– Guerrilha do Araguaia: o burro que comia jornais

Por Osvaldo Bertolino

Outra torpeza. Assim é o mais recente ataque do jornalista Leonencio Nossa ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e à minha biografia de Maurício Grabois, publicado no jornal O Estado de S. Paulo neste sábado (2). Carregado de agressões gratuitas, o texto parece ter sido escrito como vingança tardia a uma contestação que fiz sobre falsificações publicadas por ele no mesmo jornal em 6 de maio de 2013, parte da coletânea do meu livro Guerrilha do Araguaia – fatos, verdades e histórias.

Na época, flagrei seus erros no jornal e apontei distorções primárias em seu livro Mata!, também sobre o assunto. “A começar pela citação de informações sem revelar a fonte, como é o caso da origem da família Grabois, pesquisada por mim para a biografia do comandante militar da Guerrilha do Araguaia intitulada Uma vida de combates. Há evidências de que ele usou também informações do documentário Araguaia – a Guerrilha vista por dentro, igualmente sem citar a fonte”, escrevi. A denúncia motivou uma ligação dele para tentar me explicar o inexplicável.

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Neste artigo, Leonencio Nossa se utiliza de mais um embuste ao dizer, já no título, que “a China abandonou guerrilheiros no Araguaia para se aliar à ditadura”. Depois de afirmações desconexas e óbvias, como a de que o principal parceiro comercial do Brasil “vive momento de desaceleração econômica e mantém relação pragmática e foco nos negócios, que hoje se concentram na compra de commodities”, ele engata a falácia de que “um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, foi convidado pelo regime de Mao Tsé-Tung, nos anos 1960, para treinar guerrilha na Academia Militar de Pequim”.

Não foi convite “do regime”, tampouco treinamento de guerrilha. Curso político-militar é outra coisa, bem diferente. Feito a pedido do PCdoB em Nanquim, não em Pequim. Além do desconhecimento dessa premissa básica, Leonencio Nossa se mostra, mais uma vez, péssimo analista de história. “Num idioma e numa cultura completamente diferentes, os brasileiros tiveram mais aulas de política internacional que de tiros e emboscadas. O anfitrião liderara, décadas antes, uma Longa Marcha a partir do interior chinês e vencera uma guerra civil que implantou o comunismo”, escreve, concentrando uma quantidade espantosa de desinformações em duas frases medíocres.

Parecer do Itamaraty

Aparentando escrever do que não sabe, como a repetição da invectiva sobre “guerrilha maoista” no Araguaia, ele chega a devaneios como o de que “Pequim não formou homens para guerra na selva”. E afirma que “o apoio da China à guerrilha começou a se esfacelar quando os diplomatas do país procuraram o Itamaraty para abrir mercado”, possivelmente tentando se apoiar na afirmação de que, ao defender a reaproximação com a China, um parecer do Itamaraty citou Maurício Grabois como integrante da “subversão” que tinha a República Popular da China como influenciadora, destacando que os chineses se comprometeram a não interferir na política interna.

Há uma farta documentação da época, utilizada em minhas biografias de Maurício Grabois e de Pedro Pomar, comprovando que a Guerrilha do Araguaia foi um movimento gestado e realizado por iniciativa do Partido Comunista do Brasil, reforçado pelos estudos das experiências revolucionárias na Rússia, na China, no Vietnã e em Cuba. Há uma teoria histórica, filosófica e política, que explica a Guerrilha. Mas isso é demais para Leonencio nossa, não à toa reincidente em grosserias como essas.

A coisa fica pior quando ele chega ao ataque à minha biografia de Maurício Grabois. “A biografia dele, feita dentro do partido, registra um equívoco em sua primeira edição (sic) ao dizer que a infantaria o teria matado”, escreve, tentando desqualificar a obra com a versão falsa sobre a sua origem e omitindo despudoradamente o autor, além de não citar a descrição minuciosa que fiz da operação que resultou em sua morte na publicação de 2012.

Nesse ponto, Leonencio Nossa parte para a baixaria sem freios. Diz que “o livro ainda registra que o comunista nascido em Campinas era de Salvador”, valendo-se de um dado incorreto, corrente quando a versão resumida circulou em 2004, e sonegando a informação de que, na obra completa, de 2012, esse fato foi por mim pela primeira vez devidamente esclarecido. E agride: “Leitor de Albert Camus, Grabois preferia o Estadão às publicações comunistas para se informar. Merecia um perfil decente, tipo tijolaço.” O que vem depois é um festival de desinformação e de propaganda contra a China e o PCdoB, bem condizente com a sua reincidência em grosserias.

Lenda do escravo

O jornalismo já foi definido, quando o jornal surgiu com força, como língua de papel, algo que lembra a lenda do escravo, de Esopo. A língua, bem utilizada, é, realmente, a maior das virtudes. Mas relegada a planos inferiores, se transforma no pior dos vícios. Com ela, as verdades mais santas, por ela mesma ensinadas, podem ser corrompidas.

Benjamim Constant, professor e estadista brasileiro, considerava o jornal um dos mais poderosos explosivos do século XIX. Mas houve também quem lhe deu o nome de “toalha da civilização”. Como qualquer instrumento, o jornalismo pode ser utilizado para o bem ou para mal.

O cronista Humberto de Campos conta uma historieta em que um engenheiro do Nordeste ensinou seu burro a comer jornal e que, por esse modo, conseguia atravessar a região devastada pela seca. Pela manhã, dava ao animal um exemplar do Jornal do Brasil e a tarde um do Pais. Um dia ele apareceu sem o burro. Indagado sobre a causa da morte do animal, respondeu que ele morrera de indigestão depois de comer um exemplar do Jornal do Comércio, edição de Natal.

Se alguém tiver ideia semelhante, que tome o cuidado de não levar o exemplar do Estadão com o artigo de Leonencio Nossa.

– A vida de combates de Maurício Grabois

Por Osvaldo Bertolino

O dia 2 de outubro de 2024 assinala a passagem dos cento e doze anos de nascimento de Maurício Grabois, um dos principais pilares da história do Partido Comunista do Brasil. Nascido na cidade paulista de Campinas e acidentalmente registrado pela segunda vez em Salvador (BA), era filho de judeus vindos da Ucrânia fugindo das perseguições antissemitas e dos castigos da guerra do Império Russo com o Japão.

Em 1930, Maurício Grabois desembarcou no Rio de Janeiro para fazer o “Curso Anexo” da Escola Militar do Realengo, onde ingressou em 1931. Mandado para o 1º Regimento de Infantaria em 1932, neste mesmo ano integrou-se à Federação da Juventude Comunista e logo assumiu a direção nacional de comunicação da organização. Por esta porta, Maurício Grabois entrou para o Partido Comunista do Brasil, à época com a sigla PCB.

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No Levante da Aliança nacional Libertadora (ANL) de 1935, Maurício Grabois estava no olho do furacão. Em seguida, mergulhou na clandestinidade para ajudar a manter o fio que sustentaria o mínimo de organização do Partido Comunista do Brasil — o jornal A Classe Operária. Mesmo nos tempos mais duros da repressão do Estado Novo, ele e mais alguns jovens intrépidos — entre eles, Amarílio Vasconcelos — mantiveram na ativa o órgão central do Partido.

Com a prisão de todo o Comitê Central, Maurício Grabois e Amarílio Vasconcelos começaram a articular a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), que seria integrada, mais tarde, por João Amazonas e Pedro Pomar, vindos do Pará; Diógenes Arruda Câmara, vindo da Bahia; e Luis Carlos Prestes, que estava na prisão. O objetivo era reorganizar o Partido Comunista do Brasil, meta alcançada com a realização da Conferência da Mantiqueira, em 1943.

Delegação na URSS

A vitória da democracia na Segunda Guerra Mundial criou as condições para o fim da estrutura do Estado Novo. Maurício Grabois e seus camaradas organizaram um grande movimento de massas que conquistou a anistia aos presos políticos — entre eles, Prestes —, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e a realização de eleições em 2 de dezembro de 1945.

Em 1º de fevereiro, ele e mais quatorze deputados, além do senador Luis Carlos Prestes, entraram no Palácio Tiradentes, no Distrito Federal — Rio de Janeiro, à época —, para tomar posse como constituintes eleitos. Quase oito meses depois, o país recebeu a Constituição que enterrou os entulhos do Estado Novo. Imediatamente depois, Maurício Garbois assumiu a liderança da bancada comunista na Câmara dos Deputados e liderou uma batalha gigantesca contra o que ele chamava de “restos fascistas”. Nesse período, escreveu intensamente para desmascarar as manobras anticomunistas. Além da Tribuna Popular, propôs o relançamento d’A Classe Operária, o que ocorreu em 9 de março de 1946.

Ao final da refrega iniciada logo nos primeiros dias de 1946, o Partido Comunista do Brasil perdeu seu registro legal no Tribunal Superior Eleitoral e todos os comunistas eleitos foram cassados. Em meados de 1955, Maurício Grabois chefiou o terceiro grupo, de 51 integrantes, que fez um curso de duração de mais de um ano em Moscou, ministrado pela Escola Superior do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Caminho da luta armada

Em 1960, no processo do V Congresso, ele iniciou a série de artigos de um grupo que recusou a revisão da linha revolucionária do Partido Comunista do Brasil, iniciada com a publicação da Declaração de Março, em 1958. Maurício Grabois foi o primeiro a escrever e deixou bem claro que havia no Partido Duas Concepções, Duas Orientações Políticas — título do seu artigo inicial.

Na Tribuna de debates, publicada no jornal Novos Rumos, cristalizaram-se duas posições antagônicas: de um lado ficaram, além de Maurício Grabois, entre outros, João Amazonas, Pedro Pomar, Carlos Nicolau Danielli e Ângelo Arroyo; de outro, estavam nomes como Luis Carlos Prestes, Mário Alves e Jacob Gorender. A polêmica evoluiu para a criação do Partido Comunista Brasileiro e a reorganização do Partido Comunista do Brasil — agora um PCB e outro PCdoB.

A chegada do golpe de Estado em 1964 fez com que o PCdoB optasse pelo caminho da luta armada. Maurício Grabois, João Amazonas, Ângelo Arroyo e Elza Monnerat foram para a selva do Araguaia, no Sul do estado do Pará, preparar a implantação de um núcleo do que seria a guerra popular. Além das tarefas práticas, Maurício Grabois e João Amazonas escreveram os estratégicos textos Atualidade do pensamento de Lênin Cinquenta anos de Luta — o primeiro uma crítica à tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como “nova etapa do marxismo” e o segundo um retrospecto das atividades ininterruptas do Partido Comunista do Brasil.

Para João Amazonas, Maurício Grabois foi o grande amigo, o grande camarada. “O Maurício Grabois foi um dos maiores propagandistas que o Partido já teve, um homem de muitas ideias”, afirmou. Em sua sala, na velha sede nacional do PCdoB na Rua Major Diogo, em São Paulo, João Amazonas conservava um quadro com a foto de Maurício Grabois em posição mais destacada entre outras referências comunistas. Ele também lembrou da constituinte de 1946, “na qual Maurício Grabois teve uma presença de espírito muito grande”.

Engraçado e pessoa distinta

Nas entrevistas que fiz para o livro Maurício Grabois — uma vida de combates, a admiração por ele foi unânime. Segundo Renato Rabelo, ex-presidente nacional do PCdoB e da Fundação Maurício Grabois, João Amazonas lembrava dele em tudo. “Era, na opinião dele, talvez o maior dirigente que o Partido teve”, disse. “Eles deviam ter uma ligação de amizade muito forte”, afirmou.

Edíria Carneiro, a companheira de João Amazonas, ao buscar na memória lembranças de Maurício Grabois estampava no rosto um semblante de carinho e bom humor. “Ele era muito engraçado”, disse ela, com o pensamento longe. Armênio Guedes, que morou com ele nos tempos da revista Continental, dos anos 1940, lembrou: “Era de um temperamento afável no trato com as pessoas, um sujeito de muita compreensão com o lado humano do militante. O Grabois e o Amarílio eram educados, não eram mandonistas.”

Do mesmo modo, Jacob Gorender lembrou de Maurício Grabois com reverência. “Tenho dele as melhores recordações. Era afável, fácil de se conversar. Foi um grande camarada, isso é fora de dúvida”, disse. Na sala de sua residência repleta de livros, de pé na porta, com a entrevista já encerrada, Gorender disse: “Não esqueça de registrar minha grande admiração por Maurício Grabois. Foi uma pessoa distinta. Estivemos em campos diferentes, mas isso nada tem a ver com sua integridade, simpatia e camaradagem.”

Atividade político-ideológica

Diógenes Arruda Câmara, em artigo publicado no jornal A Classe Operária de setembro/outubro de 1978, disse que “considerável foi sua atividade, tanto político-ideológica como prática, no trabalho de reorganização marxista-leninista do Partido de 1961 a 1962, contribuindo de forma destacada, juntamente com o camarada Amazonas, para o esclarecimento de importantes problemas da revolução brasileira e na elaboração do Programa do Partido, aprovado na Conferência Nacional Extraordinária de fevereiro de 1962”.

Sobre a atuação de Maurício Grabois na Guerrilha do Araguaia, Arruda afirmou: “Ali esteve desde os primeiros momentos, ali conviveu com as massas exploradas e oprimidas e sentiu sua grande revolta, ali atuou abnegadamente ombro a ombro com todos os camaradas, ali colaborou na elaboração de valiosos documentos políticos e militares, ali comandou as Forças Guerrilheiras do Araguaia, ali tombou como um bravo. Caiu com glória, caiu de arma na mão naquele campo de batalha da luta de classes, no Araguaia — ponto alto da referência da luta revolucionária e libertadora de nosso povo.”

– O caminho da revolução na República Popular da China

Neste 1º de outubro de 2024, transcorre o 75º aniversário da proclamação da República Popular da China. À frente da Revolução vitoriosa, em 1949, Mao Tse-tung anunciou: “De hoje em diante, a China vai se colocar de pé.” Mais de 470 milhões de pessoas passavam para o campo socialista. Apesar de ter sido um dos países fundadores das Nações Unidas, em 1945, a China revolucionária só iria ser aceita na Organização em 1971, substituindo a ilha separatista de Taiwan onde o Kuomitang de Chiang Kai-shek, ao ser derrotado pela Revolução, se refugiou. Em 23 de novembro do mesmo ano, o país socialista tornou-se membro permanente do Conselho de Segurança com direito a veto.

A tentativa malograda de incluir a China Popular na ONU logo após o triunfo da Revolução, contou com a ativa participação do Brasil. Oswaldo Aranha, o representante brasileiro, a pedido do secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Halvdan Lie, declarou-se favorável ao ingresso dos representantes do governo de Mao Tse-tung por considerá-lo o único que representava o povo chinês e também porque seria uma grande contribuição à causa da paz entre os povos. A União Soviética, como uma das potências mundiais, advogou a causa de Mao Tse-tung, mas a força diplomática anglo-americana fez prevalecer a opção por Taiwan.

Tarefa central

São dados e fatos muito pouco comentados no Brasil. Isso se deve ao cerco que a mídia promove sobre qualquer assunto afeito ao progresso social. A China, com suas complexidades e peculiaridades, contudo, merece ser analisada com mais rigor. Desde a Revolução, o país tem percorrido com sucesso o caminho do socialismo e conquistado êxitos notáveis no seu desenvolvimento. Com a execução da “Política de Reforma e Abertura”, o Produto Interno Bruto (PIB) atingiu US$ 9,4 trilhões em 2013, o que fez do país a segunda economia do mundo. A vida do povo chinês melhorou consideravelmente; 600 milhões de pessoas deixaram a pobreza.

A China vem tratando o desenvolvimento socioeconômico como tarefa central para um longo período, com o objetivo de transformar o país em uma moderna economia tecnológica até meados deste século. A meta, segundo o governo chinês, é enfrentar a situação complicada da economia mundial buscando avanços com reformas profundas para aumentar o emprego, equilibrar o crescimento regional, garantir a igualdade e a justiça, melhorar a vida da população e promover o progresso social.

Enormes benefícios internos

Todo esse arcabouço teórico trouxe enormes benefícios internos. Um deles é o salto educacional. Ao enumerar os principais eventos que afetaram a China nas últimas três décadas, a maioria dos chineses colocou o Exame Nacional para Entrada na Faculdade (Gaokao, em chinês) em primeiro lugar da lista. Em dezembro de 1977, 5,7 milhões de pessoas participaram do exame nacional, o primeiro do tipo desde o começo da catastrófica Revolução Cultural (1966-1976).

Milhões de estudantes graduaram-se em instituições de ensino superior de vários tipos para formar uma força de trabalho de alta qualidade. As instituições de ensino superior inscreveram cerca de 53,86 milhões de estudantes nas últimas três décadas, dos 128 milhões de participantes do Gaokao. Ao mesmo tempo, o governo fez grandes esforços para desenvolver a educação obrigatória e a ocupacional, com a finalidade de melhorar a qualidade de todos os cidadãos.

Educação nas áreas rurais

Nas últimas décadas, mais de 100 milhões de estudantes formaram-se nas escolas ocupacionais de diferentes tipos. Em 2000, a China alcançou a meta de garantir a educação obrigatória para as crianças e eliminar o analfabetismo entre os jovens e cidadãos de média idade. O grande sucesso nas reformas econômicas ajudou o desenvolvimento da educação no país. Com recursos financeiros suficientes, o governo passou a aumentar o investimento na educação e adotar políticas mais favoráveis, com a maior importância dada às áreas rurais.

Em 2003, um programa de ensino à distância foi lançado para cobrir 360 mil escolas primárias e secundárias rurais, beneficiando mais de 100 milhões de estudantes. Em 2004, o governo central investiu 10 bilhões de yuans (US$ 1,45 bilhão) para construir mais de 8,3 mil escolas de tempo integral nas áreas rurais. Em 2006, a China emendou sua Lei de Educação Obrigatória para isentar os estudantes primários e os estudantes nos primeiros três anos do ensino secundário de pagamento da matrícula e de outras taxas administrativas.

Idioma atrativo

Além de fazer grandes esforços para alcançar a meta de educação para todos, o governo tem encorajado o estudo no exterior. O número subiu de 860 em 1978 para 144,5 mil em 2007. Até o momento, 319,7 mil estudantes chineses voltaram após terem terminado o estudo em outros países. A China também abriu suas portas a estudantes de fora.

Nos últimos 40 anos, 1,23 milhões de pessoas de mais de 180 países e regiões estudaram em instituições de ensino chinesas. Com o sucesso da reforma e um maior prestígio internacional, o chinês tornou-se um idioma atrativo e útil. O número de estrangeiros que estudam chinês já ultrapassa 30 milhões. Até o momento, a China assinou acordos de cooperação e intercâmbio educacionais com 188 países e regiões. Foram firmados acordos de reconhecimento mútuo de diplomas com 33 países.

No campo, o país também passa por uma revolução. Entre a população de 1,3 bilhão, mais de 800 milhões vivem no na área rural. Com isso, o governo chinês prioriza a produção agrícola e a elevação do nível de vida dos camponeses. A informatização no campo prioriza o domínio da tecnologia e das informações a fim de melhorar a produção e a administração.

Indústria básica e infraestrutura

A construção da indústria básica e da infra-estrutura também foi reforçada de forma significativa, dando um suporte crescente ao desenvolvimento econômico e social do país. Entre 1979 e 2007, os capitais destinados aos dois setores somaram aproximadamente 30 trilhões de yuans, representando 38% do total dos investimentos. Um grande número de projetos essenciais como transmissão de gás natural oeste-leste, transmissão de água sul-norte e reflorestamento de terras de cultivo, foram concluídos ou seguem em ritmo acelerado.

A produtividade da indústria de base e o nível infraestrutural aumentaram significativamente. Foram criadas redes de transporte e telecomunicações que cobrem todo o país. As instalações de educação, cultura e esporte também tiveram aprimoramentos. Um aspecto que merece observação especial é o acelerado ritmo de urbanização chinês. A superfície urbanizada subiu de 17,9% para 50% do território nacional. Durante este processo, as metrópoles que mais brilharam foram Pequim, Shanghai e Shenzhen.

Estabilidade social

Em um seminário promovido pelo Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico no Rio de Janeiro, os participantes avaliaram que a política de reforma e abertura criada por Deng Xiaoping não só trouxe desenvolvimento rápido como deu uma contribuição significativa à humanidade e ao mundo. O diretor do Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico, Severino Bezerra Cabral Filho, disse que a política de reforma e abertura foi a mudança política, econômica e social mais importante do mundo nos últimos 30 anos.

Cabral Filho também destacou que, neste processo, a China tomou uma atitude programática e não imitou o modelo de desenvolvimento dos Estados Unidos e de países do Leste Europeu, mas explorou um caminho que atendia à sua própria situação — mantendo o rápido desenvolvimento econômico e a estabilidade social. Segundo ele, estudar este ”fenômeno chinês” tem um importante significado para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil e de outros países em desenvolvimento.

Cinco Princípios

Ao mesmo tempo, a China amplia seus laços comerciais e políticos, baseados nos mesmos “Cinco Princípios” de sessenta anos atrás, quando o país, junto com a Índia e o Myanmar, proclamaram a coexistência pacífica no tratamento das relações internacionais: respeito mútuo à soberania e integridade nacional; não agressão por um país ao outro; não intervenção nos assuntos internos de um país por parte de outro;  igualdade e benefícios recíprocos; e coexistência pacífica.

O Relatório do 18º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCCh), realizado em 2012, deu ao capítulo sobre diplomacia o título “Continuando a promover a nobre causa da paz e desenvolvimento da humanidade”. Segundo o documento, desde o começo do século XXI a China tem feito importantes contribuições para a paz e a prosperidade mundial enquanto mantém a própria estabilidade e desenvolvimento, dando um poderoso impulso para o desenvolvimento econômico global. Ao manter um firme e acelerado crescimento doméstico, a China tem obtido uma taxa de participação média anual superior a 20% no crescimento econômico mundial no século XXI.

Boa vizinhança

Na onda da crise financeira internacional, a China contribuiu duas vezes, com um total de US$ 93 bilhões, para a recomposição do capital do Fundo Monetário Internacional (FMI) e se tornou uma importante força dirigente da recuperação econômica mundial e da reestruturação econômica e financeira internacional. Empenhada em se abrir ainda mais, a China se posicionou em 2011 no segundo lugar no mundo em volume de importações e exportações, no segundo lugar em investimento estrangeiro direto e no quinto em investimento no exterior.

O relatório diz ainda que a China tem trabalhado ativamente para promover a globalização econômica e a cooperação regional, se opondo a todos os tipos de protecionismo. O país, segundo o documento, é um entusiástico promotor e praticante da cooperação Sul-Sul; na década passada, destinou aproximadamente US$ 27,3 bilhões a uma variedade de programas de ajuda internacional e ajudou a aumentar a capacidade de desenvolvimento independente dos países em desenvolvimento pelo cancelamento de encargos de suas dívidas e outros meios, oferecendo uma importante contribuição para a causa internacional da redução da pobreza.

O pesquisador do Instituto de Estratégia Internacional da China, Gao Zugui, destaca que o país sempre persiste na política de boa vizinhança. As cooperações de benefício mútuo com os vizinhos fizeram com que a China se tornasse o maior parceiro comercial da maioria deles. “Com o crescimento econômico rápido da China, não só os arredores como também o mundo foram beneficiados. No futuro, a China deve pensar como melhor favorecer a região. Há uma grande oportunidade nesta área. Por exemplo, a transformação do modelo de desenvolvimento vai resultar no aumento significativo da importação e do investimento no exterior”, avaliou.

Desenvolvimento pacífico

O governo chinês avalia que a paz traz grandes benefícios para o país. Mesmo depois da Revolução, a falta de um ambiente pacífico, tanto dentro como fora das suas fronteiras, impossibilitava o desenvolvimento nacional. A China de então era um país de economia atrasada, debilitado e empobrecido, que enfrentava grandes desafios à sua subsistência e ao seu progresso. Foi assim que os chineses começaram a revisar suas políticas, a reavaliar as relações com o mundo e tomaram uma decisão histórica — a 3ª Sessão Plenária do 11º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, realizada em 1978, definiu o modelo de crescimento e o desenvolvimento pacífico tornou-se parte da estratégia nacional.

O desenvolvimento pacífico, segundo o governo chinês, significa buscar um ambiente internacional de paz em benefício do próprio desenvolvimento nacional. Para a China, a construção econômica interna combinada com o estabelecimento de cooperações com o exterior contribui decisivamente para melhorar o ambiente externo. Como exemplo disso, a China, além de promover as relações com os principais países e regiões, tem aprofundando o conhecimento e os intercâmbios com o Ocidente, mantendo a estabilidade do vínculo com as grandes nações.

Os chineses entendem que, tanto do ponto de vista econômico como do geopolítico, quanto mais eles puderem ajudar outras nações a se fortalecerem, melhor será o mundo para a China. O país também tenta aprender com os erros da América Latina nos anos 1980 e 1990. Por encomenda do governo, a Academia Chinesa de Ciências Sociais publicou, em 2004, um livro chamado Análises do Neoliberalismo, uma compilação de artigos de respeitados acadêmicos chineses escritos sob um ponto de vista marxista, que considera a Rússia e a América Latina como áreas do “desastre” do neoliberalismo. Um dos capítulos trata das vítimas latinas das reformas neoliberais.

A China no flanco japonês

Os chineses certamente têm muito a aprender com essas análises. O país está no centro da economia asiática, umbilicalmente ligada aos Estados Unidos, com um crédito monumental em títulos do Tesouro norte-americano — recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva da “globalização”, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona. O Japão, que enfrenta uma longa crise, é o país da região que ainda hoje enfrenta maiores dificuldades para se levantar. Para complicar mais ainda o cenário japonês, há em seu flanco a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial.

Esse quadro tem tudo a ver com a dinâmica da especulação financeira internacional. A “bolha especulativa” chegou ao seu limite com o esgotamento da capacidade mundial de financiamento do alucinado endividamento público norte-americano pelo agravamento da crise de seus principais financiadores. Assim, os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. E o tombo da economia norte-americana, que inevitavelmente levaria as demais economias à bancarrota, passou a assombrar o mundo. Desde a “crise asiática” essa tendência vem se acentuando e foi captada pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Anann, durante uma conferência internacional em Bancoc, Tailândia, em junho de 1998. “A recessão econômica da Ásia está prestes a se estender por todo o mundo”, disse ele.

As peças políticas no tabuleiro asiático

No pós-Segunda Guerra Mundial, o imperialismo norte-americano fincou suas bandeiras no Oriente porque era real a possibilidade de o continente asiático seguir por um caminho próprio. China e Coréia são exemplos nesse sentido. Com seu feixe de tradições preservado, a China chegou à fase de inventar seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. De quebra, o país tem sido hábil em adaptar-se às transformações do ambiente em que atua, em absorver, mesmo que de projetos rivais e teorias adversárias, aquilo que é fundamental à sua sobrevivência. Essa flexibilidade inteligente é um dos aspectos mais notáveis do sistema chinês.

A China tem, portanto, grande interesse na disposição das peças no tabuleiro político mundial. Daí o seu olhar atento sobre a decisão dos norte-americanos de forçar um atalho, pela via militar, na busca de uma estratégia que responda à desesperadora necessidade de uma saída para a crise econômica. Além dos interesses imediatos, é possível que o imperialismo tenha desenhado em sua estratégia os mecanismos para assegurar o controle das rotas de petróleo e gás natural da Ásia Central e do Mar Cáspio — cujas reservas serão de grande valia quando se esgotarem os recursos do Oriente Médio.

Máquina militar imperialista

O poder de veto das potências no Conselho de Segurança da ONU, contudo, impõe limites à máquina militar imperialista. Mesmo com o fim da estabilidade diplomática que equilibrava a força militar entre as duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial, a ONU representa uma certa garantia de respeito à legalidade internacional. Com a decisão dos Estados Unidos de afrontar essa ordem, abriu-se a possibilidade para que Rússia e China se unissem a fim de conter a agressividade imperialista, levada à prática com a guerra na Ucrânia.

A presença militar norte-americana nas vizinhanças da China, da Rússia — e da sua rica região siberiana — e da Índia, portanto, faz o mundo coçar a cabeça. É a mais grave crise dos últimos 60 anos. Se o conflito se estender, poderá ser cruento. A potência bélica não hesitará em lançar artefatos de extermínio em massa caso seja necessário usar seu senso de revide, sua indiferença internacional e sua sede de status. Junto com outros países, os Estados Unidos se amontoam em clubes como a Otan e, montados em seus arsenais, se autoproclamam os donos do mundo.

Uma oposição firme aos devaneios belicosos dos Estados Unidos e seus aliados só pode vir, no curto prazo, da China e da Rússia — infelizmente porque só estes dois países, entre os que se opõem com mais firmeza ao ataque imperialista, têm poderes políticos e, principalmente, bélicos para tanto. E isso é decisivo. Imagine, por exemplo, a China sem seu arsenal de 120 mísseis e 420 ogivas nucleares. Seria apenas mais um país “emergente”. Ninguém lhe perguntaria a opinião em assuntos estratégicos. Provavelmente a Inglaterra não lhe teria devolvido Hong Kong e os Estados Unidos manteriam por lá muito mais agentes especiais subvertendo a ordem socialista e trabalhando em prol da “democracia” e do “capitalismo cristão”.

– Aurélio Peres, símbolo do PCdoB na resistência à ditadura militar

 

A biografia de Aurélio Peres, escrita pelo jornalista Osvaldo Bertolino, traça o perfil desse combativo líder popular no contexto dos grandes enfrentamentos com a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980.

Primeiro ele liderou a criação dos Clubes de Mães na zona Sul de São Paulo e depois o Movimento do Custo de Vida, que se espalhou pela cidade e chegou em outros estados.

Foram ações que visaram basicamente o combate à alta dos preços dos chamados gêneros de primeira necessidade, que castigava principalmente os lares das periferias.

Nesse processo, Aurélio Peres, como militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e depois do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), se incorporou também à luta sindical, transformando-se em importante liderança dos metalúrgicos de São Paulo, ao lado de personagens como Santo Dias e Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão. Acabou preso e brutalmente torturado do DOI-Codi e no Dops.

Foi salvo por sua ligação com lideranças progressistas da Igreja Católica — sobretudo o cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns —, que acionaram o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e que, numa atitude corajosa, enfrentou os assassinos dos porões da ditadura militar para livrar Aurélio Peres da morte.

Em 1978, Aurélio Peres se elegeu deputado federal pelo então MDB, com uma surpreendente votação para quem fez a campanha praticamente sem recursos.

Na Câmara dos Deputados, ele se destacou como umas das vozes atuantes na defesa dos trabalhadores e no combate à ditadura militar. Na campanha pela anistia, Aurélio Percorreu o país junto com o senador Teotônio Vilela, defendendo a volta da democracia e denunciando os crimes do regime.

Em 1982, se reelegeu deputado federal, com uma votação ainda mais expressiva, e participou com destaque das “Diretas já!” e do movimento que elegeu Tancredo Neves presidente da República.

O livro tem 558 páginas e descreve a vida de Aurélio Peres desde a sua infância nas lavouras de café no interior paulista, passando pela sua vida de seminarista e se estendendo por sua profícua atuação nos movimentos populares e sindical, ativismo que não abandonou quando exerceu seus dois mandatos de deputado federal.

Osvaldo Bertolino, com a experiência da produção de outras biografias, faz um retrato minucioso desse importante personagem da vida democrática brasileira, num período que pode ser considerado decisivo para os avanços obtidos com a Constituição de 1988, agora sob forte ameaça.

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Aurélio Peres autografa livro de sua biografia escrita pelo jornalista Osvaldo Bertolino

– Lula e os dilemas de Delfim Netto

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Por Osvaldo Bertolino

Economista falecido nesta segunda-feira (12) transitou de feroz defensor do desastrado “milagre econômico”, surgido no âmbito do terrorista AI-5, para crítico da radicalidade neoliberal.  

Em sua coluna de 7 de maio de 2003 no jornal Folha de S. Paulo, Delfim Netto mencionou um seminário sobre “Economia socialista” promovido pela Fundação Perseu Abramo em 2000 no qual Luiz Inácio Lula da Silva teria dito, num depoimento espontâneo, que “o ser humano é eminentemente competitivo”. “À medida que se bloqueia a capacidade competitiva do ser humano e que se colocam todos para ganhar a mesma coisa dentro de uma fábrica, cortam-se as possibilidades de sucesso daquela fábrica. As pessoas são niveladas por baixo e não por cima. O socialismo não conseguiu resolver esse problema”, disse Lula, segundo Delfim.

Era uma simplificação vulgar do conceito de socialismo, mas a fala agradou aos ouvidos de Delfim. Lula teria dito ainda que “o mercado só funciona se houver um Estado muito forte regulando-o e obrigando-o a cumprir algumas cláusulas sociais”. “Só o mercado não resolve. Compatibilizá-lo com um Estado regulador, capaz de garantir que ele atenda a todas as necessidades das pessoas, seria o ideal. Como fazer isso é o desafio que está colocado para o PT”, prosseguiu Lula.

Delfim conclui: “Por que desconfiar que há 30 meses, num seminário acadêmico reservado, o futuro presidente estivesse escondendo o seu verdadeiro pensamento quando afirmava com todas as letras e até com certa rudeza na presença de intelectuais (…) que o PT não é um sonho, mas um instrumento político para construir, pragmaticamente, uma sociedade com liberdade, igualdade e justiça, combinando o ‘mercado’ com a ação do Estado? Por que, afinal, insistir na crítica a um suposto descumprimento de um programa abandonado? Todos os partidos querem uma sociedade eficiente, que utilize o mercado, garanta as liberdades individuais e reduza as desigualdades. Nós (os não-petistas) tivemos a nossa oportunidade de construí-la com resultados medíocres. É a vez de o PT tentar! Vamos criticá-lo quando errar nessa construção.”

Nova economia brasileira

Na essência, o PT não errou a ponto de receber críticas de Delfim, conforme prometera na condição de ungido por ele mesmo como oráculo da economia brasileira. Mas ele não deixou de avaliar criticamente o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Aparentemente, aquela certeza de que a sua política econômica dos tempos da ditadura militar salvaria o país não existia mais. O Brasil havia pagado um alto preço pela opção de receber os dólares empurrados pelas baixas taxas de juros internacionais para fazer o “milagre econômico” e pagá-los a juros exorbitantes, política que levou o país ao caos econômico e social no começo dos anos 1980.

O “milagre econômico” representou uma afluência excludente – a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de uma sociedade industrial e a outros apenas a cota de sacrifício necessária àquele salto econômico. Aquele modelo econômico colapsou preso às contradições de uma violenta concentração de capital, produzindo insuportáveis mazelas sociais. Um dado revelado em 1974 pelo senador de oposição do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de São Paulo, Franco Montoro, eleito em 1970, dava bem a medida das dimensões da crise – em dez anos, o Produto Interno Bruto (PIB) crescera 56% e o salário-mínimo caíra 55%. Ou seja: a riqueza nacional aumentou quase na mesma proporção do empobrecimento da classe trabalhadora.

A ideia daquela política econômica está no livro A Nova economia brasileira, de Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, que, com Delfim, comandaram a economia na ditadura militar. Os objetivos básicos eram o combate à inflação, o reequilíbrio do balanço de pagamentos e a criação de bases sobre as quais deveria ocorrer o desenvolvimento de longo prazo, tese que ficaria bem mais conhecida com o arcabouço do Plano Real, adotado em 1994 para dar forma e conteúdo ao projeto neoliberal. Ou seja: primeiro vem a “estabilidade monetária” para surgir o crescimento econômico impulsionado por investimentos privados e só então haveria as condições para se distribuir a produção.

O Brasil pós-milagre

O livro apresenta o dilema: produtivismo ou distribuitivismo? “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram. O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista – que se tornou popular quando Delfim afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. A forma seria, basicamente, o arrocho salarial. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, o economista desenvolvimentista Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”

Um caso emblemático ocorreu em meados de 1977 quando o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) descobriu que 120 mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP) haviam perdido 34,1% de poder aquisitivo nos salários em consequência da compressão nos índices de custo de vida, determinada em 1972, 1973 e nos primeiros meses de 1974 por Delfim, então ministro da Fazenda.

Outras categorias também foram atingidas. Mais de 10 mil jornalistas do estado de São Paulo foram lesados em 12% e cerca de 100 mil bancários viram seus salários reajustados em 17,8% a menos do que o índice de inflação. O estudo do Dieese desencadeou um movimento vigoroso para pressionar o governo pelo ressarcimento do prejuízo. Catorze sindicatos paulistas e outros tantos de outros estados iniciaram, em agosto de 1977, a campanha pela reposição daquelas perdas. Reuniões e assembleias se espalharam pelo país. Outros sindicatos também consultaram o Dieese.

Estopim para as greves

Tudo começou quando a revista Conjuntura Econômica, de julho daquele ano, divulgou a revisão das contas nacionais feita pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) — ligado à Fundação Getúlio Vargas. A revisão apontou um aumento de 20,5% no custo de vida de 1973, e não de 13,7% como fora divulgado.

O substituto de Delfim, Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério da Fazenda em março de 1974, reconheceu o erro em relatório enviado ao presidente da República, general Ernesto Geisel, e publicado pelo jornal Gazeta Mercantil. “Em 1973, o governo, procurando aproximar-se da meta de 12% de inflação, reprimiu ao máximo possível os aumentos de preços via tabelamento e controle (…). Assim, o índice, em dezembro de 1973, registrava a carne de primeira ao preço de 6,60 cruzeiros, quando o preço no mercado paralelo se situava em torno de 14 cruzeiros, ou seja, 112% a mais (…). Se os cálculos fossem corrigidos para tomar por base os preços reais do mercado e não os preços oficiais das tabelas, o aumento global do custo de vida em 1973 subiria 26,6%”, explicou o ministro.

Foi o estopim para as greves de 1978, retomadas dez anos após a ofensiva da ditadura contra os trabalhadores em 1968, a perseguição aos operários que desafiaram o regime com grandes paralisações em Contagem e Belo Horizonte, Minas Gerais, e em Osasco, São Paulo, na conjuntura da edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), o chamado golpe dentro golpe que desencadeou oficialmente o terrorismo de Estado, do qual Delfin foi um dos signatários. As greves ganharam volume e passaram a fazer parte da luta que levaria ao fim da ditadura em 1985.

Produtividade do trabalho  

Delfim foi um dos personagens centrais desse período. Com a disparada da inflação, os aumentos salariais acima do índice oficial do governo começavam a despertar a atenção dos trabalhadores. Segundo a lei salarial vigente à época, o item produtividade deveria ser solucionado entre as partes. Delfim, agora ministro do Planejamento depois de ter passado pelo Ministério da Agricultura, afirmara à revista IstoÉ que, após o reajuste automático dos salários previsto na lei, “eles poderão sentar à mesa e discutir à vontade o aumento da produtividade”. E acrescentou: “Há sérias dúvidas sobre como vai funcionar isto ou aquilo, as pessoas ficam preocupadas com a forma de calcular a produtividade sem deixar de entender que essa é a discussão verdadeira, que se trata de sentar-se à mesa para discutir a distribuição funcional da renda. E vai aprender, na minha opinião. Todos vão aprender.”

A questão era delicada para os empresários. A produtividade do trabalho – criação de mais valor por hora trabalhada – crescia verticalmente e eles temiam que esse mecanismo levasse os trabalhadores a autocontrolarem o processo por meio da organização nos locais de trabalho. A batalha por aumentos salariais acima do índice oficial ganhava volume rapidamente. Não demorou e o próprio Delfim disse que os aumentos reais dos salários eram as causas da disparada da inflação. Para ele, havia um “descalabro” salarial no país que precisava ser contido. Ele chegou a reunir-se com Lula e Arnaldo Gonçalves – presidentes dos sindicatos dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e de Santos – para propor uma trégua nas greves durante dois anos como instrumento de combate à inflação.

Membros do governo manifestaram “oficiosamente” a intenção de aceitar a concessão de um índice de produtividade de 10% e voltaram atrás. Um grupo de empresas multinacionais teria manifestado essa intenção, que foi prontamente rechaçada por Delfim. Obcecado com a ideia de “combate à inflação”, ele chegou a ameaçar deixar o governo se a proposta fosse adiante – ignorando sua definição, segundo a qual a distribuição “funcional” da renda estaria ligada ao ganho de produtividade por meio do “entendimento entre as partes”. A lógica do ministro se coadunava com os interesses dos empresários brasileiros, que julgavam o índice de 10% suportável apenas para as multinacionais.

Porta-voz do Parque Jurássico

Delfim estava diante do dilema apontado por Mário Henrique Simonsen que, em 1979, ao deixar o Ministério do Planejamento, recomendou a Delfim suas ideias sobre “estabilidade”, “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”, termos do projeto neoliberal que invadiria o noticiário econômico nos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Os problemas da economia brasileira se agravavam rapidamente. O país estava atado a um quadro macroeconômico internacional complexo, resultado do acentuado endividamento externo promovido para financiar o “milagre econômico”. A inflação acumulada em 1982 foi de 99,71%. Delfim recorreu a um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 4,4 bilhões, sob a regência de uma Carta de intenções assumindo compromissos com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial.

Após a ditadura, Delfim tornou-se um crítico da radicalidade neoliberal. O Brasil tornara-se um dos lugares em que a teoria de uma lógica do mercado financeiro funcionando como mão invisível impedindo distorções localizadas mais vicejou. Os “guardiões da moeda” da “era FHC” garantiam que o fluxo mirabolante de capital não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Eles diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico “competitivo”. Ao responder a críticas de Delfim a essa retórica, Gustavo Franco, o arrogante então presidente do Banco Central, disse que ele era “porta-voz do Parque Jurássico”.

No governo Lula, quando Palocci deu prosseguimento à política econômica de FHC, ele voltou a criticar a exacerbação do neoliberalismo. O novo ministro da Fazenda assumiu anunciando cortes no orçamento, aumento dos juros e “reformas” neoliberais. Delfim disse que o cenário imaginado por Palocci era irrealista. O “ajuste fiscal” sozinho não resolveria o problema da crise herdada. O governo corria o risco de promover um arrocho violento e ficar sem os resultados esperados. “É absolutamente impossível ter um ajuste com o país crescendo a uma taxa anual de 1% do PIB ou inferior a isso”, disse. “Não existem exemplos na história econômica do mundo de um equilíbrio construído com crescimento tão pífio”, ressaltou.

Burla do déficit nominal zero

Antes da Posse de Lula, Palocci bateu o pé até convencê-lo a fazer o anúncio por escrito dos compromissos da “era FHC” com o FMI – metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário, num documento chamado Carta ao Povo Brasileiro que Delfim passou a chamar de Carta de Ribeirão Preto, numa referência à cidade paulista da qual o ministro fora prefeito.

A equipe de Palocci, segundo Delfim, era de gente necolonizada. “Para eles, o desenvolvimento é a recompensa que desaba sobre a cabeça dos bem-aventurados que praticam as normas que (eles mesmos) supõem ser a boa e dura ‘ciência econômica’. É uma espécie de religião. Qualquer mobilização para o desenvolvimento econômico por parte do Estado é perda de tempo. Pior, é pecado! Contraria os princípios pelos quais se vai aos céus: a definitiva aceitação do deus mercado e a obediência estrita aos cânones da ‘ciência dura’. Quem ‘peca’ pode ter algum prazer no curto prazo, mas vai para o inferno no longo prazo”, escreveu ele na edição da revista CartaCapital de junho de 2003.

Ele mudaria de opinião quando Palocci se isolou no governo. Segundo a revista Veja, Delfim avaliava que Palocci deveria ser “indemissível” porque sua grande missão no governo era evitar que Lula voltasse a ser petista. A avaliação de Delfim se deu no contexto em que ele se aproximou do ministro com a proposta de “déficit nominal zero”, uma burla, segundo o economista Carlos Lessa, que acabara de ser demitido da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por não aceitar as imposições da política de Palocci. “Cortar gastos não faz a economia crescer. Cortar gastos faz a economia cair”, resumiu. Desde então, apesar da proximidade com Lula, Delfim manteve-se discreto tanto nas críticas quanto nos elogios às políticas econômicas.

Força que cresce: o 22º Congresso da União da Juventude Socialista (UJS)

Giovana Mondarto, Leila Márcia, Jorge Panzera, Marcelo Gavião, Tiago Morbach, Bruna Brelaz, Luciana Santos, Rafael Leal e André Tokarski

Por Osvaldo Bertolino

A consigna “manhãs de sol e socialismo” se amoldou perfeitamente ao ato político do 22º Congresso da União da Juventude Socialista (UJS), no domingo 28 de julho de 2024. Depois de três dias de intensos debates na Universidade Paulista (Unip) da Vila Guilherme, zona Norte de São Paulo, os delegados foram para o Sonora Garden, espaço de show pertentente à Associação Portuguesa de Desportos, para as atividades de encerramento do Congresso. Sob o sol radiante, a juventude cantou e dançou até o início do ato, num clima de entusiasmo e de revigoramento do ideal socialista. Por todos os lados se via a diversidade brasileira, com suas caras e sotaques, sorrisos e esperanças.

Discursaram, antes de Luciana Santos, presidenta do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), os ex-presidentes da UJS Leila Márcia, Jorge Panzera, Wadson Ribeiro, André Tokarski, Ricardo Alemão Abreu, Marcelo Gavião e Tiago Morbach. Falaram também os vereadores da UJS, eleitos pelo PCdoB, Giovana Mondarto (Criciúma, Santa Catarina), Giovani Culau (Porto Alegre, Rio Grande do Sul) e Walkiria Nictheroy (Niterói, Rio de Janeiro). Todos destacaram o relevante espaço que a UJS conquistou nos seus quarenta anos de existência, uma organização que esteve presente em todos os eventos políticos desse período.

Leia tambpem:

As carinhas da UJS e o amanhã que canta

Segundo Luciana Santos, “a UJS, mais uma vez, revelou um vigor enorme”. “É com essa alegria que a gente pode fazer luta política à altura dos desafios do nosso tempo. Mais uma vez a juventude revela juízo e muita visão de perspectiva, reafirma o socialismo como perspectiva de sociedade e sabe que no momento precisamos lutar para garantir o êxito do governo Lula, com vistas a novamente derrotar a direita em 2026 e fazer a tarefa de casa de 2024, que é eleger muitos camaradas por esse país afora nas câmaras de vereadores.”

Rafael Leal, presidente da UJS, avaliou o Congresso como um momento privilegiado do debate político nacional. “Na abertura, relembramos a Guerrilha do Araguaia, lembrando os quarenta anos da UJS. Recarregamos as baterias e reajustamos a nossa linha para os próximos dois anos. Trouxemos todos os estados. Foi um grandioso Congresso dos quarenta anos da UJS”, afirmou. Segundo o ele, o Congresso tirou uma Resolução política, apontando o desafio central do próximo período: a luta contra o fascismo e pela reconstrução do Brasil. “Além disso, a gente tem apontado uma plataforma mínima dos jovens socialistas para ser defendida nas eleições municipais deste ano.”

Rodinhas    

Numa das muitas rodinhas, estava uma das caçulas da UJS, Luiza Castro de Jesus, da cidade de Santos, de catorze anos de idade. Ela disse que chegou à UJS por influência do pai, militante da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), e da mãe, sindicalista. “A UJS é legal. Eu gosto da sua proposta”, resumiu.

Ao seu lado, Julia Sacramento Monteiro, de dezoito anos de idade, também de Santos, militante da UJS há três anos, disse que o Congresso foi mais um momento de aprendizado. “Me interessei pela UJS na escola e no trabalho de bairro que seus militantes fazem. Abracei a causa e foi muito bom. O Congresso foi mais uma grande experiência. É muito bom a gente trazer novas pessoas para se apaixonar pela UJS, como eu me apaixonei. É conquistando mentes e corações que a gente constrói a revolução”.

Michele dos Santos Souza, de dezenove anos de idade, também de Santos, com quase três anos de militância na UJS, disse que militar na organização é “incrível”. “É uma juventude que me forma, desde que comecei a militar, na escola, que pensa na transformação da nossa sociedade. Então, ela tem muito a ensinar aos jovens. São quarenta anos de uma grande história, de mudanças. Conheci a UJS quando minha escola estava sendo militarizada e a gente impediu a militarização. Lembro que chorava quando se falava que a minha escola seria militar. E a UJS fez parte disso.”

Ao lado, João Vitor Padovezi, de dezenove anos de idade, disse que veio de Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, para participar do Congresso de “uma juventude literalmente revolucionária, que vai mudar o Brasil”. “Estou amando o Congresso, porque é tudo que eu imaginava e mais um pouco. O sonho de revolucionar o Brasil aumenta cada vez que eu participo de debates como os desse Congresso”, afirmou. Com ele estava Matheus Carrieri, de dezessete anos de idade, do Itaim Paulista, zona Leste paulistana. Disse que está chegando agora na UJS. “Estou muito empolgado, conhecendo gente nova, com ideias bacanas.”

Mais adiante, em outra rodinha, Pedro Diniz, de Salvador, Bahia, estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse que está na UJS desde 2016. “Me filiei na calada do golpe de Dilma, impulsionado pela necessidade de se organizar, enquanto juventude”. “Cada um com suas particularidades, mas compartilhando o sonho comum de mudar os rumos do nosso país. Fazer com que a juventude paute o seu futuro”, resumiu. “O Congresso é incrível, um momento em que a gente renova nossas esperanças e tem a certeza de que realmente a gente está construindo um projeto mais acertado, com a política mais alinhada, mais organizada, com mais potencial para conquistar corações e mentes pelo Brasil.”

Também de Salvador, Osni Guimarães, militante da UJS desde 2017, igualmente estudante de Direito da UFBA, disse que militar na organização é como estar numa escola de formação. “Quando vi a luta da UJS, me apaixonei de cara. Para mim é uma grande alegria e hoje sou coordenador de um núcleo na UFBA. Temos caminhos muito grandiosos pela frente. Esse Congresso é grandioso, com muito debate político.”

Maurício Borges Vieira, de vinte e um anos de idade, estudante de Biologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), milita na UJS há quatro anos. “A UJS é um movimento muito importante para a formação política. Ainda mais quando vejo que a sociedade faz questão de afirmar que eu sou um homem preto. E sempre lembro de vários escritores que também são pessoas negras e falam muito sobre isso. E nesse processo para entender como corpo político, entrei na UJS. Me encontro num processo de formação incrível, de poder discutir socialismo, comunismo, na percepção da juventude.”

Jamile Almeida dos Santos, de vinte e quatro anos de idade, membra da direção da UJS na UFRB, onde estuda Engenharia Sanitária, disse que a organização é importante para inserir a juventude no debate político e mudar os rumos do país.

Kauany Serra, de dezessete anos de idade, de São Luis, Maranhão, disse que a UJS é “um movimento muito bom”. “A partir do momento que entrei, me apaixonei”, resumiu. Com ela estava Ketllen Alves, de dezessete anos de idade, também de São Lauis. Ela disse que a UJS “é uma coisa muito boa, porque luta pelos direitos da juventude”.

As carinhas da UJS e o amanhã que canta

Por Osvaldo Bertolino

Na tarde da sexta-feira (26), palestrei numa sessão do XXII Congresso da União da Juventude Socialista (UJS) sobre os quarenta anos da entidade. Falei com base no livro que escrevi sobre seus trinta anos, que agora estou atualizando, numa edição revisada e complementada por mais dez anos. A previsão é de que até o final deste ano teremos o livro publicado. Comigo na mesa, mediada por Alinne Martins, estavam Leila Márcia e Ricardo Alemão Abreu, ex-presidentes da UJS.

Foi comovente ver a plateia atenta, puxando palavras de ordem, uma diversidade de carinhas que expressava a diversidade brasileira, imagens que me acompanharão vivamente pela vida. Disse a eles que em suas carinhas estava o futuro do mundo, a continuidade do ideal de emancipação da humanidade. Falei da história da juventude brasileira, que entrou na cena política quando o corsário francês Jean François Du Clerc foi expulso do Rio de Janeiro, em 1710, depois de aportar na cidade com seis navios e mil homens de guerra.

Lembrei o papel da juventude nas lutas independentistas, abolicionistas e republicanas, uma evolução que passou pelas mobilizações sindicais do início do século XX e o início de um novo ciclo com a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922. Naquela conjuntura, despontava no horizonte o nazifascismo sombrio, fazendo contraste com o raiar de um novo tempo pelo socialismo que emergiu na Revolução Russa de 1917. Era o auge da crise do capitalismo, que levaria à quebra da bolsa de Nova Iorque e mergulhou o mundo na mais sinistra depressão da era moderna.

Mundo de paz

De passagem, premido pelo tempo, falei que os comunistas deram forma e perspectiva às aspirações da juventude. Foi um resumo da formulação do Partido Comunista do Brasil de que a juventude era uma das principais vertentes da militância comunista, um movimento que crescia por conta das ameaças de guerra e do exemplo da Primeira Guerra Mundial, que ceifou a vida de milhões de jovens. No Brasil, havia um componente a mais: o carcomido regime da República Velha, que começava a ruir estrepitosamente, enfrentava movimentos de contestação, a exemplo dos levantes dos “tenentes” em 1922 e em 1924, que desaguariam na Coluna Prestes e na Revolução de 1930.

O confronto foi inevitável, levando a juventude a novamente se levantar para combater o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Daquela experiência sangrenta surgiu novas compreensões sobre a luta de classes em âmbito mundial e os perigos para a juventude, que logo seria desafiada por novas conflagrações geopolíticas do imperialismo, como foi a Guerra da Coreia, quando o Brasil esteve perto de se envolver diretamente em mais uma carnificina, com a campanha dos setores dominantes pelo envio de jovens para aquele conflito que dizimou mais de quatro milhões de vidas.

Falei disso resumidamente para lembrar que um mundo de paz exige a luta pelo socialismo. A juventude organizada daquele tempo tinha plena consciência disso e foi às ruas para combater o avanço da ideologia da violência. Quando os violentos triunfaram, com o golpe militar de 1964, encontraram pela frente os jovens combativos, animados pelas revoluções socialistas que cintilaram na China em 1949 e em Cuba em 1959. No meio, mais uma sangrenta guerra imperialista, agora no Vietnã. A resistência democrática, no Brasil, chegou à luta armada, com destaque para a Guerrilha do Araguaia.

Vigor da juventude

A UJS surgiu, em 1984, em meio ao vendaval que estava enterrando a ditadura militar. Consequentemente, legou as esperanças e o espírito de luta da juventude revolucionária. Com esse rumo, passou, de forma altiva, por jornadas memoráveis, atravessando o projeto neoliberal e seus intentos golpistas, inclusive na defesa do ciclo de governos democráticos e progressistas dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef. O processo de enfrentamento com os golpistas e o governo bolsonarista deu à UJS novas experiências e reforçou seu ideal socialista.

Ao fazer esse resumo, vi naquelas carinhas o vigor da juventude brasileira desde a expulsão do corsário francês Jean François Du Clerc. Mas vi, sobretudo, a certeza de que é a luta pelo futuro que move o mundo. Lembrei as últimas palavras de Gabriel Peri, do Partido Comunista Francês, antes de ser fuzilado pelos nazistas: “Se tivesse que recomeçar a vida, seguiria o mesmo caminho. Esta noite creio mais do que nunca que o meu camarada Vaillant-Couturier (fundador da Casa de Cultura da França) tinha razão ao dizer que o comunismo é a juventude do mundo. Vou para preparar esse amanhã que canta.”

ESPECIAL: Trinta anos do Plano Real – O outro lado da notícia

A herança maldita do Plano Real

O Plano Real e a farsa goebbeliana da mídia

O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

FHC: a face da corrupção do Plano Real

O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

A visão do PCdoB sobre o Plano Real

– O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Em 28 de junho de 1989, o candidato a presidente da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Mário Covas, marcou o início de sua campanha com o discurso que ficou famoso pelo título Choque de capitalismo. Era uma expressão da revoada – o partido assumiu o tucano como símbolo – de economistas para o ninho que estava nascendo, a chamada turma dourada do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) do final da década de 1970 e início dos anos 1980.

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Covas disse: “Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas. Basta de empreguismo. Basta de cartórios. Basta de tanta proteção a atividades econômicas já amadurecidas. Mas o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.”

O mesmo discurso ficaria famoso na boca de Fernando Collor de Mello, o ungido pelo projeto neoliberal para ser o candidato oficial da direita. Era uma repetição da ladainha de Margaret Tatcher, primeira-ministra da Inglaterra, e Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, precursores do projeto neoliberal, propagada como versão revisitada do liberalismo de Adam Smith. Seu livro Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, bíblia do liberalismo, suplantado pelo imperialismo como fase superior do capitalismo – na definição de Vladimir Lênin, líder da Revolução Russa de 1917 –, passou a circular amplamente, inclusive em exibições públicas de Collor.

Símbolo do udenismo

O PSBD foi concebido no influxo da propaganda do neoliberalismo de Tatcher e Reagan como ala do PMDB que se organizou no processo das eleições estaduais de 1982. Orestes Quércia era o principal líder do PMDB no estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Franco Montoro, eleito governador. Ficou decidido que ele seria o candidato do partido na sucessão estadual de 1986.

Um dos fundadores do MDB – transformado em PMDB com a Lei de Reforma Partidária, aprovada em 21 de novembro de 1979 –, Quércia despertou a ira dos poderosos quando foi eleito senador em 1974, vencendo de maneira acachapante Carvalho Pinto, candidato da ditadura militar e símbolo do udenismo – a organização de conservadores e golpistas chamada União Democrática Nacional (UDN) que precedeu o golpe de 1964 –, um barão da aristocracia paulista, secretário da Fazenda do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo e no estado, governador e ministro da Fazenda no final do governo João Goulart.

Na composição de 1982, Fernando Henrique Cardoso (FHC) elegeu-se senador pela sublegenda. Com a vitória de Montoro, Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta – que seria ministro das Comunicações no governo FHC – assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, em 1986, o grupo se aproximou do empresário Antônio Ermírio de Moraes, que se candidatou pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e não lançou candidatos ao Senado, um dos concorrentes de Quércia. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo estado. Foi a senha para a fundação do PSDB, em 25 de junho de 1988, uma articulação iniciada com o anúncio da vitória de Quércia em 1986.

Corrupção em São Paulo

Na campanha presidencial de Covas em 1989, os tucanos já estavam majoritariamente absortos pelo ideal do neoliberalismo. Em 1991, quando o presidente Collor emitia sinais óbvios de que o país caminhava para a ingovernabilidade, um setor tucano capitaneado por FHC defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra não surtiu efeito, mas o PSDB, impulsionado pela mídia, já articulava um projeto de poder para substituir o governo do presidente Itamar Franco, o vice-presidente eleito em 1989 que assumiu após o impeachment de Collor.

Em São Paulo, o ninho dos caciques tucanos, eles haviam arquitetado o afastamento definitivo de Quércia do posto de principal liderança política do campo que fez oposição à ditadura militar. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno das eleições para o governo do estado, disputado entre Luiz Antônio Fleury – o candidato do PMDB – e Paulo Maluf – candidato do Partido Democrático Social (PDS), o sucessor da Arena, o partido da ditadura militar – houve uma revoada de tucanos para a candidatura peemedebista.

José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury, o vencedor das eleições. Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do Banco Central para assumir a presidência do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Vladimir Rioli, obscuro personagem ligado ao tucanato, um dos caixas da campanha do PSDB, assumiu a vice-presidência de finanças do banco, do qual fora diretor na gestão Montoro, de onde saiu, misteriosamente, em 1993.

Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar US$ 14,1 milhões. Em 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no Banespa e mais tarde privatizá-lo, no processo de consolidação do Plano Real.

Liberalismo e imperialismo

A nomeação de FHC para o Ministério da Fazenda, em 1993, foi a concretização da plataforma política tucana, o molde do Consenso de Washington, receita do projeto neoliberal formulada em 1989 pelo economista norte-americano John Williamson, que seria adotada pelo governo dos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como condição para negociações das dívidas externas dos países dependentes, entre eles o Brasil, assolado por uma crise inflacionária gerada quando a conta do “milagre econômico” da ditadura militar começou a ser paga.

A receita consistia, basicamente, em arrocho fiscal – redução orçamentária de itens como Previdência Social, seguridade e investimentos públicos –, abertura comercial e financeira, privatizações selvagens e superávit primário, a garantia de pagamento dos títulos do Estado no mercado financeiro.

Quando FHC anunciou seu projeto, saudado pela mídia como a volta ao liberalismo, Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que era uma utopia. “A volta à época descrita por Adam Smith é uma quimera. Está longe da realidade. Seria a volta do capitalismo mais de um século atrás. O objetivo é confundir, para justificar o ‘modernismo’”, afirmou. Implicava a revogação de todas as teorias e práticas que contestaram o imperialismo – o sucessor do liberalismo –, como o keynesianismo (a teoria de John Maynard Keynes, economista britânico que na década de 1930 formulou a teoria do papel regulatório do Estado para minimizar as instabilidades da economia), a social-democracia e o projeto socialista.

A posse estridente de FHC se deu em meio a atropelos ao presidente Itamar, tratado pela mídia de forma desrespeitosa por sua discordância com os cânones do projeto neoliberal, como se houvesse uma espécie de carta branca para afrontas à Constituição, conforme confessou Edmar Bacha – um dos principais responsáveis pela coordenação do departamento de economia da PUC-RJ, integrante da turma que aportou no PSDB na sua fundação –,em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 30 de junho de 2024 sobre os trinta anos do Plano Real.

Ele relata que numa reunião com a equipe econômica e advogados, FHC ficou irritado e saiu dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Era a ignição do Plano Real, que já na largada afrontou o artigo da Constituição de 1988 que limitava os juros em 12% ao ano, proposta do constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP) sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, consultor-geral da República no governo do presidente José Sarney, ao propor a sua regulamentação por uma lei complementar que nunca veio.

Barões capitalistas

Assim surgiu o Plano Real, numa operação que levaria a sucessivas mutilações da Constituição, um festival de arbitrariedades. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia, basicamente, em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização monetária”, embrião do superávit primário), reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda.

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. O projeto neoliberal agora tinha sujeito, predicado e objeto direto. Renato Rabelo definiu a manobra como “unidade programática” da candidatura dos barões capitalistas e trazia o embate ideológico sobre a questão do Estado no processo de desenvolvimento. No capitalismo, disse, o Estado assumiu diferentes funções no desenvolvimento econômico, tendo em vista os interesses da burguesia e, logicamente, fazendo prevalecer a vontade dos seus setores mais fortes. “As empresas estatais a serviço do sistema capitalista, desde as ‘descobertas’ de Keynes, e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, adquiriram variadas funções. Transformaram-se, em países como o Brasil, em fator dinâmico no processo de industrialização, em instrumento de soberania econômica.”

Esse papel empresarial do Estado, prosseguiu Renato, já não servia aos capitalistas como antes, embora eles não prescindissem do concurso da ação estatal para empreendimentos que exigiam grandes investimentos, com retorno demorado. “As empresas estatais rentáveis, produtos da construção de décadas realizada pelo patrimônio público, são cobiçadas. No estágio atual, passam às mãos de grandes grupos privados, entrando no jogo das disputas intermonopolistas. Na concorrência entre eles conta, e muito, o controle de uma grande empresa estatal.”

Operação Lava Jato

A fusão monopolística abarcava setores privado e estatal, explicou Renato. “No caso dos países dependentes, como o Brasil, as empresas estatais, sobretudo as rentáveis e estratégicas, são presas de negócios vantajosos. Daí porque a propaganda neoliberal diversionista considera-as ‘ineficientes’ e ‘superadas’. Nos planos do grande capital, as estatais podem amortizar as dívidas externas dos países do Terceiro Mundo e são assumidas por grandes monopólios. Sem as estatais, esses países deixam de contar com importantes meios econômicos na sua luta pela independência”, denunciou.

O golpe, segundo Renato, era maquiado com o conceito de “Estado mínimo” e “modesto”, ou “pequeno, mas forte”, para justificar o objetivo do capitalismo de derrubar as fronteiras nacionais, transformando todas as nações em livre mercado para facilitar o acesso dos grandes conglomerados. “Além disso, o programa das tendências dominantes defende a liquidação dos monopólios estatais, mas preserva e fortalece os monopólios privados.”

Para levar adiante seu projeto, nas eleições presidenciais de 1994, o PSDB foi buscar o Partido da Frente Liberal (PFL), dissidência do PDS. Era o par perfeito, uma união em regime de comunhão de bens. FHC virou candidato único da mídia e venceu Lula – até o Plano Real, o favorito disparado nas pesquisas – no primeiro turno. Denúncias de “caixa dois” circularam amplamente, recurso repetido às claras na reeleição de FHC, em 1998. Tempos depois, a fraudulenta e corrupta Operação Lava Jato publicizou a prática dos neoliberais como “descoberta” de um grande esquema de corrupção, manobra que levaria ao golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, para a restauração da ordem neoliberal.