiria a sucessão presidencial, disse Renato. “Articulam-se nervosamente na busca de um personagem contra Lula, esforçando-se para chegar a um candidato único, no qual pretendem concentrar todo o seu poderio”, afirmou. As oligarquias mais poderosas encontraram seu escolhido na pessoa de Fernando Henrique Cardoso, que, convertido ao credo neoliberal, agia como um “cristão novo”, resumiu. “Tem de aprovar seu plano atual, que já encampa o artifício da dolarização, a última palavra em matéria de planos encomendados ao FMI (Fundo Monetário Internacional) para países da América Latina.”

Renato alertou que a candidatura de FHC, apresentada como de centro-esquerda pelas elites, moldada com a ênfase no seu passado de intelectual de prestígio e de esquerda, não deixava de ser burlesca. “Acabam admitindo o prestígio da esquerda, apesar da manipulação pela permanente propaganda em contrário. Dessa maneira, a fina flor dos setores mais ricos de nossa sociedade, em parceria com seus cupinchas extemos (segundo o jornal Financial Times, FHC é o favorito dos ‘mercados’), monta um perfil farsante”, enfatizou.

Projeto global

De acordo com Renato, o plano de “estabilização da inflação” de FHC era considerado o “esboço prático” de um projeto global. “Significa que esse novo governo das elites não será diferente dos precedentes. Se isso acontecer, a crise irá se agravar.” A tentativa de juntar duas correntes dos setores dominantes – o “liberalismo” e a “social-democracia” – era um jogo de palavras, demagogia para salvar as aparências e tinha o mesmo efeito “de apresentar um círculo como se fosse um quadrado”.

FHC seria eleito e arrancou sua reeleição novamente por meio de um jogo sujo. Em meados de 1998, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa do instituto Datafolha de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.

A mídia entrou em cena com ataques a Lula num ponto sensível: a política econômica. O jornal O Estado de S. Paulo de 14 de junho de 1998 resumiu a questão numa matéria sobre suposta quebra de um pacto de silêncio na coligação oposicionista. Na convenção do PT, Lula criticou a pressa no processo de privatizações e cogitou uma auditoria no que já havia sido vendido. Brizola também fez duras críticas à voracidade privatista de FHC.

Na questão do câmbio e do dólar, o Estadão ouviu representantes do PT e Renato. Segundo a matéria, o PCdoB era o “parceiro radical”, que desejava o “compromisso de ajustar rapidamente o câmbio e os juros” para definir “um programa de cunho claramente nacionalista”. A conclusão derivava da fala de Renato de que “queremos o desenvolvimento a partir de recursos próprios”, numa crítica explícita ao fluxo de capital especulativo que parasitava as finanças públicas.

Rumo da campanha

Em 18 de junho, o Estadão voltou à carga, agora explorando o debate na oposição sobre o futuro das privatizações. Havia no PDT propostas de medidas mais duras em relação às denúncias de corrupção e promessa de reestatização da Companhia Vale do Rio Doce e do Sistema Telebras. No PT, as opiniões se limitavam a medidas jurídicas, caso se comprovasse irregularidades.

A coligação decidiu requerer oficialmente do governo informações sobre câmbio, reservas internacionais e execução orçamentária, essenciais para a elaboração de propostas, segundo informou Renato ao Estadão. Sem aqueles dados, seria difícil fechar um programa detalhado, considerando a possibilidade de mudança na conjuntura econômica, teria dito Renato, que “refutou a possibilidade de um governo das esquerdas promover mudanças bruscas na gestão econômica”.

A Folha de S. Paulo também explorou o assunto. Na edição de 20 junho, o jornal enviou perguntas aos representantes dos partidos da oposição sobre reestatização da Vale, privatização da Telebras, imposto sobre lucros extraordinários de empresas privatizadas, quarentena para capital externo especulativo (exigência de permanência do dinheiro por certo período no país) e proposta cambial. Foram ouvidos Renato, Vivaldo Barbosa (PDT), Igor Grabois (PCB) e Roberto Amaral (PSB). Renato foi enfático na defesa do patrimônio nacional e na necessidade de soberania do país na administração das finanças públicas.

Com recursos como esses, o projeto neoliberal reavaliou o rumo da campanha e reforçou a divulgação das propostas de FHC, repetindo promessas que em 1994 foram simbolizadas numa mão espalmada – segundo FHC, gesto que Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek usaram para liderar o país – mostrando que depois da “estabilidade da moeda” viriam as questões sociais, hierarquizando emprego, saúde, agricultura, segurança e educação. A direita recuperou a vantagem e venceu novamente no primeiro turno, em 4 de outubro de 1998.

– O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Em 28 de junho de 1989, o candidato a presidente da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Mário Covas, marcou o início de sua campanha com o discurso que ficou famoso pelo título Choque de capitalismo. Era uma expressão da revoada – o partido assumiu o tucano como símbolo – de economistas para o ninho que estava nascendo, a chamada turma dourada do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) do final da década de 1970 e início dos anos 1980.

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Covas disse: “Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas. Basta de empreguismo. Basta de cartórios. Basta de tanta proteção a atividades econômicas já amadurecidas. Mas o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.”

O mesmo discurso ficaria famoso na boca de Fernando Collor de Mello, o ungido pelo projeto neoliberal para ser o candidato oficial da direita. Era uma repetição da ladainha de Margaret Tatcher, primeira-ministra da Inglaterra, e Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, precursores do projeto neoliberal, propagada como versão revisitada do liberalismo de Adam Smith. Seu livro Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, bíblia do liberalismo, suplantado pelo imperialismo como fase superior do capitalismo – na definição de Vladimir Lênin, líder da Revolução Russa de 1917 –, passou a circular amplamente, inclusive em exibições públicas de Collor.

Símbolo do udenismo

O PSBD foi concebido no influxo da propaganda do neoliberalismo de Tatcher e Reagan como ala do PMDB que se organizou no processo das eleições estaduais de 1982. Orestes Quércia era o principal líder do PMDB no estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Franco Montoro, eleito governador. Ficou decidido que ele seria o candidato do partido na sucessão estadual de 1986.

Um dos fundadores do MDB – transformado em PMDB com a Lei de Reforma Partidária, aprovada em 21 de novembro de 1979 –, Quércia despertou a ira dos poderosos quando foi eleito senador em 1974, vencendo de maneira acachapante Carvalho Pinto, candidato da ditadura militar e símbolo do udenismo – a organização de conservadores e golpistas chamada União Democrática Nacional (UDN) que precedeu o golpe de 1964 –, um barão da aristocracia paulista, secretário da Fazenda do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo e no estado, governador e ministro da Fazenda no final do governo João Goulart.

Na composição de 1982, Fernando Henrique Cardoso (FHC) elegeu-se senador pela sublegenda. Com a vitória de Montoro, Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta – que seria ministro das Comunicações no governo FHC – assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, em 1986, o grupo se aproximou do empresário Antônio Ermírio de Moraes, que se candidatou pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e não lançou candidatos ao Senado, um dos concorrentes de Quércia. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo estado. Foi a senha para a fundação do PSDB, em 25 de junho de 1988, uma articulação iniciada com o anúncio da vitória de Quércia em 1986.

Corrupção em São Paulo

Na campanha presidencial de Covas em 1989, os tucanos já estavam majoritariamente absortos pelo ideal do neoliberalismo. Em 1991, quando o presidente Collor emitia sinais óbvios de que o país caminhava para a ingovernabilidade, um setor tucano capitaneado por FHC defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra não surtiu efeito, mas o PSDB, impulsionado pela mídia, já articulava um projeto de poder para substituir o governo do presidente Itamar Franco, o vice-presidente eleito em 1989 que assumiu após o impeachment de Collor.

Em São Paulo, o ninho dos caciques tucanos, eles haviam arquitetado o afastamento definitivo de Quércia do posto de principal liderança política do campo que fez oposição à ditadura militar. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno das eleições para o governo do estado, disputado entre Luiz Antônio Fleury – o candidato do PMDB – e Paulo Maluf – candidato do Partido Democrático Social (PDS), o sucessor da Arena, o partido da ditadura militar – houve uma revoada de tucanos para a candidatura peemedebista.

José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury, o vencedor das eleições. Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do Banco Central para assumir a presidência do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Vladimir Rioli, obscuro personagem ligado ao tucanato, um dos caixas da campanha do PSDB, assumiu a vice-presidência de finanças do banco, do qual fora diretor na gestão Montoro, de onde saiu, misteriosamente, em 1993.

Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar US$ 14,1 milhões. Em 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no Banespa e mais tarde privatizá-lo, no processo de consolidação do Plano Real.

Liberalismo e imperialismo

A nomeação de FHC para o Ministério da Fazenda, em 1993, foi a concretização da plataforma política tucana, o molde do Consenso de Washington, receita do projeto neoliberal formulada em 1989 pelo economista norte-americano John Williamson, que seria adotada pelo governo dos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como condição para negociações das dívidas externas dos países dependentes, entre eles o Brasil, assolado por uma crise inflacionária gerada quando a conta do “milagre econômico” da ditadura militar começou a ser paga.

A receita consistia, basicamente, em arrocho fiscal – redução orçamentária de itens como Previdência Social, seguridade e investimentos públicos –, abertura comercial e financeira, privatizações selvagens e superávit primário, a garantia de pagamento dos títulos do Estado no mercado financeiro.

Quando FHC anunciou seu projeto, saudado pela mídia como a volta ao liberalismo, Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que era uma utopia. “A volta à época descrita por Adam Smith é uma quimera. Está longe da realidade. Seria a volta do capitalismo mais de um século atrás. O objetivo é confundir, para justificar o ‘modernismo’”, afirmou. Implicava a revogação de todas as teorias e práticas que contestaram o imperialismo – o sucessor do liberalismo –, como o keynesianismo (a teoria de John Maynard Keynes, economista britânico que na década de 1930 formulou a teoria do papel regulatório do Estado para minimizar as instabilidades da economia), a social-democracia e o projeto socialista.

A posse estridente de FHC se deu em meio a atropelos ao presidente Itamar, tratado pela mídia de forma desrespeitosa por sua discordância com os cânones do projeto neoliberal, como se houvesse uma espécie de carta branca para afrontas à Constituição, conforme confessou Edmar Bacha – um dos principais responsáveis pela coordenação do departamento de economia da PUC-RJ, integrante da turma que aportou no PSDB na sua fundação –,em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 30 de junho de 2024 sobre os trinta anos do Plano Real.

Ele relata que numa reunião com a equipe econômica e advogados, FHC ficou irritado e saiu dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Era a ignição do Plano Real, que já na largada afrontou o artigo da Constituição de 1988 que limitava os juros em 12% ao ano, proposta do constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP) sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, consultor-geral da República no governo do presidente José Sarney, ao propor a sua regulamentação por uma lei complementar que nunca veio.

Barões capitalistas

Assim surgiu o Plano Real, numa operação que levaria a sucessivas mutilações da Constituição, um festival de arbitrariedades. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia, basicamente, em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização monetária”, embrião do superávit primário), reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda.

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. O projeto neoliberal agora tinha sujeito, predicado e objeto direto. Renato Rabelo definiu a manobra como “unidade programática” da candidatura dos barões capitalistas e trazia o embate ideológico sobre a questão do Estado no processo de desenvolvimento. No capitalismo, disse, o Estado assumiu diferentes funções no desenvolvimento econômico, tendo em vista os interesses da burguesia e, logicamente, fazendo prevalecer a vontade dos seus setores mais fortes. “As empresas estatais a serviço do sistema capitalista, desde as ‘descobertas’ de Keynes, e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, adquiriram variadas funções. Transformaram-se, em países como o Brasil, em fator dinâmico no processo de industrialização, em instrumento de soberania econômica.”

Esse papel empresarial do Estado, prosseguiu Renato, já não servia aos capitalistas como antes, embora eles não prescindissem do concurso da ação estatal para empreendimentos que exigiam grandes investimentos, com retorno demorado. “As empresas estatais rentáveis, produtos da construção de décadas realizada pelo patrimônio público, são cobiçadas. No estágio atual, passam às mãos de grandes grupos privados, entrando no jogo das disputas intermonopolistas. Na concorrência entre eles conta, e muito, o controle de uma grande empresa estatal.”

Operação Lava Jato

A fusão monopolística abarcava setores privado e estatal, explicou Renato. “No caso dos países dependentes, como o Brasil, as empresas estatais, sobretudo as rentáveis e estratégicas, são presas de negócios vantajosos. Daí porque a propaganda neoliberal diversionista considera-as ‘ineficientes’ e ‘superadas’. Nos planos do grande capital, as estatais podem amortizar as dívidas externas dos países do Terceiro Mundo e são assumidas por grandes monopólios. Sem as estatais, esses países deixam de contar com importantes meios econômicos na sua luta pela independência”, denunciou.

O golpe, segundo Renato, era maquiado com o conceito de “Estado mínimo” e “modesto”, ou “pequeno, mas forte”, para justificar o objetivo do capitalismo de derrubar as fronteiras nacionais, transformando todas as nações em livre mercado para facilitar o acesso dos grandes conglomerados. “Além disso, o programa das tendências dominantes defende a liquidação dos monopólios estatais, mas preserva e fortalece os monopólios privados.”

Para levar adiante seu projeto, nas eleições presidenciais de 1994, o PSDB foi buscar o Partido da Frente Liberal (PFL), dissidência do PDS. Era o par perfeito, uma união em regime de comunhão de bens. FHC virou candidato único da mídia e venceu Lula – até o Plano Real, o favorito disparado nas pesquisas – no primeiro turno. Denúncias de “caixa dois” circularam amplamente, recurso repetido às claras na reeleição de FHC, em 1998. Tempos depois, a fraudulenta e corrupta Operação Lava Jato publicizou a prática dos neoliberais como “descoberta” de um grande esquema de corrupção, manobra que levaria ao golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, para a restauração da ordem neoliberal.

– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.