O dilema dos juros no mundo capitalista

Por Osvaldo Bertolino

O ciclo de juros elevados no Brasil, confirmado pela decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, na quarta-feira (29) ao subir a taxa básica Selic de 12,25% para 13,25% ao ano, é parte de um complexo jogo na economia mundial. Ele se relaciona à natureza das essências do capitalismo e de seu antípoda, o socialismo. O ponto é: o que tem o capitalismo a oferecer à humanidade com um regime absolutamente controlado pelo giro descontrolado do capital financeiro? O que o centro do império capitalista, os Estados Unidos, têm para exportar, além de parasitismo financeiro?

Trata-se de um sistema que crava suas garras nos orçamentos e patrimônios públicos e suga as economias, ignorando fronteiras, soberanias, leis e direitos dos povos. O mercado de títulos públicos e de dividendos, e seus derivativos, transfere renda para os ricos numa proporção brutal. As economias ficam engessadas pela política de juros, arma discricionária contra a inflação usada como espécie de cláusula pétrea da gestão econômica, fórmula segura contra a desvalorização dos ganhos na ciranda financeira, aquilo que o Copom acaba de chamar de impacto da política fiscal nos “ativos financeiros”. Resultado: qualquer crescimento econômico gera descompasso entre consumo e produção se a demanda não for socorrida com investimentos.

Surge, dessa equação, o grande entrave: o investimento, inviabilizado pelo giro financeiro que faz dinheiro gerar dinheiro sem passar pela produção. Teria de haver investimentos públicos, a causa de tantos ataques a qualquer projeto de desenvolvimento com inclusão social que, consequentemente, conteria a farra financeira.

A receita dos juros altos está espalhada pelo mundo do capitalismo, gerando crises e controvérsias. Nos Estados Unidos, o coração do sistema, seu banco central, o Federal Reserve (Fed), manteve as taxas inalteradas na faixa de 4,25% a 4,50% ao ano, interrompendo um ciclo de cortes.

No comunicado que informa a decisão, o Fed fala de inflação “relativamente elevada”, uma alteração em relação à linguagem que falava de “progresso” no retorno à meta de 2% de juros. No mercado de trabalho, as “condições permanecem sólidas”, o que reforça a noção de que a economia continua sobreaquecida, a causa da inflação. Soma também os anúncios do presidente Donald Trump de elevação de tarifas às importações norte-americanas, além da política de deportações de imigrantes que poderá pressionar o custo da força de trabalho. O Fed prevê que, com essas políticas, pode haver um efeito expansionista da economia, que deverá resultar em crescimento mais forte e, por conseguinte, dificultar o corte dos juros.

Ameaças de Trump

Também para combater a crise de crescimento da economia, o Banco Central Europeu (BCE) acaba de reduzir a taxa básica de juros em 0,25%, no quinto corte desde o início do ciclo de afrouxamento monetário em junho de 2024. A decisão certamente comparecerá no debate eleitoral na Alemanha, a maior economia da região, prestes a ir às urnas. A perspectiva é de novos cortes pelo BCE, num duelo de falcões e pombos, como é chamada divisão entre os que defendem menos e mais juros. Falcões são os que reagem a qualquer sinal de subida da inflação com endurecimento da política de juros. Os pombos defendem a adoção de uma política menos agressiva para não gerar estagnação econômica.

Há também as ameaças de Trump, que promete rever as relações econômicas entre Estados Unidos e União Europeia (UE). O presidente norte-americano disse que seu país tem “centenas de milhares de milhões de dólares em déficits (comerciais) com a UE e ninguém está satisfeito com isso”. Trump lamentou ainda que seja difícil para as empresas norte-americanas competirem na UE. A presidente do BCE, Christine Lagarde, respondeu que Trump trata o problema de forma injusta. E fez um apelo para que as partes trabalhem juntas e respeitem as regras. “Se a Europa aprendeu alguma coisa depois da Segunda Guerra Mundial foi que não se pode avançar só, e que é preciso trabalhar em conjunto e respeitar-se mutuamente”, disse.

Ela apelou aos líderes políticos europeus para que cooperem com Trump em matéria de tarifas e comprem mais produtos fabricados nos Estados Unidos, alertando que uma guerra comercial lançaria o mundo no risco de destruir o crescimento económico global. “Como tornar a América grande outra vez se a procura global está caindo?”, questionou. “Levando os outros países a comprarem dos Estados Unidos”, respondeu. “Comprar certas coisas aos Estados Unidos”, como gás natural liquefeito e equipamento de defesa, sugeriu.

Argumentos matemáticos

O fato é que o capitalismo há tempos se debate com a superação de sua ideologia dita liberal. Desde o auge do iluminismo, ou movimento das luzes cuja era tem como símbolo a Revolução Francesa, até o começo do século XX, a ideia do “livre comércio” foi praticamente a fórmula única para erigir formas de sociedade. A transformação da Rússia – depois, União Soviética – na primeira nação a se industrializar e a se desenvolver política e economicamente fora desse padrão chacoalhou essa verdade. O desenvolvimento de uma nação, desde então, já não é tido como benesse exclusiva do homem anglo-saxão rico.

Criou-se, nessa nova configuração mundial, uma dualidade que, por um lado, cresceu como extensão do modelo de socialismo soviético e, por outro, expandiu pelo domínio econômico, e principalmente por força do poderio militar, das potências capitalistas. No final da Segunda Guerra Mundial, esse quadro ficou bem delineado. Enquanto o socialismo expandia para o Leste Europeu e cravava sua bandeira na América — Cuba — e na Ásia — China, Vietnã e Coréia — por meio de movimentos de libertação nacional e revoluções, o imperialismo “ocidental” implantava ditaduras e regimes atrelados aos seus interesses.

O ponto final do bloco soviético, esculpido pelo trio Reagan-Tatcher-Gorbachov, degradou muito esse quadro. Claro que China, Cuba, Coréia Democrática e Vietnã seguraram com brio a bandeira do socialismo. Mas, com a exceção da China, esses países ainda têm muito a caminhar até atingir um platô em sua trajetória de crescimento. O fato é que a atual fase da crise dos países capitalistas está mostrando que, em um mundo de economias “globalizadas” pelas finanças, a China, com seus números e ritmo de crescimento espetaculares, vai se firmando como centro de uma nova ordem mundial.

– Os dilemas de Mélenchon e Macron na França

Por Osvaldo Bertolino

Talvez nunca o nome de Jean-Luc Mélenchon tenha sido lido e ouvido no Brasil como nesse pós-eleições legislativa na França, encerradas no domingo (7). Tampouco se sabe exatamente quais são suas ideias e projeto político. Líder do partido França insubmissa, a possibilidade de sua indicação para o posto de primeiro-ministro vem gerando controvérsias à direita e à esquerda. Para o establishment constituído no período mais recente na França, Mélenchon está descartado.

O fundo da questão é a política monetária e econômica do presidente Emmanuel Macron, eleito sem apoio dos partidos políticos tradicionais, um representante do sistema financeiro internacional e, segundo dizem, do inteiro agrado do governo alemão. Contudo, suas políticas de “austeridade fiscal” são altamente rejeitadas e estão associadas ao percurso da ofensiva neoliberal que leva, frequentemente, multidões às ruas, demonstrando a combatividade sobretudo dos trabalhadores.

Um caso clássico se iniciou em 1988, quando Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, antecipou as dificuldades para o projeto neoliberal. “’A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros’”, afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira.

Termômetro social

A “reforma” da previdência, encaminhada pela maioria dos vizinhos europeus na década de 1990, virou a grande prioridade do segundo governo do presidente Jacques Chirac, reeleito em 2002. Ele quis aproveitar a maioria parlamentar para mexer num vespeiro, que faria o termômetro social atingir elevadas temperaturas: milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando as expectativas iniciais.

A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. ”As ruas não governam o país”, reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Europeia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a “reforma” da previdência voltou para a gaveta e seria aprovada somente no governo Macron, por meio de uma manobra legislativa, elevando significativamente a idade para a aposentadoria.

Para aprová-la, a primeira-ministra Elisabeth Borne, do mesmo partido de Macron, invocou um artigo da Constituição que permite ao líder do governo dispensar a votação de um projeto de lei em situações limite. Ou seja: por meio de uma “canetada” a “reforma” foi aprovada. Membros da oposição na Assembleia Nacional apresentaram duas moções de desconfiança contra o governo, que poderiam levar o gabinete de Borne à queda e a novas eleições, ambas derrotadas.

Déficit de democracia

O dilema francês é o mesmo de todos os países capitalistas – a “austeridade fiscal” que castiga o povo, essência do projeto neoliberal. Na Europa, as transmutações da social-democracia deram sobrevida a projetos políticos de direita, como o governo Macron, e abriram espaços para a galopante ascensão da extrema-direita. A região vive um clima de tesão com o ressurgimento de variadas formas de conflitos políticos.

O exemplo mais destacado são os programas de resgate financeiro, condicionados a “ajustes fiscais” rigorosos, despertando reações como a da Grécia, que voltou a exigir reparações da Alemanha pela destruição do país na Segunda Guerra Mundial. “Há um déficit de democracia e tecnocracia em excesso na Europa”, comentou recentemente André Freire, professor de Sociologia Política e de Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa, no jornal Público, de Portugal.

Ele argumenta que as organizações europeias não têm pedigree democrático. “A própria Comissão Europeia tem uma legitimidade democrática limitada, indireta, não eleita, que advém dos governos nacionais que, contudo, não são eleitos com um programa para a Europa”, sustenta. “A única instituição com legitimidade democrática é o Parlamento Europeu, que não tem iniciativa legislativa, não forma governo nem tem poder de censura sobre a Comissão”, avalia.

André Freire diz que os “populismos” são “como as dores para o organismo”. Ou seja: um sintoma da doença. “Não é por acaso que na Europa os mais desprotegidos são os mais céticos, porque são os perdedores”, sintetiza. “Os social-democratas abandonaram de algum modo as classes baixas, falam para nichos eleitorais das classes médias e para as elites urbanas”, diagnostica.

O Público cita o recrudescimento dos ataques do Norte ao Sul, como fez o ministro das finanças holandês, Jeroen Dijsselbloem, então presidente do Eurogrupo, ao dizer para o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung: “Não posso gastar o meu dinheiro todo em bebida e mulheres e depois disso ir pedir a vossa ajuda.” Esse estereótipo de um Sul preguiçoso vivendo às custas dos contribuintes do Norte emergiu quando as ajudas financeiras, primeiro para a Grécia e depois para a Irlanda, se sucederam em poucos meses em 2010.

A ideia de que nos países do Sul se trabalha pouco e se vive à custa dos contribuintes do Norte foi alimentada de forma agressiva na Alemanha, desde 2010, pelo tablóide de maior circulação, o Bild, informa a Agência France Press. Os “gregos falidos” foram, durante o período dos resgates, o alvo do jornal, que apresentava a questão de forma simplista: de um lado, estavam os gregos “que bebem grandes quantidades de ouzo (um tipo de bebida alcoólica), vivem com reformas douradas ou cometem fraudes fiscais nas suas ilhas soalheiras”; do outro, “os alemães, ‘que se levantam todas as manhãs, trabalham o dia todo” e têm sido durante anos a vaca que fornece leite à Europa, devido aos impostos que pagam”.

Vacas ordenhadas

Na imprensa grega, segundo o Público, a resposta passou por evocar o passado nazista da Alemanha e a sua ambição de dominar a Europa. A então chanceler Ângela Merkel e seu ministro das finanças, Wolfgang Schäuble, foram retratados em caricaturas envergando o uniforme nazista. Uma pesquisa divulgada pela revista Epikaira revelou que 77% dos gregos acreditavam que a Alemanha pretendia instituir um IV Reich.

Na Finlândia também houve manifestação semelhante à da extrema-direita alemã. Na campanha para as eleições legislativas de 2011, a obrigatoriedade de aprovação no parlamento de Helsinque de qualquer pacote de ajuda aos países da Zona Euro catapultou o tema para o centro do debate político e polarizou os discursos.

O aumento exponencial da base de apoio do partido de extrema-direita “Verdadeiros finlandeses” era um sinal de que o discurso preconceituoso pegara. “Aqui, no Norte, consideram-nos vacas que devem ser ordenhadas, mas temos algo a dizer e não vamos jogar dinheiro fora”, afirmou o líder do partido de extrema-direita, Timo Soini, que fez campanha sob o slogan Os finlandeses primeiro.

O diagnóstico preconceituoso de um Sul preguiçoso contaminou o discurso de figuras centrais da política europeia. “Em países como a Grécia, Espanha e Portugal, as pessoas não devem se aposentar mais cedo do que na Alemanha”, defendeu Ângela Merkel na campanha eleitoral em maio de 2011. “Todos temos de fazer esforço, isso é importante, não podemos ter a mesma moeda, e uns terem muitas férias e outros poucas”, comentou.

Guinada à esquerda

A tensão ganhou um tom mais acintoso em 2015, no processo de um novo acordo com a Grécia, nesta altura já liderado pelo Syriza de Alexis Tsipras, de esquerda, que acusara a Comissão Europeia de “terrorismo” e de “chantagem” sobre a população grega. A maioria dos alemães defendia a saída da Grécia do Euro e havia notícias de que o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble Schäuble, tinha proposto, no Eurogrupo, um Grexit – saída da Grécia da Zona Euro – temporário. Um acordo acabou por ser atingido, mas condicionado por um reforço das medidas de “austeridade fiscal” e uma lista de garantias adicionais para satisfazer os credores, incluindo um polêmico fundo de privatizações no valor de 50 bilhões de euros.

O acordo foi visto como “humilhação” do povo grego. O economista norte-americano Paul Krugman apelidou-o de “pura vingança” e, nas redes sociais, a hashtag #This is a Coup (Isto é um golpe de Estado) ganhou força no Twitter. O mal-estar estendia-se à oposição interna alemã, como ficou patente nas palavras de Reinhard Bütikofer, eurodeputado do Grupo dos Verdes: “A Alemanha cruel, ditatorial e feia volta a ter um rosto e esse é o de Schäuble”.

Esse debate está muito presente na França. Jean-Luc Mélenchon é um duro oponente do projeto neoliberal, mas algumas de suas atitudes têm despertado controvérsias, inclusive a recusa em caracterizar o grupo palestino Hamas como “terrorista”, posição que causou polêmica até no Partido Comunista Francês (PCF). Mas a questão principal tem sido suas atitudes divisionistas no campo da esquerda.

De passagem pelo Brasil em março de 2017, o filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo disse, em evento de lançamento do seu livro A Esquerda ausente, que havia um despertar da esquerda na Europa, mas ainda permeada de limitações teóricas. “A acho que, em todos os casos, ainda não compreenderam a fortaleza do ataque contra o Estado de bem-estar social. É um ataque furibundo, que requer uma resposta coordenada”, disse. Resta agora saber qual será o alcance dessa compreensão na França e o poder de unidade para enfrentar a poderosa onda neoliberal que se levanta no mundo capitalista contra a possibilidade de uma guinada à esquerda, que teria efeitos em escala planetária.