Gabriel Galípolo e os vendedores de “rabinho de coelho” no Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

A cadeira de presidente do Banco Central, nos moldes atuais, é lugar de autocrata. E o atual presidente, Gabriel Galípolo, incorporou essa prática, conforme tem se revelado numa série de entrevistas com próceres do Plano Real no Youtube para comemorar os sessenta anos do Banco Central e, segundo ele, trazer sorte para a sua gestão. Suas interações ultrapassam os limites da parcimônia e omitem as barbaridades daquela trupe contra o povo e o país.

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Galípolo assume a “legitimidade” do cargo sem mandato constitucional e popular, apesar da controvertida decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a legalidade da “independência” do chamado “guardião dos valores do Brasil”, também designado como “autoridade monetária”, com a ressalva de que “é fato induvidoso que a questão da autonomia do Banco Central divide opiniões”.

Esse poder autocrático representa interesses muito bem definidos. Ele opera o principal mecanismo de controle da riqueza produzida, a circulação monetária. Quem controla o dinheiro, a mercadoria espelho de todas as outras, tem plenos poderes sobre as políticas do país, uma anomalia do Estado Democrático de Direito, que rege os programas de governo, inviabilizados quando sua essência são investimentos públicos em infraestrutura e políticas sociais.

Cenário sem horizonte

O controle do dinheiro é o cerne do poder capitalista, hoje na forma de remuneração por juros já chamados de pornográficos, parasitando o orçamento público e submetendo todos ao seu designo, inclusive o Estado e suas instituições. É o esteio do projeto neoliberal, a ideia de que o velho liberalismo de Adam Smith triunfou sobre as teorias que se apresentaram como alternativas às mazelas do capitalismo. Socialismo, socialdemocracia e keynesianismo teriam fracassado, dando razão aos dogmas liberais.

A tese não se sustenta diante dos fatos. O projeto neoliberal é uma alternativa ao próprio fracasso do liberalismo, liquidado quando os ideais de livre circulação de capitais e de mercadorias foram inviabilizadas pela corrida às matérias-primas e à força de trabalho, a competição entre grupos econômicos pelo controle de territórios, povos e países, traduzida pelas guerras, por genocídios e morticínios que marcam a história do capitalismo, teorizada como neocolonianismo e imperialismo.

No século XX e neste início do século XXI, a violência e a guerra midiática-ideológica se concentram, basicamente, no combate às ideias democráticas e patrióticas. A forma mais conhecida é o clássico anticomunismo, cada vez mais rude e primário, a plataforma que impulsiona a extrema-direita, a expressão mais pronunciada do poder político do capitalismo na contemporaneidade, com a diferença de que, ao contrário do seu passado, age num cenário de maior complexidade, com o desafio de se impor num cenário sem horizonte.

Nova fórmula do velho poder

Ou seja: o poder político com base nessa suposta ressurreição do liberalismo de Adam Smith só se viabiliza com o rompimento das regras do Estado Democrático de Direito, o direito constitucional que se formou com a Revolução Francesa e seus desdobramentos, o ideal republicano e humanista do projeto socialista. A evolução dessa contradição fundamental explica a agressividade do projeto neoliberal, em todas as suas nuances, cada vez mais extremista e hostil às ideias de democracia, soberania nacional, direitos sociais e humanos.

Esse é o arcabouço político e ideológico da autocracia no Banco Central, a nova fórmula do velho poder que precedeu a Revolução Francesa, fundado no absolutismo e no escravismo. Todos devem se submeter aos “guardiões da moeda”, que usam e abusam do dinheiro público como propriedade privada, distribuindo-o aos que alimentam a ciranda financeira, a fonte de remuneração do capital acumulado à base do trabalho excruciante, desumano e alijado das regras do Estado Democrático de Direito.

Os ideólogos desse projeto de “independência” do Banco Central proclamam essas ideias, abertamente, como um grande feito atribuído por eles a eles mesmos. Isso aparece na série de entrevistas realizadas por Galípolo com os autocratas que impuseram o arcabouço do Plano Real. Foi, na verdade, um festival de arbitrariedades confessado pelo principal deles, Pedro Malan, ao lembrar que pretendiam fazer uma revisão constitucional para, na prática, revogar a Constituição de 1998 como condição para os arbítrios do Plano Real.

Dedo no nariz

Pretendiam, à base de corrupção desbragada, fazer, de uma vez só, o que fariam, com dificuldade e autoritarismo, nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC). A ordem era tirar, com apenas um golpe de mão, as cores progressistas da Constituição. Manipularam o Artigo 3° do título constitucional das Disposições Transitórias, que determinava mudanças em alguns aspectos caso o sistema de governo fosse alterado num plebiscito que decidiu pela continuidade do presidencialismo, derrotando as propostas de parlamentarismo e monarquia.

Não houve mudança de sistema de governo. Portanto, não havia justificativa legal para a revisão constitucional. O pensamento neoliberal mostrava força, mas, nesse caso, não obteve sucesso. A vitória da legalidade democrática veio como resultado de uma ampla mobilização popular. O ponto alto foi a segunda Carta aos Brasileiros, redigida pelo jurista Goffedro da Silva Telles, histórico combatente dos desmandos da ditadura militar.

Ficaram famosas as cenas de resistência ao golpe pelas bancadas do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no dia em o projeto de resolução convocando a revisão constitucional seria votado no Congresso Nacional, numa sessão marcada por grosseira manipulação das regras parlamentares. Wilson Muller (PDT-RS) tomou o projeto das mãos do primeiro-secretário, deputado Wilson Campos (PMDB-PE), e transformou-o em papel picado. Haroldo Lima (PCdoB-BA) falou poucas e boas com o dedo a um palmo do nariz do senador Humberto Lucena (PMDB-PB), o presidente do Congresso.

Repetição goebbeliana

A “independência” é uma prática antiga, criada pela chamada “reforma bancária” da ditatura miliar, no começo de 1965, quando surgiu o mandato fixo para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), autarquia criada em 1945, em 1965 substituída pelo Banco Central, e o Conselho Monetário Nacional. A “reforma bancária” se deu com os mesmos argumentos que ecoaram pela mídia com o arcabouço do Plano Real e que, desde então, são enfiados goela abaixo do povo, numa repetição goebbeliana abusiva.

A trupe do Plano Real promoveu um festival de arbitrariedades já no início de suas atividades, com intervenções para centralizar o sistema bancário pelos ditames do Banco Central, uma operação que passou pelo Proer, mecanismo que despejou US$ 12,1 bilhões no “salvamento” de bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira, originando a clássica fórmula de instituições falidas e banqueiros riquíssimos.

A “independência” do Banco Central – existente na prática desde o lançamento do Plano Real – encampou também o papel do Conselho Monetário Nacional, transformado em instância com pouco poder.

Sobre cigarras e formigas

Já se dizia, na ditadura militar, que a “autoridade monetária” se sujeitava ao Poder Executivo, transformando a política monetária em apêndice, sem autonomia fiscal. A “independência” e o mandato fixo evitariam “injunções políticas” nas decisões monetárias, o mesmo argumento, sem tirar nem pôr, da ladainha dos “pais” do Plano Real, um léxico de tolices que serve para qualquer justificativa contra as críticas aos seus abusos, espécie de novilíngua capaz de reinventar a história, recurso que reapareceu com força nas comemorações dos trinta anos do Plano Real.

Os arautos desse léxico frequentam a mídia como salvadores da pátria – sobretudo no Grupo Globo, conforme sintetizou recentemente o apresentar Pedro Bial ao dizer que a trupe era o “genial grupo do Plano Real” –, tida por eles como um dos grandes trunfos da “estabilização da moeda”, transformado em pensamento único pelo que definiram como “eficaz meio de comunicação com a população”. Esse léxico alicerçou os crimes contra o povo e o país na “era FHC” e chegou ao governo Lula pelo macaquear do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, registrado em seu infame livro intitulado Sobre cigarras e formigas.

Rua do Ouvidor

O linguajar padronizado, medíocre e hipócrita, é repetido à exaustão, como se eles estivessem fazendo um grande favor ao país, a soberba do poder absoluto, o galo que pensa que o sol nasce porque ele canta, não sem motivos chamados de “ortodoxos de galinheiro”. Dizem que foram “convocados” para os cargos e que enfrentaram as resistências, ridicularizando quem não reza por sua ladainha, principalmente os presidentes da República que se opuseram a essa roubalheira no período neoliberal, Itamar Franco e Lula.

Não se pode negar que esse poder autoritário serve muito bem à plataforma política da direita, que não tem como se manifestar sem extremismo. São, a rigor, criminosos perante o direito constitucional. Antigamente seriam criminosos comuns. Como lembra o economista Ney Bassuino Dutra em artigo no Monitor Mercantil, na Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro, a polícia volta e meia corria procurando prender dois tipos de contraventores: um, que vendia “rabinho de coelho” para dar sorte; outro, que emprestava dinheiro a juros aos funcionários públicos a 14% ao ano.

Lições dos oitenta anos da derrota do nazifascismo pelos comunistas

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Por Osvaldo Bertolino

Não deixarei o Volga! Não sairei de lá! Os gritos de Adolf Hitler, tomado por um acesso de cólera, eram a expressão do desastre causado pela sua ordem de manter o 6º Exército ao redor da simbólica cidade soviética de Stalingrado. A derrota nazista naquele local representou uma reviravolta na Segunda Guerra Mundial e um êxito incalculável dos comunistas em todo o planeta.

A reviravolta se consolidaria em janeiro de 1942, quando o Exército Vermelho lançou a ofensiva geral em uma ampla frente e em alguns setores avançou mais de 400 quilômetros para o ocidente, afastando a fera nazista que rugia às portas de Moscou. Os comunistas soviéticos, artífices da vitória, ganharam enorme prestígio internacional. A importância militar e política fora gigantesca — pela primeira vez durante toda a guerra o exército nazista sofria uma derrota séria.

Poucos meses antes, em 7 de novembro de 1941 — 24º aniversário da revolução socialista de 1917 —, o líder revolucionário Josef Stálin dissera ao Exército Vermelho e aos guerrilheiros comunistas que o mundo via neles “a força capaz de destruir as hordas rapaces dos invasores alemães”. Adolf Hitler, o senhor absoluto de Berlim, determinara que em 2 de outubro seria desencadeada a grande ofensiva. Tufão era o seu nome em código, um verdadeiro ciclone que devia abater-se sobre os soviéticos, destruindo as últimas forças combatentes diante de Moscou e fazendo desmoronar a pátria do socialismo.

Tudo para frente, tudo para a vitória!

A história não conhecia guerras libertadoras como aquela. Já nos primeiros movimentos, ficara demonstrado que na União Soviética os combates seriam diferentes dos que ocorreram na Europa. Além das debilidades daqueles exércitos, o trabalho de sapa dos colaboracionistas fora determinante para o avanço alemão. No país socialista, as bases sociais para a organização de contrarrevolucionários não existiam mais — ao contrário do que ocorreu na guerra civil, após a Revolução de 1917.

Os soviéticos, com o lema “Tudo para frente, tudo para a vitória!”, estavam conscientes do que representava aquela guerra. Em muitos locais os combatentes deixaram inscrições de loas à pátria gravadas nas ruínas. Eram exemplos do elevado moral comunista, que levaram os Estados Unidos e a Inglaterra a declarar, em 22 de junho de 1941, que estavam dispostos a prestar ajuda à União Soviética. Havia, até então, uma passividade das potências ocidentais. Para as velhas senhoras da Europa e seu aliado norte-americano, o problema de Adolf Hitler era com os soviéticos.

Em janeiro de 1933, quando se tornou chanceler alemão, Adolf Hitler já havia publicado sua plataforma política. Era o livro Mein Kampf  (Minha Luta), um best-seller que naquele tempo contava com mais de um milhão de exemplares vendidos. Nele, estavam claras as idéias do novo chanceler alemão: ódio aos comunistas, aos judeus, aos eslavos, aos proletários, etc. Logo, a venda da obra nazista explodiria. “Com exceção da Bíblia, nenhum outro livro foi tão vendido durante o regime nazista”, escreveu William L. Shirer no livro Ascensão e Queda do 3° Reich, parcialmente traduzido para o português pelo histórico dirigente do Partido Comunista do Brasil, Pedro Pomar.

Na obra, Hitler expôs com clareza o modelo de governo que ele queria implantar na Alemanha. A “nova ordem” que o líder nazista pretendia impor ao mundo tinha no Estado de seu país — que um dia se tornaria “o soberano da terra” — o alicerce para uma ditadura absoluta. A “nova ordem” nazista também teria uma “ideologia universal”. Para tanto, segundo Minha Luta, a Alemanha deveria ajustar contas com a França, “o inexorável e mortal inimigo do povo alemão”. Hitler considerava esse passo decisivo como meio para mais tarde “dar ao nosso povo a expansão que venha a ser possível alhures”.

Estratégia nazista

Ele estava dizendo que a Alemanha tinha como alvo final a União Soviética. “A Alemanha deve expandir-se para o Leste, em grande medida às custas da Rússia”, escreveu. No primeiro volume de Minha Luta, Hitler discorreu longamente sobre o problema do “espaço vital” — Lebensraum, em alemão. “Se na Europa de hoje falarmos em terras, haveremos de ter em mente apenas a Rússia e as nações vizinhas a ela subordinadas”, afirmou o líder nazista. Ele perseguiria esse objetivo até à morte. Para Hitler, o destino tinha sido generoso ao entregar a região à direção dos comunistas — o que, segundo sua teoria, era o mesmo que entregá-la aos judeus.

A estratégia nazista estava clara. Primeiro, era preciso aniquilar a França apenas como condição para o avanço de seus exércitos rumo ao Leste. No decorrer da guerra, essa promessa foi fielmente executada. Hitler tomou a Áustria, a região dos Sudetos, na Tchecoslováquia, e a parte ocidental da Polônia. Em setembro de 1938, os líderes da Alemanha, Inglaterra e França assinaram o “Pacto de Munique”, permitindo ao exército alemão iniciar sua marcha para a Tchecoslováquia. A ameaça à União Soviética estava mais perto do que nunca.

Segurança coletiva

Logo depois da ocupação nazista da Tchecoslováquia, a União Soviética propôs uma conferência das seis potências (Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética) para debater formas de evitar futuras agressões. Mas a proposta foi considerada “prematura”. Os movimentos no xadrez político ocidental deixavam claro a intenção de manter a União Soviética fora do concerto das potências européias. Moscou voltou a acenar, em vão, com um pacto de assistência mútua com a França e a Inglaterra. Esses movimentos evoluíram para a aproximação entre União Soviética e Alemanha.

Discursando no VIII Congresso do partido dos comunistas da União Soviética, em março de 1939, Josef Stálin disse que Inglaterra e França haviam abandonado o princípio da segurança coletiva, com a finalidade de orientar os Estados agressores para “outras vítimas”. Stálin advertiu que os países ocidentais estavam empurrando os alemães ainda mais para o Leste, prometendo-lhes uma presa fácil. Segundo o líder soviético, os princípios orientadores do país socialista eram o de seguir uma política de paz, de fortalecimento das relações econômicas com todos os países e não permitir que a União Soviética fosse arrastada para conflitos pelos provocadores de guerra.

O recado foi entendido em Berlim. A Alemanha tinha interesse em atacar a Polônia sem temer uma intervenção soviética. As conversações evoluíram para o pacto de não-agressão mútua. Quando Hitler invadiu a Polônia, a União Soviética movimentou suas tropas para os Estados Bálticos. A etapa principal do pacto estava vencida. A Alemanha nazista preparava “uma campanha rápida” para “esmagar a União Soviética”. Em junho de 1941, um ano depois da queda da França, as tropas nazistas atacaram o país socialista. Um general alemão disse que a guerra estaria ganha em catorze dias.

Chegada da reviravolta

A batalha de Stalingrado representou a chegada da reviravolta. Dali para diante, o poder de Hitler declinaria, minado pela crescente contra-ofensiva soviética. Um representante do “Ministério para os Territórios Ocupados do Leste”, criado pelo governo nazista, disse na ocasião que os soviéticos “estavam lutando com excepcional bravura e com espírito de renúncia, nada mais visando que o reconhecimento da dignidade humana”. O resultado seria o esmagamento da máquina de guerra criada por Hitler.

Em junho de 1944, as forças anglo-americanas atacaram na frente ocidental. A muralha nazista foi rompida em poucas horas. À meia-noite de 8 para 9 de maio de 1945, os canhões silenciaram fogo na Europa pela primeira vez desde 1939. O fim da contenda entre nazistas e soviéticos chegou quando as tropas motorizadas do Exército Vermelho capturaram o coração da cidadela nazista — Berlim. Um soldado anônimo hasteou a bandeira vermelha no topo do Reichstag. Em 2 de setembro de 1945, os japoneses renderam-se a bordo do encouraçado norte-americano Missouri, ancorado na baía de Tóquio. Era o fim de uma luta que se iniciara em meados de 1937, na China, expandindo-se mais tarde para praticamente todo o Pacífico.

A bandeira da liberdade e da democracia passou a flutuar por toda a Europa e em boa parte do mundo. O resultado da guerra fez com que o socialismo ganhasse muito respeito. Na luta pela existência, os povos aprendem a conhecer seus amigos e a reconhecer os seus inimigos. O socialismo bateu de frente com a Alemanha nazista e foi a principal barreira ao III Reich sonhado por Adolf Hitler. No combate, emergiu a União Soviética na sua verdadeira estatura e significação, com seus líderes, sua economia, seu exército, seus povos e, segundo o então secretario de Estado norte-americano, Cordell Hull, “a quantidade épica de seu fervor patriótico”.

A ordem de Adolf Hitler

Quando o Exército Vermelho empurrava as tropas nazistas para fora do território soviético, em fevereiro de 1942, o general Douglas Mac Arthur, que assinaria a rendição dos japoneses, disse: “Durante a minha vida eu participei de numerosas guerras e testemunhei outras tantas, assim como estudei pormenorizadamente as campanhas dos principais cabos de guerra do passado. Em nenhuma delas observei tão eficiente resistência (…). A escala e grandeza desse esforço assinala-o como o maior feito militar em toda a história.”

Segundo William L. Shirer, o tratamento aos prisioneiros de outros países, especialmente britânicos e americanos, era relativamente mais suave. “Havia, vez por outra, casos de assassínios e massacre deles, mas isso, geralmente, era devido ao excessivo sadismo e crueldade de certos comandantes”, escreveu ele. Quando a maré da guerra começou a virar contra Hitler, com a contra-ofensiva soviética iniciada na batalha de Stalingrado, o líder nazista ordenou o extermínio dos “comandos” aliados capturados, especialmente no ocidente. “Doravante, todos os inimigos em missões denominadas ‘de comando’, na Europa e na Ásia, (…) devem ser mortos até ao último homem”, dizia a ordem de Hitler.

Canhões de grande calibre

É impossível calcular o volume de perdas econômicas causadas pela guerra. Quanto à perda de vidas, há uma estimativa, embora longe de ser exata. Morreram cerca de 50 milhões de pessoas, fardadas ou não. Uma média de 8,3 milhões por ano de luta. Tomada em seu conjunto, a Segunda Guerra Mundial é um fato sem paralelo na história. Nunca tantos países haviam se envolvido num conflito armado. Nunca se produziu tanto armamento. Raramente se aplicou tanta pesquisa e dinheiro no desenvolvimento de equipamentos militares.

A guerra começou numa época em que os exércitos ainda usavam cavalos. Quando terminou, os caças a jato já voavam. No final da década de 30, as armas mais destrutivas ainda eram os canhões de grande calibre. Meia dúzia de anos mais tarde o planeta tomava contato com as armas nucleares e com os mísseis balísticos. O mundo não poderia ser o mesmo após o término da Segunda Guerra Mundial.

O julgamento de Nuremberg

No dia 20 de novembro de 1945, 21 acusados nazistas sentaram no banco dos réus no Palácio da Justiça, em Nuremberg, Alemanha, para o julgamento por crimes de guerra. Outro acusado, Martin Bormann, foi acreditado como morto. Pela primeira vez, ocorria um julgamento internacional. Para isso, foi criado o Tribunal Militar Internacional (TMI), que combinou elementos do direito anglo-americano e das leis civis do continente europeu, formado pelas quatro potências aliadas: União Soviética, Inglaterra, França e Estados Unidos.

Em agosto de 1945, os aliados reuniram-se em Londres para assinar o acordo que criou o TMI e acertar as regras do julgamento. O documento, conhecido como “Carta de Londres”, tem uma característica salutar: a ausência de palavras como “lei” ou “código”, num esforço para lidar com aquela questão delicada de forma eficiente.

A “Carta de Londres” criou as regras dos processos de julgamento e definiu os crimes a serem tratados: assassínio, extermínio, escravização, deportação, atos inumanos cometidos contra alguma população de civis antes ou durante a guerra e perseguição política, racial, ou religiosa. Os réus foram acusados de exterminar milhões de pessoas e espalhar a guerra na Europa.

O julgamento de Nuremberg

Os processos de Nuremberg certificaram o nascimento do direito internacional. O TMI faria ainda outros julgamentos, principalmente de médicos que realizaram experimentos brutais, e criou um documento que ficou conhecido como “Código de Nuremberg” — considerado um marco na história da humanidade por estabelecer uma recomendação internacional sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos.

Logo no início dos trabalhos, o juiz norte-americano Robert Jackson, que atuou como promotor-chefe da acusação, declarou: “Não devemos esquecer que os parâmetros pelos quais julgamos hoje estes acusados são os parâmetros pelos quais a história nos julgará amanhã. Passar a estes acusados um cálice envenenado é pôr esse cálice em nossos próprios lábios. Devemos observar em nossa conduta tal imparcialidade e integridade que a posteridade possa elogiar este julgamento por ter cumprido as aspirações da humanidade de que se faça justiça”. A duras penas, o mundo chegava a um ponto decisivo: o que fazer depois daquele conflito gigantesco?

Fenda no governo brasileiro

No Brasil, a Segunda Guerra Mundial abriu uma fenda no governo, que se estendeu depois que, em 7 de dezembro de 1941, realizou-se na cidade do Rio de Janeiro a Conferência de Chanceleres das Américas em apoio à entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Ali se descortinaram caminhos políticos para o progresso do movimento patriótico e antifascista.

O país estava chocado com o torpedeamento de vários navios da Marinha brasileira por submarinos alemães e o governo reagia timidamente devido às suas diferenças internas — o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra — que viria a ser o sucessor de Getúlio Vargas na Presidência da República e aliado incondicional dos Estados Unidos no nascedouro da “Guerra Fria” —, e o aparelho repressivo chefiado por Filinto Muler eram abertamente a favor da Alemanha. Mas a pressão popular levaria, finalmente, o governo a declarar guerra ao Eixo nazifascista no dia 22 de agosto de 1942.

Manifestação organizada pelo Partido Comunista do Brasil na Praça da Sé, em São Paulo, comemora derrota do nazifascismo

Outra manifestação da divisão no governo ocorreu quando os estudantes organizaram uma “passeata antitotalitária” no dia da Independência dos Estados Unidos, 4 de julho, que contou com o apoio do ministro das Relações Exteriores, o chanceler Osvaldo Aranha, e a repulsa de Filinto Muller. O chefe da repressão tentou impedir a passeata, desacatou o ministro da Justiça interino, Vasco Leitão da Cunha, foi preso e demitido. Em consequência do episódio, foram demitidos também Francisco Campos, ministro titular da Justiça, e Lourival Fontes, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Felisberto Batista Teixeira, diretor do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi outro afastado.

Organização da FEB

Os avanços das forças soviéticas, que impulsionavam a luta democrática em todo o mundo, refletiram fortemente no Brasil. O Partido Comunista do Brasil se empenhou com tenacidade na luta anti-fascista e propôs a organização da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutaria em Nápoles, Itália. Com essa finalidade, o Partido abriu duas frentes de trabalho — reforçou a União Nacional dos Estudantes (UNE) e relançou a Liga da Defesa Nacional, entidade fundada em 1916 no Rio de Janeiro pelos intelectuais Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon, sob a presidência de Rui Barbosa.

No dia 28 de novembro de 1943, o governo decidiu organizar a FEB. “Fomos os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil e o fizemos de maneira consequente”, segundo o histórico dirigente comunista João Amazonas. As Comissões de Ajuda, criadas às centenas em todo o território nacional, angariaram donativos, realizaram conferências e promoveram comícios populares. Todo esse trabalho foi coroado com a organização da FEB.

O desembarque do primeiro escalão da FEB em Nápoles, Itália, em 17 de julho de 1944, coroou o trabalho abnegado daqueles brasileiros que olhavam para o futuro e imaginavam o país livre da ditadura do Estado Novo e das ameaças nazifascistas. O Partido Comunista do Brasil mobilizou forças e organizou grandes ações em favor desse objetivo. E, após o término da guerra, enfrentaria seus efeitos.

Denúncia de Maurício Grabois

No dia 9 de outubro de 1946, o deputado federal Maurício Grabois – que seria líder da bancada do Partido Comunista do Brasil na Câmara dos Deputados – ocupou a tribuna para denunciar o perigo que a guerra ainda representava. Ele reagiu, indignado, às palavras de Gilberto Freyre (UDN-PE) que, “em nome da consciência universal cristã”, protestou contra a pena de morte imposta aos criminosos nazista julgados em Nuremberg. Grabois disse: “A clemência para com esses bandidos nazistas em Nuremberg poderá significar, para o futuro, a morte de milhões de homens livres.”

O líder da bancada comunista também denunciou a proibição da entrada de judeus no Brasil pelo governo do general Dutra. “Ainda ressoa o eco das bombas da última conflagração e os mesmos preconceitos, as mesmas perseguições, ainda persistem no cenário mundial”, disse Grabois. “Hoje, após a derrota do nazifascismo, vemos se levantar as tentativas dos imperialistas norte-americanos e seus aliados para reacender a fogueira ateada por Hitler”, afirmou.

Nascimento da “Guerra Fria”

A guerra mostrou ser um negócio lucrativo. Durante os anos da Primeira Guerra Mundial, estima-se que os monopólios americanos obtiveram um lucro líquido de US$ 38 bilhões. Durante a Segunda Guerra Mundial, o lucro líquido foi de US$ 53 bilhões. Logo, uma violenta tempestade se formaria debaixo da calma aparente do pós-Segunda Guerra Mundial. Enormes áreas coloniais e semicoloniais do globo, agitadas com as novas esperanças de liberdade pelo exemplo da vigorosa vitória das forças democráticas, estavam despertando e ameaçando subverter a pesada estrutura do imperialismo. A revolução socialista cintilaria na China e começava a irromper na Coreia.

Eram acontecimentos anunciados como o fim dos tempos, obras de uma “conspiração moscovita”. O mundo capitalista, que se debatia nas garras da crise antes do início da Segunda Guerra Mundial enquanto a União Soviética embarcava em uma era de progresso, armava-se febrilmente para impedir o avanço do socialismo. O mito propaganda da “ameaça comunista” trazia de volta o ramerrame dos velhos chavões que inundaram o mundo pelas ações do nazifascismo no entreguerras. Era o surgimento da nova face do anticomunismo, a “Guerra Fria”.

Lula, José Serra e Ciro Gomes: três homens e um destino

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 31/07/2002

O primeiro debate na Rede Bandeirantes de televisão no próximo dia quatro representará uma queda-de-braço prévia entre os programas dos candidatos à Presidência da República. Estarão em discussão, com várias nuances, as duas concepções possíveis hoje para um projeto de governo. Do ponto de vista macroeconômico, a pauta é a de sempre: estabilidade da moeda, abertura do mercado e equilíbrio das contas nacionais. Do ponto de vista administrativo, os temas devem ser o espectro de reformas – ou, por outra, o papel do Estado – e do ponto de vista social, a melhoria dos serviços públicos básicos e a geração de empregos.

A análise desses temas revela que o país vai muito mal. Mesmo que tenhamos muito em comum com as mazelas de países tão subdesenvolvidos como Paraguai e Bolívia, vários dos desafios que os próximos anos reservam ao Brasil são semelhantes aos enfrentados por Argentina e México para administrar suas opções econômicas.

Temos, portanto, problemas gigantescos a serem enfrentados nos campos social e macroeconômico. Se optarmos por atacá-los de frente, com nossa importância histórica, nossa diversidade continental e nosso papel geopolítico, a América Latina tende a seguir por outro caminho. Entraremos para o clube dos países que lutam por sua soberania. Se a opção for por manter o rumo atual, lançaremos toda a região no olho do furacão neoliberal.

Esse é um esquadro que aparece muito bem desenhado pela conjuntura latino-americana. Existem apenas dois caminhos: o atual e o proposto pela esquerda. Outubro representará uma encruzilhada decisiva para o Brasil. Não há como o centro político ser o esteio de um projeto de governo. É uma impossibilidade física. Então, o que de substancial aconteceu para que o índice de intenções de voto em Ciro Gomes subisse vertiginosamente?

Supunha-se até bem pouco tempo que Lula imporia margens folgadas sobre seus adversários no primeiro turno. No começo de julho, Serra, segundo o “Datafolha”, aparecia em segundo lugar com 20% e Lula em primeiro com 38%. Ciro Gomes, que oscilava entre 12% e 14%, caiu para 11% no começo de junho e na primeira pesquisa de julho já aparecia com 18%. Agora se isola no segundo lugar, ameaçando o favoritismo de Lula no segundo turno. Mas nada de sólido aconteceu para essa mudança. Nenhum dos escândalos da gestão FHC veio à tona novamente com força suficiente para abalar as estruturas da candidatura Serra. As manipulações do episódio de Santo André e da crise na segurança do Rio de Janeiro para atingir Lula não conseguiram arrastar o debate eleitoral para os subníveis da histeria.

Esses índices das pesquisas, portanto, não refletem o ápice do que pode fazer eleitoralmente as candidaturas de Lula e Serra. O ponto, aqui, é que o salto de Ciro Gomes encerra uma verdade: o eleitorado está muito interessado no debate dos programas de governo em disputa. Conclusão: Ciro Gomes está crescendo pelos motivos errados. Seu palavreado estridente e oco, cativa pela incisão e tende a se desmanchar pela inconsistência. Ele tenta encarnar o Joãozinho do Passo Certo para encobrir sua tortuosidade política à frente de uma coligação que vai se configurando como de direita. Sua candidatura pode até ocupar esse espaço que originalmente é de Serra, mas a tendência é a de ela se espatifar ante os embates de peso no debate eleitoral. Sua coloração de esquerda, por outro lado, vai ficando cada vez mais desbotada.

Ciro Gomes tenta repetir a tática de Collor de pautar as intervenções pela frase de efeito e pelo que seu público-alvo quer ouvir – não por seu projeto para o país. Mas nessas eleições, o eleitor quer saber como serão tratadas as questões sociais e macroeconômicas. Nesse terreno, Ciro Gomes derrapa. Não faz tempo, ele teorizou sobre a dívida interna, propondo redução dos juros para os papéis de curto prazo e aumento para os de longo prazo, e diante da reação não teve como levar o debate adiante. Preferiu o silêncio. Mas o povo quer saber. E ele terá de dizer o que pretende fazer com essa e outras questões. No campo social, suas propostas também são pífias.

As candidaturas de Serra e Lula têm propostas claras para esses temas. O governista pretende, obviamente, levar adiante o projeto neoliberal. O desafio para ele é neutralizar a dicotomia entre inflação baixa, represada pelos juros altos, e crescimento econômico sem mexer nos fundamentos do modelo. Ele diz que é possível. O povo não acredita. Por isso, não decola. Como não dá para servir a dois senhores, ele está claramente a serviço do capital financeiro e terá de deixar isso claro no curso do debate eleitoral. Não há explicação plausível para a conciliação entre juros altos, uma bola de chumbo atada ao tornozelo da produção, e a geração de empregos. FHC prometeu conciliar esses conceitos opostos e não cumpriu. Nem tentou – o que demonstra sua demagogia eleitoreira. Por que o povo acreditaria em Serra?

Lula, por seu turno, leva vantagem por ser o candidato que diz claramente o que pretende fazer na Presidência da República. E por isso contraria alguns e agrada muitos. Seu programa não deixa margem para dúvidas sobre qual rumo o governo irá seguir. O crescimento econômico e a geração de empregos, prioridades do governo Lula, não aparecem como algo estrambótico – como nas propostas de Serra. Esses itens do programa estão solidamente amarrados pelas propostas de boa administração macroeconômica e vigor na ação social. E esse escopo abarca as aspirações de camadas da população nas quais se encontram desde o sujeito socialmente excluído até uma sólida fatia do empresariado nacional produtivo.

Serra não passa verdade em seu olhar. Mas tem as costas quentes. É o candidato do sistema, do dinheiro, da mídia. A candidatura inflada de Ciro Gomes tende a perder gás. Lula, portanto, segue firme em sua trajetória de levar o país ao encontro de sua vocação histórica de independência e progresso. A conjuntura nunca esteve tão propícia para tanto. Mas sua candidatura é o alvo preferencial do poder econômico. É previsível, portanto, que o debate eleitoral, num determinado estágio, deixará a esfera das propostas de gestão para o país e entrará no terreno do espetáculo circense. Mas o circo pode pegar fogo. Resta saber como o eleitor irá reagir.

As xaropadas do professor Ciro Gomes

Por Osvaldo Bertolino

Como biruta de aeroporto, Ciro Gomes se caracterizou por se comportar como se estivesse na Escolinha do Professor Raimundo, falando aos quatro ventos sobre o que é perguntado, o que não é e o que interpreta que é. No final das contas, ele mesmo pergunta e responde sobre assuntos como marxismo-leninismo, comunismo no Brasil, regras da Previdência Social, dívida pública, Deserto do Saara, máfias de Chicago, geografia de Gaza, tarifas de Donald Trump e tudo mais que surge pela frente, numa espécie de supercondutividade opinativa.

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Ciro Gomes está de volta à ribalta política com as mesmas diatribes, disparando rajadas de denúncias contra o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um Carlos Lacerda redivivo, o ex-governador da Guanabara que usou sua língua ferina contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Como o professor Raimundo, ele sai por aí atribuindo notas sobre todas as ações do governo, além de pregar moralismo udenista.

A crise no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que resultou na saída do ministro da Previdência, Carlos Lupi, líder do Partido Democrático Trabalhista (PDT) – o atual partido de Ciro Gomes -, tem servido de mote para elevar as especulações sobre a sua projeção como potencial candidato a presidente da República pela esquerda. Suas aparições têm sido cada mais ostensiva, sempre reafirmando a retórica de salvador da pátria. E, como sempre, se mete a falar de tudo, disparando nuvens de palavras com poucas ideias.

Sem espaço para ser explícito na direita, se reveste de progressista para dar seus giros em círculos viciosos. Na prática, é mais um aventureiro bissexto que tenta induzir o eleitor a não levar o voto a sério. Seu linguajar esconde a sua projeção no ninho da direita – sobretudo no PSDB, o partido incubador do projeto neoliberal no Brasil, que ganhou raízes com o Plano Real – e confunde os que que veem nele apenas o verniz de esquerda, a exemplo de seu fantasioso livro intitulado Projeto nacional: o dever da esperança.

A probabilidade de que ele se viabilize como alternativa à esquerda ou à direita é remota. Sua projeção está baseada no que se chama de crise de representatividade, uma confrontação à política propriamente dita, o debate partidário substituído por demagogia barata, desinformação, falta de seriedade com os eleitores ou estultícia mesmo. A extrema-direita concentra essa prática de maneira mais explícita, mas ela está disseminada por todo o espectro político, inclusive na profusão de perfis e canais da extrema-esquerda.

O objetivo não é alçar Ciro Gomes à posição de sério concorrente de Lula, mas atiçá-lo para desgastar a esquerda com a desmoralização de seus partidos e corroer  sua credibilidade nas organizações sociais e populares, as verdadeiras raízes do pensamento progressista. É uma variante da direita, com seus golpes, corrupção e demagogia, armas para manter sob controle a retórica pró-democracia, uma tolerância ao princípio da soberania popular desde que sob seu controle absoluto, como se vê no comportamento do monopólio midiático.

Ciro Gomes é produto dessa manobra. Desde que ele surgiu na cena política com mais destaque, como ministro da Fazenda substituto de Rubens Ricupero – pego confessando nos bastidores de uma entrevista para a TV Globo que não tinha escrúpulos para esconder o que era ruim e divulgar o que julgava bom, no âmbito da guerra suja para eleger seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC), presidente da República em 1994 –, sua truculência se mistura a promessas vazias.

No contubérnio que se formou em torno do lançamento do Plano Real, Ciro Gomes assumiu os dogmas neoliberais e chegou a pregar violência contra os petroleiros em greve pelo calote de FHC num acordo trabalhista, segundo ele “privilégios” que justificavam a ilegalidade. “Eu fiz isso no Ceará. Dava um cacete e todos voltavam ao trabalho”, receitou. Sua incitação à violência contra os trabalhadores se consumou com a invasão do Exército durante a greve dos petroleiros, início da onda neoliberal de criminalização dos movimentos sociais.

Na época, escrevi no jornal Plataforma, do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, do qual eu era diretor de imprensa: “Parece até a reencarnação do cangaço na direção do mais importante ministério do país. O ministro, que transborda vaidade e arrogância, também tem características de camaleão. Fala de modernidade e se comporta como um coronel do sertão. Diz ser guardião do dinheiro público e estoura o orçamento com pagamentos de juros escorchantes. Tagarela sobre democracia e entope o noticiário com propostas autoritárias e mentirosas.”

A China e a revolução escondida

Por Osvaldo Bertolino

O fenômeno chinês é, possivelmente, um dos assuntos mais debatidos na atualidade em todo o mundo. No Brasil, é possível afirmar que o assunto está no topo do debate político, econômico e ideológico. Com o advento das novas formas de comunicação, velhos estereótipos foram desmoralizados, sobretudo os que estigmatizam a China como ditadura e fornecedora de força de trabalho abundante a baixos custos, sem contrapartidas, como se essa fosse uma condição do sistema.

Ficou, no debate com esses novos conhecimentos, um vazio de ideias. Fala-se muito sobre a China, mas pouco sobre o essencial, a ideologia que impulsiona o seu desenvolvimento. Compreende-se pouco, pelas manifestações mais conhecidas, o dínamo daquele país, a organização que orienta politicamente a sociedade: o Partido Comunista da China (PCCh). Nele está o projeto chinês, compreendido como antípoda do imperialismo como evolução natural das ideias surgidas com Adam Smith e seus congêneres, à época chamadas de liberais. O socialismo é o processo de superação do capitalismo, não seu mero concorrente

É um anacronismo chamar o atual projeto econômico, político e social do capitalismo de liberal. O termo surgiu como sinônimo de liberdade, num mundo em que a relação entre capital e trabalho era vista como antinomia assimilável pelo princípio da liberdade, tida como universal e perene. Mais recentemente, tentou-se reavivar esse projeto, rebatizado de neoliberal, a nova ordem econômica e política do velho imperialismo.

A história logo provou a cientificidade da crítica da economia política de Karl Marx, a constatação de que a liberdade de Adam Smith não era universal e muito menos perene. A crítica de Marx é lastreada numa síntese do pensamento social desde a antiguidade clássica. Outros marxistas deram novas sistematizações a essa ideia, sobretudo Vladimir Lênin, que elaborou outra grande síntese do pensamento social.

Surge, nesse curso histórico, a concepção leninista de partido de novo tipo, o portador consciente de um processo inconsciente, as contradições manifestadas em luta política pelas categorias da dialética, transformando os trabalhadores de classe em si para classe para si, a consciência social de que o capital é instrumento de dominação, exploração e alienação. O partido leninista concentra essa teoria em suas elaborações programáticas e dá a elas sentido prático, com táticas e estratégias impulsionadas dialeticamente, conforme as realidades concretas.

Não se compreende a China sem esses elementos. Foram eles que levaram à revolução de 1949 e ao desenvolvimento do socialismo, também carregado de antinomias e contradições. As limitações teóricas foram o grande entrave a esse processo – também foram em outras experiências socialistas –, atualmente em processo de superação, mais conhecido como nova luta pelo socialismo, por experientes partidos comunistas, entre eles o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

É a busca de novas elaborações no cenário mundial de novas realidades, caminhos para a consecução do projeto socialista. O PCCh empreende grande esforço nesse sentido. Suas elaborações permitem compreender melhor a síntese leninista, a causa do sucesso chinês, um bem-sucedido projeto antinômico que transforma capital em investimentos e desenvolvimento, produzindo novas realidades, o caminho do socialismo.

Ou seja: a raiz do fenômeno chinês é o partido leninista, com a revolução de 1949 como seu marco principal. Resta saber se, com esses elementos, é possível dizer que o mundo caminha para a multipolaridade, com o imperialismo cada vez mais feroz na defesa da ordem do capital e a China em marcha acelerada com seu projeto socialista.

“Comunistas” do caminho sem rumo

Por Osvaldo Bertolino

Assim como a extrema-direita, há uma explosão de perfis e canais de extrema-esquerda. Tem para todos os gostos, de todas as cores. O fenômeno decorre da crise econômica do capitalismo, transformada em crise política e degradação social. Ou seja: o terreno é fértil para a germinação de sementes plantadas na superfície, originando árvores com crescimento rápido em busca de luz, mas incapazes de gerar frutos. Quem olha os troncos, os galhos e as folhas sem prestar atenção nas raízes, é induzido a avaliações igualmente artificiais.

Há uma guerra entre as correntes de extrema-esquerda, que nada fica a dever aos métodos da extrema-direita. Na busca por lugar ao sol, os golpes são violentos. A retórica se derrama em lances patéticos, formulações grosseiras e estridência verbal. Um quer suplantar o outro a qualquer custo, numa escalada sem limites. A cada rodada de respostas – chamadas por eles de “react” –, outras de provocações se sucedem, em ondas concêntricas intermináveis.

Isso se chama oportunismo. Esquerda, ideias progressistas, luta pelo socialismo são conceitos que, fora de um projeto tático e estratégico, não leva a lugar nenhum. Para os que se dizem “comunistas”, a coisa é ainda pior. Qualquer fenômeno analisado fora desse projeto não passa de retórica, bravatas que batem na realidade e se dissipam como palavras ao vento. Serve no máximo para ecoar em ouvidos pouco habituados às formulações clássicas sobre o socialismo – ou o “comunismo” –, capturando indignações sem dar-lhes consequências práticas.

O marxismo, a raiz profunda da luta pelo socialismo, tem, na formulação clássica de Lênin, como parte constitutivas, a filosofia, a economia e a política. Dissociá-las, dizia o próprio Lênin, é oportunismo. Exatamente o que se vê com a presença ostensiva e prosélita da extrema-esquerda na internet. Em busca de protagonismo e estrutura de financiamentos – no popular, “caça cliques” e monetização –, tira-se do debate a reflexão realmente marxista para apresentar obtusidades e becos sem saída.

O princípio essencial da luta pelo socialismo é a dialética, que, com suas categorias, une e impulsiona a luta política, para os marxistas o caminho para o socialismo. Na definição de Lênin, análise concreta da realidade concreta. A realidade em constante mutação, às vezes em longos períodos de poucas mudanças e curtos períodos de muitas mudanças. Para interagir com a realidade é preciso ter um programa, um instrumental organizativo capaz de se apresentar como força transformadora, de produzir sínteses em todas as ações para dar surgimento a novas realidades.

Falar de “comunismo” sem essa premissa é seguir por um caminho sem rumo, se deparando com obstáculos intransponíveis ou abismos insuperáveis. O caminhante não tem como seguir em frente. É oportunismo e aventureirismo, que precisam negar a realidade concreta e confrontar a essência da luta pelo socialismo para garantir suas posições, transformando-se em forças que se opõem ao processo dialético, criando mais obstáculos no caminho dos que seguem um rumo, com tática, estratégia e objetivo bem definidos.

Plano Real: Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa

O Plano Real, lançado por uma plataforma midiática goebbeliana em 1994 e concebido por um grupo liderado por Fernando Henrique Cardoso (FHC), promoveu uma feroz investida para saquear o Estado. Em São Paulo, o principal ninho do tucanato – como eram chamados os integrando do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) -, a equipe de FHC montou sua mais escandalosa arapuca. No dia 29 de dezembro de 1994, o governador de São Paulo, Mário Covas – também do PSDB -, recebeu a visita do então presidente do Banco Central, Pérsio Arida, com uma carta pela qual o Estado pedia a intervenção no Banespa — a mesma que havia sido aceita, pouco antes, pelo então governador carioca, o também tucano Marcelo Alencar, e que resultou na intervenção no Banerj.

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Covas recusou a trama e exigiu de Arida uma justificativa para a proposta da equipe econômica. A resposta nunca veio e o imbróglio acabou com a demissão de Arida. Mas a intervenção aconteceu e o Banespa acabou em mãos privadas. Ao longo do processo, holofotes poderosos varreram o caso e revelaram a essência de como a ”era FHC” administrou a economia do país. O editor da revista CartaCapital Carlos Drummond reconstituiu o caso com a minudência de um arqueólogo.

A reportagem, baseada em depoimentos e documentos fartamente reproduzidos, é uma minuciosa descrição da reunião de 7 de agosto de 1995, na sede do BC em São Paulo, quando foi apresentado o relatório da comissão de inquérito que durante sete meses apurou ”irregularidades” no banco. Com nomes, locais, datas e diálogos, a revista divulgou que naquele dia a comissão anunciou duas decisões: denunciar algumas irregularidades ao Ministério Público e arquivar o inquérito. ”O processo tem de ser arquivado porque não há patrimônio líquido negativo e o devedor principal é o próprio governo do Estado, que está negociando com o Banco Central uma forma de amortização da dívida”, receitou, segundo a revista, o funcionário Carlos José Braz Gomes de Lemos, relator da comissão de inquérito. Mas o diretor do BC Alkimar Moura, presente à reunião, achou pouco e aceitou uma sugestão: avermelhar falsamente o balanço do Banespa.

O artifício foi considerar toda a dívida do governo paulista com o banco como crédito em liquidação. Segundo a apuração de Drummond, o Banco Central praticou uma repreensível ”manobra contábil”: no dia da intervenção, o Banespa tinha um patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão e a dívida do Estado, no total de R$ 9,4 bilhões, estava em dia, com a exceção de ”uma pequena parcela de R$ 25 milhões vencida”. ”Isso significa que, no dia em que se fez a intervenção, não havia passivo a descoberto, ou seja, créditos sem perspectiva de recebimento”, afirmou a revista. Num truque de fazer Mandrake parecer aprendiz, um saldo de patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão foi transformado em patrimônio líquido negativo de R$ 4,2 bilhões. Os principais protagonistas da trama eram basicamente tucanos paulistas, que começaram a se organizar numa espécie de confraria ainda no governo estadual de Franco Montoro, eleito em 1982 pelo PMDB.

Revoada de tucanos

Na ocasião, Orestes Quércia já era o principal líder do PMDB no Estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Montoro. FHC foi eleito senador pela sublegenda, de carona. Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta — ministro das Comunicações no governo FHC —, assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, pelo PTB, era um dos concorrentes de Quércia ao cargo de governador e não lançou candidatos ao Senado. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar — que mais tarde virou tucana de carteirinha e num banquete chamou Lula de ”aquele mecânico” — criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo Estado. Foi a senha para a criação do PSDB. Em 1995, a revista VIP publicou uma reportagem com relatos surpreendentes. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno, disputado entre Luiz Antônio Fleury e Paulo Maluf, houve uma revoada de tucanos para a candidatura do PMDB. José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury.

Ação Popular

Segundo a VIP, Vladimir Rioli foi um dos caixas da campanha do PSDB e sempre transitou pelas cercanias das finanças do Estado. Com a vitória de Fleury, Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do BC para assumir a presidência do Banespa e Rioli, que havia sido diretor do banco na gestão Montoro, assumiu a vice-presidência de finanças — de onde saiu, misteriosamente, em 1993. Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar 14,1 milhões de dólares. Rioli declarou à VIP: ”Não havia um apoio formal do PSDB ao governo Fleury. Era um canal aberto de um grupo de pessoas dentro do partido com o governo.” A VIP fez uma lista enorme de casos de negócios irregulares dos economistas do PSDB à frente do Banespa. Pouco tempo depois, dia 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no banco e mais tarde privatizá-lo.

Segundo a revista, no dia 7 de agosto de 1995 Carlos José Braz Gomes de Lemos, o relator da comissão de inquérito, leu os trabalhos da comissão de inquérito que investigou as causas da intervenção, que indicavam algumas operações de crédito a empresas privadas (empréstimos concedidos pelos economistas ligados a José Serra no governo Fleury) e mostravam indícios de irregularidades. Os detalhes da fraude nunca foram contestados de maneira convincente. Segundo CartaCapital, por mais de uma vez o diretor do BC Alkimar Moura disse que o objetivo era ”pegar o Quércia”.

Cinquenta e três anos do Araguaia – uma Guerrilha com muita história

Neste dia 12 de abril de 2025 completam-se 53 anos do começo da Guerrilha do Araguaia

Por Osvaldo Bertolino

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(Poesia de um guerrilheiro do Araguaia)

A B R I L

nem tudo

é ludo

quando abril

nos desce

nem tudo

é luto

quando abril

floresce

nem tudo

é susto

quando abril

se tece

__

1792 : a corda, o patíbulo

(a história tece

o seu fio) :

tomba o valente alferes

e abril?

e abril, que nos traz então?

— lição

__

1964 : bandidos

assaltam o sono e o

sonho do povo :

o medo ruge nas praças

e abril?

e abril, que nos traz

então?

— prisão

__

1972 : como toda noite funda

é esperança

de manhã

no araguaia raia a luta

e abril?

e abril, que nos traz

então?

— clarão

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“O Partido Comunista do Brasil não faz proselitismo em função do Araguaia. Nosso Partido achou que cumpriu o seu dever, de procurar, em condições difíceis, o caminho da resistência, preparando o fim do regime de tirania implantado no Brasil. O Partido Comunista simplesmente cumpriu o seu dever, e cumprirá em qualquer circunstância, porque é um Partido integrado com as raízes do nosso povo e que aspira a um regime de liberdade, de justiça social, de esperança para a nossa gente tão sofrida e humilhada, sujeita a um processo de degradação que horroriza a todos nós. Que vivam eternamente na lembrança dos brasileiros os feitos gloriosos dos guerrilheiros do Araguaia.”

João Amazonas, em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, no dia 16 de maio de 1996.

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“Seria oportuno que as Forças Armadas proclamassem que tais crimes contra o povo jamais serão repetidos. As Forças Armadas são instituições pagas com o dinheiro do povo, não podem tê-lo como inimigo principal. É necessário que repudiem tais crimes, condição para que possam contar com a simpatia do povo, preparando-se para as grandes batalhas que poderão advir em defesa da soberania e da independência da Pátria.”

João Amazonas, em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, no dia 16 de maio de 1996.

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“Companheiros, dirijo este Partido — como principal dirigente, digamos assim — desde 1962. Claro que não era somente eu, pois se tratava de uma direção coletiva de companheiros abnegados, de quem não posso falar sem lembrar com saudades e com respeito pela sua combatividade — companheiros como Maurício Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Luis Guilhardini e outros tantos que estiveram presentes na direção deste Partido e que pagaram alto preço pela coragem de desafiar um regime de traição e brutalidade em nosso país, para defender os interesses do nosso povo. Esses companheiros foram todos assassinados pela repressão e morreram com honra no seu posto de luta.”

João Amazonas, no 10º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

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A Guerrilha do Araguaia faz parte das marcas populares gravadas na história do Brasil de forma indelével. Mas, como convém aos que analisam os acontecimentos históricos à luz dos interesses ideológicos dominantes, a resistência à ditadura militar organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é majoritariamente apresentada como fato passageiro — um mero choque entre grupos extremados à esquerda e à direita, deflagrado pelos primeiros com a opção da luta armada.

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A retórica em geral transforma-se em palavras ao vento, mas o que é escrito e gravado torna-se referênciasconvenção históricas. O que foi publicado desdobrou-se em entrevistas e proselitismos de toda forma, uma mobilização do que há de mais rancoroso na mídia para dar eco às deformações e difamações ao estilo Joseph Goebbels – a transformação de mentiras em verdades à força de repetição.

Gay Talese, um dos criadores do jornalismo literário nos Estados Unidos, dizia que o realismo é fantástico. A constatação confirma a lógica de que a história da Guerrilha Araguaia contada pelos fatos tem muito mais qualidade. A opção pela ficção é um claro viés ideológico, a militância de um certo de tipo de jornalismo que se propagandeia isento para, do alto dos impérios midiáticos, lançar diatribes e forjar empreendimentos ideológicos a serviço de causas escusas.

É um tipo de militância que rende dividendos, prêmios e até títulos acadêmicos, já definido como indústria do anticomunismo. Desde que Karl Marx e Friedrich Engels lançaram o Manifesto do Partido Comunista, em 1848, considerado o primeiro documento programático do comunismo, essa militância age freneticamente. “Todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele: o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães”, escreveram.

A máxima de que uma maré crescente eleva todos os navios se aplica aqui. Com a marcha da extrema direita, nominada em diferentes épocas com marcas que se tornaram símbolos de inimigos da humanidade – o mais conhecido deles é o nazifascismo –, a apologia a genocídios ganha ares de normalidade, constatação agora comprovada nas ficções apologéticas à barbárie da ditadura militar contra a Guerrilha do Araguaia. É um aval ao conceito de operações definido como “guerra suja”, pelo qual não havia regras para as perseguições aos guerrilheiros e ao povo.

Foi uma violação das convenções de guerra e da doutrina de Nuremeberg, que julgou e condenou os criminosos nazistas, acolhida pela Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1948 no documento conhecido como Convenção sobre o genocídio. A palavra “genocídio” surgiu exatamente para situar as atrocidades contra os povos desde que o mundo começou a viver sob constante ameaça de guerra. Ela se consolidou no Tribunal de Nuremberg por iniciativa do jurista polonês Rafal Lemkin, integrante do grupo de trabalho encarregado de preparar os julgamentos. Aliás, o termo cabe perfeitamente para situar o ex-presidente  da República, Jair Bolsonaro, sobre a sua conduta a respeito da pandemia da Covid-19.

A “guerra suja” no Araguaia teve precedentes na Comuna de Paris, na Guerra Civil na Rússia no imediato pós-Revolução de 1917, na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coreia, na Guerra no Vietnã, entre outras. A reação violenta aos ideais progressistas é a arma do sistema que, em decadência, não encontra força moral para se manter. Lênin, o líder da Revolução Russa, analisou o fenômeno numa vasta produção, demonstrando que a guerra é um recurso essencialmente de quem já não possui condições para se manter diante da acumulação de contradições.

Os socialistas sempre condenaram as guerras entre os povos como atitudes bárbaras e brutais, disse ele na obra publicada com o título O socialismo e a guerra. “Mas a nossa atitude em relação à guerra é fundamentalmente diferente da dos pacifistas (partidários e pregadores da paz) burgueses e dos anarquistas. Distinguimo-nos dos primeiros pelo fato de compreendermos a ligação inevitável das guerras com a luta de classes no interior do país, de compreendermos a impossibilidade de suprimir as guerras sem a supressão das classes e a edificação do socialismo”, escreveu.

Os socialistas também reconhecem inteiramente o caráter legítimo, progressista e necessário das guerras civis, isto é, das guerras da classe oprimida contra a classe opressora, dos escravos contra os escravistas, dos camponeses servos contra os senhores feudais, dos operários assalariados contra a burguesia, disse ele. “Nós, marxistas, distinguimo-nos tanto dos pacifistas como dos anarquistas pelo fato de reconhecermos a necessidade de estudar historicamente (do ponto de vista do materialismo dialético de Marx) cada guerra em particular”, constatou.

Lênin lembrou que na história houve repetidamente guerras que trouxeram todos os horrores, atrocidades, calamidades e sofrimentos inevitavelmente ligados a qualquer guerra. Mas as guerras à guerra foram progressistas, úteis ao desenvolvimento da humanidade, ajudando a destruir instituições particularmente nocivas e reacionárias. “A grande Revolução Francesa abriu uma nova época na história da humanidade. Desde então e até à Comuna de Paris, de 1789 a 1871, um dos tipos de guerras foram as guerras de carácter progressista burguês, nacional-libertador”, avaliou.

As guerras de libertação nacional marcaram o século XX. A mais aguda foi a que liquidou a máquina militar nazifascista, na União Soviética chamada de Grande guerra patriótica. Na Coreia e no Vietnã a guerra do povo também legou importantes feitos para a humanidade. Naquele contexto, a “Nova Ordem” de Adolf Hitler fora sucedida pela “Doutrina Truman”, o nome da política externa do governo Harry Truman para unir o bloco de países capitalistas no pré-Guerra Fria, essencialmente anticomunista. As bombas atômicas no Japão – em Hiroshima e Nagasaki – e o bombardeio de Dresden, na Alemanha, foram uma espécie de cartão de visitas da ordem capitalista-imperialista que emergiu das cinzas da Segunda Guerra Mundial.

O golpe militar no Brasil, em 1964, fez parte desse corolário ideológico. Falando ao jornal O Estado de S. Paulo na ocasião, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, disse que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim e da derrota dos comunistas na Coréia”. Eram tempos de consolidação do modelo econômico do dólar como padrão financeiro mundial, das hostilidades na fronteira da Segunda Guerra Mundial chamada por Winston Churchill de “cortina de ferro” e da corrida armamentista da Organização do Atlântico Norte (Otan).

A instrumentalização de um grupo de militares para a missão de dar forma a essa ordem mundial imperialista com epicentro nos Estados Unidos – a “conquista do Estado”, como definiu René Armand Dreifuss em seu livro com esse título – foi denunciada pelo PCdoB no documento O golpe de 1964 e seus ensinamentos, de agosto daquele ano do golpe. “Sub-repticiamente, a máquina do golpe foi sendo montada no Exército. A Escola Superior de Guerra transformou-se em antro de conjura”, fundada por inspiração do Pentágono. “Desde a sua criação, essa Escola vem elaborando, com a ajuda de técnicos norte-americanos e de reacionários brasileiros, todo um programa de administração do país calcado nas ideias dos monopolistas dos Estados Unidos”, diz o texto, retratando a realidade daquele tempo.

Essa instrumentalização conta muito na análise do papel das Forças Armadas, como demonstra o livro História Militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, publicado em 1965. Em um alentado trabalho publicado na revista Estudos sociais, em 1958, o jornalista e escritor comunista Rui Facó mostra que o Exército e as Forças Armadas em geral não formam algo à parte na sociedade, nem tampouco em relação ao poder político, como uma muralha chinesa. Não estão acima das classes ou à margem delas.

No movimento abolicionista, o Exército desempenhou papel de magna importância ao recusar-se a caçar escravos fugidos. “E se podemos buscar características especiais para as Forças Armadas – e em particular o Exército –, uma das mais notáveis, em toda a nossa história, é precisamente essa: sua militância política. Se generais e marechais procuram fazer a política das classes dominantes, a massa do Exército se orienta no sentido das mais puras aspirações populares. Em todos os movimentos revolucionários na história do Brasil, desde os fins do século XVIII, nas fileiras das Forças Armadas destacaram-se homens que são nomes de legenda no coração do povo: desde Tiradentes e Pedro Ivo até Prestes e Siqueira Campos”, escreveu Facó.

A tentativa de dar sutileza à deformação dessa realidade ocorre também por meio do que o jurista argentino Jaime Malamudi Goti chamou de “teoria dos dois demônios”, a falácia de um suposto enfrentamento equânime. A tese legitima o golpe e deslegitima a resistência democrática, uma grosseira deformidade histórica. E uma das formas utilizadas é a de separar a criatura do criador, a Guerrilha do seu mentor e organizador, este o “demônio” a ser execrado.

Essa forma implica questões de fundo, estratégicas. O PCdoB definiu o caminho da guerra popular com base na teoria de Lênin sobre a organização revolucionária. Seria a guerra do povo, um longo caminho para a libertação nacional dos ditames que Lincoln Gordon explicitou na entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Esse caminho indica, sem margem para dúvidas, que a Guerrilha do Araguaia faz parte da essência leninista do PCdoB, como registraram Maurício Grabois e João Amazonas no documento A atualidade do pensamento de Lênin, escrito em 1970 na selva amazônica.

Foi a primeira manifestação pública de divergências com o Partido Comunista da China sobre a tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como uma “nova etapa do marxismo”. A inspiração da Revolução Chinesa passava antes pelo pensamento de Lênin, conforme explicita o documento Guerra popular — caminho da luta armada no Brasil, de 1969, que expôs, “nos aspectos essenciais”, a concepção “da luta armada em que todo o povo brasileiro se empenhará para livrar o país da ditadura e do domínio imperialista norte-americano”.

Os ensinamentos de Lênin sobre o partido, a luta ideológica, o papel das massas, a violência revolucionária e o internacionalismo, entre inúmeros outros, constituem poderosos meios nas mãos dos revolucionários, diz o documento A atualidade do pensamento de Lênin. “O pensamento de Lênin sobre o papel do partido e das massas impregna a orientação do PC do Brasil”, prossegue.

Para Lênin, conforme mostra sua vasta produção revolucionária, a organização partidária é central. A obra Que fazer? é a fonte inicial da teoria política de partido de novo tipo. O assunto esteve em suas avaliações sobre os revolucionários da Comuna de Paris, partindo do que dissera Karl Marx. Não havia um partido operário, não havia uma séria organização política do proletariado, nem fortes sindicatos, nem grandes cooperativas, disse Lênin.

A teoria leninista de organização partidária era muito cara para a Guerrilha do Araguaia, assunto que esteve também no centro dos debates que perpassaram a segunda metade da década de 1970 e o início da década de 1980. O desfecho se deu no 6º Congresso, em 1983, depois dos debates no Comitê Central até a Chacina da Lapa em 1976 e na 7ª Conferência, concluída em 1979.

O PCdoB vinha de uma longa experiência de resistência democrática – que passou pelo Levante de 1935, pelo enfrentamento à ditadura do Estado Novo e pelo combate ao governo do general Eurico Gaspar Dutra. O Brasil no pós-Segunda Guerra Mundial também foi analisado sobretudo nos documentos Manifesto de 1948 e Manifesto de Agosto, de 1950, mais tarde, no 4º Congresso de 1954, minuciosamente examinados nos longos debates para a elaboração do Programa. A Conferência Extraordinária que reorganizou o Partido Comunista do Brasil em 1962 e a 6ª Conferência, de 1966, também mergulharam no tema.

Essa elaboração balizou as tomadas de decisões sobre o combate à ditadura militar. “Combatendo as correntes pequeno-burguesas (o chamado foquismo), os comunistas voltaram sempre o gume de seu ataque às concepções que elas defendem de desprezo pelas massas. A orientação do Partido sobre a luta armada, exposta no documento Guerra popular – caminho da luta armada no Brasil, tem como viga-mestra a participação das grandes massas na luta libertadora”, escreveram Maurício Grabois e João Amazonas no documento A atualidade do pensamento de Lênin.

O pressuposto de guerra popular, como se nota, não era meramente semântico. Se a guerra era do povo, cumpria organizar o povo em diferentes locais do país, como documentou a 6ª Conferência. Com base nessa resolução, o Partido criou três grupos de trabalho — um dirigido por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, outro por Maurício Grabois e João Amazonas, e um terceiro por Carlos Nicolau Danielli.

O Araguaia era apenas um deles, um local mais apropriado para proteger os que estavam na mira do terrorismo de Estado, sobretudo após o Ato Institucional número 5 – AI-5 –, de 1968. O início dos ataques aos guerrilheiros, em abril de 1972, se deu quando outros pontos passavam por desmobilizações, uma fase em que nem as preliminares iniciais da guerra popular estavam dadas. A repressão havia fechado o cerco sobre a resistência, com o objetivo de liquidar todas as organizações que atuavam na clandestinidade.

A logística de São Paulo, sob o comando de Carlos Nicolau Danielli, o secretário de Organização do PCdoB – a base material da Guerrilha –, caiu nas mãos da repressão na virada de 1972 para 1973. Danielli foi cruelmente assassinado no DOI-Codi paulista em 31 de dezembro de 1972 pelo facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra, pessoalmente. A Comissão de Organização também foi dizimada, com os assassinatos de Lincoln Oest, de Luiz Guilardini e do jovem Lincoln Bicalho Roque, dirigente da União da Juventude Patriótica (UJP), fundamental na ligação com a Comissão de Organização.

Reconstituí essa história na biografia Testamento de luta – a vida de Carlos Danielli, totalmente ignorada pelos caluniadores do Araguaia por ser esteio da história da Guerrilha. Da mesma forma, as biografias de Pedro Pomar, de Maurício Grabois – também de minha autoria – e de João Amazonas – de autoria de Augusto Buonicore – são essenciais para quem analisa aquele episódio. Ignorá-las faz parte do negacionismo que transforma um fato da mais relevância para a história do povo brasileiro em reles ficção.

São obras que dão a dimensão histórica da Guerrilha do Araguaia – além do filme Osvaldão, derivado de um documentário com participação do líder guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa feito na Tchecoslováquia na década de 1950, que tomei conhecimento em conversas com o filho de Pedro Pomar, Eduardo, quando preparava a biografia de seu pai –, um movimento de resistência popular que se inscreve entre os mais importantes do povo brasileiro. Havia ali, condensados, dois veios cujas nascentes remontam aos primórdios do Brasil como nação.

A tentativa de desqualificá-lo insere-se na mesma lógica de certos falsificadores da história sobre o levante mineiro – a chamada “Inconfidência Mineira” –, afirmando que o episódio só teve repercussão devido à morte violenta de Tiradentes, ignorando a clareza de objetivos e a amplitude do movimento. Foi igualmente assim com Canudos e Contestado, revoltas populares também impiedosamente esmagadas. E tantos outros episódios marcantes da luta do povo. Os repressores sabiam perfeitamente o que faziam — ao punir com rigor os revoltosos tinham consciência do que estava em questão. As calúnias ao Araguaia dão razão a esses repressores. Cumpre desmascará-las sistematicamente. É o que faz este livro.

Tim, tim, Renato Rabelo! Uma honra contar a sua história na AP e no PCdoB!

Por Osvaldo Bertolino

Pronunciamento no ato de lançamento da biografia Renato Rabelo – vida, ideias e rumos, de minha autoria

Agradeço todas e todos pela presença, aos internautas da TV Grabois, e saúdo a Mesa.

Quero agradecer inicialmente ao Renato, que conheci pelas páginas do jornal Tribuna da Luta Operária nas eleições de 1982 e pessoalmente em 1989, numa atividade do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, do qual eu era diretor de imprensa. Conversei muitas vezes com Renato para os nossos veículos de comunicação da Fundação Maurício Grabois e do PCdoB. Para esta biografia, foram em torno de nove horas gravadas, uma descrição ampla de sua vida e do seu pensamento.

Foi o ponto de partida para um mergulho nos arquivos da ditadura militar, fazendo o minucioso trabalho de cruzar as informações com a memória de Renato e de seus contemporâneos. Ao mesmo tempo, o arquivo da Fundação Maurício Grabois, reunido pelo trabalho dedicado do saudoso Augusto Buonicore e do abnegado Fernando Garcia no Centro de Documentação e Memória, o CDM da Fundação, foi um precioso ponto de apoio. É um tesouro do PCdoB.

E assim a pesquisa foi perpassando a trajetória de Renato e constituindo o painel biográfico narrado no livro, com a valiosa ajuda do amigo e camarada Luiz Manfredini, jornalista, militante da AP e do PCdoB, escritor talentoso. Destaco também o trabalho precioso do diagramador Laércio d’Angelo, da revisora Lucília Ruy e das pesquisadoras Vanilda Fatega e Carolina Polli e do Felipe Spadari, também do CDM.

Quero agora agradecer de modo especial a Conchita, que fez com Renato toda essa caminhada, desde os tempos de jovens estudantes em Salvador. Ela foi essencial para a apuração de muitas passagens da biografia. Ela também é, de certa forma, biografada. Merece uma biografia por seu exemplo de vida e de militante comunista. Conchita faz parte da galeria das heroínas do PCdoB, muitas vezes ocultas pelas circunstâncias e pela estrutura opressiva da sociedade, que se estende à subjetividade da memória histórica. Sua ajuda para essa biografia foi inestimável.

Agradeço, também de modo especial, a Mara, irmã do Renato, meu braço direito na Bahia. Foi de uma gentileza e presteza incalculáveis. Por meio dela, pude conversar com os irmãos Antônio e Jorge, que também estão muito presentes na biografia. Faço também uma reverência a Nina e a André, filhos de Renato e Conchita, igualmente pacientes e diligentes quando precisei de suas preciosas informações.

A vertente familiar é um dos esteios da biografia, juntamente com a das organizações às quais ele pertenceu, a AP e o PCdoB, e as conjunturas nacionais e internacionais de cada momento de sua vida.

Também de modo especial, agradeço a Adalberto Monteiro, o mentor desta biografia, à época presidente da Fundação Maurício Grabois. Com ele, agradeço a Walter Sorrentino, atual presidente da Fundação, e por eles agradeço a estrutura de direção da Fundação e do PCdoB, que possibilitaram essa publicação. Agradeço, igualmente, a Luciana Santos, presidenta do PCdoB, que se dedicou a escrever o denso Prefácio do livro. Assim como o presidente Lula e a ex-presidenta Dilma, que gentilmente escreveram apresentações para a biografia.

Esta biografia é resultado também de outras sete anteriores, um acervo da história do PCdoB iniciado com a biografia de Carlos Nicolau Danielli, em 2002, assassinado pela ditadura militar em 1972, uma sugestão de Altamiro Borges, então secretário de Formação do PCdoB de São Paulo. Na biografia de Danielli tem muito de Pedro Pomar e de Renato, pela transição da AP ao PCdoB. Danielli e Pomar foram essenciais para a AP incorporar conceitos marxistas-leninistas, dando origem à Ação Popular Marxista-Leninista, APML.

Como diz Renato, seu ingresso no PCdoB representou um ponto divisor em sua vida, um mundo de compreensão que se abriu. Ele iniciou a sua militância política lá na região onde nasceu, Ubaíra, Bahia, como integrante da Juventude Estudantil Católica (JEC), em plena campanha presidencial de Juscelino Kubitschek, em 1955. Ele chegou à Juventude Universitária Católica (JUC), já em Salvador, como estudante de Medicina da Universidade Federal da Bahia.

E foi eleito presidente da União dos Estudantes da Bahia, a UEB, de onde saiu, na clandestinidade, após um confronto com o ministro das Relações Exteriores da ditadura, Juraci Magalhães, para participar da Operação Trote, que realizou o 28º Congresso da UNE em Belo Horizonte, sob severa perseguição da repressão, quando foi eleito vice-presidente. Os estudantes deram um olé na ditadura com a Operação Trote.

Quero mencionar aqui José Luiz Moreira Guedes, o presidente da UNE eleito naquele Congresso, que deve estar nos assistindo pela TV Grabois, personagem importante na trajetória de Renato, presente em muitos momentos cruciais de sua história.

Naturalmente, surgiu na história a Guerrilha do Araguaia, assunto em debate na AP na fase final da incorporação. Renato, já na Executiva do PCdoB, em 1974 foi cumprir missão partidária na região da Guerrilha, tema de seus estudos sobre a guerra popular desde quando esteve na China num curso político-militar na academia do Exército Popular em Nanquim.

E surgiu, também, a biografia de Maurício Grabois, teórico e construtor do PCdoB desde a década de 1930, comandante militar no Araguaia. Depois vieram biografias de ex-militantes da AP: Aurélio Peres, Vital Nolasco, Antônio Almeida Soares, o Tom, e Péricles de Souza. E outros livros relatando aspectos da história do PCdoB.

À esquerda, Adalberto Monteiro

Surgiu ainda a descoberta do documentário produzido na Tchecoslováquia que destaca o guerrilheiro Osvaldão, do qual tomei conhecimento numa conversa com o filho de Pomar, Eduardo, que também está no documentário, numa conversa para a biografia de seu pai. O documentário resultou no filme dirigido pela Tininha, pelo Vandré Fernandes e outros.

São episódios cruciais dessa fase de Renato, que nominei de Desbravador. Nela está também a sua profícua atividade de dirigente do PCdoB ao lado de João Amazonas, Diógenes Arruda Câmara e Dynéas Aguiar no exílio forçado na França pela Chacina da Lapa, em 1976, e a volta ao Brasil após a anistia de 1979, numa fase de reconstrução do Partido e de sua inserção na luta de massas que levou ao fim da ditadura militar em 1985, à Assembleia Constituinte e à ativa colaboração de Renato para a formação da Frente Brasil Popular, com Lula candidato a presidente da República em 1989.

Renato iniciou ali também a fase que denomino de Ideólogo, com seu pronunciamento no primeiro programa em rede nacional da história do Partido, quando ele apresentou a ideia que iria norteá-lo, o caminho para o ideal socialista. Em seu Informe de Organização no 7º Congresso do Partido, em 1988, ele aprofundou o conceito, que seria decisivo para enfrentar a crise do socialismo iniciada no final da década de 1980.

Renato se destacou nas formulações do histórico 8º Congresso, de 1992, e liderou a elaboração do Programa aprovado na 8ª Conferência, em 1995. Surgiu, nesse processo, suas formulações com base na tese da nova luta pelo socialismo. Ele também esteve presente com destaque nos embates políticos, sobretudo nas eleições presidenciais, com a ideia da frente ampla para isolar e derrotar o projeto da direita.

No auge dessa batalha, ele assumiu a presidência do PCdoB, no X Congresso, em 2002. É quando se inicia a fase que no livro denomino de Construtor. Sua atuação, principalmente nas crises políticas decorrentes das investidas golpistas, foi decisiva para os êxitos dos governos Lula e Dilma, como eles relatam em suas apresentações. Renato também se aproximou do vice-presidente, José Alencar, com quem conversava sistematicamente, desenvolvendo, além de afinidades políticas, amizade pessoal.

Renato se eleva nessa fase, pondo em prática seu acúmulo teórico e sua experiência, com novas formulações, estruturando o PCdoB como relevante força da luta política, também apoiado na trajetória dos comunistas brasileiros desde 1922 e nas experiências revolucionárias internacionais.

Ele esteve presente em diversos países, onde foi recebido com reverência, especialmente China e Vietnã. Também recebeu, no PCdoB, destacadas lideranças comunistas de outros países. No pós-crise das experiências socialistas, enriqueceu a teoria marxista também com ideias debatidas nesses eventos internacionais.

Renato é um exemplo de caráter, de compromisso com os ideais pelos quais dedicou a vida. Em seu percurso, teve perdas pessoais impactantes, como o falecimento precoce da mãe, dona Maria de Brotas, e do irmão, Agnaldo, militante do PCdoB desde a década de 1960.

E a perda de João Amazonas, em 2002, num momento para ele inesperado, quando estava em viagem a Cuba, o que lhe causou grande impacto. Enfim, assim é o Renato, descrito nessas 848 páginas do livro como um homem de carne e osso, sangue e sentimentos, apreciador de vinho, de boa conversa, admirado também como pai, marido, avô do Lorenzo, da Ana Clara e da Sophia, camarada e amigo de todos os que com ele tiveram o privilégio de conviver. Um brinde, Renato! Tim, tim!

Muito obrigado

Ditadura militar: crônica de um longo 1º de abril

 

Por Osvaldo Bertolino

O golpe de 1964 foi resultado do conceito de poder militar moldado pela Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra, criada m 1949 como incubadora no Brasil das nascentes operações anticomunistas da Guerra Fria. O general César Obino, emissário do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), montou o projeto no National War College, sediado em Washington, criado em 1º de junho de 1946 para treinar oficiais.

O objetivo era conter os movimentos políticos que confrontavam o concerto que se formou sob a hegemonia dos Estados Unidos nos embates da Segunda Guerra Mundial. Na definição dos ideólogos dessa doutrina, isso se resumia a uma palavra: anticomunismo.

A Escola Superior de Guerra foi entregue ao comando do general Oswaldo Cordeiro de Farias, ex-comandante de artilharia da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou contra o nazifascismo na Itália na Segunda Guerra Mundial, um fanático anticomunista e obcecado pela Doutrina de Segurança Nacional, movida pela corrupção do subterrâneo do regime dos Estados Unidos.

Cordeiro de Farias foi um dos conspiradores contra o presidente da República Getúlio Vargas, eleito em 1950, trabalhando freneticamente pelo acordo militar Brasil-Estados Unidos – a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos –, criada em 1951, desencadeando um ciclo de prisões e torturas de comunistas, sobretudo na Base Aérea de Natal, Rio Grande do Norte, controlada por agentes norte-americano.

Na solenidade de conclusão do curso da Escola Superior de Guerra de 1952, no auditório da Escola Técnica do Exército, com a presença de Getúlio, Cordeiro de Farias proclamou, sem meias palavras, o projeto golpista da Guerra Fria, baseado na perseguição aos comunistas. “No exame de nossa atitude entre os mundos que se defrontam, patenteou-se, e devemos proclamar essa verdade para que não nos iludamos, a infiltração bolchevique (comunista) em todos os setores da vida brasileira”, discursou.

Com seu fanatismo, Cordeiro de Farias via comunistas “fomentando luta de classes” em todo lugar, segundo ele bolcheviques para associá-los à propaganda de que eram agentes da União Soviética. Os bolcheviques, disse, embora fossem minoria, eram dotados de técnica, disciplina e coesão, com enorme poder de penetração e exploração de todos os fatos e circunstâncias. “Sua luta é por alcançar lugares chaves, apesar de, muitas vezes, seu aparente pouco valor. Sem exageros, pode dizer-se, eles controlam, por meios indiretos, grande parte da atividade nacional.”

Para o general, os bolcheviques agiam de baixo para cima, “deturpando, mentindo, examinando unilateralmente todos os problemas do país, dos pequenos aos grandes”. Estavam criando “um clima que vai encontrar, conscientemente, ressonância e maior propaganda nos seus adeptos do grupo intelectual de todas as profissões e que vai aparecer, no final, embora falsamente, como representativa da mentalidade brasileira, contra a qual não encontram força para agir, dado o nosso regime democrático”.

Missão redentora      

As conspirações que chegaram ao golpe de 1964 tinham essa base ideológica. De acordo com a teoria da Doutrina de Segurança Nacional, havia uma subversão internacional contra a “ordem ocidental”. Em torno do grupo formou-se uma rede de alucinados, oportunistas, degenerados e sociopatas. Era com eles que o regime projetado teria de contar para conter o “comunismo” e difundir aos quatro ventos a tese de que o mundo se debatia contra a “guerra subversiva” desde que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia em 1917.

Diziam que no Brasil essa invenção diabólica chegou com o Levante da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935, alcunhado de “Intentona”. Era o “comunismo atuante”, conforme definiu um dos ideólogos da Escola Superior de Guerra, a vertente mais consistente da “guerra bolchevique” que tinha em seu espectro também o “comunismo folclórico”, mais afeito a palavras do que a ações.

Os “consistentes” sentiram o baque em 1935 e optaram por infiltrar sua doutrina em postos-chaves da sociedade com um paciente trabalho de convencimento. Ganharam terreno nas décadas seguintes e chegaram às portas do poder no começo dos anos 1960, com a condescendência do presidente João Goulart.

A história tinha determinado àquele grupo, conforme suas interpretações, a missão redentora de manutenção da ordem. Ou, em outras palavras, cabia às Forças Armadas a contenção da “revolução comunista”, fosse na forma que fosse. Isso queria dizer que qualquer movimento contrário à “doutrina” daqueles militares estava a serviço do comunismo.

Eram dogmas com raízes no pensamento conservador brasileiro, moldados pelo esquadro da Guerra Fria, derivados da belicosa propaganda anticomunista turbinada no governo do presidente norte-americano Harry Truman, que assumiu o posto em abril de 1945 após a morte de Franklin Delano Roosevelt. Na Escola Superior de Guerra predominava o ponto de vista de que o mundo se dividira entre a ordem “democrática” e a desordem “comunista”, a repetição sistemática da retórica que marcou as hostilidades à União Soviética desde o seu nascimento.

O capitalismo norte-americano via um mundo a ganhar, mas precisava remover o obstáculo representado pelo socialismo que, mesmo num território ensanguentado, mostrava a força da vitória sobre o nazifascismo. A doutrina Truman pregava que o vazio criado com a derrota da “nova ordem” do líder nazista Adolf Hitler deveria ser ocupado com a “eterna vigilância” do “ocidente”, o “preço da liberdade”.

Ao passo que a obra hitlerista seria execrada como produto destruído pela “democracia ocidental”, o anticomunismo emergia para garantir que os “restos totalitários” seriam igualmente varridos da face da Terra. Na América Latina e na Ásia existiam fatores propícios ao florescimento do comunismo, o que exigia vigilância reforçada. A Conferência Interamericana de Chanceleres – também conhecida como Conferência de Petrópolis –, realizada no Brasil em 1947, com a presença de Truman, definiu os rumos daquela “doutrina” na região.

Estava rompida a linha que uniu o Brasil aos Estados Unidos nos combates ao nazifascismo na Europa com a política de boa vizinhança de Roosevelt para o estabelecimento de outra, agora fundada na doutrina da força militar como política de Estado. As bases militares que se expandiram no decorrer da Segunda Guerra Mundial deveriam ser reforçadas, sobretudo na América Latina e na Ásia. No Brasil, como casa de força da região, elas permaneceram intocadas e só foram removidas após uma campanha popular comandada pelo Partido Comunista do Brasil.

O Plano Truman, que determinava a padronização dos exércitos do Hemisfério Sul, trazia como subproduto a obrigação do Brasil de acompanhar os Estados Unidos na nova guerra que se armava. O governo do general Eurico Gaspar Dutra começou a moldar as Forças Armadas de acordo com essa doutrina, afastando os recalcitrantes, ao mesmo tempo em que desencadeou feroz repressão aos comunistas, promovendo a cassação do seu registro eleitoral – em maio de 1947 – e dos seus mandatos – em janeiro de 1948 – com manobras judiciárias e parlamentares.

Essa linha traçada pela cooperação militar do Plano Truman tumultuaria os governos seguintes – Getúlio Vargas suicidou-se; Juscelino Kubitscheck quase não tomou posse e enfrentou duas conspirações; Jânio Quadros renunciou e João Goulart, ameaçado antes de tomar posse, governou sob constante pressão, até ser deposto em 1964. Formou-se uma concepção política liberticida, materializada em ações do grupo militar golpista e seus aliados do Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional (UDN).

Esse condomínio golpista trabalhou freneticamente para instaurar a doutrina militar da Escola Superior de Guerra. Sem o Brasil, a estratégia do Plano Truman não daria certo, avaliaram os estrategistas do Departamento de Estado norte-americano. A resistência às ingerências dos Estados Unidos na região se espalhava e uma ação coordenada deveria ser urgentemente formulada.

Para onde pendesse o gigante sul-americano, penderia a região. A era dos golpes de Estado na América Latina, deflagrada em 1954 com a deposição do presidente da Guatemala, Jacobo Arbenz Guzmán, democraticamente eleito, acusado de adotar medidas de “tendências comunistas”, precisava ter no Brasil o principal ponto de apoio.

Aliança para o Progresso

A perseguição anticomunista se intensificou, se espalhou e se fantasiou com a retórica da “ameaça de Moscou”, gerando conflitos dentro das próprias Forças Armadas. A disputa entre militares nacionalistas e golpistas motivou a criação da “cruzada democrática”, capitaneada pelo que se chamava de “UDN fardada”, que exigia do ministro da Guerra do governo Vargas, Newton Estillac Leal, a expulsão dos “comunistas” do Exército”. O presidente, sob intenso ataque também da “UDN gráfica” – a mídia –, vacilou e a corrente nacionalista, que assegurou as condições para a sua eleição e posse, sofreu um verdadeiro massacre.

O suicídio de Vargas fez os golpistas recuarem, mas a doutrina golpista continuou a ser propagada e se manifestou de maneira furiosa quando Jânio Quadros condecorou com a Ordem Cruzeiro do Sul Che Guevara, um dos principais líderes da Revolução Cubana de 1959. Logo em seguida, a Organização dos Estados Americanos (OEA), braço do regime norte-americano na América Latina, aprovou uma resolução pedindo aos governos locais mais controle da “subversão comunista no hemisfério”. Na crise da renúncia de Jânio Quadros e posse do vice-presidente João Goulart, a fúria anticomunista voltou a se manifestar com força.

Pululavam manchetes na mídia dando conta de “guerrilhas” e “subversão” com financiamentos do “comunismo internacional”, que rompeu a barreira “ocidental” com a Revolução Cubana. Polarizaram o discurso para fustigar o governo Goulart e fazer girar a usina anticomunista, propagando os ideais da “doutrina militar”, abertamente orientada pela Embaixada dos Estados Unidos.

Em março de 1963, o embaixador norte-americano, Lincoln Gordon, declarou na Comissão do Congresso do seu país que os comunistas se infiltraram no governo brasileiro e no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ao qual pertencia o presidente Goulart. A afirmação foi divulgada pela subcomissão de Assuntos Interamericanos da Câmara de Representação que investigava as “atividades comunistas” na América Latina.

A conspiração avançava a passos largos, impulsionada também pelos governadores Adhemar de Barros (São Paulo), Carlos Lacerda (Rio de Janeiro) e Magalhães Pinto (Minas Gerais), apoiada nos grandes proprietários de terra, no clero conservador, nos partidos políticos de direita e principalmente na mídia. O ex-presidente Juscelino Kubitscheck também se envolveu com o golpe, na esperança de que seria candidato a presidente da República em 1965, quando cessaria a intervenção militar.

O centro da trama estava na Embaixada norte-americana, comandada por Gordon e o general Vernon Walters, adido militar de Washington designado para posto pela Central de Inteligência Americana (CIA). Gordon recebera carta branca do presidente norte-americano, Lyndon Johnson, ao assumir a Embaixada brasileira em 1961, para tramar contra o governo Goulart. Sua missão fazia parte da Aliança para o progresso, projeto do governo dos Estados Unidos concebido durante a presidência de John Fitzgerald Kennedy para controlar a América nos aspectos político, econômico, social e cultural, conforme a Carta de Punta del Este, de agosto de 1961.

Em 1963, chegou o coronel Walters, um poliglota que na campanha da FEB na Segunda Guerra Mundial fora o interlocutor dos Estados Unidos com os militares brasileiros e se tornou amigo de Humberto Castello Branco, agora chefe do Estado-Maior do Exército, que deveria ser o primeiro ditador do regime golpista. O grupo que assumiu a missão de liderar a conspiração manteve, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ligações com a estrutura militar norte-americana.

Na Embaixada dos Estados Unidos foi elaborado o programa do golpe. Quando os golpistas assaltaram o poder, na virada de 31 de março para 1º de abril de 1964, o governo norte-americano estava minuciosamente informado – sete dias antes, Walters telegrafara a Washington dando detalhes da ação.

Quatro dias antes do início do golpe, Gordon detalhou ao governo dos Estados Unidos o tipo de apoio que ele julgava necessário aos militares conspiradores. No início da tarde de 31 de março, o Departamento de Estado mandou um telegrama informando que havia enviado um porta-aviões, seis destroieres, petroleiros abastecidos com cento e trinta mil litros de combustível, aviões, helicópteros e tropas para as proximidades da costa do Rio de Janeiro.

Campinas, cidade a pouco mais de cem quilômetros da capital paulista, recebeu seis aviões cargueiros com cem toneladas de armas. Era a Operação brother sam, uma prevenção a eventuais reações brasileiras.

Logo depois do golpe, Walters foi recebido em um jantar pelo presidente Castello Branco.

– Fiquei bastante preocupado com aquele comício do presidente Goulart (o “comício das reformas”, realizado dia 13 de março de 1964 em frente à estação ferroviária Dom Pedro II, também chamada de Central do Brasil, no Rio de Janeiro), com bandeiras vermelhas – declarou o general.

Gordon disse ao jornal O Estado de S. Paulo que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim e da derrota dos comunistas na Coréia. Eram variantes da “cortina de ferro”, proclamada nos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill.

O objetivo era isolar a União Soviética e liquidar a influência de suas ideias no “mundo ocidental”, um cerco militar que resultou na ocupação do Japão depois das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki, nas guerras da Coreia e do Vietnã, nos banhos de sangue anticomunistas na Indonésia e na Tailândia. A cadeia de golpes na América Latina fazia parte dessas variantes da militarização da “cortina de ferro”.

A CIA entre os civis

O movimento militar pró-Washington não teve um chefe, mas o chão do golpe estava riscado, separando os conspiradores em duas alas. Seus líderes se dividiram, basicamente, entre a linha dura e os moderados. Estabeleceu-se o que o general Arthur da Costa e Silva chamou de “briga de foices no escuro”. Todas as picuinhas não resolvidas na marcha golpista ganharam raízes e a cizânia se espalhou nas casernas.

Não havia uma fronteira demarcando precisamente a divisão, nem tampouco uma clara definição de linhas de atuação, mas, resumidamente, eles se dividiam entre os que defendiam o Estado de exceção como único regente do governo – a linha dura – e os que advogavam a devolução do poder aos civis, desde que blindado contra qualquer “ameaça comunista” – os moderados. No primeiro grupo estavam os jovens oficiais e no segundo a oficialidade mais antiga.

A linha dura tinha no presidente do Clube Militar, general Augusto Cesar de Castro Moniz de Aragão, uma espécie de porta-voz. Ele se pronunciou em nome do grupo quando houve uma insurgência de ex-aliados dos golpistas contra cassações de mandatos e a suspensão dos direitos políticos, que ocorreriam em 15 de junho de 1964.

Moniz Aragão se pronunciou também quando um Manifesto do ex-presidente João Goulart foi divulgado no Congresso Nacional, em agosto de 1964. Ele classificou o ato como tentativa de lançar a opinião pública contra o governo. Segundo a linha dura, aqueles fatos justificavam as medidas repressivas do Ato Institucional número 1 (AI-1).

A atuação da CIA entre os civis, especialmente com o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), era mais para destruir ou desconstruir as organizações populares do que para organizar movimentos políticos. Tentaram algumas coisas, mas, ao contrário dos êxitos na mídia, os resultados não foram significativos.

De uma maneira geral, contudo, a CIA foi eficiente na campanha anticomunista. Mas o foco principal eram os militares. Lincoln Gordon e Vernon Walters decidiram que Castello Branco deveria ser o comandante do golpe, mas o homem forte do regime seria Costa e Silva, o “chefe supremo das forças militares em operação”, como ele mesmo se autointitulava.

Seu plano era a efetivação da linha dura, passando por cima de todas as dissidências e discordâncias, principalmente a de Cordeiro de Farias, que soltou o verbo quando soube que Castello Branco estava permitindo que o autointitulado “chefe supremo das forças militares em operação”, general de sua confiança, manipulasse e corrompesse os golpistas para assumir as rédeas do regime.

Numa reunião de generais pouco antes do golpe, no Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, Cordeiro de Farias e Costa e Silva trocaram palavras ásperas. Segundo o ex-chefe da Escola Superior de Guerra, Castello Branco caiu no conto do vigário ao aceitar que Costa e Silva assumisse o Ministério da Guerra antes mesmo da oficialização do novo presidente da República, posto que lhe daria condições para se apossar do golpe.

Cordeiro de Farias via Costa e Silva como conspirador dentro da conspiração, cercado por um grupo de ambiciosos, chamado por ele de entourage, que se aproveitava de suas fortes ligações com Castello Branco para ocupar postos de comando no governo, entre eles Emílio Garrastazu Médici. Mesmo a candidatura de Castello estaria em risco, segundo o ex-chefe da Escola Superior de Guerra.

Três dias depois do golpe, Cordeiro de Farias se dirigiu ao Quartel-General do Exército, no Rio de Janeiro, onde haveria uma reunião decisiva para tratar da candidatura a presidente, para a qual não fora convidado. Chamou Castello Branco para uma conversa às pressas, acompanhado do governador paulista Adhemar de Barros. O Quartel-General estava repleto e foram se reunir no banheiro. Cordeiro de Farias disse que se houvesse tentativa de impor outro nome – referia-se a Costa e Silva – faria um “barulho enorme”.

O plano do ministro da Guerra era mais ardiloso. Ele mesmo propôs, na reunião no Quartel-General, o nome de Castello e começou a trabalhar para que Cordeiro de Farias fosse afastado do poder, assumindo uma embaixada bem longe do Brasil. Sentindo os fios da trama sob os pés, Cordeiro de Farias não aceitou o convite de Castello e foi encostado no Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais.

No governo Costa e Silva, Cordeiro de Farias seria substituído no Ministério pelo general Afonso Albuquerque de Lima, tido como expoente do nacionalismo entre os militares, e ameaçado de prisão pelos coronéis responsáveis pelos famosos IPMs (Inquéritos Policial Militar).

Operação Popeye

A semente da desavença surgiu na gênese do golpe. Cordeiro de Farias, que deixou a Escola Superior de Guerra três anos depois de sua criação para ser governador de Pernambuco e formar uma cidadela do plano golpista contra Getúlio Vargas, considerava-se o principal articulador da conspiração de 1964 e levou uma rasteira de Costa e Silva.

O ex-homem da Escola Superior de Guerra confrontou os operadores do golpe desde suas primeiras ações. Ele acusou o general Olympio Mourão Filho – um ex-integrante da Ação Integralista Brasileira, o movimento fascista brasileiro, que nos tempos de capitão foi autor do Plano Cohen, uma farsa sobre preparação de sublevação “comunista” que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo em 1937 – de se apossar da senha golpista com a Operação Popeye, a marcha das tropas que saiu de Juiz de Fora, Minas Gerais, para dar o golpe.

A questão de fundo era o aval da embaixada dos Estados Unidos. Mourão Filho havia atropelado conversas anteriores ao bater na porta de Vernon Walters sem consultar Cordeiro de Farias, que estava tratando do assunto. O ex-homem da Escola Superior de Guerra e o interlocutor de Washington eram amigos desde os tempos da FEB, condição que facilitou a montagem da Operação brother sam.

Havia, disse Cordeiro de Farias, uma combinação entre os conspiradores de um comunicar o outro sobre as atitudes planejadas, que deveria ser levada em conta. O momento seria o pós-comício de João Goulart na Central do Brasil e a revolta dos marinheiros, de 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro, organizada pela Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, uma organização assistencial e sindical que se ligava a uma rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha em 12 de setembro de 1963, em Brasília.

Utilizando-se daqueles pretextos, Mourão Filho se precipitou e isolou a articulação de Cordeiro de Farias, que se dizia ser também o articulador da candidatura de Castello Branco para presidente da República por meio de um questionário enviado à tropa e a seus comandos para traçar o perfil do candidato que assumiria a Presidência quando o golpe triunfasse. Por ser um animal excessivamente político, segundo suas palavras, o grupo de Costa e Silva não confiava nele.

Duplo conceito

Consumado o golpe, cabia ao novo regime aplicar a Doutrina de Segurança Nacional, baseada num duplo conceito: a divisão do mundo em dois blocos antagônicos e a adesão do Brasil ao “bloco democrático e cristão”, sob a direção dos Estados Unidos, dos quais o país deveria considerar-se um “satélite privilegiado”. A doutrina do programa golpista dizia que o mundo marchava para a Terceira Guerra Mundial e o Brasil deveria alinhar-se incondicionalmente aos norte-americanos.

O Ato Institucional passou a ser o instrumento para a ditadura “legalizar” suas ações políticas não previstas na legislação e contrárias à Constituição. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transferiu o poder aos militares golpistas e suspendeu por dez anos os direitos políticos de centenas de pessoas. Em outubro de 1965, o AI-2 concedeu à Justiça Militar a competência de julgar “crimes contra a segurança nacional” e determinou que a eleição do presidente e do vice-presidente da República seria realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão pública e votação nominal.

A estrutura do poder ditatorial foi montada gradativamente, com o Executivo concentrando funções e sob controle do Estado-Maior das Forças Armadas e do Departamento de Administração da Polícia Civil (este último um organismo de consulta).

Foram criados também mais dois órgãos: o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações, o poderoso SNI. O poder legislativo foi restringido – e, posteriormente, com o AI-5, fechado – e o Poder Judiciário limitado à função de supervisionar os atos determinados pelo CSN. Todos os suspeitos de atividades contra a “segurança nacional” passaram a ser julgados por tribunais militares.

Assassinato em Canoas

Castello Branco deu uma demonstração de que poderia se equilibrar entre os dois barcos – a linha dura e os moderados – ao ordenar que seu sobrinho, o truculento coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa, acompanhasse o major-brigadeiro Nélson Freire Lavanère Vanderley, designado para enfrentar a resistência e assumir o 5º Comando Aéreo Regional, na cidade de Canoas, na região de Porto Alegre.

A dupla sabia que o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, o comandante do posto, resistiria. Ele evitara, em 1961, que militares golpistas bombardeassem o Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, onde João Goulart estava aquartelado após a renúncia de Jânio Quadros, e denunciou as manobras dos sediciosos no estado.

Ao resistir à voz de prisão, Alfeu foi atingido pelas costas por uma rajada de metralhadora disparada por Roberto Hipólito da Costa. Mesmo caído, o tenente-coronel tentou se defender e foi novamente alvejado. O assassinato ocorreu na noite de 4 de abril de 1964, um sábado, e a brutalidade foi amplamente divulgada nos meios militares para servir de alerta aos legalistas.

Para a linha dura, não havia alternativa à radicalização diante do inevitável crescimento de contestação ao golpe. Costa e Silva dizia abertamente que a “desordem” se reinstalara no país e que só a ampliação da “democracia” seria capaz de combater o “comunismo”, provocando uma reação irônica de Castello Branco.

– Ele promete ser o liberal que nunca será. É só esperar para ver – vaticinou.

A linha dura convenceu Castello Branco a fazer uma “reforma administrativa” para reforçar os poderes ministeriais dos militares, adotando, na parte da “segurança nacional”, medidas como pôr o SNI na área de assessoramento imediato do presidente da República – além de reforçá-lo substancialmente com verbas e uma grande quantidade de militares de alta patente. No topo estaria Médici, o novo chefe do SNI.

Golbery do Couto e Silva, o mentor do órgão criado em 13 de junho de 1964, tinha certa autonomia e desenvolvia um trabalho relativamente independente, o que desagradava o grupo de Costa e Silva. No seu discurso de posse, Golbery disse que assumia um órgão à margem da administração oficial. Não lhe cabia difundir noticiário na imprensa e só viria a público excepcionalmente, mediante comunicados, “para desfazer interpretações inexatas acerca de suas próprias atividades”.

– Será bem, como já o qualificam, como que um Ministério do Silêncio. Em compensação, buscará afirmar-se como órgão capaz de ver, de auscultar e interpretar com serenidade e isenção. Por isso mesmo, aberto sempre a quem desejar cooperar com ele, honestamente, nessa superior tarefa de informar, com oportunidade e justeza, o governo da República – discursou.

Apesar de serem do mesmo grupo de oficiais do Estado-Maior do Exército formado na Escola Superior de Guerra, doutrinados com a ideia de combate ao “comunismo”, Castello e Golbery não escondiam suas divergências. Isso ficou claro quando o coronel Mario Andreazza, porta-voz informal do grupo do ditador-presidente, reprovou a linha de atuação do SNI para justificar as mudanças que seriam adotadas.

– É um órgão de grande colaboração para a conduta do governo. Entretanto, necessita o SNI ser conduzido com seriedade e honestidade de propósitos. Uma das missões do SNI será acompanhar a opinião pública, de maneira a caracterizar suas aspirações – alfinetou.

Golbery chegou ao golpe ostentando a autoridade de dez anos de estudos sobre a “segurança nacional”. Era o precursor da arquitetura dessa ideia fundamental dos golpistas. Para ele, a “revolução” deveria assegurar a integração do território nacional e protegê-la das “influências externas”. Era uma concepção da Escola Superior de Guerra que trazia no âmago a necessidade da ditadura militar.

Mesmo com essa autoridade, saiu do SNI pelas portas dos fundos e ganhou como consolo o decorativo cargo de ministro do Tribunal de Contas da União, totalmente alheio à sua carreira, considerada brilhante, um oficial da Segunda Seção do Estado-Maior do Exército, o serviço de inteligência e informação.

Soco de Leonel Brizola

Costa e Silva chegou ao processo de sucessão de Castello Branco praticamente imbatível. Eleito presidente em 3 de outubro de 1966, foi empossado em 15 de março do ano seguinte, anunciando que faria um governo ainda mais repressivo, aumentando o poder dos corifeus da linha dura. Com a formação da Frente Ampla por Carlos Lacerda e os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, em 28 de outubro de 1966, a linha dura elevou o tom.

O caso evoluiu para uma dura polêmica entre Lacerda – o principal articulador da Frente Ampla – e Moniz de Aragão; o primeiro no jornal Tribuna da Imprensa, do jornalista Hélio Fernandes, e o segundo n’O Globo, de Roberto Marinho. Hélio Fernandes, que adquirira a Tribuna de Imprensa, fundada alguns anos antes por Lacerda e redigiu o Manifesto da Frente Ampla, chegou a ser deportado para a ilha de Fernando de Noronha por determinação de Costa e Silva.

A mídia brasileira estava envolvida numa dura luta interna, uma disputa feroz entre grupos por influência na ditadura, impulsionada pela corrupção do IBAD. Castello Branco encarregou Roberto Marinho de comunicar ao embaixador brasileiro nos Estados Unidos em Washington, Juraci Magalhães, que ele seria o ministro da Justiça e deveria arbitrar a guerra. Assim que assumiu, Juraci reuniu donos e representantes de jornais para cobrar autocensura e proibir “subversivos” nas redações – episódio que entrou para o folclore com a suposta resposta de Roberto Marinho de que ele mandava em seus “comunistas”.

A guerra começou, na verdade, antes do golpe, quando o grupo Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, tido como um gângster do setor, moveu uma violenta campanha contra o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que se destacara na resistência aos golpista quando eles tentaram impedir João Goulart de tomar posse, capitaneada pelo deputado federal João Calmon (PSD-ES), diretor do grupo e influente ator do cenário político brasileiro.

Brizola, já deputado (PTB-RS), foi ameaçado de assassinato por Calmon, que se jactava de ser bom atirador e de saber atingir zonas letais do corpo humano, a distância ou a queima-roupa. Mas quem pagou pela violência do grupo de Assis Chateaubriand foi o jornalista David Nasser, diretor da revista O Cruzeiro, ao ser atingido por um soco de Brizola no balcão de venda de passagens de uma empresa aérea no Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro, na manhã de 26 de dezembro de 1963. Brizola se aproximou por trás, pôs a mão no ombro direito do jornalista e, enquanto ele se virava, foi atingido na cabeça. Brizola estava com um recorte de uma matéria da revista que o atacava violentamente.

Nasser reagiu com mais ameaças. “A luta não terminou, principalmente agora, que o adversário começa a apresentar sintomas de desespero”, disse, alertando que o regime democrático estava no fim. “É a luta desesperada de quem não quer ir para o exílio ou para a cadeia”, praguejou. Nasser alegou que foi agredido pelas costas, versão negada por Brizola. “Aproximei-me dele, que estava de costas para mim, e bati-lhe levemente no ombro para mostrar-lhe o recorte com as aleivosias contra mim. Quando o vi de frente, cara a cara, não resisti a enfrentar um canalha”, afirmou o deputado do PTB.

A contenda gerou um livro de bolso, escrito por Nasser, com o título João sem medo o homem que derrotou Brizola e Prefácio da escritora Raquel de Queirós.

Jornalistas anticomunistas

A projeção de Calmon na briga com Brizola e João Goulart o levou à presidência da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Quando o presidente Castello Branco exigiu que a mídia trabalhasse para “unir o povo em torno da revolução”, o deputado capixaba foi designado para liderar uma “campanha continental” com essa finalidade.

Falando na instalação da assembleia extraordinária da Associação Interamericana de Radiodifusão, no luxuoso hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, Calmon prometeu, olhando para Castello, um combate sem trégua no rádio e televisão ao “comunismo”.

– A estatização é o caminho mais rápido para o comunismo e a liquidação da propriedade privada – discursou.

– Unidos pelo ideal de democracia, enquanto numerosas áreas, comunistas ou não, promovem avassaladora estatização, vamos demonstrar que o controle do rádio e da televisão pela iniciativa particular pode transformá-los nas mais poderosas forças da civilização contemporânea – disse Calmon.

A Abert aprovou duas propostas na assembleia: a constituição da Comissão Internacional para executar as campanhas em defesa da “iniciativa privada” e combate ao “comunismo”, e a criação da “central de produção” de notícias. Uma série de consultas precedeu a redação final. Eram proposições baseadas no documento do American Newspaper Guild, um sindicato de jornalistas dos Estados Unidos, e da União de Jornalistas Livres, formada por exilados dos países do Leste Europeu, chamando os jornalistas do continente americano para uma reunião no Panamá para criar a Sociedade interamericana de organizações jornalísticas profissionais.

Um dossiê que circulou entre os jornalistas relatou atividades no Brasil de William Doherty Jr., agente da CIA e diretor do Departamento de Projetos Sociais do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre – American Institute for Free Labor Development (AIFLD) –, desde antes do golpe. O documento revelou que o agente norte-americano elaborou o relatório ao II Fórum Sindical Interamericano sobre Problemas econômicos e sociais para o progresso, realizado no México entre 10 e 15 de junho de 1964.

– No Brasil, sob o regime de João Goulart não tivemos oportunidade de trabalhar e por essa razão começamos somente no mês de abril de 1964 – escreveu William Doherty Jr.

Ele fora enviado pela AIFLD – instituída no governo do presidente Kennedy por meio da Direção de Planificação da CIA para cercar a influência da Revolução Cubana na América Latina – com a missão de “contribuir com o desenvolvimento dos sindicatos livres na América Latina”. Isso queria dizer formar uma corrente sindical pela AIFLD. Muitos receberiam “capacitação especial” no “instituto de formação”, o Front Royal School, no Estado da Virginia.

Os sindicalistas recebiam aulas sobre comércio exterior norte-americano e propaganda anticomunista. Um de seus braços, a Federação Interamericana de Organizações de Periodistas Profissionais (FIOPP), havia se apoderado da entidade sindical máxima dos jornalistas no Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais, com o apoio da ditadura. O secretário da FIOPP, o jornalista argentino Artur Scthirbu, esteve no Brasil por dois anos para cooptar o movimento sindical jornalístico brasileiro.

O assunto chegou a ser noticiado no Jornal do Brasil de 13 de julho de 1966, quando as eleições na Federação entraram na ordem do dia e dois grupos (um deles apoiado pela FIOPP) disputavam o comando da entidade.

– Agora, e é o mais grave, uma estranha organização norte-americana, a FIOPP, a pretexto de fazer anticomunismo, está despejando muito dinheiro nos meios sindicais, prejudicando o andamento natural das eleições na Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais – disse o jornal.

A interlocução geralmente era com o argentino Artur Scthirbu, secretário-geral da FIOPP, que montou residência no Brasil para acompanhar o golpe de perto. De vez em quando, algum de seus emissários falava pela entidade. O objetivo era anular qualquer influência da Federação latino-americana de jornalistas profissionais, que se pronunciou contra o golpe. As propostas da Abert seriam apoiadas por uma vasta rede de corrupção mantida pela CIA e operada pela FIOPP. Diante da iminência da sua implosão, uma nova rede de corrupção seria reforçada.

Fígado do grupo Folha

Havia uma denúncia de presença de estrangeiros em grupos de mídia brasileira, tendência que vinha de antes do golpe. Um deles era a Editora Abril, comandada pelo ítalo-americano Victor Civita, em desacordo com Constituição, que vedava o acesso de estrangeiros ao controle de meios de comunicação. Civita seria um testa-de-ferro do grupo norte-americano Time-Life e intermediou o acordo firmado com o empresário Roberto Marinho para criar a TV Globo em 26 de abril de 1965.

Calmon pediu um estudo detalhado do caso. Em poucos dias recebeu um minucioso relatório, com o título Time-Life e a ampliação do setor de mass comunication, mostrando que outros grupos de mídia também estavam em negociações com estrangeiros. O documento seria a base para ele promover uma intensa campanha contra Roberto Marinho, revelando seu esquema de corrupção, expondo o racha na cúpula midiática do golpe.

Cópias do documento foram distribuídas a membros do governo, o que motivou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança Nacional. O presidente Castello Branco determinou ao ministro da Justiça, Mem de Azambuja Sá – que substituíra Juraci Magalhães –, a formação de uma “comissão de investigação” para apurar as denúncias “com o maior rigor possível”. De acordo com o presidente, Calmon era “um homem merecedor de respeito e consideração”, não levantaria suspeitas infundadas.

Lacerda havia denunciado a negociata de Roberto Marinho, o que motivou o Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) a abrir processo para investigar o caso. A apuração concluiu que existia marmeladas, além da já revelada na Editora Abril – o maior conglomerado de mídia com dezoito publicações e dois milhões de exemplares mensais –, envolvendo também o grupo Folha, que estaria em negociação com o grupo Rockfeller; e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em processo de venda para estrangeiros.

Em entrevista à TV Rio, Calmon disse que Roberto Marinho havia encaminhado uma consulta de empréstimo à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) – em 1965 substituída pelo Banco Central (BC) -, aumentando ainda mais a suspeita do grupo do presidente da República Castello Branco de conluio de setores do governo com o negócio ilegal.

As revelações causaram um reboliço nos bastidores do governo e nos grupos de mídia, que deflagraram uma troca de acusações pesadas. O Jornal do Brasil atacou o presidente da Abert em editorial intitulado Jacobinismo provinciano, acusando-o de xenofobismo e de agir para abolir a “competição democrática” entre os grupos midiáticos.

O grupo O Estado de S. Paulo, ao responder em tom agressivo a um leitor que questionou a presença de capitais estrangeiros na mídia em carta ao Jornal da Tarde – uma de suas publicações –, abriu fogo contra o grupo Folha, que editava os jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Última Hora e Notícias Populares. O leitor, que assinou como Newton Proença Cavalcanti, terminou a carta com uma pergunta incisiva.

– É verdade que as seguintes empresas brasileiras estariam sob controle acionário dos seguintes grupos estrangeiros? Rockefeller: Folha, Última Hora, Notícias Populares, Diário Carioca, TV Excelsior, Correio da Manhã (arrendado por cinco anos); Time-Life: O Globo, TV Paulista, Editora Abril Limitada, NBC (Mórmons), Rádio Piratininga e rádio e TV Bandeirantes (em negociações).

A resposta do JT, como o jornal era conhecido, foi violenta. Disse que o leitor era “um desses esquerdinhas que alimentam seus espíritos pouco cultivados com slogans enlatados”, que não liam e nem viam televisão, e que ele ganharia uma gorda recompensa se conseguisse demonstrar o que acusava.

– Se lesse jornais ou visse televisão saberia que o deputado João Calmon respondeu, há poucos dias, pela televisão, a todas essas perguntas, denunciando a existência de empresas jornalísticas financiadas por capital estrangeiro – atacou.

A resposta atingiu o fígado do grupo Folha, que reagiu à altura. A Folha de S. Paulo, em editorial intitulado Nossa moeda é o trabalho, lembrou que o jornal havia publicado na primeira página um comunicado desfazendo “de maneira cabal” as “insinuações” de João Calmon na entrevista à TV Rio e afirmou que mesmo assim o grupo O Estado de S. Paulo alimentou a mentira. A Folha duvidou da autenticidade do leitor e acusou o concorrente de possuir “força econômica” de duvidosa procedência.

A polêmica se desdobrou em novas acusações, mas o foco principal, para o governo, era o negócio do grupo Time-Life com o grupo Globo. Calmon passou a acompanhar a evolução do caso a partir de contatos com o tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, membro do Conselho de Segurança Nacional, integrante da “comissão de investigação”.

Ele foi indicado por influência de aliados militares do presidente da Abert, sobretudo o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel. Também compunham a “comissão” Gildo Correia Ferraz (procurador da República) e Celso Luiz Silva (gerente de Fiscalização dos Créditos Estrangeiros do Banco Central).

O caso se desdobrou em pedido de abertura de uma Comissão parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados por Eurico de Oliveira (PTB-Guanabara). Depois de muita pressão contrária, a CPI foi constituída em 19 de outubro de 1965.

Emergência da TV Globo

Roberto Marinho convenceu uma ala do governo e da mídia a isolar, acatar e desmoralizar Calmon. O homem do grupo Globo visitou o ministro da Justiça, Mem de Azambuja Sá, num lance ousado para mostrar que ele estava disposto a brigar por suas posições. Roberto Marinho lamentou o momento da visita, logo após a instalação da “comissão de investigação”, pensando que isso poderia dar margem a interpretações dúbias. Mas o próprio ministro esclareceu que não havia motivo para esse receio por se tratar de uma conversa “entre amigos”. Ele fez também uma série de visitas a veículos da mídia de seus aliados.

Em declaração ao Jornal do Brasil, Roberto Marinho disse que Calmon estava interessado em deter apenas a entrada de dólares na imprensa brasileira, ignorando o ingresso de francos, pesetas ou rublos, referindo-se ao presidente da Abert ironicamente como “velho amigo”. Ele atacou o grupo Diários Associados, sem citar o nome, dizendo que Calmon cometia injustiças ao “terçar armas” contra qualquer outro monopólio privado contrário ao monopólio “dos outros”.

– De qualquer modo, folgo em verificar que o meu amigo Calmon, mesmo cometendo algumas injustiças, está desencadeando forças que podem, afinal, contribuir poderosamente para a moralização da imprensa no país. Não seria crível que o governo revolucionário, tão atuante em outros setores, perdesse a oportunidade para acabar com as empresas jornalísticas que há muito sobrevivem graças apenas aos odiosos privilégios que lhes foram concedidos – agulhou.

Novamente ironizando Calmon, Roberto Marinho disse que o presidente da Abert não agia de má-fé mesmo sendo diretor de uma organização de jornais, de rádio, de revistas e de televisão com notórias dificuldades financeiras, que procurava com seus ruidosos pronunciamentos uma maneira de eliminar ou criar embaraços para seus mais fortes concorrentes.

O passo seguinte seria o desligamento do grupo Globo da Abert, anunciado em carta de Roberto Marinho à entidade, logo seguido pela Rádio Jornal do Brasil. Calmon reagiu com novas denúncias, dizendo que fora procurado pelo diretor no Brasil da petrolífera multinacional Esso, Paulo Carvalho Barbosa, que, em tom de ameaça, exigiu o fim da campanha contra o acordo do grupo Globo com o grupo Time-Life. O presidente da Abert mostrou um relatório com informações do tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, dando conta da compra de ações do grupo Globo pela Esso por meio de empresas intermediárias.

Calmon chegou a defender, na Câmara dos Deputados, a estatização da mídia para conter a investida estrangeira. A proposta contundente surgiu depois de informações na Justiça do Trabalho contidas na reclamação trabalhista do ex-diretor geral da TV Globo, Rubens Amaral, que demostravam a intervenção do grupo Time-Life na emissora.

O grupo Globo respondeu com comunicados em vários jornais, lidos em suas emissoras de rádio e TV, dizendo que o Diários Associados, em tempos passados, se beneficiou de acordos de Assis Chateaubriand com o magnata norte-americano David Rockfeller. A mídia ligada a Roberto Marinho também intensificou os ataques a Calmon – chegaram a dizer que ele deveria mudar o nome para João “Calmão”, mais adequado ao seu “nacionalismo”.

A tentativa de esvaziar a Abert atingiu também a “comissão de investigação”. Além do bombardeio de Roberto Marinho e seus aliados, acusando a iniciativa de “autoritária” e “invasiva”, não havia local para ela trabalhar. No dia da sua instalação, o ministro Mem de  Azambuja Sá disse que o Ministério da Justiça era pobre e sugeriu o seu funcionamento na sede do Conselho de Segurança Nacional, onde existiam salas, “embora sem móveis”. Ele também comunicou a imprensa que a “comissão” não daria nenhuma notícia durante o andamento dos trabalhos.

Em agosto de 1966, a “comissão”, que nunca obteve um lugar definitivo para trabalhar – reunia-se esparsamente e ouviu poucas pessoas –, entregou seu relatório final ao novo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. O documento, recheado de informações artificiais, anteriormente tornadas públicas em notas dos grupos estrangeiros, foi para alguma gaveta do Ministério.

As movimentações políticas para a substituição do presidente Castello Branco ganharam ritmo frenético e havia interesses de todos em um período de trégua. A paz temporária foi selada num almoço promovido por Castello Branco no Palácio das Laranjeiras, sede do governo do estado da Guanabara, em 22 de março de 1966, com a presença de diretores de jornais do Rio de Janeiro, entre eles Roberto Marinho e João Calmon.

Costa e Silva sugeriu o nome do presidente da Abert, agora um influente líder do partido político que dava sustentação à ditadura, a Aliança Nacional Renovadora (Arena), para a vice-Presidência da República. Na acirrada disputa que se estabeleceu, saiu vitorioso o grupo de defendia o ministro da Educação, Pedro Aleixo, e a guerra Roberto Marinho-Pedro Calmon voltou a pegar fogo. O grupo Globo foi incitado por seus apoiadores do governo a atirar para matar.

Em nota publicada nos jornais, assinada pela TV Globo, Calmon foi acusado de pedir dinheiro à Embaixada norte-americana. Quem fez a denúncia, de acordo com o jornal O Globo, foi a correspondente do jornal Washington Post, Georgie Anne Geyer.

– Autorizadas fontes norte-americanas daqui salientam que Calmon, cujo império está mergulhado em dívidas, procurou a Embaixada americana, no outono passado, a fim de obter dinheiro para livrar os Diários das dificuldades. Ante a negativa do então embaixador Lincoln Gordon, ele, ao que informa, jurou vingar-se – teria escrito a jornalista.

Seguiu-se mais uma violenta troca de acusações, com Lincoln Gordon e Georgie Anne Geyer dando declarações desencontradas, um autêntico duelo nas páginas dos jornais O Globo e O Jornal – este, o líder dos Diários Associados. Calmon também usou a tribuna da Câmara dos Deputados para desancar Roberto Marinho. E declarou-se vitorioso com o resultado da CPI, que encerrou seus trabalhos em 22 de agosto de 1966 concluindo pela inconstitucionalidade dos acordos do grupo Globo com o grupo Time-Life.

– Os contratos firmados entre a TV Globo e o grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional – defendeu o parecer do relator, deputado Djalma Marinho (Arena-RN).

O relatório das investigações apontou que a TV Globo, inequivocamente, fora financiada pelo grupo Time-Life sob a cobertura de um contrato regulamentando a prestação de assessoria técnica. Outra infração grave foi a compra de equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado.

O contrato principal estabelecia que o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da TV Globo, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava que o grupo Time-Life teria de “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários – mais uma prática proibida, uma violação do Código Brasileiro de Telecomunicações. O acordo sequer foi apreciado pelo Contel. Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a TV Globo enviou um deles – o de assistência técnica – para a Sumoc, assim mesmo por ordem do Contel.

Em nova burla às leis, a TV Globo, atingida pela campanha de Calmon, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. No contrato constava que a TV Globo seria locatária de um prédio vendido ao grupo Time-Life, feito antes da venda do local aos norte-americanos. O grupo de Roberto Marinho alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somado aos 5% do lucro líquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da TV Globo. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram.

Roberto Marinho, apesar de baleado, saíra fortalecido da contenda. Havia uma lógica na sua conduta, ditada pela tendência de moldar a mídia com o alinhamento incondicional do golpe ao regime norte-americano no âmbito da Guerra Fria. O decadente grupo de Assis Chateaubriand estava tão avariado que não responderia aos estímulos do Pentágono. A segunda opção, a Editora Abril – intermediária da negociata de Roberto Marinho com o Grupo Time-Life –, também estava descartada pela flagrante ilegalidade constitucional. A emergência de um novo grupo seria a saída óbvia.

Assuntos geopolíticos

Costa e Silva assumiu com a refrega resolvida e a Rede Globo de Televisão reinando absoluta como porta-voz informal do regime. Com um Decreto-Lei, o ditador reforçou o poder do seu entourage ao promover uma reestruturação do Conselho de Segurança Nacional, manobra da linha dura para se assenhorar de todos os instrumentos de poder.

Estava em andamento uma leva de promoções no Exército, entre elas a do coronel Carlos de Meira Mattos, que, como general, assumiria a chefia da Casa Militar da Presidência da República com status e ministro. No posto, ele seria o titular da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional. A notícia caiu como uma bomba no Congresso Nacional.

Meira Mattos também foi integrante da FEB, atuando como oficial de ligação com o 4º Corpo de Exército dos Estados Unidos – uma espécie de braço direito do então marechal Mascarenhas de Morais, o líder daquela missão – e um dos primeiros a entrar no clube dos golpistas que se formou tão logo a democracia voltou a reger as atividades políticas no Brasil com a Constituição de 1946, apesar de não ser do ninho da Escola Superior de Guerra; ele só fez o curso daquela instituição em 1967.

As ligações com o subterrâneo do Departamento de Estado norte-americano faziam dele uma espécie de intocável entre os golpistas. Meira Mattos também era apontado como uma das principais cabeças políticas do sistema militar do governo. Logo seria adjunto da Divisão de Assuntos Militares e professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra, da Escola de Guerra Naval e da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, além de subchefe da Casa Militar – o chefe era o general Ernesto Geisel – de Castello Branco.

Como um dos articuladores da Emenda Constitucional que prorrogou os mandatos para impedir as eleições de 1965, junto com os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, se destacou pelo nível intelectual superior à média dos seus pares golpistas. Gostava de comentar com jornalistas assuntos geopolíticos, defendendo a tese de que o Brasil não tinha como se eximir de um conflito mundial caso o “comunismo” atacasse o “ocidente”. A imensa costa brasileira no Oceano Atlântico, especialmente no Norte e Nordeste, certamente fazia do país peça-chave na geopolítica da Guerra Fria, segundo ele.

Como ativo operador político, assumiu o governo de Goiás quando a ditadura interveio no estado, afastando o governador Mauro Borges, apesar de ter nascido e vivido em Mato Grosso. Pregador do que chamava de “ideais da revolução”, atirava verbos chulos, sem medir o nível, contra os que agiam com tibieza no combate aos “focos de agitação e subversão”. Sua concepção de “revolução” incluía a premissa de que os “políticos” deveriam ser gradativamente afastados de postos importantes e substituídos por militares. “Políticos não entendem o povo”, repetia.

Quando a ditadura decidiu enviar tropas para integrar o corpo da Organização dos Estados Americanos na República Dominicana, ele liderou as negociações e foi designado chefe da operação e comandante da chamada Brigada Latino-Americana. Na volta, sua candidatura a governador de São Paulo chegou a ser cogitada, mas acabou assumindo a chefia da Polícia do Exército da 11ª Região Militar, sediada em Brasília. Na cassação dos mandatos, em 1966, comandou uma violenta ocupação do Congresso Nacional, com cenas de agressões a parlamentares, jornalistas e fotógrafos. Ganhou a antipatia dos “políticos”.

A rejeição a Meira Mattos aumentou quando a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional detalhou a reestruturação numa nota divulgada dia 11 de janeiro de 1968. A reestruturação reuniria as medidas que vinham da criação do Conselho de Defesa Nacional, em 1927. Após o golpe, o órgão, transformado em Conselho de Segurança Nacional, expandiu seus tentáculos, que seriam reforçados consideravelmente com o Decreto-Lei de Costa e Silva.

Havia também a denúncia de que a Secretaria-Geral do Conselho teria poderes para se intrometer em todos os ministérios, transpondo a fronteira de suas atribuições. A reestruturação era vista como camisa de força imposta ao governo e ao Estado. Diante da reação dos “políticos”, Costa e Silva foi obrigado a recuar e não indicou Meira Mattos.

Força contra Lacerda

Seguindo os ditames daquela nova fase, o regime advertiu Lacerda, acusado de, “num crescendo”, estar em “processo de agitar politicamente o país”. A advertência partiu do brigadeiro Antônio Guedes Muniz, em discurso no Clube Militar, num ato com a presença de Costa e Silva. Haveria um “enrijecimento do ponto de vista militar”, disse. A tendência governamental era de “voltar-se para dentro e militarizar-se”. A fala de Guedes Muniz foi reforçada pelo general Afonso de Albuquerque Lima, em entrevista coletiva. Cada ação de Lacerda corresponderia, da parte do governo, uma reação maior “e em sentido contrário”, disse.

O ex-governador da Guanabara havia discursado numa reunião da Frente Ampla em Belo horizonte, com a presença do ex-comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel José Geraldo de Oliveira, o primeiro insurgente do movimento golpista de 1964. Ele havia assumido a chefia da Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab) no estado e renunciado, acusando a “revolução” de se comportar com indiferença diante da fome que assolava o país.

Havia também uma crise política no Congresso Nacional, com a Arena acusando o governo de dar as costas para as atividades políticas. Seus líderes cobravam de Costa e Silva uma presença mais regular nas relações do governo com a bancada governista. Só ele poderia estancar uma crise de consequências imprevisíveis.

A Frente Ampla poderia se aproveitar da situação, advertiu o senador Dinarte Mariz (Arena-RN), um dos mais íntimos colaboradores políticos de Costa e Silva. O presidente deveria assumir o comando da Arena, como fazia nos Estados Unidos o presidente Lyndon Johnson com o Partido Democrata, recomendou. Havia mais de seis meses que a Frente Ampla agia como movimento de caráter subversivo, com o objetivo de solapar as instituições.

A fala de Lacerda em São Paulo despertou rumores de que ele fermentou a Força Pública e teria sido a senha para a eclosão de um movimento conspiratório, que contaria com apoio da Polícia Militar mineira. O Exército determinou prontidão nas guarnições do Rio de Janeiro e de São Paulo, após o general Afonso Albuquerque Lima agir como portador de um ultimato da linha dura exigindo repressão a Lacerda e à Frente Ampla.

A ditadura anunciou também que enquadraria uma grande quantidade de municípios em áreas de segurança nacional, agravando a crise política com a Arena, que perderia parcelas de sua base eleitoral, ideia do ministro do Interior (o novo nome do Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais), general Afonso Albuquerque Lima.

A crise se agravou quando líderes da Arena cogitaram pedir ajuda a Cordeiro de Faria, que no governo Castello Branco auxiliava na aprovação de matérias do interesse do governo, circulando pelos corredores da Congresso, cabalando votos. Foi dele, inclusive, a ideia de extinguir os partidos, que levaria à formação do bipartidarismo Arena-MDB. A manobra dos líderes da Arena não foi adiante, mas a ameaça da ditadura fez a Frente Ampla recuar.

Ataques e contra-ataques

O governo Costa e Silva editou oito Atos Institucionais e vinte e quatro atos complementares. O mais sinistro deles foi o AI-5, anunciado em 13 de dezembro de 1968 – ano das mais intensas manifestações contra a ditadura, com gigantes protestos estudantis e as greves operárias em Minas Gerais e Osasco (SP).

Quando o ditador encaminhou a proposta de reabrir o Congresso Nacional, fechado com o AI-5, os moderados viram uma oportunidade de aumentar seus poderes, se apoiando nos “políticos” e abrindo outra estrada para a sucessão de Costa e Silva. Na prática, era um paralelismo de autoridade, ideia que contrariou profundamente o ditador.

A linha dura reagiu expulsando do Exército o coronel Francisco Boaventura Cavalcanti, irmão do ministro do Interior, José Costa Cavalcanti, com direito à execração pública e carimbo de “traidor da pátria” na testa. A acusação se baseava num inquérito sigiloso revelando ligações do execrado com Carlos Lacerda. O ministro do Exército, general Lira Tavares, foi o articulador da expulsão, que na verdade expressava mais um capítulo da guerra entre os dois grupos, a “briga de foices no escuro” de que falara Costa e Silva. Mesmo na linha dura houve fissura.

Em carta entregue a Costa e Silva pelas mãos de Lira Tavares, o general Moniz Aragão, que chefiava o Departamento de Provisão Geral do Exército (DPG), protestou contra a expulsão de Francisco Boaventura Cavalcanti.

– A publicidade consentida do governo das razões da pena aplicada ao coronel Boaventura, que embora possam assentar-se sobre realidades, contém apreciações e conceitos desprimorosos e hostis, impróprios à serenidade que deve revestir os atos de justiça, que se feriram a honra daquele oficial também respingaram o brio da classe, emocionando-a e revoltando-a – dizia um trecho.

Moniz Aragão também se queixou das restrições impostas a oficiais-generais para o acesso ao processo, que colidiam com o zelo do ministro na divulgação dos motivos da punição. A própria disciplina do Exército estaria em causa com o repúdio à publicidade da sanção imposta ao coronel.

A escalada de ataques e contra-ataques chegou a um documento de Aragão, divulgado no governo e nas casernas, com acusações pesadas ao próprio Costa e Silva. O rosário abrangia desde culto à personalidade a nepotismo – o que incluía a indicação de um cunhado do presidente para a direção da Legião Brasileira de Assistência (LBA), definido pelo missivista como “conhecido traficante” – e uma série de casos de corrupção.

Lira Tavares reagiu à altura, demitindo Aragão da chefia do DPG e divulgando uma carta-resposta. Defendeu a punição ao coronel Boaventura e censurou Aragão por reunir-se com oficiais a ele subordinados para atacar o governo. Disse que Costa e Silva repelia terminantemente as acusações. Aragão não se intimidou e respondeu que havia se reunido novamente com generais a ele subordinados para analisar a contenta. A carta-tréplica era ainda mais virulenta e acusou Lira Tavares de selecionar tópicos do seu documento para deformá-lo.

Havia um ponto central naquela troca de desaforos – a menção de Aragão, na primeira carta, ao direito que oficiais teriam de afastar o presidente. Lira Tavares tomou aquela questão como hostilidade, uma provocação de alto teor explosivo.

– É inaceitável e flagrantemente incompatível com os propósitos democráticos da revolução e as próprias tradições do Exército e da nação – escreveu em sua réplica.

Na tréplica, Aragão acusou o ministro de deturpador sua afirmação ao truncar criminosamente esse trecho da carta. Seria, em sua versão, uma citação hipotética, apenas para exemplificar os limites da ação do presidente. Indignado, ele deu o assunto por encerrado e classificou Lira Tavares de dissimulado por ter omitido de Costa e Silva a íntegra do seu documento. Não havia mais condições para que eles mantivessem qualquer tipo de contato.

– Agradeço a Deus ter-me dado a oportunidade de conhecer melhor a personalidade de vossa excelência – decretou.

Comunistas, padres e bispos

O general Albuquerque Lima surfou naquela onda de endurecimento do regime com a esperança de ser indicado sucessor de Costa e Silva. A “revolução”, de acordo com sua concepção, não deveria tolerar a “subversão”, naquele momento concentrada nos estudantes. Para combatê-la, deveria recorrer ao estado de sítio e outros recursos excepcionais.

Uma nota do Conselho de Segurança Nacional manifestou apoio à declaração de Costa e Silva de que os fins e propósitos revolucionários seriam atingidos somente pela atuação decisiva das Forças Armadas. Era um problema para a sucessão presidencial. A Arena se movimentava em outra direção e recorreu a Costa e Silva para que tomasse pulso do processo. Os bastidores do regime fervilhavam com os movimentos de potenciais candidatos.

No afã de se mostrar o mais preparado para assumir o comando da ditadura, numa entrevista coletiva Albuquerque Lima deitou falação sobre como entendia a natureza da “revolução”.

Em uma palestra no Círculo Militar, em São Paulo, dirigindo-se aos “comunistas, aos padres e aos bispos da esquerda festiva, aos que se intitulam de estudantes e fazem o jogo de poderosos grupos econômicos, enfim, que não querem a nova ordem que se tenta impor pela revolução”, ele disse que o regime era duro “pela sua própria natureza”. Nenhum país “amolecido” podia progredir, afirmou. Havia no país, disse, uma sucessão de atos terroristas que obedeciam “a comando de fora e para dentro do país”, exercidos “por Moscou, pela China ou qualquer outra entidade comunista”.

Os “atentados terroristas”, disse, tinham como alvo, principalmente, os militares. Depois vinham a Igreja Católica, “a qual, infelizmente, conseguiram, em parte, dividir, fazendo padres e bispos participarem desse processo comunizante”, chegando “à própria família, levando para nossas filhas problemas que nunca tiveram, de ordem sexual”. Albuquerque Lima atirava para todos os lados, reafirmando suas proclamações nacionalistas.

Ele disse ser contra qualquer tipo de “extremismo”, que deveria ser combatido com “ações positivas e enérgicas”, efetivando um programa de realizações “para atender a tudo aquilo que o povo espera da revolução”. Segundo ele, toda ação violenta deveria ser respondida com um ato enérgico do governo. A “revolução” deveria “prosseguir no tempo, seja por cinco, dez ou quinze anos”, para implantar as reformas de que o país necessitava, “seja a agrária, a administrativa ou a econômica”. “As Forças Armadas, sempre irmanadas com o povo brasileiro, jamais permitirão a volta ao passado ou o estabelecimento de um regime antidemocrático, de esquerda ou de direita”, ameaçou.

Albuquerque Lima voltou ao assunto numa palestra na Faculdade de Higiene e Saúde Pública de São Paulo. Disse que padres e freiras incutiam “na cabeça de jovens de doze a treze anos determinados problemas para acabar com a família brasileira”. Viviam dizendo que que a geração passada não fez nada, a fim de incompatibilizar os filhos com os pais, despertando “o sentimento sexual nas moças, não para resolver esses problemas, que elas nunca tiveram, mas para criar indagações e desagregar a família”.

Ele deixou o Ministério do Interior e voltou ao Exército para articular a sua candidatura. Em sua carta de demissão, endereçada a Costa e Silva, disse que sua decisão se devia a graves motivos que foram expostas pessoalmente ao presidente sobre decisões do “campo econômico-financeiro”. O ditador respondeu que agradecia “a lealdade, a eficácia, e a alta colaboração dada ao governo” e lamentou que Albuquerque Lima houvesse “levado a divergência pessoal em relação a certos itens da política econômico-financeira a tal extremo”.

O entrevero não afastou Albuquerque Lima da corrida sucessória. Quando Costa e Silva teve trombose cerebral, ele apareceu como seu substituto imediato, mas já havia uma articulação pela junta constituída pelos ministros militares – o general Aurélio Lira Tavares (Exército), o brigadeiro Márcio de Sousa Melo (Aeronáutica) e o almirante Augusto Rademaker Grünewald (Marinha) –, que assumiria interinamente a presidência da República.

Albuquerque Lima acabou assumindo o Departamento de Material Bélico do Exército. Médici foi escolhido e se instalou no Rio de Janeiro para acertar a sua candidatura em conversas com os ministros militares e o presidente da Arena, Filinto Muller.

Estrada para a Guanabara

Mais habilidoso politicamente, Médici havia conquistado uma posição relevante no entourage de Costa e Silva. Sua projeção no grupo teve início no dia do golpe. Às três horas da madrugada de 31 de março de 1964, Costa e Silva lhe telefonou para acertar os últimos detalhes de sua participação no ato final da conspiração.

– Diga quais são as ordens, general. Estou à sua disposição – disse Médici.

Então comandante da Academia Militar das Agulhas Negras, sediada na cidade de Resende, Médici prendeu três oficiais suspeitos de lealdade ao presidente João Goulart e deslocou uma guarnição para reforçar a marcha das tropas do general Olympio Mourão Filho na Operação Popeye.

A decisão de Mourão e Médici foi estratégica. A estrada até a Guanabara era quase toda em forma de desfiladeiro, o que permitiria a uma tropa relativamente pequena ocupar toda sua extensão e resistir indefinidamente. Como retribuição e reconhecimento ao papel de Médici, na posse de Castello Branco vinte cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras desfilaram entre os três mil e quinhentos militares que homenagearam o presidente.

Apesar do posto-chave de Médici na conspiração, antes de sua candidatura à sucessão de Costa e Silva pouco se ouvia falar dele. Era tido como reservado e detestava falar dele mesmo. Gostava de dizer que Garrastazu não era um nome índio, mas espanhol, e queria dizer “teimosia”. Se vangloriava também de não ter inimigos e proclamava que nem pretendia tê-los. Nascera em 4 de dezembro de 1905, estudou no Colégio Militar de Porto Alegre e foi completar os estudos preliminares na Escola Militar de Realengo, Rio de Janeiro.

Em 1927, foi servir no Rio Grande do Sul e logo voltou ao Rio de Janeiro para fazer os cursos do Estado-Maior do Exército. Retornou à sua cidade natal, Bagé, para chefiar a 3ª Divisão de Cavalaria e mais tarde, em Porto Alegre, foi chefe da 2ª Seção (Serviço Secreto) da 2ª Região Militar. Comandou também o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) na capital gaúcha. Três anos e meio depois, deixou o posto para ser chefe do Estado-Maior do general Costa e Silva, o comandante da 3ª Região Militar (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná).

Como general, sua primeira função foi a de comandantes da 4 ª Divisão de Cavalaria, em Mato Grosso. Em seguida, assumiu o comando da Academia Militar das Agulhas Negras, onde ficou entre 1963-1964. Saiu para assumir o cargo de adido militar em Washington, acompanhando o novo embaixador, Juraci Magalhães, ex-governador da Bahia, udenista e anticomunista ferrenho.

Médici já era o delegado brasileiro na Junta Interamericana de Defesa e passaria a representar o país na Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos. Logo seria eleito também para a Comissão Especial Consultiva de Segurança da OEA. Voltou ao Brasil, em 1965, promovido a general-de-divisão, como operador do programa de cooperação entre os dois países. Assumiu o comando da 3ª Região Militar, cargo que acumularia com o de subchefe do Estado-Maior do Exército.

A acelerada escalada de funções e promoções fazia parte dos planos do grupo de Costa e Silva para lançá-lo candidato a presidente. Quando eles decidiram reformular o SNI, Médici surgiu como candidato natural para assumir o seu comando; era tido como preparado intelectualmente e plenamente identificado com a tropa.

Ele assumiu o novo cargo em 15 de março de 1967, substituindo o general Golbery do Couto e Silva. Sua missão era transformar o órgão numa máquina poderosa, um monstro, como seria nominado pelo próprio Golbery, com vários tentáculos que vasculhavam todos os escaninhos do país. Cabia a Médici implementar as regras da Lei de Segurança Nacional decretada por Castello Branco, um de seus últimos atos na Presidência da República.

Antes mesmo da posse, disse que seu gabinete estaria aberto aos jornalistas, cumprindo o preceito de que um homem público deve exercer suas funções dialogando com a imprensa, “o termômetro da opinião pública”. Em sua primeira entrevista após ser confirmado no cargo, deixou claro como seria sua gestão.

– Se você fantasiar minhas informações ou publicar o que eu não disse, não precisa me procurar nunca mais – avisou, antes de começar.

Disse que tinha curso de informação e contrainformação e que se preocuparia diariamente com a “verdade das notícias”. Sentia-se contente em chefiar o SNI, que não era um órgão “policial ou político”, e pretendia ampliar os serviços, fornecendo ao governo um noticiário completo das críticas à administração, aspirações e anseios do povo. Não permitiu que as perguntas fossem publicadas e se negou a falar das mudanças que seriam implementadas em sua administração.

Pouco mais de dois meses após a posse, no entanto, um escândalo deu as dimensões do que seria o SNI de Médici. Mário Monteiro, escriturário da Caixa Econômica Federal, que atuava como “agente secreto” – era agente do SNI e da Polícia Federal – foi flagrado por jornalistas praticando violências contra presos políticos e criminosos comuns em salas do Palácio do Catete, antiga residência presidencial da República, local em que Getúlio Vargas se suicidou.

O caso ganhou dimensões de escândalo quando surgiu a informação de que o filho de um general do Exército havia sido preso e torturado. Médici disse que as denúncias seriam apuradas imediatamente, mas o estrago já estava feito. Com o aparecimento das denúncias nos jornais, Monteiro mandou limpar as salas-prisão que funcionavam no segundo andar do Palácio do Catete e transferiu dois presos para outros estados e os demais para o seu sítio em Marquês de Valença, a mais de cento e cinquenta quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, usado como centro de torturas. As duas salas usadas por Monteiro eram guarnecidas por guardas civis a serviço da Polícia Federal.

O disfarce de Monteiro na Caixa Econômica Federal servia também para ocultar seu patrimônio obtido em ações criminosas. O “escriturário” foi designado chefe do Setor Administrativo do Departamento Federal da Segurança Pública (DFSP) – precursor da Polícia Federal – pelo Coronel Leitão, diretor-geral e ex-homem de confiança do general Golbery do Couto e Silva que se aliou a Médici, que funcionava anexo ao Palácio do Catete, com a missão de montar a estrutura que serviria às prisões e torturas.

Mais tarde, Monteiro foi designado para o cargo de chefe do Serviço de Diligências Especiais do Gabinete do coronel Leitão, controlando, na prática, todo o sistema de policiamento federal existente na Guanabara. Era o super-homem do coronel Leitão, que respondia diretamente a Médici. Passava por ele a administração das viaturas, das armas – inclusive de uso privativo do Exército – e do contingente de policiais. Desfilava com uma pistola 45 à mostra e mantinha à vista, ao lado de sua mesa de trabalho, uma metralhadora.

O protegido do coronel Leitão formou um grupo de apaniguados que fazia razias para arrastar inimigos do regime ao Palácio do Catete. Usavam carros que diziam ser deles, com chapas frias, e agiam com brutalidade desmedida. Monteiro era o mais selvagem do grupo. Comandava as torturas com sadismo e gritava para quem quisesse ouvir que estava a serviço do comandante-general Emílio Garrastazu Médici. Até o major Lair Andrade de Almeida, responsável pela administração do Palácio do Catete e integrante da equipe de relações públicas do presidente Costa e Silva, se submetia às práticas de Monteiro.

A repercussão do caso fez Médici exigir do coronel Leitão medidas duras contra a presença de jornalistas nas imediações dos órgãos públicos. Alguns foram detidos e avisados que, em caso de reincidência, o Monteiro e sua equipe tinham carta branca para agir. A nova Lei de Imprensa dava respaldo “legal” a eles.

Para tentar frear as contestações ao regime, o chefe do SNI decidiu correr o país para expor as novas regras da Lei de Segurança Nacional. Em Porto Alegre, Médici reuniu-se com o governador gaúcho, Peracchi Barcelos, e deu ordens para que fosse evitada a fuga de “subversivos” pela fronteira com o Uruguai.

Médici também estava preocupado com as inquietações dos trabalhadores, motivada pelo brutal arrocho salarial imposto com a política econômica do regime. Ele falou do assunto quando tomou posse no Conselho de Segurança Nacional, agora predominantemente ocupado por militares, conforme determinava a nova Constituição outorgada e a Lei da Reforma Administrativa. Disse também que a escolha do coronel Jarbas Passarinho para o Ministério do Trabalho, “um militar de pulso firme”, não poderia vir em melhor hora. O chefe do SNI já era a principal referência daquele grupo de militares, formado basicamente por coronéis. Qualquer crítica a ele resultava em Inquérito Policial Militar e todos os críticos eram devidamente fichados.

O entourage de Costa e Silva fazia questão de demonstrar que estava no auge do poder. Uma festa para celebrar os sessenta e dois anos de idade de Médici reuniu militares de alto patente, incluindo Costa e Silva. Em um almoço realizado no Quartel-General do 3º Exército, em Porto Alegre, com a presença do governador e militares de alta patente – entre eles Médici e Costa e Silva -, o comandante daquela Região, general Álvaro da Silva Braga, disse que que as Forças Armadas estavam “unidas como uma família”.

Havia circulado boatos de que Médici seria exonerado, fato negado por ele mesmo.

– Não tomo conhecimento de boato divulgado por uma colunista social – respondeu, ao ser questionado por jornalistas.

O boato originou-se dos preparativos para a promoção de três generais-de-exército para generais-de-divisão, entre eles Médici. Nessa função, ele assumiria o posto de comandante do 3º Exército, da Região Sul, de onde sairia para ser presidente da República, assunto que começou a ser decidido em reunião do Alto Comando das Forças Armadas dia 21 de julho de 1967. Circularam informações de uma lista tríplice, mas o martelo foi batido por unanimidade, várias reuniões depois. Era, na verdade, uma manobra para aniquilar as pretensões do grupo do general Albuquerque Lima.

O caminho estava aberto para Médici comandar a máquina terrorista do Estado, uma engrenagem que pretendia moer definitivamente a resistência democrática. As torturas, assassinatos e desaparecimentos foram intensificadas. Seu sucessor, general Ernesto Geisel, anunciou a abertura lenta, gradual e segura, uma nova fase da ditadura e, ao mesmo tempo, da resistência ao regime, que se intensificaria no governo de João Baptista Figueiredo e enterraria a ditadura em 1985.