– As big techs e as gerações que vêm com tudo

Por Osvaldo Bertolino

No interessante livro Big tech – a ascensão dos dados e a morte da política, que reúne os principais artigos de Evgeny Morozov, um dos mais influentes especialistas em tecnologia e internet do mundo, consta um amplo painel sobre a aliança entre o neoliberalismo e o Vale do Silício. Ele problematiza o que define como lógica do chamado “solucionismo” tecnológico, que enxerga a tecnologia como panaceia para problemas que instituições falharam em resolver. Na verdade, é uma possibilidade que pode servir de ferramenta contrária à democracia. O alerta suscita reflexões sobre a inter-relação da economia com a política – a clássica economia política –, sem a qual uma e outra se artificializam.

O poder do neoliberalismo, decorrente da elevação em grau máximo da influência do capital financeiro sobre o capital industrial, se traduz numa luta política que implica atuar levando em conta a dimensão dessa aliança. Atuar de forma isolada em determinanda esfera sem atentar para essa inter-relação significa limitar a abrangência do combate. O que se nota nessa conjuntura é uma luta de resistência, que exige uma organização popular interagindo com a realidade de cada local, produzindo conteúdo e acúmulo teórico. Em síntese: criar canais para a atuação política apontada para a superação das contradições da contemporaneidade.

A principal delas é o desenvolvimento nacional, um projeto de múltiplas interfaces. Lutar pela democratização da comunicação – ou pela guerra cultural e o debate ideológico – é uma exigência que passa por esse caminho. A combinação simultânea e proporcional da economia com a política possibilita categorias que armam ideologicamente a luta de classes, com suas complexidades, um conceito que abrange a conjuntura internacional e seus tentáculos, determinante para o entendimento do que está em questão em âmbito nacional.

Macacada reunida

O ponto mais decisivo nesse universo é o binômio emprego e renda, que espalha controvérsias, gerando ascensões de forças políticas que negam a civilização, potencializadas por estagnações econômicas e carregadas de obscurantismos. Chamadas de extrema-direita, são, a rigor, manifestações de antagonismos que se agudizam com a evolução dos dilemas do capital. Seu principal efeito pode ser visto às claras entre a juventude que chega ao mundo do trabalho enfrentando desafios inéditos.

São gerações que nasceram sob a interatividade e o virtualismo, desligadas da lógica dos seres analógicos pré-anos 1990. Em suma: estão familiarizadas com um mundo pequeno, conectado, desenhado em interfaces amigáveis, que lhes chega mediado pela tela de alta resolução. Mas, quando falam de seus problemas, o fazem de modo a deixar evidente a questão principal: o desemprego. Ouça-se Jota Quest, um porta-voz da primeira geração dessa juventude no Brasil: “Macacada reunida/Galera pelejando e dançando/Procurando uma saída (…) Que tá faltando emprego no planeta dos macacos.”

Mesmo quando ocupados, podemos verificar que são destinados aos jovens as posições de baixa qualificação e remuneração. Uma parcela significativa deles que precisa trabalhar sob essas condições compromete sua escolarização sem completar sequer os ciclos educacionais compatíveis com a sua idade.

Gerações digitais

É a face do chamado McJob, nome genérico que nos Estados Unidos e na Europa se dá a empregos de baixa especialização e de baixa remuneração no setor de serviços, que se espalhou no Brasil. A prova disso está disponível em qualquer loja do McDonald’s – e congêneres -, onde se vê punhados de adolescentes brasileiros frequentemente vistos como um grupo mal preparado e de pouco futuro. Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs simbolizam uma geração que enfrentou dificuldades para trocar seu diploma universitário por um bom emprego. Eles chegaram ao mercado de trabalho com um currículo cinco estrelas e tiveram que se virar com um emprego destinado a quem tem pouca formação escolar.

Nos Estados Unidos e na Europa, os McJobs geralmente complementam os rendimentos de quem está cursando o colégio ou mesmo a universidade. No Brasil, não. O McDonald’s, por exemplo, tem mais de 30 mil funcionários no país – 85% trabalham como atendentes nos cerca de 500 restaurantes brasileiros da rede. Cada loja tem em média 70 funcionários, e quase todos têm entre 16 e 21 anos, ganhando salários irrisórios. Por esses dados, é possível visualizar o maior drama da juventude brasileira – a entrada no mercado de trabalho. Quem são e o que pensam esses jovens?

Eles compõem as primeiras gerações digitais da história, que emergem no Brasil e em vários outros países com uma força avassaladora. Trata-se de uma moçada que nasceu com hábitos específicos, com jeitos e objetivos muito próprios, e que vai, em breve, tomar as rédeas do país e imprimir a ele suas ideias e seus estilos. Essas gerações vão, muito provavelmente, chacoalhar regras e certezas estabelecidas. Elas impõe um desafio ao mesmo tempo simples e crucial: incorporar essa moçada nas lutas progressistas.

O desafio está na aprendizagem da linguagem e dos seus anseios. E está também na desaprendizagem das práticas que caducaram ou estão caducando. Essas geraçôes romperam com a tradição de sua espécie, que é analógica desde seus primórdios. Raciocinam e se movimentam vida afora a partir de novas e inéditas coordenadas. Essa turma já nasceu sendo filmada, virando registro eletrônico, e cresce na frente de um aparelho de alta tecnologia. São jovens que se divertem com vários programas e tornam-se exímios com um teclado antes mesmo de entrar na escola.

Desânimo e violência

Os dados têm um efeito devastador sobre os jovens quando saem da frieza do papel. Uma pesquisa do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) mostrou que o maior temor dos estudantes de São Paulo é terminar seus cursos e não conseguir emprego. A pesquisa entrevistou 500 jovens de 16 a 25 anos. Desse total, 42% disseram temer não conseguir uma colocação no mercado de trabalho. Um índice bem mais alto do que o de outras preocupações, como obter independência financeira (15%) ou melhorar a qualidade de vida (14%). Segundo as estimativas mais otimistas, para melhorar essa situação o Brasil precisaria retomar um crescimento econômico de 6% ao ano.

Um dos efeitos mais nocivos do desemprego é a combinação de desânimo com violência. Muitas vezes, os jovens fazem a sua parte ao estudar, mas a falta de perspectiva os leva à depressão, à inatividade e ao desespero da droga e do crime. Os governos Lula iniciais tentaram amenizar o drama. Em 2006, o Ministério do Trabalho e Emprego assinou 13 convênios com entidades do movimento social para a execução em 2007 dos Consórcios Sociais da Juventude.

No atual governo, o Ministério do Trabalho e Emprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) lançaram, o Pacto Nacional pela Inclusão Produtiva das Juventudes. A iniciativa pretende unir esforços para impulsionar a empregabilidade e formação profissional para jovens em situação de vulnerabilidade no país até 2030 e conta, também, com o apoio do Pacto Global das Nações Unidas, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e da Secretaria Nacional de Juventude.

Papel do jovem

Segundo o Censo Demográfico 2022, o Brasil conta com 45,3 milhões de adolescentes e jovens de 15 a 29 anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostram que um em cada cinco brasileiros nessa faixa etária não estudava e nem estava ocupado em 2022, um universo de 10,9 milhões pessoas, o equivalente a 22,3% da população nacional. Deste, 43,3% eram mulheres pretas ou pardas, 24,3% homens pretos ou pardos, 20,1% mulheres brancas e 11,4% homens brancos. Havia 4,7 milhões deles que não procuravam trabalho e nem gostariam de trabalhar, entre eles dois milhões de mulheres cuidando de parentes e dos afazeres domésticos, 61,2% pobres, 47,8% pretas ou pardas.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que o desemprego entre jovens no Brasil é, na média, o dobro da população geral historicamente. De acordo o relatório sobre empregabilidade de jovens da OIT, chamado Global Employment Trends for Youth, publicado dia 11 de agosto de 2022, o número global de jovens desempregados pode chegar a 73 milhões. A projeção para 2022 era de que 27,4% das mulheres jovens em todo o mundo estariam empregadas, em comparação com 40,3% dos homens jovens. O fenômeno é mais notado nos países de renda média baixa.

Não é somente a falta de crescimento econômico que mingua os empregos. A tendência de enxugamento de postos de trabalho – acentuada pela onda de fusões e aquisições das grandes corporações – e a redução da oferta de cargos públicos, tanto pelos “ajustes” do projeto neoliberal a que os governos foram submetidos com a brutal Lei da Responsabilidade Fiscal quanto pelas privatizações – têm impacto direto sobre o emprego. É verdade que há muito mais coisas que o governo pode fazer. E os sindicatos também. E a sociedade também. Mas nada substitui o papel do próprio jovem nesse processo.

– O Plano Real contra a soberania nacional

Por Osvaldo Bertolino

Multidões nas ruas, palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, bombas de gás lacrimogêneo, tumulto. Este cenário era comum nas conturbadas privatizações dos anos 1990, sobretudo após o Plano Real, o catalisador de votos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Em 1994, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato da oposição, cortava o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania, FHC desfilava na mídia prometendo o que não cumpriria. Estava em andamento, como base da “estabilização da moeda”, a preparação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), a adequação do sistema bancário ao mercado de títulos públicos, aquecido com a liberalização financeira.

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De 1º de julho de 1994, data da implantação do Plano Real, a 3 de novembro de 1995, quando o Proer foi instituído por uma Medida Provisória, o Banco Central fez 22 intervenções no sistema bancário. Em 17 de novembro de 1995, outra Medida Provisória deu ao Banco Central a obrigação e o poder de escolher os bancos que teriam solidez. De outubro de 1995 a maio de 1996, o governo liberou US$ 12,1 bilhões, salvando bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira.

Estava também em andamento o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelo presidente dos Estados Unidos George Bush – pai do também presidente George W. Bush – em 1990 e reavivada em 1994, uma resposta ao fracasso das negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que enfrentava protestos onde se reunia. Seria uma ferramenta sobressalente, reserva estratégica que permitiria entrar pela janela o que não pôde entrar pela porta, a realização em escala regional daquilo que não pôde ser feito em escala mundial, na definição da professora do Centro de Pesquisas e Estudos sobre a América Latina e Caribe (Crealc), Janete Habel.

O Brasil entregou o comércio exterior a um grupo de 45 diplomatas, nove dos quais acreditados em Genebra – onde fica a sede da OMC – e seis na missão junto à União Européia, em Bruxelas, nenhum deles especialista em Alca. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães, que seria secretário-geral do Itamaraty no governo Lula – após ser demitido do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (Ipri) pelo ministro das Relações Exteriores do governo FHC, Celso Lafer, por suas repetidas e enfáticas criticas à entrada do Brasil na Alca -, o Brasil corria o risco de adotar uma incorporação de forma subordinada e assimétrica ao sistema econômico e político dos Estados Unidos.

“Julgava-se então que o livre ingresso de bens e de capitais estrangeiros modernizaria a estrutura produtiva e geraria exportações suficientes para compensar as remessas de recursos”, disse ele. “Nosso desarmamento unilateral, pensava-se, colaboraria para o desarmamento das grandes potências. Elas, porém, continuaram a se armar e a agir cada vez mais arbitrariamente. Acreditava-se na imparcialidade de agências como a OMC e o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o que se constata é o seu viés pró-Estados desenvolvidos”, afirmou. “O projeto da Alca atende aos interesses estratégicos dos Estados Unidos para a América do Sul, mas afeta muito em especial o Brasil, devido a nossas dimensões territoriais, de população e de PIB”, comentou

A Alca colocaria em confronto direito, ainda que gradualmente, as megaempresas multinacionais americanas e as empresas brasileiras, disse ele em entrevista ao jornal Correio Braziliense de 19 de abril de 2001. “As regras internacionais que viriam a ser consagradas pela Alca levariam à impossibilidade prática de o Brasil exercer políticas comerciais, industriais, tecnológicas, agrícolas e de emprego indispensáveis à superação das extraordinárias disparidades sociais e da crônica vulnerabilidade externa”, afirmou.

Um plebiscito organizado por entidades do movimento social, precedido de uma campanha de esclarecimento, ocorreu entre 1º e 7 de setembro de 2002, em 3.894 municípios. Dos 10.149.542 votantes, 98% manifestaram-se contrários à adesão. Renato Rabelo, então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que o plebiscito era “um instrumento de divulgação para a sociedade do significado da Alca para o nosso país e suas influências na vida dos trabalhadores”. Segundo ele, a Alca representava a continuidade do Consenso de Washington, projeto do governo norte-americano para ser aplicado na década de 1990 com o objetivo de alinhar os seus interesses na América Latina. “Esse tipo de zona de livre comércio, com os Estados Unidos no centro, é o mesmo que colocar numa piscina um tubarão e várias piabas: é evidente que elas serão extintas pelo tubarão”, exemplificou.

Ataques especulativos

O Proer e a Alca eram a essência do projeto neoliberal, que cumpria um novo ciclo na América Latina, depois da condução anglo-saxã de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos) e Margaret Thatcher (primeira-ministra da Inglaterra), com os presidentes Augusto Pinochet (Chile), Carlos Menen (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Carlos Andrés Perez (Venezuela) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Alguns se tornaram foragidos da lei, abrigados pelos Estados Unidos. O segundo ciclo se iniciava novamente sob a condução anglo-saxã, desta vez com Bill Clinton (Estados Unidos) e Tony Blair (Inglaterra), cujo símbolo foi o governo do presidente Fernando de la Rua, na Argentina, que fugiu, de helicóptero, de uma revolva popular nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, deixando para trás um saldo de mais de 30 mortos, cinco deles na Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires.

Assim começou a “era FHC”, soprada pela massa do que se dizia ser o “capital da nova era”, que gira pelos países em velocidades jamais vistas e emprestou ao capitalismo nova feição. Na definição do famoso economista norte-americano John Kenneth Galbraith, essa “nova era” tornou “o mundo mais vulnerável a manifestações de insanidade”, governado por uma massa de dinheiro opulenta, que passou a ser o personagem-chave das finanças internacionais, onipresente e onisciente, para a qual barreiras e fronteiras nacionais são meras abstrações, vagando em escala planetária diariamente ao comando de teclas de computador acionadas por operadores ávidos por mais dinheiro, assombrando principalmente economias dependentes.

São fundos formados por “investidores” sem face, unidos por instituições financeiras esparramadas pelo mundo afora, os chamados “mercados”, com seus “ataques especulativos” que atingiram o Brasil de frente pelo furacão que começou a girar na Ásia em 1997. Quando a farra especulativa começou a baixar a poeira, porque não encontrava mais contrapartida na economia real (pois, afinal, quem produz valor e excedente para alimentar a especulação é a economia real), surgiu a ameaça de insolvência, isto é, os créditos apodreceram. O projeto neoliberal estava espalhando a tendência de estagnação econômica dos países centrais – sobretudo dos Estados Unidos – e gerando crises financeiras assombrosas.

Donos estrangeiros

Ao denunciar, no primeiro semestre de 1997, a “exuberância irracional” das bolsas de seu país, o presidente do Fed (o banco central norte-americano), Alan Greenpan, estava constatando o esgotamento desse processo de especulação. A bolha estourou e seus ecos se espalharam pelo mundo quando a Enron puxou a fila de empresas que protagonizaram verdadeiros escândalos financeiros nos Estados Unidos, mostrando o tamanho dos “mercados” especulativos.

Essa massa amorfa de “investimentos” começou a aportar no Brasil, ainda no governo Collor, no leito do “choque de concorrência” proporcionado pela diminuição da proteção cambial e tarifária. Símbolos do capitalismo brasileiro – como Metal Leve, Cofap, Arisco e Bamerindus – entregarem as chaves para ícones do capitalismo mundial, como Bosch-Siemens, Gessy Lever e Hongkong & Shangai Banking Corporation (HSBC). Dados divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo dia 3 de outubro de 1999 revelam que a desnacionalização da indústria e do setor de serviços no Brasil havia produzido, do início do Plano Real até então, um aumento do envio de dinheiro pelas multinacionais para fora de US$ 2,5 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões.

Em 1994, segundo o jornal, apenas 0,38% dos US$ 2,1 bilhões em investimentos externos foram para a compra de empresas já constituídas. Em 1998, o percentual já era de 74,1%. Ou seja: dos US$ 28,7 bilhões que entraram, US$ 21,3 bilhões foram usados para que empresas brasileiras passassem a ter donos estrangeiros. A desnacionalização da economia brasileira implicou outra armadilha trágica: o Brasil entrou ainda mais no beco da dívida externa. Com a economia nas mãos das multinacionais, criou-se uma sangria permanente de despesas com dólares por dois caminhos principais: a compra de peças e componentes para produtos apenas montados aqui, de acordo com as ordens das suas matrizes, e um brutal aumento das remessas de lucros e dividendos.

O método de tratamento às críticas a essa insensatez era truculento. Gustavo Franco, o arrogante presidente do Banco Central, certa vez chamou Delfim Netto de “porta-voz do Parque Jurássico” para responder a críticas sobre a apreciação cambial. Em outra, ele comentou a resistência dos portuários à privatização dos portos chamando os trabalhadores de “flanelinhas de navio”. Em resposta a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que alertou para o peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo, ele disse que ali estava um “covil de retrógrados”.

Essa política empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em vários centros industriais do país, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas. Antigas indústrias transformaram-se em galpões abandonados – ou ocupados para outros fins teoricamente não econômicos – e levas de desempregados passaram a perambular pelas ruas, sem perspectivas. Eram as vítimas da lógica neoliberal segundo a qual para que alguns possam emergir social e economicamente muitos precisam submergir na pobreza e na miséria.

Privatização da Petrobras

Nesse processo, o programa de privatizações selvagens, que vinha do governo Collor, se acelerou. O símbolo dessa política foi a ideia de privatizar a Petrobrás, que surgiu oficialmente em 1996 quando um tucano de alta plumagem – o então presidente do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luis Carlos Mendonça de Barros – desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério – ele foi um dos baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. Em seguida, os petroleiros lançaram a palavra de ordem Defender a Petrobrás é defender o Brasil, uma síntese que remontava ao despertar do país para a importância do petróleo nacional muito tempo antes.

A Petrobras foi avariada, mas os neoliberais não reuniram forças para privatizá-la. Já em 1995, acabaram com o monopólio estatal do petróleo, decisão proclamada por FHC como “página virada” na história do Brasil. Mas houve força para privatizar empresas estratégicas, como a Vale do Rio Doce, processo que enfrentou forte resistência. Em maio de 1997, em pleno auge da “era FHC”, a revista Veja divulgou uma pesquisa mostrando que 50% dos entrevistados discordavam daquela privatização. Outros 18% não tinham opinião e apenas 30% apoiavam. Ou seja: sete de cada dez brasileiros não estavam de acordo com uma ação que foi considerada outro símbolo das privatizações selvagens.

Limite da irresponsabilidade

Os escândalos de corrupção também marcaram aquele período. O mais conhecido se deu com Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e apontado como um dos arrecadadores de recursos para campanhas eleitorais do PSDB, flagrado dizendo que atuava no “limite da irresponsabilidade” no processo de privatização do sistema Telebrás. Um grampo do BNDES trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos daquela privatização.

Soube-se que “o maior negócio da República”, tramado por Luiz Carlos Mendonça de Barros – então do Ministério das Comunicações –, André Lara Resende – então da presidência do BNDES – e o banqueiro Daniel Dantas, ocorreu numa atmosfera de alto risco (“no limite da irresponsabilidade”), em meio a um linguajar raso (“se der m…, estamos juntos”) e com pitadas de truculência (“temos de fazer os italianos na marra”). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre as “vantagens” da negociata, assentiu dizendo: “Não tenha dúvida, não tenha dúvida.”

Dizia-se que seria necessário privatizar para abater a dívida pública e liberar bilhões de dólares das despesas com juros para financiar investimentos sociais. FHC afirmou que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal-nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse. Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continuou estratosférica.

Os “guardiões da moeda” garantiam que o fluxo mirabolante de capital especulativo não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico competitivo. Nada de intervencionismos do Estado, nada de incentivos à microeconomia doméstica.

O efeito cachaça

Em outubro de 1998, FHC, se aproveitando da crise que começou na Ásia, disse: “A opção é simples: fazer logo o ajuste (as reformas), enfrentando os sacrifícios necessários, e voltar a crescer o mais cedo possível. (…) O Estado se tornou incapaz de cumprir o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro.” O Brasil estava no centro do que o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, chamou de “a pior crise financeira do mundo nos últimos 50 anos”. A saída foi um acordo falimentar com o Fundo Monetário Internacional para obter empréstimo de US$ 30 bilhões, condicionado à resolução dos “problemas” a que se referia FHC, um brutal “ajuste fiscal”. Na época do acordo, o Brasil estava em destaque nos principais jornais do mundo. Na definição do The New York Times, o país constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times. O medo de que o Brasil pudesse arrastar os países centrais para uma recessão chegou a ser tema de um seminário realizado em Washington pelo Center for Strategic and International Studies, entidade privada que congregava personalidades como os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. O nome do evento foi sugestivo: Os próximos 90 dias – o efeito cachaça. Numa reunião em setembro de 1998 com os ministros da Fazenda da América Latina e dos Estados Unidos, os dirigentes do FMI deram o recado claramente ao recomendar que o rumo traçado pelo neoliberalismo deveria ser seguido rigorosamente.

Código de Bancarrota

Na Folha de S. Paulo, de 13 de junho de 1999, o economista Celso Furtado escreveu que, com essa política, “o país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida, que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos”. “É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, escreveu.

Furtado explicou que os recursos postos à disposição do Brasil aprofundaram o endividamento do país. “Diante dessa perspectiva, teríamos de reconhecer que o recurso à moratória seria um mal menor em comparação com a abdicação da responsabilidade de o país autogovernar-se”, disse. Na opinião de Furtado, o essencial seria que o entendimento com os credores fosse adequadamente programado nos planos externo e interno. “Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Caberia inspirar-se no capítulo 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos, conforme recomenda a Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de reduzir a volatilidade dos fluxos de capital a curto prazo”, escreveu.

Lembrando Lênin, ele perguntou: o que fazer? “A estratégia a ser seguida comporta uma ação em três frentes. A primeira delas visa reverter o processo de concentração patrimonial e de renda que está na raiz das distorções sociais que caracterizam o Brasil. Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão-de-obra sub-ocupada. Esses fatores dificilmente se encontram em outras partes do planeta. (…) A segunda frente a ser abordada é a do atraso nos investimentos no fator humano, atraso que se traduz em extremas disparidades entre salários de especialistas e do operário comum. (…) A terceira frente de ação refere-se à forma de inserção no processo de globalização. Esse processo traduz a prevalência das empresas transnacionais na alocação de recursos raros, decorrência da importância crescente do fator tecnológico na orientação dos investimentos”, respondeu.

Brasil se tornou adulto

O projeto da Alca foi enterrado com a ascensão da esquerda na América Latina, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998. O acordo com o FMI foi encerrado no governo Lula. “Não fizemos nenhum barulho, rompemos o acordo porque não precisávamos mais do FMI”, afirmou o presidente. Ele disse que o país agora pode dizer que “tem governo” e é “dono de seu próprio nariz”.

O Brasil já havia passado por essa experiência quando o governo do presidente Juscelino Kubitschek (JK) tentou executar o “programa de estabilização” elaborado pelo seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, e pelo diretor do Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), Roberto Campos (este último um célebre economista de direita que marcaria época no regime militar). Havia uma contradição evidente: como conciliar altos investimentos com arrocho fiscal? Argentina e Chile experimentavam o tratamento de choque do FMI e os resultados faziam com que o plano de Lopes e Campos enfrentasse forte resistência no Brasil. Mas a pressão externa era grande e JK acabou cedendo, o que resultou no inevitável conflito entre seu “Programa de metas” e a “estabilização”. Lopes e Campos se isolaram no governo.

A controvérsia acabou com as ordens do presidente da República para que as negociações com o FMI fossem rompidas. Lopes e Campos pediam a JK paciência porque a economia estava prestes a gozar dos frutos da “estabilização”, argumento que seria repetido pelos neoliberais da “era FHC”. Mas o presidente não quis saber de conversa. Em discurso no Clube Militar, palco de intenso debate sobre as duas orientações que existiam no governo, JK disse: “O Brasil já se tornou adulto. Não somos mais os parentes pobres, relegados à cozinha e proibidos de entrar na sala de visitas. Só pedimos a colaboração de outras nações. Através de maiores sacrifícios poderemos obter a independência política e, principalmente, a econômica, sem ajuda de outros.”

– O ataque frontal do Plano Real aos trabalhadores

Por Osvaldo Bertolino

Na madrugada de 24 de maio de 1995, trabalhadores de quatro refinarias da Petrobras foram surpreendidos por canhões de tanques do Exército apontados para eles. A ocupação militar, na calada da noite, foi uma resposta a uma greve que reivindicava o cumprimento de acordos assinados no governo Itamar Franco e descumpridos pelo seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC). As negociações salariais se arrastaram pelo ano anterior e resultaram em compromissos assumidos por Itamar e seu ministro da Minas e Energia, Delcídio Gomes. Até mesmo um acordo do presidente da Petrobrás, Joel Rennó, com a Federação Única dos Petroleiros (FUP) foi ignorado.

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Tropas militares ocuparam três refinarias em São Paulo e uma no Paraná. A decisão foi tomada na noite de 17 de maio numa reunião entre FHC e os ministros do Exército, general Zenildo Lucena, e das Minas e Energia, Raimundo Brito. Foi a segunda vez, após a ditadura militar, que tanques reprimiram trabalhadores – em 1988, três operários morreram na Companhia Siderurgica Nacional (CSN), numa invasão autorizada pelo então presidente da República, José Sarney.

A greve dos petroleiros havia sido julgada “abusiva” pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. A categoria ficou entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco de repressão. Ficaram com a segunda e receberam ampla solidariedade. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram em todo o país contra a ocupação militar das refinarias.

Racismo na Rede Globo

A revista Veja divulgou que, em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir os petroleiros em greve nas principais refinarias. As importações custaram à Petrobras US$ 700 milhões. Tudo isso gastando R$ 20 milhões por dia, quando o cumprimento dos acordos representava R$ 14 milhões. O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria os que divergissem de seu governo.

A mídia, mais uma vez, armou seu circo para difamar os trabalhadores. Paulo Francis, à época comentarista da Rede Globo de Televisão e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, disse: “Uma das falhas do governo FHC é sua boa educação. É preciso meter as mãos na cabeça raspada do Vicentinho (então presidente da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, da qual a FUP era filiada) língua-presa. Eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo.” Alexandre Garcia, que fora ligado à ditadura militar, também da Rede Globo, afirmou que a ocupação militar era uma medida necessária para evitar que os petroleiros ameaçassem o patrimônio físico das refinarias.

FHC havia investido contra a lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional, para ele uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. Na verdade, era uma investida contra a legislação trabalhista, a incompatibilidade do projeto neoliberal com a liberdade de organização dos trabalhadores, demonstrada no início dos anos 1980 pelo governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de voo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que estes retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.

A primeira-ministra da Inglaterra, Margareth Thatcher, outro símbolo do autoritarismo neoliberal, também fez o mesmo com as greves dos mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pelo neoliberalismo, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário – responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores ingleses. Apesar da solidariedade que se espalhou por todo o Reino Unido, da coesão entre trabalhadores mineiros e suas famílias – especialmente as mulheres – e da importante solidariedade internacional, a greve foi derrotada.

Ministro inoportuno

FHC assumiu com a promessa de implodir a estrutura sindical e a legislação trabalhista. A ideia começou a ser formada logo após a promulgação da Constituição de 1988, quando os principais executivos das empresas multinacionais instaladas no Brasil criaram um grupo permanente para organizar o lobby que atuaria no golpe fracassado da “revisão constitucional” de 1993. Em 1994, o presidente FHC foi buscar o economista Paulo de Tarso Almeida Paiva, que atuava no governo do Estado de Minas Gerais, para ocupar o Ministério do Trabalho com a função definida de comandar o ataque à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e à Constituição.

Quando o presidente apresentou seu ministério, fez uma menção especial a Paiva. “Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país”, disse, referindo-se à “era Vargas” como “apodrecida”. No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do governo, o ministro do Trabalho provocou uma tempestade ao defender, na sede da Força Sindical, em São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem “disponíveis para negociação”. “O ministro foi, no mínimo, inoportuno”, disse o então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros. O porta-voz da Presidência, Sérgio Amaral, anunciou que “o governo jamais cogitara de retirar da Constituição os sagrados direitos dos trabalhadores”. Era uma falácia.

Tudo virou barganha

Os trabalhadores iniciaram o combate ao Plano Real assim que ele surgiu. Em fevereiro de 1994, as centrais sindicais anunciaram uma greve geral contra as perdas da conversão dos salários pela média da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda, que chegavam a 36%. Para os preços, segundo FHC, não era preciso regras de conversão porque o próprio “mercado” se incumbiria de conter os abusos. Seu plano só atingia os salários. Greves e manifestações começaram a pipocar. Em 1º de março de 1994, as centrais sindicais definiram um plano de lutas e programaram um Dia nacional de lutas contra o arrocho da URV.

O passo seguinte foi uma manobra do governo para envolver as centrais na “reforma” da Previdência Social. Os termos previstos no acordo – substituição da aposentadoria por tempo de serviço por tempo de contribuição, fim da aposentadoria proporcional, fim da aposentadoria especial para os professores universitários e novas regras para aposentadoria integral no serviço público – foram duramente criticados. Em 21 de junho de 1996, uma greve geral, mesmo em meio àquele clima hostil, foi considerada um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve – ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação, mostraram o seu sucesso. Mas as condições para a ação sindical eram cada vez mais duras.

O governo havia editado uma Medida Provisória (MP) – chamada de MP da desindexação – que na prática proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho. As campanhas salariais muitas vezes se resumiam à luta para não perder direitos. No dia 25 de abril de 1997, os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do Plano Real. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país.

O primeiro golpe efetivo da “era FHC” na “era Vargas” ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1998, quando a “reforma” da Previdência foi aprovada no Congresso Nacional. Mas a direita pagou caro – na mesma data, ocorreu o Dia nacional de luta contra a reforma da Previdência. Nos bastidores da votação, a corrupção fervilhou. Tudo virou barganha. A obrigatoriedade do selo de controle colado no para-brisa dos carros tornou-se lei para atender a um lobby do sobrinho do deputado Delfim Netto, do Partido Progressista Brasileiro (PPB), uma das derivações das organizações partidárias que sustentaram a ditadura militar. A corrupção chegou a detalhes reles – um deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) negociou a transferência de sua mulher de São Paulo para Brasília. Um caminhão de dinheiro da Caixa Econômica Federal (CEF) foi liberado para a compra de votos.

A direita cooptava, mas também deixava o uso da força sempre ao alcance. “Se precisar bater, bata. Se precisar atirar, atire. Aqui não vai entrar ninguém. Eu estou aqui”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães, o ACM (PFL-BA), presidente do Congresso Nacional, aos seguranças chamados para reprimir os trabalhadores. O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ameaçou mandar a Polícia Militar atirar nos manifestantes se eles não se retirassem do plenário. FHC e a mídia abusaram da retórica para atacar os “baderneiros” que protestaram em todo o país.

Farsa de ACM

O país se arrastava e logo seria atingido de frente pelo furacão do ataque especulativo que começou na Ásia. O governo correu para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs duras condições para um socorro emergencial. Novas manifestações tomaram conta do país, puxadas pelo Fórum nacional de luta por trabalho, terra e cidadania, que lançou, em 1º de março de 1999, a Jornada nacional em defesa do Brasil. Em 26 do mesmo mês, sob a palavra de ordem Basta de FHC!, mais uma vez os trabalhadores foram às ruas.

O governo também agiu para amedrontar a Justiça do Trabalho. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas por ACM – um dos principais aliados de FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. A ordem era não conceder reajuste. ACM chegou a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho.

Em 26 de agosto de 1999, os trabalhadores promoveram a Marcha dos 100 mil, em Brasília, que representou uma grande vitória da unidade entre os partidos de oposição e o Fórum nacional de lutas. Aquela demonstração histórica de mobilização popular foi o resultado da consolidação da Frente de oposição democrática e popular, depois de sucessivas manifestações contra o projeto neoliberal. Representantes da Marcha dos 100 mil entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados 1 milhão e 300 mil assinaturas exigindo a instalação da CPI da Telebrás para apurar corrupção no processo de privatização do sistema telefônico brasileiro.

Índices de impopularidade

No ato da Marcha dos 100 mil em Brasília, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) expressou, em poucas palavras, o que representava aquele momento. “Estou gratificado. Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”, disse ele em resposta ao então presidente da República, que classificou a Marcha dos 100 mil como manifestação dos “sem rumo”. Dirigindo-se diretamente a FHC, Lula afirmou: “Quem não tem rumo é você”.

Os manifestantes deixaram claro que não pretendiam apenas uma mudança no governo, mas uma mudança de governo. Ou seja: a saída do presidente menos de oito meses após a sua posse no segundo mandato, traduzida no slogan Fora, FHC!. “Temos de fazer milhares de movimentos como este até tirar essa gente do poder”, discursou Lula, confirmando o que o presidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Leonel Brizola, dissera um pouco antes no mesmo palanque montado em frente ao Congresso Nacional. “Esse ato é apenas o começo de uma grande jornada que só vai parar no dia em que tivermos um governo em que o povo brasileiro confie”, afirmou Brizola.

O cumprimento das metas impostas pelo FMI corroía o governo. FHC, já abalado por altos índices de impopularidade, isolava-se cada vez mais. Uma nota assinada pelo Fórum nacional de lutas refletiu bem essa constatação. O documento defendeu emprego para todos, aumento geral de salários, redução da jornada de trabalho, fim das privatizações e auditoria nas empresas privatizadas, suspensão do pagamento da dívida externa e ampla reforma agrária. O texto também mencionou o pedido de impeachment de FHC e pediu a instalação da CPI das privatizações das empresas de telecomunicações.

FHC reagiu com mais ameaças. Questionado sobre a possível volta de uma lei para corrigir os salários automaticamente, disparou: “No limite, eu veto. Eu não vou deixar.” Para os neoliberais, cada empresa deveria definir sua política salarial. É o que chamavam de “livre negociação”. Em 2001, o país viveu o auge dos ataques à legislação trabalhista. FHC encaminhou ao Congresso um projeto de lei alterando o artigo 618 da CLT. “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de segurança e saúde do trabalho”, dizia a nova redação de FHC.

Hitler e o pastor Jim Jones

Era só o começo. O governo pretendia desregulamentar os 34 incisos do artigo 7° da Constituição – espécie de mini código do trabalho –, que tratam de direitos como jornada de 44 horas semanais, salário-mínimo, seguro-desemprego, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), aviso prévio, limites para a despedida arbitrária, piso salarial, irredutibilidade de salário e sua garantia, décimo-terceiro e remuneração do trabalho noturno. “Em que pese a pouca abrangência da reforma, o seu aspecto gratificante é saber que o governo atual está inspirado por uma nova mentalidade e uma nova determinação, tornando possível a reforma trabalhista em curso, que, até pouco tempo atrás, parecia impossível, empalidecendo as minorias vociferantes e conservadoras e as viúvas ideológicas”, disse o então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles.

A “reforma” da legislação e das práticas trabalhistas era uma das peças centrais do projeto neoliberal, um dos pilares do Plano Real. O projeto de lei de FHC, alterando o artigo 618 da CLT, fazia parte – em conjunto com a privatização da Previdência, da Saúde, da educação e do saneamento básico – das “reformas” de segunda geração previstas no pacote de exigências contidas no acordo com o FMI. FHC já havia conseguido a lei n. 9.601/1998, sobre o contrato por prazo determinado; editado a medida provisória n. 1.709, que instituiu o trabalho de tempo parcial; e o decreto n. 2.100, autorizando a demissão sem motivo.

A revista Época havia noticiado que ACM foi escalado por FHC para convencer os juízes trabalhistas a segurar os reajustes salariais. Em São Paulo, circulavam rumores de que FHC estaria articulando, por meio do secretário-geral da Presidência da República, Eduardo Jorge, e o juiz Nicolau dos Santos Neto – que mais tarde seria um foragido da Justiça –, a indicação de juízes pró-Plano Real em troca de dinheiro para a construção superfaturada do novo prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). ACM disse que estava recebendo apoios à ideia de acabar com a Justiça do Trabalho e provocou a seguinte resposta do então presidente do TST, Wagner Pimenta: “E daí? Hitler e o pastor Jim Jones também tiveram apoio às suas ideias.”

– O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

Em 28 de junho de 1989, o candidato a presidente da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Mário Covas, marcou o início de sua campanha com o discurso que ficou famoso pelo título Choque de capitalismo. Era uma expressão da revoada – o partido assumiu o tucano como símbolo – de economistas para o ninho que estava nascendo, a chamada turma dourada do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) do final da década de 1970 e início dos anos 1980.

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Covas disse: “Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas. Basta de empreguismo. Basta de cartórios. Basta de tanta proteção a atividades econômicas já amadurecidas. Mas o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.”

O mesmo discurso ficaria famoso na boca de Fernando Collor de Mello, o ungido pelo projeto neoliberal para ser o candidato oficial da direita. Era uma repetição da ladainha de Margaret Tatcher, primeira-ministra da Inglaterra, e Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, precursores do projeto neoliberal, propagada como versão revisitada do liberalismo de Adam Smith. Seu livro Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, bíblia do liberalismo, suplantado pelo imperialismo como fase superior do capitalismo – na definição de Vladimir Lênin, líder da Revolução Russa de 1917 –, passou a circular amplamente, inclusive em exibições públicas de Collor.

Símbolo do udenismo

O PSBD foi concebido no influxo da propaganda do neoliberalismo de Tatcher e Reagan como ala do PMDB que se organizou no processo das eleições estaduais de 1982. Orestes Quércia era o principal líder do PMDB no estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Franco Montoro, eleito governador. Ficou decidido que ele seria o candidato do partido na sucessão estadual de 1986.

Um dos fundadores do MDB – transformado em PMDB com a Lei de Reforma Partidária, aprovada em 21 de novembro de 1979 –, Quércia despertou a ira dos poderosos quando foi eleito senador em 1974, vencendo de maneira acachapante Carvalho Pinto, candidato da ditadura militar e símbolo do udenismo – a organização de conservadores e golpistas chamada União Democrática Nacional (UDN) que precedeu o golpe de 1964 –, um barão da aristocracia paulista, secretário da Fazenda do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo e no estado, governador e ministro da Fazenda no final do governo João Goulart.

Na composição de 1982, Fernando Henrique Cardoso (FHC) elegeu-se senador pela sublegenda. Com a vitória de Montoro, Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta – que seria ministro das Comunicações no governo FHC – assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, em 1986, o grupo se aproximou do empresário Antônio Ermírio de Moraes, que se candidatou pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e não lançou candidatos ao Senado, um dos concorrentes de Quércia. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo estado. Foi a senha para a fundação do PSDB, em 25 de junho de 1988, uma articulação iniciada com o anúncio da vitória de Quércia em 1986.

Corrupção em São Paulo

Na campanha presidencial de Covas em 1989, os tucanos já estavam majoritariamente absortos pelo ideal do neoliberalismo. Em 1991, quando o presidente Collor emitia sinais óbvios de que o país caminhava para a ingovernabilidade, um setor tucano capitaneado por FHC defendeu a incorporação do partido ao governo. A manobra não surtiu efeito, mas o PSDB, impulsionado pela mídia, já articulava um projeto de poder para substituir o governo do presidente Itamar Franco, o vice-presidente eleito em 1989 que assumiu após o impeachment de Collor.

Em São Paulo, o ninho dos caciques tucanos, eles haviam arquitetado o afastamento definitivo de Quércia do posto de principal liderança política do campo que fez oposição à ditadura militar. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno das eleições para o governo do estado, disputado entre Luiz Antônio Fleury – o candidato do PMDB – e Paulo Maluf – candidato do Partido Democrático Social (PDS), o sucessor da Arena, o partido da ditadura militar – houve uma revoada de tucanos para a candidatura peemedebista.

José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury, o vencedor das eleições. Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do Banco Central para assumir a presidência do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Vladimir Rioli, obscuro personagem ligado ao tucanato, um dos caixas da campanha do PSDB, assumiu a vice-presidência de finanças do banco, do qual fora diretor na gestão Montoro, de onde saiu, misteriosamente, em 1993.

Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar US$ 14,1 milhões. Em 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no Banespa e mais tarde privatizá-lo, no processo de consolidação do Plano Real.

Liberalismo e imperialismo

A nomeação de FHC para o Ministério da Fazenda, em 1993, foi a concretização da plataforma política tucana, o molde do Consenso de Washington, receita do projeto neoliberal formulada em 1989 pelo economista norte-americano John Williamson, que seria adotada pelo governo dos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como condição para negociações das dívidas externas dos países dependentes, entre eles o Brasil, assolado por uma crise inflacionária gerada quando a conta do “milagre econômico” da ditadura militar começou a ser paga.

A receita consistia, basicamente, em arrocho fiscal – redução orçamentária de itens como Previdência Social, seguridade e investimentos públicos –, abertura comercial e financeira, privatizações selvagens e superávit primário, a garantia de pagamento dos títulos do Estado no mercado financeiro.

Quando FHC anunciou seu projeto, saudado pela mídia como a volta ao liberalismo, Renato Rabelo, então vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), disse que era uma utopia. “A volta à época descrita por Adam Smith é uma quimera. Está longe da realidade. Seria a volta do capitalismo mais de um século atrás. O objetivo é confundir, para justificar o ‘modernismo’”, afirmou. Implicava a revogação de todas as teorias e práticas que contestaram o imperialismo – o sucessor do liberalismo –, como o keynesianismo (a teoria de John Maynard Keynes, economista britânico que na década de 1930 formulou a teoria do papel regulatório do Estado para minimizar as instabilidades da economia), a social-democracia e o projeto socialista.

A posse estridente de FHC se deu em meio a atropelos ao presidente Itamar, tratado pela mídia de forma desrespeitosa por sua discordância com os cânones do projeto neoliberal, como se houvesse uma espécie de carta branca para afrontas à Constituição, conforme confessou Edmar Bacha – um dos principais responsáveis pela coordenação do departamento de economia da PUC-RJ, integrante da turma que aportou no PSDB na sua fundação –,em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 30 de junho de 2024 sobre os trinta anos do Plano Real.

Ele relata que numa reunião com a equipe econômica e advogados, FHC ficou irritado e saiu dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Era a ignição do Plano Real, que já na largada afrontou o artigo da Constituição de 1988 que limitava os juros em 12% ao ano, proposta do constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP) sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, consultor-geral da República no governo do presidente José Sarney, ao propor a sua regulamentação por uma lei complementar que nunca veio.

Barões capitalistas

Assim surgiu o Plano Real, numa operação que levaria a sucessivas mutilações da Constituição, um festival de arbitrariedades. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia, basicamente, em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização monetária”, embrião do superávit primário), reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV), a base da nova moeda.

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. O projeto neoliberal agora tinha sujeito, predicado e objeto direto. Renato Rabelo definiu a manobra como “unidade programática” da candidatura dos barões capitalistas e trazia o embate ideológico sobre a questão do Estado no processo de desenvolvimento. No capitalismo, disse, o Estado assumiu diferentes funções no desenvolvimento econômico, tendo em vista os interesses da burguesia e, logicamente, fazendo prevalecer a vontade dos seus setores mais fortes. “As empresas estatais a serviço do sistema capitalista, desde as ‘descobertas’ de Keynes, e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, adquiriram variadas funções. Transformaram-se, em países como o Brasil, em fator dinâmico no processo de industrialização, em instrumento de soberania econômica.”

Esse papel empresarial do Estado, prosseguiu Renato, já não servia aos capitalistas como antes, embora eles não prescindissem do concurso da ação estatal para empreendimentos que exigiam grandes investimentos, com retorno demorado. “As empresas estatais rentáveis, produtos da construção de décadas realizada pelo patrimônio público, são cobiçadas. No estágio atual, passam às mãos de grandes grupos privados, entrando no jogo das disputas intermonopolistas. Na concorrência entre eles conta, e muito, o controle de uma grande empresa estatal.”

Operação Lava Jato

A fusão monopolística abarcava setores privado e estatal, explicou Renato. “No caso dos países dependentes, como o Brasil, as empresas estatais, sobretudo as rentáveis e estratégicas, são presas de negócios vantajosos. Daí porque a propaganda neoliberal diversionista considera-as ‘ineficientes’ e ‘superadas’. Nos planos do grande capital, as estatais podem amortizar as dívidas externas dos países do Terceiro Mundo e são assumidas por grandes monopólios. Sem as estatais, esses países deixam de contar com importantes meios econômicos na sua luta pela independência”, denunciou.

O golpe, segundo Renato, era maquiado com o conceito de “Estado mínimo” e “modesto”, ou “pequeno, mas forte”, para justificar o objetivo do capitalismo de derrubar as fronteiras nacionais, transformando todas as nações em livre mercado para facilitar o acesso dos grandes conglomerados. “Além disso, o programa das tendências dominantes defende a liquidação dos monopólios estatais, mas preserva e fortalece os monopólios privados.”

Para levar adiante seu projeto, nas eleições presidenciais de 1994, o PSDB foi buscar o Partido da Frente Liberal (PFL), dissidência do PDS. Era o par perfeito, uma união em regime de comunhão de bens. FHC virou candidato único da mídia e venceu Lula – até o Plano Real, o favorito disparado nas pesquisas – no primeiro turno. Denúncias de “caixa dois” circularam amplamente, recurso repetido às claras na reeleição de FHC, em 1998. Tempos depois, a fraudulenta e corrupta Operação Lava Jato publicizou a prática dos neoliberais como “descoberta” de um grande esquema de corrupção, manobra que levaria ao golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, para a restauração da ordem neoliberal.

– A herança maldita do Plano Real

Por Osvaldo Bertolino

No início de 1993, o ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com a meta de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária. Formada por papéis do governo, ela correspondia, à época, a US$ 37 bilhões (hoje, passa de R$ 7 trilhões).

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Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. “Vamos arrecadar seis pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: “Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro, falecido num acidente de helicóptero em 12 de outubro de 1992.

O Brasil se debatia com a crise da dívida externa, base da disparada da inflação e herança do “milagre econômico” da ditadura militar, saindo da fase em que Fernando Collor de Mello sofreu impeachment. Havia o dilema sobre o rumo do país, traumatizado pela primeira experiência efetiva do projeto neoliberal, ensaiada no final do governo José Sarney. Era a nova cartilha do capitalismo, a transformação do Estado em comitê de administração da ciranda financeira, uma gigantesca redistribuição da riqueza social a favor dos ricos.

A ladainha ganhou decibéis cerca de dez anos antes, pelos governos de Margareth Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a pregação fundamentalista de que as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”. O mundo havia sido inundado pelo sistema de petrodólares, que se originou no início dos anos 1970 no pós-colapso de Bretton Woods, o episódio do abandono, pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, do padrão ouro internacional.

Era o molde do Consenso de Washington, as regras do projeto neoliberal, pelo qual as economias seriam entregues aos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta, com o método de tomar empréstimos na moeda X, trocá-la pela moeda Y e jogar na queda da primeira para pagar menos no vencimento do débito e colocar no bolso a diferença.

Dedo na ferida

O presidente Itamar Franco era um enfático oponente do neoliberalismo. Deixou isso claro num encontro com o então presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), João Amazonas, quando ainda era vice-presidente. Itamar disse que não concordava com a política de Collor e defendeu os interesses nacionais e democráticos. Logo após a sua posse, iniciou-se uma campanha contra ele, criticado por se opor à “modernidade” de Collor, uma manobra para minar a base de estabilidade e de sustentação do seu governo.

Uma onda se formou na mídia nacional e internacional. “Não temos dúvidas da enorme pressão que sofrerá o governo recém-empossado para que se enquadre na estratégia da reestruturação mundial ditada segundo interesses dos países ricos, imperialistas, e que nossas elites logo a assumiram com a fachada de modernidade, por estarem historicamente na posição de dependência e não possuírem projeto próprio de desenvolvimento nacional”, diagnosticou Renato Rabelo, então vice-presidente do PCdoB.

Segundo Renato, Itamar, de forma simples, pôs o dedo na ferida: o país não podia ter sua modernidade concentrada em setores de ostentação, enquanto o povo se defrontava com a fome, o desemprego, a doença e a ofensa. O neoliberalismo era um projeto que tentava salvar o capitalismo, tinha como essência o crescimento da produção na sua mais alta forma de concentração e numa crescente centralização do capital, gerando, por outro lado, a exclusão de uma parcela maior da população dos frutos do desenvolvimento, aprofundando a desigualdade social e ampliando o crescimento da miséria, disse Renato.

Nos países do chamado Primeiro Mundo, onde esses projetos mais se desenvolveram – como Inglaterra e Estados Unidos –, a crise econômica e social ressurgiu ainda mais profunda, afirmou. “No primeiro país, a porcentagem de ingleses vivendo na extrema pobreza dobrou de 1979 a 1986. No segundo, a renda da camada mais baixa estagnou, enquanto para os mais ricos cresceram as rendas em mais de dois mil por cento, nesses últimos cinco anos”, descreveu.

Pote de barro

Já em países como o Brasil, de acordo com Renato, o impacto do projeto neoliberal era muito mais devastador. “O sucateamento da indústria, a privatização e especialização da economia, vão gerando desemprego e ao mesmo tempo deixa de surgir novos meios, suficientes para absorver a mão de obra ativa”, registrou. A educação e a saúde, predominantemente privadas, impactavam fortemente na população, disse. “Dessa forma, só uma pequena parcela gozará desse progresso.”

Citando uma defesa do jornal O Estado de S. Paulo da “modernidade” neoliberal, que também substituiria “o obsoleto conceito de soberania” pelo de “interdependência entre nações”, Renato comentou que seria ou “uma pérola de ingenuidade ou grande cinismo”. “Fico com a última. Haja pote de barro contra o pote de ferro. Nesta ‘interdependência’ vamos ter muitos cacos”, afirmou, acrescentando que o Brasil precisava de um projeto autônomo, global, de desenvolvimento. “Temos condições físicas e estruturais para tanto. É preciso construir as condições políticas.”

De acordo com Renato, era a “modernidade” contra a democracia. O objetivo seria reorganizar o sistema político em crise, montando outro que permitisse a reestruturação econômica neoliberal, garantindo sua consolidação. “O custo social da apregoada modernização econômica no Brasil é muito alto. Para enfrentar essa realidade em agravamento é inevitável o ‘ajuste’ político que forneça os meios de maior controle político pelas elites dirigentes. O maquinado projeto de poder tem como essência a elitização do processo político, ajudando na estabilidade dos grandes partidos das oligarquias poderosas e inviabilizando o florescimento e crescimento dos pequenos partidos.”

Estardalhaço midiático

Itamar passou a ser tratado pelos neoliberais como um paspalhão. Um caso explícito ocorreu quando ele pediu ao Congresso Nacional que agilizasse a regulamentação do artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros. A ideia surgiu pelo constituinte Fernando Gasparian (PMDB-SP), sabotada por uma confessa manobra liderada por Saulo Ramos, então consultor-geral da República – logo depois, ministro da Justiça –, que emitiu parecer, aprovado pelo presidente Sarney, prevendo uma lei complementar para regulamentar a proposta, conforme ele narra em seu livro Código da vida.

O presidente Itamar era uma voz isolada. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento de urgência para discussão e votação da Lei Complementar, que passara pelo Senado, regulamentando o parágrafo 3° do Artigo 192 da Constituição sobre o teto de juros, que, mesmo atingindo mais de trezentas assinaturas, não foi adiante. Estava em andamento o processo de retomada do projeto neoliberal, com a entrada em cena de Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, primeiro passo para torná-lo presidente da República.

Antes de oficializar a sua candidatura, ele comandou o lançamento do Plano Real, com grande estardalhaço midiático, ancorado numa brutal elevação da taxa de juro oficial para derrubar a hiperinflação. No primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando a 12%. Um ano depois, estava em 60%. O passo seguinte seria a investida contra o Estado, abrangendo União, estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Desde então, a mídia só fez esconder informações, não dando a ideia do que estava acontecendo e transformando o que existe de pior para o país — a política macroeconômica e sua fabulosa dívida — em um mundo róseo. Isso possibilitou a reeleição de FHC, em 1998, num processo eleitoral que colocou no centro do debate, explicitamente, a gravidade da crise.

Campos de batalha

Os acontecimentos no imediato pós-reeleição confirmaram os alertas da oposição, demonstrando que a população havia sido enganada. Logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente levado pela esperança de mudança de rumo, tacitamente prometida. Na prática, nada aconteceu. A marcha das privatizações selvagens e a redução das conquistas democráticas e sociais se aceleraram.

Por trás da perversidade neoliberal estava a crise mundial do capitalismo. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional” iniciada na Ásia. Jean Lemierre, representante francês do G-7 – o grupo de países ricos –, disse que “as discussões sobre o Brasil se baseavam na ideia de que se tratava do último caso antes do colapso do sistema inteiro”.

O receio era de que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o The New York Times.

Naquele clima, a solução seria recorrer ao FMI para reforçar o caixa brasileiro, condicionado a um rigoroso programa de “ajuste fiscal”, com forte impacto nas políticas públicas e sociais. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho, alegando que precisava gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.

Herança maldita

No livro Vexame – os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial, publicado em 2002, o jornalista norte-americano Paul Blustein, do jornal The Washington Post, revelou o que ficou conhecido como a história secreta da desvalorização cambial de 1999. “Passaram a circular rumores de que o governo cogitava impor controles cambiais ou determinar a moratória no pagamento da dívida. O capital continuava a sair do país à razão de meio bilhão de dólares diariamente”, escreveu.

Blustein chamou de “rebanho eletrônico” o movimento especulativo que assombrava o mundo. No Brasil, entre a segunda metade de agosto de 1998 e o dia 13 de janeiro de 1999, a equipe econômica torrou perto de US$ 30 bilhões de dólares das reservas brasileiras e mais outros US$ 9 bilhões cedidos pelo FMI, numa política de contenção da alta do dólar visando às eleições, elevando os juros para 42%, além de cortes substanciais nos investimentos públicos, resultando em crescimento zero e contração de 1,5% na renda per capita.

Em 29 de janeiro de 1999, uma sexta-feira, espalharam-se boatos de que haveria bloqueio das finanças, o que provocou alta na cotação do dólar e uma corrida da população aos bancos. Havia o temor de que FHC repetisse Collor e congelasse as contas bancárias. A crise estava fora de controle. O Brasil chegara à beira do abismo. Era a herança maldita entregue ao governo Lula em 2003.

 

 

 

 

– A mulher gostosa e o show do estupro

Por Osvaldo Bertolino

A onda de indignação e protestos quando surge um caso de estupro é sempre justa. Mas é preciso ver o caso além dos muros da falsa moralidade da mídia, que fez o seu show à custa de tragédias como essas. Ela, a mídia, é a grande promotora do que, justamente, foi cunhado de “cultura do estupro”. Subtraindo o direito da sociedade de ser informada e formada com base em realidades concretas (não fictícias) e valores (verdadeiros, não hipócritas) por uma imprensa digna de ser chamada de imprensa como conquista da civilização, a mídia, somente por interesses econômicos, filtra os comportamentos sociais para forjar ideias imbecilizadas como regras, entre elas o machismo no sentido mais agressivo, a origem da “cultura do estupro”.

O que se vê na programação da televisão, sobretudo nos comerciais, é nada mais do que essa cultura, o sexo machista mostrado de forma subliminar de manhã, de tarde e de noite, 24 horas por dia. A mulher aparece sempre na posição de subjugada, de serviçal do homem, inclusive sexual. As formas mais acintosas de promoção dessa cultura são as propagandas das cervejas, nas quais, até hoje não entendo por que, tem sempre mulheres artificialmente “gostosas” servindo marmanjos folgados, boçais e vulgares. E, não raro, se utilizando de palavras e gestos torpes para se referir à “gostosa” que desfila para lá e para cá. Uma bobagem, uma cena deplorável, lamentável.

Esses são, a meu ver, exemplos dos mais explícitos. Mas há outros, igualmente abjetos, que mostram a mulher como objeto decorativo. Não vejo muito a programação da televisão, mas sei que é comum em programas de auditório ter aquele conjunto de mulheres seminuas rebolando e fazendo caras e bocas. E nos programas pretensamente humorísticos ter mulheres usadas, literalmente, como peças decorativas, como se fossem iguarias sexuais. Sem falar nos estádios de futebol, que de uns tempos para cá, antes e nos intervalos dos jogos, têm moças em trajes minúsculos dançando o que se considera dança sensual e fazendo coreografias com o único propósito de passar a ideia de que insinuam posições sexuais.

Racionalmente, qual o sentido disso tudo? O resultado é que nas rodas de amigos, nas ruas, praças e transporte coletivo a mulher é vista como a encarnação daquelas moças que rebolam na televisão e nos estádios. Com a diferença de que nessas ocasiões eles podem falar e, eventualmente, fazer o que gostariam de fazer com aquelas mulheres – e o fazem à força -, induzidos pela mensagem subliminar da lógica da exposição da mulher como objeto sexual, uma coisa deles por direito natural. Cria-se, dessa forma, a ideia generalizada de que a relação homem-mulher tem de ser assim naturalmente. E esses homens, moldados desde a infância (inclusive em casa, no convívio familiar, quando o homem não é incentivado a sequer lavar as suas cuecas), viram animais quando se deparam com uma mulher real que desperta seu desejo sexual. Essa é, a meu ver, a essência da cultura do estupro.

– Oitenta anos de Pelé: o rei brasileiro que veio de outro planeta

Ao completar 80 anos de idade neste 23 de outubro de 2020, o mais genial dos gênios da bola é lembrado como personagem que interpretou a essência do povo brasileiro.

Por Osvaldo BertolinoUma camisa 10 e sua eterna magia. Quando se fala do manto branco do Santos Futebol Clube e do amarelo da Seleção Brasileira, imediatamente vem à mente o maior atleta de todos os tempos – Edson Arantes do Nascimento, ou simplesmente Pelé, o homem que ajudou a parar uma guerra, que ganhou tudo o que um jogador poderia alcançar. Como diz José Macia, o Pepe – seu companheiro do ataque mágico também integrado por Mengálvio, Durval e Coutinho –, Pelé não é desse planeta.

Ano de 1962. Vestido com a camisa 10 do Santos, Pelé domina a bola durante o Mundial de Clubes de 62 na primeira partida contra o Benfica (Portugal), no estádio do Maracanã. Foto: Domício Pinheiro/AE

Pelé e seus companheiros espalharam o Brasil pelo mundo. Uma prova é a profusão de times com o nome Santos pelo planeta afora, um total de 39 equipes homônimas. Só no Brasil, além do clube do litoral paulista, existem nada menos do que dez xarás. Tem Santos em Macapá (AP), Alegrete (RS), Fortaleza (CE), Barra de São Francisco (ES), João Pessoa (PB), Toró (SP), São Borja (RS), São Martinho (SC), Taquara (RS) e Porto Velho (RO).

Recentemente, a imagem do menino Khamis Alghajar, de sete anos, chamou atenção nas redes sociais em todo o mundo esportivo. Ele postou fotos utilizando a camisa do Santos na Síria, sua terra natal. Khamis perdeu parte da perna direita durante a guerra em uma explosão que também destruiu a casa onde sua família vivia. “Na Síria, nós amamos o Brasil, o amor por esportes é muito brasileiro. O Santos vem nos divertindo muito e descobre vários grandes jogadores. Pelé é um super jogador. O Santos é muito famoso aqui. O prazer do futebol existe no Santos”, disse Khamis.

Pelé pertence a uma linhagem que representa a essência do povo brasileiro. Vem das tradições mais remotas dessa nação, que no futebol foi precedido por gênios como Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva (este, além do seu talento, vale registrar que participou do Partido Comunista do Brasil na campanha presidencial de 1945, apoiando o candidato dos comunistas, Yeddo Fiuzza). Ambos emergiram com seus talentos após a Revolução de 1930, que começou a mudar mais radicalmente a face elitista do futebol.

Imagem do jornal Tribuna Popular

As portas para o ingresso triunfal do povo brasileiro no futebol foram efetivamente abertas com a conquista da Copa do Mundo em 29 de junho de 1958. Pela primeira vez na história o mundo viu um time sul-americano levantando a taça em solo europeu. Foi quando o Brasil se tornou “insolente e vencedor”, segundo o dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, o primeiro a chamar Pelé de rei e um dos responsáveis pela popularização do futebol. À época ele escreveu, com razão, que não havia um só personagem da nossa literatura que sabia bater um mísero escanteio.

Alma de vira-lata

Segundo o escritor, antes de conquistar o primeiro título mundial o brasileiro tinha “alma de vira-lata”. Mas, com Pelé e Garrincha, o futebol do Brasil perderia sua “humildade deprimente” e ganharia em qualidade. Ninguém melhor do que Nelson Rodrigues soube louvar o futebol popular – segundo ele tão bonito como “uma paisagem de calendário”. Provocador, intitulou-se reacionário, espicaçou a “esquerda festiva”, os “padres de passeata” e as “freiras de minissaia”.

O escritor criou dezenas de expressões e personagens que ajudaram a formar a mitologia do futebol. Criou o “Sobrenatural de Almeida”, a “Grã-fina das narinas de cadáver”, o “Idiota da objetividade”, o “Narciso às avessas”, o “Príncipe etíope”, a “Lagartixa profissional”, o “Possesso”, o “Quadrúpede de vinte e oito patas” e tantos outros. E o magistral “Sublime crioulo”. “Mantos invisíveis pendem do peito do rei Pelé”, dizia.

Nelson Rodrigues vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando o garoto começava a brilhar no Santos. Em março de 1958, três meses antes da Copa, ele publicou a crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a conquista do título porque agora, com o rei que dribla os adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os “inimigos tremerão”. Antes, na Copa de 1950, o Brasil passou por um trauma definido por Nelson Rodrigues como uma “catástrofe nacional”. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”, escreveu.

Em sua clássica crônica sobre a famosa partida entre Santos e Milan pelo mundial interclubes de 1963, Nelson Rodrigues escreveu: “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico.” À alusão a teoria clássica do drama, estabelecida por Aristóteles, Nelson Rodrigues agregou que a vitória do Santos valeu pela vitória do homem brasileiro.

A ascensão do mulato

Se o futebol é “religião laica do povo”, na bela definição do historiador Eric Hobsbawn, Pelé é a sua divindade. Foi o mestre dos mestres em jogadas mágicas, quando o futebol encontra a arte; aqueles lances que ninguém sabe explicar como acontecem, que exigem uma reflexão a respeito, um esforço qualquer de fruição, de tradução do que é rarefeito, de compreensão daquilo que não é imediato, berrante, visível. O rei santista passava por cima dos zagueiros como Átila, o huno, que cavalgava por sobre os povos que conquistava.

O time bi-mundial

Gilberto Freyre, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo dia 3 de setembro de 1977 intitulado “A propósito de Pelé”, comparou o rei aos escritores Machado de Assis e Euclides da Cunha, ao compositor Heitor Villa-Lobos e ao arquiteto Oscar Niemeyer. O que une todos eles? A genialidade, respondeu. Em Sobrados e Mucambos, publicado em 1936, ele já mencionara “a ascensão do mulato não só mais claro como mais escuro entre os atletas, os nadadores, os jogadores de futebol, que são hoje, no Brasil, quase todos mestiços”. No fundo, ele estava dizendo que o futebol passava por um processo de abrasileiramento.

Gabriel Cohn, professor de sociologia do departamento de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), diz que sociólogo no Brasil que não tiver os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas não entenderá este país. Digo mais: quem não conhece a trajetória de personagens como Pelé também pouco sabe sobre a alma do povo brasileiro.

O homem do Brasil

O mesmo pode ser dito sobre outro gênio da sua contemporaneidade, Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, ou simplesmente Garrincha. Quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962, com Garrincha dando show sem o companheiro genial, que contundiu-se no início da Copa, Nelson Rodrigues, descreveu o seu significado magistralmente.

“É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, esta todo o brasileiro, esta todo o Brasil. (…) O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios”, escreveu.

O auge de Pelé seria na Copa do Mundo de 1970, com o time montado por João Saldanha – as feras do Saldanha – e comandado por Mário Jorge Lobo Zagallo, quando o Brasil conquistou o tri. Perseguido pela ditadura militar por sua militância comunista, Saldanha acabou demitido pela então Confederação Brasileira dos Desportos (CBD), hoje Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Nelson Rodrigues descreveu bem o acontecimento: “Estranho mundo em que não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar, sem pisar nas víboras inumeráveis. (…) Já sabemos que a competência é amargamente antipatizada no futebol brasileiro. Claro, e repito: a competência tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveitadores vorazes.”

– O avanço fascista e o combate do nosso tempo 

Por Roberto Amaral

“(…) Nossas ações são voluntárias, mas nem sempre são escolhas” – Jodi Dean (Camaradas. Boitempo Editorial)

O espectro que ronda o mundo, desrespeitando diversidades de desenvolvimento econômico, é a doença do capitalismo maduro. Mais do que uma disfunção, o fascismo é receita para enfrentar as crises impostas pela sua incapacidade de solver a questão social, que mais se agrava quanto mais cresce a expansão imperialista e os duelos hegemônicos.

O fascismo é um movimento de manipulação das massas, uma construção ideológica formulada de cima para baixo, sempre a serviço do império do capital. Nutre-se na violência que incita. É, de igual modo, a semente da guerra, a solução que conhece para as crises de hegemonia. Uma necessidade do sistema que se torna clara hoje, tanto quanto foi a alternativa única nos idos de 1939.

No século passado a mobilização ideológica da extrema-direita era alimentada pela difusão do medo ao comunismo, e os receios nacionais explorados em face do expansionismo da URSS. Encontrou campo arado na Itália e na Alemanha, mas igualmente em Portugal (salazarismo), na Espanha (franquismo) e no Japão de Hiroito (controlado pelo militarismo, e afoito em uma política guerreira e de expansão territorial). Foi-lhe fácil mobilizar o empresariado para o financiamento do assalto ao poder e o financiamento dos aparelhos de repressão e, na sequência, para a sustentação da guerra, da qual o grande capital e a indústria pesada saíram incólumes e mais poderosos.

A crise social na Itália abriu  a rota da mobilização das massas, que deram as costas aos comunistas, aos socialistas e aos democratas. Não foi distinto  na Alemanha, onde recebeu o apoio dos pequenos comerciantes e da grande burguesia e dos militares. Não lhe faltou mesmo o apoio da socialdemocracia alemã que viu no nazismo o dique que não conseguira construir contra a ascensão dos comunistas, que elegera como seus inimigos prioritários, assim como no Brasil designaria Lula como o inimigo a ser abatido.

Mussolini e Hitler (nada obstante seus inegáveis méritos como agitadores sociais) foram, mais do que tudo, sempre ao serviço do grande capital, instrumentos para a necessária mobilização das massas. Na Itália, as milícias fascistas, civis, assumiram a repressão. Na Alemanha nazista se multiplicavam os grupos civis e paramilitares. Caracterizavam-se pela brutalidade contra os que identificavam como inimigos do nazismo, judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc. Eram os “Camisas pardas”. Na Itália eram os  “Camisas negras”, ou Camicie nere – símbolo, aliás, atualizado pelo juiz neofascista maringaense Sergio Moro, no auge do seu romance com a grande imprensa.

A sociedade alemã, como a italiana, estava impregnada da violência da ideologia fascista. Denunciavam-se vizinhos, enquanto multidões ovacionavam o Führer em seus comícios, paradas e marchas. O povo alemão negou até a última hora o holocausto e os campos de concentração, e lutou até o derradeiro combatente em Berlim, numa alucinada resistência ao Exército Vermelho.

O fascismo, tanto quanto o nazismo, atendia a necessidades do sistema, como atende agora, em sua versão contemporânea, tosca como a matriz, à marcha da extrema-direita, que avança de forma expressiva pela quinta vez consecutiva nas eleições do Parlamento Europeu. E, entre nós, jamais esteve tão forte. Controla as duas casas legislativas e os governos dos principais estados da Federação, os mais ricos e os mais populosos.  Este encontro não resulta de acaso.

O fato de os EUA estarem presentemente divididos entre a direita esclerosada de Biden e a ultradireita belicosa de Trump é um indicador do nível de deterioração política da sociedade norte-americana, sem alternativa diante dos desafios que açoitam o imperialismo, em casa (onde crescem as desigualdades sociais) e no mundo: o fim do unilateralismo associado à crise de hegemonia.

É um artifício reacionário separar o nazismo da alma alemã: Hitler foi o depositário do imperialismo germânico. À aventura do Terceiro Reich, se não faltou o apoio, aberto ou silencioso, da população, foi ostensivo o financiamento da grande indústria, que, no pós-guerra,  permaneceu de pé, atuando em todo o mundo, inclusive no Brasil. O genocida Benjamin Netanyahu, há 16 anos no poder, avançando pela direta, representa o consenso sionista, em Israel e no mundo. É um agente da guerra, a serviço do imperialismo, que o nutre.

Que os sustos de 2022 nos ajudem a ver a sociedade que produziu o bolsonarismo.

A França – que, não faz muito, foi governada pelo Partido Socialista – está politicamente reduzida a dois blocos políticos não totalmente antagônicos: o lepenismo de extrema-direita e… “o resto” (como me diz o professor Marco Antônio Dias), a saber, um amontoado contingente, disforme e desconexo, reunindo os antigos comunistas e socialistas  e Emmanuel Macron, o presidente de direta, a quem as circunstâncias delegaram  o papel de líder da  resistência ao fascismo. Mas os conservadores, herdeiros do gaullismo, já se associaram aos fascistas na disputa das eleições legislativas francesas, convocadas para 30 de junho. La France Insoumise, a promessa que brotou no pleito presidencial com Mélenchon, obteve um pouco menos de 10% dos votos para o Parlamento Europeu, enquanto a extrema-direita de Mme. Le Pen consagrou-se com 30% do voto francês. A Itália, do glorioso PCI, é, desde 2022 governada pela líder fascista Giorgia Meloni, do Fratelli d’Italia. Na “joia da coroa” europeia, França e Alemanha, aliadas dos EUA na beligerância da OTAN, a esquerda e a social-democracia foram surradas no último pleito. O único respiro veio dos países nórdicos.

Na América do Sul três democracias (Brasil, Colômbia e Chile) ainda resistem, com as dificuldades sabidas. Nossa tragédia, porém, é a mais significativa, porque transitamos de cerca de vinte anos de conquistas sociais e democráticas para o avanço do projeto protofascista, construído a partir do golpe de 2016 e consolidado com as eleições de 2018, quando, pela primeira vez na história republicana, um quadro de extrema-direita é alçado à presidência da república pelo voto popular, em processo eleitoral que não pode ser questionado. A única boa notícia ao norte do equador vem do México, com a eleição de Claudia Sheinbaum. Mas o México  permanece “tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos.”

O presente brasileiro guarda relações com a falência das organizações originárias do velho PCB. Destaco a crise dos partidos populares, conquistados pelo eleitoralismo conservador, donde a renúncia coletiva à missão doutrinária da esquerda. O ‘chão de fábrica’ foi abandonado e muitos militantes e líderes sindicais foram conquistados pela burocracia, sindical ou pública, a que se somou a crise do trabalho (fenômeno global, agravado entre nós pela desindustrialização), erodindo o poder político dos trabalhadores e, por consequência, a potência de seus partidos políticos, comunistas, socialistas e trabalhistas.

Não ousamos canalizar para a política o desespero dos muito pobres, e hoje assistimos, desolados, ao deslocamento de trabalhadores e grupos marginalizados da sociedade capitalista para a extrema-direita, cujo governo agravará sua miséria e restringirá ainda mais seus direitos.
Não há acaso na história.

Os governos da social-democracia paulista e os governos de centro-esquerda do PT mostraram-se impotentes para promover as reformas que (ainda dentro do capitalismo periférico e dependente, que é o nosso) poderiam enfrentar o caráter concentrador de renda e riqueza da economia brasileira. Esquecemos que, mais do que uma vontade, vencer (isto é, mudar) era nosso dever e que, para mudar, precisávamos nos organizar e lutar. Organizar as massas, elevar seu nível político. Ao renunciar ao proselitismo e à denúncia da sociedade de classes, nos transformamos em uma esquerda desprovida de política e deixamos as massas à mercê do neopentecostalismo comercial e do discurso dos meios de comunicação da classe dominante. Movidos pelo eleitoralismo, elevado à categoria de fim em si mesmo, deixamos de condenar o capitalismo e abdicamos do proselitismo socialista.

As táticas do curto prazo eleitoral, quando as bandeiras fundamentais do pensamento socialista foram arriadas, cobram preço político muito alto: o retrocesso que se mede pelo avanço do pensamento da extrema-direita, que nos confronta. O termo revolução foi parar num Index que ninguém sabe quem prescreveu, e, mercê de uma trapaça histórica, nos transformamos em defensores da ordem – nós, os que já fomos denunciados como “subversivos”, e apostávamos na propaganda política e na agitação ideológica. De um certo tempo para cá, passamos a nos identificar com a institucionalidade, exatamente quando a nova direita se fantasia de combatente do sistema. Os sindicatos estão menores, menos representativos e mais fracos. Nossos partidos, na sua maioria, estão dispersos e desorganizados. O PT foi condenado à condição de  partido da ordem.

A esquerda, no geral,  ao ler o determinismo histórico como se fôra lição de um fatalismo religioso, renunciou ao fazer revolucionário, e quedou-se na esperança de que a história terminasse por realizar nossas utopias (afinal, estamos “do lado certo” e merecemos ser recompensados pelos fados). Assim, dava realidade aos nossos sonhos. Até lá, fizéssemos o que as condições objetivas da política prática indicavam. Nos misturámos com os conservadores e nos confundimos como agentes daquilo que Gramsci chamava de “a pequena política”. À noite todos os gatos são pardos.

Concluídas as eleições de 2022, empossado Lula nas condições conhecidas, vencido um ano e meio de governo, a direita neofascista permanece organizada, política e militarmente, com projeto concreto de tomada do poder, nos termos que as circunstâncias ensejarem. Conduz ideologicamente o Congresso, comanda em todos os palcos a oposição ferrenha ao governo Lula, e não apenas bloqueia todo avanço civilizatório, mas desconstrói sem dificuldade as conquistas sociais e políticas logradas pelo movimento social nas últimas décadas. Sua capacidade de mobilização das massas foi posta em evidência mais de uma vez, nas ruas e no processo eleitoral. Anuncia vínculos estreitos com a extrema-direita estadunidense. Em suas manifestações desfraldam bandeiras dos EUA e de Israel ao lado da suástica nazista.

É, a rigor, o único projeto de poder em movimento, contrastando com a anomia geral da esquerda e a insegurança política do nosso governo, que, condenado a prioritariamente lutar pela simples sobrevivência, ainda não encontrou forças para pôr em campo um programa político capaz de antepor-se, nas eleições e para além delas, à ameaça fascista.

Neste quadro, é evidente que cabe às forças progressistas de um modo geral, e não só às esquerdas e seus militantes, a defesa do governo, pois sua eventual derrocada significaria a abertura de todas as comportas para o intento fascista, que mantém sua aliança com o grande capital e setores majoritários das forças amadas. E conserva, ainda, suas bases populares em nível jamais conhecido em nosso país. Mas a imperiosa defesa de nosso governo deve ser vista nos termos do grande projeto de construção de uma nova sociedade, atenta ao desenvolvimento soberano e ao atendimento das necessidades básicas de nosso povo.

O ser esquerda se justifica na luta por um futuro emancipatório da humanidade. Sem ilusões, e distante do voluntarismo, terá de combater o Estado inventado para sustentar o capitalismo. Mirar o horizonte procurando ver para além da risca do horizonte, e jamais se contentar com a política do aqui e agora.

Precisamos nos preparar para uma luta diferente, revendo táticas e dogmas.

***

Adeus a Conceição – “A classe operária preferiu ir ao paraíso a fazer a revolução. De preferência se for em um paraíso consumista. […] Não há evidência de revolução operária depois do século XIX. […] O neoliberalismo apodreceu a ‘opinião pública’ e, ao apodrecê-la, produziu o que há de pior em matéria de liderança de direta. E produziu uma ideologia de classe-média que –Trotsky tinha razão – é a poeira da humanidade.” (Entrevista de Maria da Conceição Tavares à Margem Esquerda, nº 77, 1º semestre de 2008)

Genuflexão na Casa do Povo – Numa correlação de forças absolutamente desfavorável, a centro-esquerda acuada – aparentemente incapaz de superar o trauma de 2016 – houve por bem votar massivamente, nos últimos dias, visando ampliar o poder do capo da Câmara para punir seus adversários (após menos de 24 horas de debate). Há que louvar, sem dúvida, o esforço dos que se empenharam em reduzir os danos do surto autoritário de Don Lira, preservando a constitucionalidade. Mas, sobretudo, aplaudir as deputadas e deputados que se recusaram a chancelar a truculência do coronel alagoano.

As mãos sujas – Nada justifica que o Brasil siga comprando armas e contratando serviços de segurança do protetorado de Israel, ajudando assim a financiar o genocídio a que o mundo assiste inerte e  cumpliciado. Cabe ao presidente Lula dar concretude ao discurso – corajoso e imprescindível – que faz na arena internacional. Saudades do Tribunal Russell dos crimes de guerra cometidos pelos EUA no Vietnã.

Com a colaboração de Pedro Amaral

– A mãe de Lula e o tio da mídia

Por Osvaldo Bertolino

As recorrentes citações pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do exemplo da mãe, dona Lindu, como fez ele ao falar da pressão da direita para taxar os pobres e ampliar os ganhos dos ricos de todas as escalas, vão além do sentido didático. Tem o componente social. Dona Lindu era a ministra da Fazenda da casa, a administradora dos envelopes de pagamentos dos filhos. Agia com rigor, destinando os poucos recursos para cada necessidade da família. Dona Lindu, de acordo com Lula, é o seu exemplo para compreender como funciona as finanças do Estado. Elas têm mais complexidades, mas, na essência, é isso mesmo.

A mídia deu grande destaque a essa máxima do presidente em entrevista após a cúpula do G7 na Itália, quando ele falou da pressão para que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adote “corte de gastos”. Lula disse que está aberto a analisar propostas, mas não fará “ajustes fiscais” à custa dos pobres. E lembrou que a taxa de juros acima de 10% “num país com inflação de 4%” não faz sentido. “Fazem uma festa com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) em São Paulo. Novamente, os que foram na festa devem estar ganhando dinheiro com a taxa de juros”, agulhou.

Epicentro político 

A “festa” foi uma homenagem ao presidente do Banco Central na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que posteriormente participou de um jantar oferecido pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas. Um ato político que vai além de reunir os que ganham dinheiro com a taxa de juros. Foi uma tentativa de sinalizar aos interessados no “ajuste fiscal” que aquele grupo da direita poderia abrir caminho para a organização política da oposição ao governo Lula. Sobretudo após o espocar de fogos da mídia para saudar o recente “ajuste fiscal” de Tarcísio.

A manobra não surtiu efeito e chegou a ser criticada pela própria mídia, que não gostou da exposição política de Roberto Campos Neto. A questão de fundo é a ligação de Tarcísio com Bolsonaro, um estorvo para eventuais pretensões à sucessão de Lula. Além da base social e política bolsonarista do governador, pesam as limitações organizativas em âmbito nacional, pressuposto básico para um projeto da direita capaz de se apresentar como viável politicamente para disputar a sucessão presidencial. Tarcísio teria de formar outro epicentro político, completamente divorciado de Bolsonaro, personagem desgastado pelos escândalos e desastres de seu governo.

Ataques sistemáticos

A direita mira em outra direção, a ideia de que governo Lula, que deveria ter trilhado o caminho do “ajuste fiscal” assim que saiu o resultado das urnas, já se mostrou inviável por ser um gastador inconsequente. E por não aceitar a imposição de que o presidente foi eleito não pelas ideias de esquerda, mas pelo projeto da direita contido na “frente ampla”. Trata-se de uma empulhação, presente diuturnamente na mídia, falsificação grosseira do movimento que se formou em 2022 para derrotar Bolsonaro. Era óbvio que Lula não adotaria a agenda da direita, embora soubesse das limitações conjunturais, sobretudo pela composição do Congresso Nacional.

Com o tempo, a diferença se transformou em ataques sistemáticos a Lula. A mídia adotou a linha de fazer oposição frontal, muitas vezes com apologia explícita ao golpismo. O “ajuste fiscal” passou a ser uma imposição implacável, espécie de tudo ou nada. Acionaram o sistema de projeção do mercado financeiro, chamado de Relatório Focus – segundo o Banco Central, as “expectativas” de mercado coletadas regularmente, na verdade manipulações de projeções de inflação e juros por agenciadores da especulação financeira –, para apresentar um futuro sombrio, o descontrole da dívida pública pela elevação da taxa de juros para “acalmar os investidores”. Surgiu até o fantasma da inflação alta pela demanda crescente com empregos, rendas, reajuste do salário-mínimo e outros investimentos públicos.

Tríade autocrática

Por trás de tudo está a política monetária, o controle da economia pela gestão do Banco Central dito “independente”, que administra uma “meta fiscal” draconiana, o chamado superávit primário, enormes recursos orçamentários abocanhados pelo mercado financeiro por decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre a taxa de juros. É um jogo bruto contra o povo e o país, sem que o governo ou qualquer outra instância de poder possam agir. A tríade Banco Central “independente”, Relatório Focus e Copom forma um poder paralelo, uma autocracia poderosa e inescrupulosa.

A mídia é a grande porta-voz desse autoritarismo. Em nome do “déficit” orçamentário, apresentado como o Armagedon, anunciam de forma peremptória que é preciso “cortar gastos”, mirando questões como o reajuste da aposentadoria, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência, além das verbas para a Saúde e a Educação. Tudo isso martelado em regime de monopólio midiático, sem espaço para o debate e sem a visão do conjunto da economia e da administração da política econômica.

Árvore mágica de dinheiro

O livro O mito do déficit, de Stephanie Kelton, professora de Economia e Políticas Públicas, explica bem a falácia do “ajuste fiscal”. Ela parte de uma citação da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 1983, segundo a qual o Estado “não tem fonte de dinheiro que não o dinheiro que as pessoas ganham”. “Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo se tomar emprestado as suas economias ou se tributá-lo ainda mais”, completou. Segundo Thatcher, “não existe dinheiro público”, mas “dinheiro do contribuinte”.

O mesmo discurso seria repetido mais adiante pela também primeira-ministra Theresa May. O governo não possui uma “árvore mágica de dinheiro”, disse ela. Para bancar investimentos ou políticas públicas o governo precisa pegar mais “do nosso dinheiro”. É a ideia de que se o governo gasta mais do que arrecada em impostos precisa emprestar recursos do “mercado”. Na verdade, taxar e fazer empréstimos vêm primeiro, explica a autora. É o modo convencional de pensar pelo que ela chama de (TE)G: Tributos e Empréstimos precedem os Gastos.

O resumo, de acordo com o que Stephanie Kelton denomina Teoria Monetária Moderna (TMM), é que existem o emissor de moedas (o Estado) e o usuário. Num sistema de controle autocrático da política monetária, o principal usuário é o mercado financeiro, destinatário de grandes somas de dinheiro – o mercado de títulos públicos – que empresta ao governo e cobra o juro determinado pelo Banco Central “independente”. Os demais destinatários, os serviços e investimentos públicos, ficam na dependência dos interesses do mercado financeiro para definir como gastar. Cumpre-se, assim, o ciclo da (TE)G.

Falsa imagem do Tio Sam

Stephanie Kelton relata projeções de aumento da dívida pública dos Estados Unidos de dezesseis trilhões de dólares em 2019 para vinte e oito trilhões em 2029. Enquanto isso, a repetição sistemática de que o governo não tem dinheiro se intensifica. Ela relata que a citação se espalhou pelo país, com a imagem do Tio Sam de bolsos das calças para fora, do avesso. “Muitas pessoas passaram a acreditar que nosso governo está totalmente falido, que seu orçamento não dá conta dos assuntos mais importantes da nossa atualidade.”

Essa falsa imagem do Tio Sam sem dinheiro é a ideia que a mídia tenta cravar como verdade absoluta no Brasil. O controle da economia por essa política monetária autoritária confronta o projeto de governo eleito em 2022 e vai se transformando em dilema. Há uma evidente tentativa de cooptar Haddad, amplificando declarações da ministra do Planejamento, Simone Tebet, numa clara manobra para isolar Lula e criar crises políticas para desestabilizar o governo, inviabilizando a aplicação do seu programa.

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– A UNE, a mídia torpe e o processo civilizatório.

O coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas contra a União Nacional dos Estudantes (UNE) é mais um exemplo de que falta à mídia elementos básicos ao exercício do jornalismo — como caráter e espírito democrático, valores que deveriam ser preservados.

Chamo de caráter a capacidade de manter princípios, independente da situação e do momento. O contrário disso é o casuísmo — quando o sujeito troca de premissas, de opinião e de ponto-de-vista ao sabor daquilo que está acontecendo ao seu redor naquele instante. Casuísmo, como está claro, é um dos aspectos da falta de caráter.

O casuísmo aqui, como no dito popular, é bater na canga para o boi andar. Ou seja: batem na UNE para atingir o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva — assim ocorre, vire e mexe, também com o MST, com o movimento sindical e com outras organizações de origem popular. É a campanha da direita para criminalizar os movimentos sociais. Outro valor fundamental da civilização é a democracia. Esse deveria ser um alicerce inegociável na construção de cada um de nós. No entanto, é de assustar o quanto a democracia anda frágil no convívio jornalístico da mídia. Estamos vendo isso ao vivo e em cores nessa cruzada contra a entidade máxima dos estudantes.

Falta para essa gente que comanda a mídia civilidade. Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra abusos como estes. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a “liberdade de imprensa” não passa de balela.

Conclusão inescapável

Essa civilidade poderia ser fruto de uma sociedade mais madura do que a nossa, em que a democracia seria de fato um valor essencial, cravado mais fundo na nossa alma. Seria fruto de uma sociedade com a consciência de que existem regras mínimas de convivência que se não forem levadas a sério acabam levando ao caos social e à guerra entre concidadãos. Numa palavra: falta a essa gente levar a sério a serventia da democracia. Democracia é, acima de tudo, reconhecer os direitos do outro. No meio jornalístico da mídia, costuma-se pensar em democracia como garantia para seus abusos. Podendo, ele cassa os direitos dos seus adversários — como ocorre de modo flagrante nesse caso.

O que está se passando com a UNE é ignóbil, abjeto. Há caso de ultraje pessoal. O Blog do Noblat, por exemplo, publicou que o presidente eleito da entidade, Augusto Chagas, tem “cara de néscio, jeito de néscio e pensa como néscio”. Ele é descrito como um mentecapto, “cevado pelo PCdoB” para “repetir velhos clichês” e “defender posições ditadas por seu partido”. É um jornalismo asqueroso, indigno e vil. “Quer dizer: a UNE vai de Dilma Rousseff. Nada mais natural”, diz o post, revelando o motivo politiqueiro para tamanha torpeza. Essa gente tem o hábito de julgar os outros pelos seus defeitos. Sórdidos, brandem patrocínios de entidades estatais aos eventos dos estudantes para agredir a lógica — como se eles não recebessem quantias infinitamente superiores para difundir suas torpezas.

Filme Twister

O controle da liberdade de imprensa no Brasil pelo poder econômico não será removido enquanto este modelo de jornalismo alicerçado pelo golpe militar de 1964 — promovido pelos grupos privados para assaltar o Estado e moldá-lo à sua imagem e semelhança — não for demolido. Os grupos que controlam com poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil pretendem controlar, ao mesmo tempo, as verbas publicitárias, o trabalho dos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicação, a produção cultural, as informações prestadas por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal dos cidadãos e as ações do Ministério Público. A conclusão é inescapável: os grupos que controlam a mídia brasileira fogem da democracia como o Diabo da água benta.

O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente. Afinal, a julgar pelo noticiário vivemos uma sucessão infernal de crises: elas mal começam a pipocar, em pouco tempo desaparecem, se esfumaçam como aqueles tufões que aparecem no filme Twister.

Emoções e realidade

É uma tentativa desesperada de subverter os resultados das pesquisas que dão altos índices de popularidade ao governo Lula. O Brasil conhece bem, e há muitos anos, a situação de ter dentro de si diversos países diferentes convivendo ao mesmo tempo. No presente momento, a diferença que mais chama a atenção é a existente entre o Brasil da calamidade e o Brasil do progresso. O primeiro, como dizem os mestres-de-cerimônia ao introduzir algum personagem que todo mundo conhece, dispensa apresentações: é o Brasil da elite em particular e da mídia, visível todo dia e a qualquer hora num noticiário político que cada vez mais se parece com os programas de palhaçadas.

O segundo Brasil é o país do trabalho, do mérito e do progresso — tão real, tão visível e tão vigoroso em suas virtudes quanto o primeiro é vigoroso em seus vícios. A questão mais relevante do momento, do ponto de vista prático, é determinar até onde o país da mídia pode piorar — e os fatos mostram que ele tem tudo para continuar piorando — sem que isso torne inviável o país do avanço. É muito fácil, diante da degeneração crescente da mídia, concluir que o filme já terminou e o bandido acabou ganhando.

Mais difícil, porque dá mais trabalho, é separar as emoções das realidades — e quando se faz essa tarefa com aplicação e cabeça fria o que começa a tomar forma é a possibilidade de que esteja ocorrendo exatamente o contrário. A direita continua perdendo terreno. Como diria Lula, o que se pode dizer com certeza, hoje, como nunca antes na história deste país, é que encontram-se em operação forças positivas que jamais haviam se manifestado de forma simultânea. O problema é que isso faz aflorar o que há de pior na mentalidade da direita. Só mesmo golpes baixos para reverter essa situação. É nisso que os golpistas apostam.

Um incêndio por dia

Seria ótimo se este processo pudesse evoluir a ponto de passar o Brasil a limpo realmente — de alto a baixo, de forma justa, ética, democrática e séria. Mas no jogo político da direita, infelizmente, a torpeza é moeda corrente. O problema é que o país já está em campanha eleitoral e a mídia tem o seu programa de governo. Oportunistas de diferentes matizes e chacais enraivecidos são acionados diuturnamente para difundi-lo. Nessa selva, nunca se sabe onde está o inocente útil e onde está o vilão oportunista. O jogo é pesado.

Será preciso muita estabilidade emocional para enfrentar o que vem por aí. As cidadelas da direita já deixam antever sua baixa tolerância às contrariedades. Dá para imaginar como o campo conservador reagirá diante da realidade hostil ao seu projeto de governo daqui para frente. Vamos enfrentar um incêndio por dia. Eles ignorarão o povo, com o qual não conseguem dialogar, e o próprio bom senso para impor o seu coquetel anti-Lula. O ataque cerrado à UNE faz parte desse jogo sujo da direita.