– A longa Revolução de Getúlio Vargas

Por Osvaldo Bertolino

Na passagem dos setenta anos do suicídio de Getúlio Vargas, na madrugada de 24 de agosto de 1954, o balanço de sua era revela que o Brasil é o que é, com seus vícios e virtudes, seus esplendores e suas misérias, graças, fundamentalmente, às mãos que o conduziram a partir da Revolução de 1930. Após sair da pasmaceira que deu o tom da República Velha, o país entrou no período difuso do Estado Novo para em seguida chegar à era da “união nacional”.

Getúlio Vargas (o dos anos 1930) industrializou um Brasil que praticamente só plantava café. Derrubado por militares, quando seu projeto unitário avançava a passos largos, foi substituído, nas eleições de 1945, pelo general Eurico Gaspar Dutra — francamente pró-americano no processo de nascimento da Guerra Fria. Seu governo foi determinante para a formação, no Brasil, de dois campos abertamente em conflito.

Dutra perseguiu os patriotas — em seu governo, o registro do Partido Comunista do Brasil (então PCB) e a bancada parlamentar comunista foram cassados — e franqueou o país aos interesses dos Estados Unidos. Nas eleições seguintes, este projeto entreguista sofreu uma derrota — Vargas venceu em 1950 com um projeto de programa nacional. Ameçado de novo golpe, saiu morto do Palácio do Catete, então a sede do governo no Rio de Janeiro.

Em 1956, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República também sob ameaças. Fez um governo de conciliação, com boa dose de apoio da sociedade, e foi sucedido por Jânio Quadros. Os gestos histriônicos e os bilhetes teatrais do novo presidente pouco fizeram além de criar um clima de grande tensão política no país. Sua renúncia abriu lugar a outro presidente popular, João Goulart — fato que despertou a ira dos interesses dominantes.

O golpe militar de 1964 condensou um processo histórico de luta da elite contra o povo, que ganhou contornos bem definidos no segundo período Vargas: o modelo entreguista, alheio ao interesse nacional, versus o desenvolvimento. No ciclo militar, o país sangrou e, do ponto de vista econômico, foi uma mediocridade fardada em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo.

Resposta dos conservadores

Depois desse período, o país experimentou o período neoliberal, quando multidões saíram às ruas com palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo e tumulto. Este cenário era comum nos conturbados processos de privatização brasileiros dos anos 1990, um quadro do qual decorre uma pergunta óbvia: que importância é essa que a venda das estatais brasileiras angariou no enfrentamento entre as forças da transformação e da reação?

A resposta é a determinação, expressa pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC) na sua primeira posse como presidente da República, de acabar com a “era Vargas”. Era uma reação conservadora ao salto proporcionado pelos esforços empreendidos por Vargas para industrializar o país, alicerçados na bandeira do nacionalismo — condição fundamental para o governo do presidente Juscelino Kubitscheck conduzir a industrialização pesada dos anos 1950. Sob essa bandeira, o Brasil combateu o domínio dos trustes internacionais e advogou a formação de novas áreas de consumo interno.

Essas iniciativas impulsionaram os movimentos operários — em 1953, trezentos mil trabalhadores aderiram a uma greve em São Paulo; em 1954, uma greve geral anticarestia, liderada pelo Pacto de Unidade Intersindical (PUI), chegou à adesão de um milhão também em São Paulo; e em 1957, 400 mil operários pararam, ainda na capital paulista, reivindicando aumento de 25%, além das lutas camponesas.

Avanço da industrialização

O Brasil vivia uma polarização decorrente de uma renhida luta entre as forças do desenvolvimento e os círculos que defendiam a dependência econômica e política. Este cenário manifestava-se inclusive dentro do governo Juscelino Kubitscheck e refletia a evolução do quadro político desenhado pelos embates das décadas anteriores.

Quando Vargas assumiu o seu segundo governo, se deparou com problemas complexos herdados do governo do general Dutra e enfrentou a crise econômica acelerando o papel do Estado na economia e atraindo os trabalhadores para o seu projeto. Ao contrário de Dutra, que considerava indevida a intervenção do Estado na economia, Vargas aplicou — como havia feito no início da década de 1940 — uma orientação política que correspondia às tendências nacionalistas das forças que o apoiavam e à sua doutrina de harmonia dos interesses de classes.

A atenção de seu governo concentrou-se nas medidas que possibilitariam o avanço da industrialização, que deveria ser apoiada preferencialmente no capital nacional e orientada para o mercado interno. A industrialização naqueles moldes era considerada por Vargas uma solução para a falta de divisas, para o desemprego e para a independência do país. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), pelo qual ele foi eleito, não dispunha de maioria no Congresso Nacional e o governo compôs um bloco de sustentação parlamentar com representantes de outros partidos.

O suicídio do presidente adiou o golpe pró-americano por dez anos. No início dos anos 1960, os elementos das duas opções estratégicas para o país se condensaram e em 1964 os golpistas acabaram com o sonho das reformas de base lançadas por Vargas e preconizadas pelo governo do presidente João Goulart.

Uma nova era

As forças democráticas e progressistas podem aprender boas lições com o estudo da experiência de Vargas. Quando ele chegou ao Palácio do Catete, em 1930, em um trem militar vindo do Estado do Rio Grande do Sul, o país inaugurou uma nova era. O líder da Revolução vestia um uniforme cáqui, com um revólver metido na cintura, e representava, até na forma de vestir, os tenentes rebeldes que promoveram dois levantes e uma marcha histórica — a Coluna Prestes — na década de 1920 contra a República Velha.

Até então, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) revezavam-se no poder. O país era essencialmente rural — apenas 10% do Produto Interno Bruto (PIB) era industrial. Quando o esquife de Vargas deixou o Catete, 24 anos mais tarde, o Brasil não era nem sombra daquele país esculpido pelas oligarquias paulista e mineira. Em 1955, a produção industrial já representava 30% do PIB.

Intervenção do Estado

Uma das primeiras providências de Vargas foi alterar o papel do Estado. Antes, o governo interferia na economia apenas para garantir a boa vida dos oligarcas. O Estado comprava o café para preservar os fazendeiros de eventuais problemas na produção e da oscilação de preços no exterior. A moeda nacional flutuava ao sabor dos interesses dos fazendeiros — quando o preço caía no mercado internacional, o governo desvalorizava o dinheiro brasileiro e assim garantia os ganhos dos cafeicultores.

O novo presidente optou pela intervenção do Estado na economia para promover o desenvolvimento industrial. De 1932 a 1937, o PIB cresceu, em média, 7% ao ano. O Estado construiu empresas estratégicas para a economia nacional, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, e criou uma vasta legislação trabalhista — a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) — e social, especialmente a Previdência Social. No seu segundo governo, Vargas criou a Petrobras — iniciativa que resultou de um vigoroso movimento patriótico — e fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), hoje acrescido da palavra Social, agora com a sigla BNDES.

Divisão do país

As turbulências políticas do primeiro governo Vargas decorreram das contradições que envolviam o país. Os levantes dos tenentes e a Coluna Prestes tinham como objetivo único derrotar as oligarquias da República Velha. Eles não formaram um partido político e deram seqüência às suas carreiras políticas por caminhos distintos.

De um lado, o movimento operário avançava e sua liderança — o Partido Comunista do Brasil — via a Revolução de 1930 como algo que deveria ser substituído por um governo “apoiado em sovietes de operários e camponeses”, avaliação que evoluiu para o levante revolucionário de 1935 liderado pela Aliança Nacional Libertadora (ANL). De outro, a oligarquia paulista lançou a campanha pela constitucionalização do país e promoveu a guerra civil de 1932. Dois anos depois, uma assembléia eleita pelo povo promulgou a nova Constituição. Como resposta ao levante de 1935, Vargas desencadeou a repressão e, mais tarde — em 1937 —, instaurou a ditadura do Estado Novo.

Os tenentes se dividiram, basicamente, entre os que apoiaram Vargas e os que participaram do levante de 1935. A ditadura investiu com fúria contra os comunistas até a hábil política do então PCB de propor a “união nacional” contra o nazi-fascismo — palavra de ordem que logo seria associada à defesa da democracia. O governo se dividiu.

De um lado, apoiando o Eixo Roma-Berlin-Tóquio, ficaram o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o sucessor de Vargas, e o feroz chefe do aparelho repressivo, Filinto Müler. De outro, ficaram o presidente e o ministro das Relações Exteriores, o chanceler Osvaldo Aranha. Com forte apoio dos comunistas, o governo criou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que foi combater o nazi-fascismo na Europa. Essas posturas democráticas de Vargas e a vitória dos aliados fizeram do presidente um campeão de popularidade.

Apoio dos trabalhadores

Quando ele voltou ao governo, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria e respirava os ares reacionários do governo Dutra — aliado incondicional do imperialismo norte-americano. Vargas fez um governo dúbio: cedeu aos setores golpistas das Forças Armadas, doutrinados pela Escola Superior de Guerra (Esg), criada em 1949, tutelada pelo expansionismo da ideologia norte-america liderado pelo ocupante da Casa Branca HarryTruman (o famoso Plano Truman), com o acordo militar Brasil-Estados Unidos, mas amainou a repressão política.

O governo também desenvolveu uma política nacional de impulso à industrialização, enfrentou a crise econômica deixada por Dutra e procurou atrair o apoio dos trabalhadores. O ministro do Trabalho, João Goulart, propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, sofreu um violento ataque de militares reacionários e caiu — mas Vargas bancou a proposta e concedeu o reajuste. O governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investir no país.

Violentamente atacado pela direita, Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou a morte do presidente, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais. Sua marca ficou gravada, de forma indelével, na memória do povo brasileiro e na história do Brasil. E seu Testamento, registrado na carta famosa, é um dos importantes documentos da luta pela independência e soberania do país.

– Guerra híbrida e cultural na história do Brasil

Por Osvaldo Bertolino

Precisamente às 18h30 de 31 de junho de 1963, uma quarta-feira, o então governador do estado da Guanabara, Calos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), recebeu no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, a escritora francesa Suzanne Labin. O motivo da visita era o lançamento do livro Em cima da Hora – a conquista sem guerra, obra prefaciada e traduzida por ele. Em seu texto, Lacerda escreveu que certas faculdades de Filosofia, de Direito e de Economia estavam pondo em circulação centenas de jovens líderes, doutrinados e condicionados pelo treinamento comunista custeado pela nação.

O mesmo ramerrame seria ouvido anos depois, com o alarido sobre a “Escola sem partido” e outras diatribes do gênero. Como diz a extrema-direita agora, Lacerda dissera que “os liberais arrependidos, os socialistas retardados, os religiosos tomados de surpresa, os ensaístas deslumbrados, os jornalistas alfabetizados, os intelectuais ressentidos, os desajustados da liberdade, os novos-ricos de certos bancos e os novos-pobres de certo espírito, formam as mais estranhas contribuições para abrir caminho à propaganda, ao sofisma, às ideias-força da guerra subversiva que os soviéticos movem contra o mundo livre”.

O conjunto listado pelo então governador da Guanabara pertencia à categoria dos que, à falta de melhor definição, são nominados por “comunistas”, uma minoria ínfima que manipulava “uma parte considerável e poderosa das elites dirigentes, para induzir o povo a aceitar as teses de Moscou”. Eram aqueles que não seguiam a cartilha da extrema-direita e nem rezavam por sua ladainha, além de ousar pensar pela ciência e, com ela, contestar o obscurantismo ideológico. Na definição de Lacerda, seria uma “camada de autômatos” que estava sendo preparada “para dirigir o Brasil por conta dos soviéticos”.

O diapasão daquele lacerdismo obtuso, muito familiar aos ouvidos da contemporaneidade, expressava, mais do que o histórico anticomunismo rombudo, uma ojeriza ao Brasil. Seu histrionismo chegava ao ponto de enxergar propaganda soviética nas livrarias, nas bancas de revistas e nos jornais, uma confraria que atendia pelo nome-fantasia de “nacionalistas”. O Brasil estava sendo alvejado por essa propaganda para ser o epicentro da conquista da América Latina pelo comunismo, uma ameaça ao destino da liberdade no mundo.

Seria uma colonização cultural, já dominante na política e na economia. A nação, escreveu Lacerda, estava dominada por um medo intelectual e psíquico, traduzido pelo pavor de muitos de serem chamados de reacionários e perder o bonde da história, uma “enxurrada de estupidez” que estaria “burrificando a mocidade e degradando a velhice de tão grande parcela da intelligentsia brasileira”. A autodeterminação dos povos, pregada por Woodrow Wilson, um dos presidentes dos Estados Unidos, estaria servindo de pretexto para que o Brasil fosse posto, por brasileiros, “a reboque da Rússia e dos seus títeres, como Fidel Castro”.

Estado de guerra

As ideias de Lacerda guardavam proporção com seu destempero verbal – seu conhecido palavreado estridente e oco –, mas foram a base do golpe militar de 1964. Assim como agora, elas ganharam certa popularidade, repetindo o que ocorrera em 1937 com o “Plano Cohen”. O historiador Hélio Silva conta em seu livro A América vermelha que “a história do Brasil não registrou, felizmente, outro embuste, farsa, mentira, impostura, fraude, falsidade, felonia, traição, deslealdade, que se equipare em suas intenções pérfidas, de efeitos políticos calculados, além do Plano Cohen, atirado à face da nação, em sua publicidade cavilosa, chamada nos jornais em 30 de setembro de 1937”.

A fraude grosseira do militar de extrema-direita Olympio Mourão Filho – o primeiro que marcharia quando o golpe de 1964 foi deflagrado, agora como general – não poderia ser ignorada por quem não viveu aquele acontecimento e desconhecia “o que foi e o que fez o documento, ou melhor, o papel sujo, o texto ardilosamente explorado e transformado na ‘prova’ da ameaça de uma subversão comunista”. “Não obstante a origem sabida e o autor conhecido, a finalidade verdadeira, fatos e pessoas desmascaradas logo que havia colimado o objetivo de apavorar a nação e arrancar do Executivo e do Legislativo o estado de guerra, a fraude permaneceu impune e os seus exploradores não foram punidos”, indignou-se.

Mourão Filho e seus cúmplices — o mais destacado deles o general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército — iludiram as Forças Armadas e violentaram o Congresso Nacional para lançar o país na trilha do absolutismo, denunciou Hélio Silva. Mourão filho era chefe dos serviços secretos da Ação Integralista Brasileira, condição na época só conhecida por não mais que cinco pessoas. Batizara o plano de “Cohen” por ser um sobrenome judaico comum, derivado de “Bela Kun”, nome de um conhecido dirigente da Internacional Comunista e do Partido Comunista da Hungria.

Os fios da trama começaram a aparecer em 28 de setembro de 1937, quando os jornais publicaram um comunicado de Góis Monteiro negando rumores de que projetava um golpe militar e realçando o apoio do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, à “obra de fortalecimento moral e material do Exército”. No mesmo dia, a Câmara dos Deputados aprovou a inserção do comunicado nos seus Anais e assegurou, “em nome da representação nacional”, a decisão de “colaborar em todas as medidas que se fizerem mister, em nome da pátria e da autoridade”. A proposta do Legislativo terminou expressando o desejo “de acolher as sugestões do Conselho Superior da Segurança Nacional, em tudo quanto toque às necessidades urgentes da ordem pública e da defesa das instituições nacionais”.

No dia 30, os jornais estamparam parcialmente um plano de ação comunista, também levado ao ar pela Hora do Brasil. O autor seria o Komintern, do alemão Kommunistische Internationale, a Internacional Comunista. O ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, estava em São Paulo e foi chamado com urgência ao Rio de Janeiro para apreciar o pedido de providências dos ministros militares ao presidente da República. Apesar de fazer a viagem de carro, chegou antes do anoitecer. Conversou demoradamente com Góis Monteiro, Dutra, o presidente da República Getúlio Vargas e o ministro da Marinha, almirante Aristides Guilhem. No mesmo dia, divulgou a mensagem solicitando autorização do Congresso Nacional para decretar o estado de guerra.

Levante de 1935

A perfídia do grupo vinha antecedida de palavras adocicadas. “Logo que assumi a pasta da Justiça e Negócios Interiores, e mercê de firme e sincera convicção formada pela evidência dos fatos que se apresentavam à observação, propus a vossa excelência, em exposição datada de 20 de junho, o levantamento do estado de guerra. Disse, então, que se abria novo período de funcionamento livre das instituições, numa atmosfera de tranquilidade sintomática de vitória da nação sobre seus inimigos, e que confiava na sabedoria do povo brasileiro, cumprindo a todos velar, com meios legais de ação, à preservação da ordem triunfante”. Em seguida, lia-se o que interessava: “Afirmam, entretanto, os excelentíssimos ministros da Guerra e da Marinha, em exposição dirigida a vossa excelência, que no momento atual, como em 1935, as ameaças do comunismo são evidentes e que não é possível que fiquemos inertes ante a catástrofe que se aproxima”.

Macedo Soares, alegando o disposto nos termos da Emenda Constitucional número 1, pediu que o presidente determinasse estado de guerra. A situação era grave, muito grave, segundo ele. O Estado-Maior do Exército havia desvendado o plano de ação dos comunistas, “um documento cuidadosamente arquitetado, cujo desenvolvimento meticuloso vem da preparação psicológica das massas ao desencadear do terrorismo sem peias”. Para ele, o diabo vermelho andava solto e para encontrá-lo não era preciso esforço. Macedo Soares disse que o plano incluía “a propaganda comunista”, que invadira “todos os setores da atividade pública e privada”. O comércio, a indústria, as classes laboriosas, a sociedade em geral e a própria família viviam em constante sobressalto.

Mas as portas teriam olhos e as paredes ouvidos, segundo a parola do ministro da Justiça. A polícia civil do Distrito Federal, mesmo após a vitória da lei sobre o Levante de 1935, não deixou nunca de acompanhar de perto a ação subversiva dos comunistas, garantiu ele. Apesar de toda vigilância, nenhuma prova foi apresentada. O debate no Congresso Nacional baseou-se somente na proverbial algazarra midiática e na declaração de Macedo Soares.

Em 10 de novembro de 1937, teve lugar o golpe de Estado que deu início ao chamado Estado Novo, com a promulgação da Constituição de 1937, elaborada e redigida em sua maior parte pelo ministro da Justiça, Francisco Campos (nomeado para o cargo por Getúlio Vargas dias antes do golpe e que mais tarde elaboraria também Atos Institucionais da ditadura de 1964), com a ajuda de líderes integralistas um ano antes. A Carta ficou conhecida como “Polaca” por ter sido baseada na Constituição da Polônia outorgada pelo marechal József Pilsudski, líder do golpe militar que o levou ao poder em 1921.

Hélio Silva constatou, amargamente, que “já se disse, mais de uma vez, que a história do Brasil tem sido assolada pela irrupção e pelas consequências de documentos falsos”. Lembrou que em 1921, por exemplo, a falsificação das famosas cartas do candidato presidencial Arthur Bernardes acabou capturando, por muitos anos, a indignação de grande parte dos atores políticos. “Os documentos falsos se notabilizaram exatamente quando produzem efeitos sensíveis, quando funcionam. Seria limitado demais, entretanto, restringir o estudo da história brasileira ao esquadrinhamento de papéis espúrios, à investigação de suas origens e de seu impacto”, afirmou.

Sociedade tecnológica

As similaridades dos motivos que deflagraram os golpes de 1937 e de 1964 se inserem naquilo que já foi chamado de “sociedade tecnológica”, conceito debatido desde que o capitalismo consolidou um patamar industrial desenvolvido. No Brasil ele chegou quando o povo já estava num estágio avançado de lutas sociais e políticas, processo iniciado em meados do século XIX quando a indústria começou a nascer efetivamente e, com ela, uma nova realidade social, dinamizada pelo desenvolvimento do comércio, dos bancos e do trabalho livre.

O fim do regime escravista foi fundamental para esse salto. As experiências industriais pioneiras de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, faliram exatamente porque surgiram quando ainda prevalecia o que Clóvis Moura chamou, em sua obra Dialética radical do Brasil negro, de “escravismo tardio”, que se deu após a abolição do tráfico internacional. Suas iniciativas não poderiam prosseguir em meio a um sistema de monopólio da terra – os grandes latifúndios –, que impedia a formação de um mercado interno. Mauá era a expressão da capacidade do povo brasileiro, mas não compreendeu que os escravos seriam a classe social capaz de superar aquele quadro de atraso, opressão e miséria.

Essa compreensão marcaria abolicionistas como André Rebouças, que via o latifúndio como o maior problema social brasileiro. Ela não poderia existir antes pelas características do “escravismo pleno”, na definição de Clóvis Moura, entre mais ou menos 1550 e 1850, precedido da escravidão indígena, que abrangeu todo o período colonial. Foram mais de trezentos anos que estruturaram e dinamizaram o modo de produção escravista no Brasil, determinando o comportamento básico das classes fundamentais da sua estrutura social – senhores e escravos.

Liberalismo escravista

A vinda de dom João VI para o Brasil em 1808 rompeu o monopólio colonial com medidas como a abertura dos portos, uma liberdade de comércio que fez crescer a importação de africanos, denominado por Caio Prado Júnior, em sua obra História econômica do Brasil, como “era do liberalismo”, sem acrescentar que era um “liberalismo escravista”, como observou Clóvis Moura. Para o autor de Dialética radical do Brasil negro, mesmo os movimentos contestadores que surgiram antes ou depois da Independência – como a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Sabinada de 1837 – não puseram em seus programas políticos a abolição da escravidão.

O “liberalismo escravista” satisfazia econômica e socialmente o sistema e ninguém pensava ou articulava um movimento que objetivasse substituí-lo por outro regime de trabalho. Clóvis Moura cita como exemplo José Bonifácio que, no processo da Independência, repelia qualquer ideia que criticasse, mesmo tangencialmente, a escravidão. Somente a Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de setembro de 1850 proibindo o tráfico de escravos – quase trinta anos após a Independência –, fez surgir o embrião de uma burguesia, que se consolidaria em 1889 com a proclamação da República, período denominado por Caio Prado Júnior como “o império escravocrata e a aurora burguesa”.

Em sua fase de “escravismo tardio”, a luta contra o sistema, após a Lei Eusébio de Queirós, começou a se ampliar, deixando de ser exclusiva do escravo negro. Na descrição de Clóvis Moura, logo após a Guerra do Paraguai, acontecimento que foi um modificador importantíssimo na desarticulação do “escravismo pleno”, as manifestações humanistas, emancipacionistas, sucederam-se e o silêncio foi rompido; a discussão sobre a substituição da escravidão pelo trabalho livre se dava à luz do dia.

Surgiram as primeiras medidas protetoras, como A “Lei do ventre livre” (1871), a “Lei dos sexagenários” (1885), a lei que extinguiu a pena de açoite (1886) e a lei que proibiu a venda separada de escravos casados. A evolução para a Abolição passou pela administração dos resultados econômicos da Guerra do Paraguai, que exauriu o país, obrigado a contrair dívidas e a entregar seu comércio exterior aos interesses do capitalismo britânico. Clóvis Moura relata que o escravismo em decomposição foi substituído pelo trabalho livre sob controle do bloco de poder que administrava dois problemas: a mão de obra e a terra.

Estrutura da sociedade

Sobre o trabalho, realizou-se um plano ideológico, interessado na vinda de imigrantes, e o latifúndio estava garantido pela Lei de Terras, de 1850, que regulamentou as grandes propriedades quando o tráfico de escravos foi proibido. Eram as estratégias de dominação daquelas classes que assistiram à “modernização” do sistema escravista no Brasil e procuravam, na transição, evitar mudanças na estrutura social, segundo Clóvis Moura. De acordo com ele, o surto imigrantista impediu o acesso da massa de ex-escravos, posta como sobrante no novo sistema.

Mas o modo de produção escravista, ao determinar o comportamento básico de senhores e escravos como classes fundamentais, legou contradições antagônicas nítidas, que perpassaram as etapas seguintes da estrutura social brasileira. A conjunção de acontecimentos que levaram à derrocada daquele sistema – a Independência, a Abolição e a proclamação da República – determinou o dilema que Clóvis Moura definiu como “revolução democrática-burguesa” e Nelson Werneck Sodré, em sua obra Introdução à revolução brasileira, chamou de revolução “sem o proletariado”, referindo-se à Revolução de 1930.

Clóvis Moura trata o conceito no âmbito da Abolição, segundo ele vista como “uma possível revolução democrática-burguesa”, o que seria “no mínimo ingenuidade”. O problema da revolução burguesa no Brasil, escreveu, era polêmico, “especialmente porque muitos dos que a abordam tomam como paradigma as revoluções burguesas europeias como se tivéssemos de repeti-las aqui, na época do imperialismo e no contexto de uma sociedade que tinha até cem anos atrás como forma fundamental de trabalho a escravidão e as instituições correspondentes”.

A Abolição, na análise de Clóvis Moura, não mudou qualitativamente a estrutura da sociedade. O senhor de escravos foi substituído pelo fazendeiro de café. Cristalizaram-se, também, as oligarquias do Norte e do Nordeste, igualmente apoiadas no monopólio da terra, como os antigos senhores de escravos. A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre não mudou as estratégias de dominação antecipadamente estabelecidas, impedindo que o antigo escravo entrasse como força de trabalho na dinâmica desse processo, mesmo como força secundária.

Ao escravismo que imperou até às barbas do século XX se somou o extermínio da população originária, o índígena, que, segundo Darcy Ribeiro, teve uma fase genocida entre 1900 e 1957 e que segue vítimas de garimpeiros e empresas transnacionais. Como lembra Clóvis Moura, os índios destribalizados se incorporaram aos camponeses pobres e são também perseguidos, expulsos das terras e assassinados. Aquilo que o jurista Dalmo de Abreu Dallari definiu como desenvolvimento econômico contra o índio, não com o índio.

Uma nova configuração social do povo trabalhador formou-se em meio a esse conjunto de transformações. Foi o período em que a acumulação cafeeira obteve lucros que superavam a capacidade de investimento no setor. Esse capital deslocou-se para a indústria, que se concentrou em São Paulo e Rio de Janeiro, facilitando a organização dos trabalhadores e suas lutas. Houve uma explosão de manifestações e uma evolução natural para níveis de organização mais elevados, como a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, que trouxe para o movimento sindical uma política de unidade classista.

Relações de trabalho

A Revolução de 1930 promoveu uma série de regulação das relações de trabalho, mas, quando o governo de Getúlio Vargas passou a flertar com o nazifascismo, começou-se a organizar um movimento amplo, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que liderou a Insurreição de 1935. A derrota e a repressão varguista levaram à escalada autoritária que se consolidou com o golpe de 1937. A política ampla dos comunistas fez o PCB reentrar como protagonista na cena política no combate ao nazifascismo, possibilitando o enterro do Estado Novo com a Constituinte de 1946.

Mas a “sociedade tecnológica” já era forte e uma nova onda anticomunista foi deflagrada pelo governo do general Eurico Gaspar Dura, eleito em 1945. O registro e os mandatos do PCB foram cassados em 1947 e 1948, respectivamente, em meio a mais uma gigantesca onda anticomunista puxada pela mídia.

O conceito de “sociedade tecnológica” já foi definido como “sociedade industrial”. Seria a influência do complexo científico-tecnológico na sociabilidade, uma mudança de paradigmas com base em novas tecnologias, que estariam servindo de instrumentos do capital contra as ideias emancipacionistas dos trabalhadores. Hoje ela é mais forte do que nunca.

O historiador Eric Hobsbawm diz que não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra começou. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, houve uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.

Direito à propriedade

Seus primórdios se encontram na formulação de Saint-Simon, pensador francês e socialista utópico, de que a industrialização como estágio mais recente da humanidade exigia uma nova organização social, tese depois acolhida por Auguste Comte, entre outros. A ideia de uma nova organização social ganhou cientificidade na teoria de Karl Marx e Friedrich Engels. Para o pensamento marxista, as liberdades políticas conforme enunciadas na doutrina francesa dos Direitos Humanos de 1789, apesar do seu valor histórico, constituem uma hierarquia de direitos.

De acordo com a Constituição Francesa de 1793, o direito à propriedade privada permite a cada cidadão o gozo e a disposição (…), conforme ele deseja, de seus bens e rendas, dos frutos de seu trabalho e atividade. Na expressão “conforme ele deseja” está implícita a ideia de que cada um deve ver o seu semelhante como inimigo, um objeto obstaculizando os meios de aquisição ou manutenção da propriedade. Alguém só pode defender o direito à propriedade se possuir propriedade, disse Karl Marx em O Capital. De outro modo, o direito se torna vazio e faccioso. Ou seja: cada indivíduo deve ter como objetivo assegurar a sua propriedade.

Cada um dos outros direitos, segundo a análise de Marx, deve ser compreendido como subserviente ao direito à propriedade. “Assim como os indivíduos expressam suas vidas, assim eles são. O que eles são coincide com sua produção, tanto o que eles produzem quanto como produzem”, escreveram Marx e Engels. Este relacionamento recíproco determina o estado do homem durante qualquer período histórico, porque é a partir de suas produções que ele transforma o mundo. No modo privado de produção, diz Marx, o homem é desumanizado mentalmente e fisicamente – síntese fundada na expressão “trabalho alienado”.

Combate ao comunismo

Há ainda a contradição da tecnologia com as relações de produção. “Sob sua forma máquina (…), o meio de trabalho se torna imediatamente o concorrente do trabalhador. A máquina cria uma população supérflua, isto é, inútil para as necessidades momentâneas da exploração capitalista. (…) Em determinado grau de desenvolvimento, um progresso extraordinário na produção pode ser acompanhado de uma diminuição não só relativa como absoluta do número de operários empregados”, escreveu Marx em O Capital.

No artigo Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels diz: “É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob a pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano (…). A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a produção. A colisão torna-se inevitável.”

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels escreveram: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção”. Essa contradição teria uma evolução para um sistema social, político e econômico mais avançado.

Engels, no prefácio ao livro A luta de Classes na França, de Karl Marx, disse: “A ironia da história põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘revoltosos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com os meios ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles mesmos se chamam, vão a pique com a legalidade criada por eles mesmos. Exclamam desesperados, como Odilon Barrot: ‘La legalité nous tue’ (A legalidade nos mata), enquanto nós ganhamos, com essa legalidade, músculos vigorosos e faces coradas. E parece que fomos tocados pelo sopro da eterna juventude e, se não somos tão loucos para nos deixarmos arrastar ao combate de rua simplesmente para satisfazê-los, não terão afinal outro caminho senão romper eles mesmos com a legalidade que lhe és tão fatal.”

O combate ao comunismo foi constatado por Marx e Engels já no que é considerado o primeiro documento programático do marxismo, o Manifesto do Partido Comunista. “Todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele (o espectro do comunismo): o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Qual partido de oposição não foi qualificado de comunista por seus adversários no poder? Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou de volta a acusação de comunista, tanto a outros opositores mais progressistas quanto a seus adversários reacionários?”, escreveram na abertura do texto.

Conceito de liberdade

Esse combate remete ao conceito de liberdade, o mais manipulado na guerra ideológica da direita. Além dos epítetos de baixa intensidade, há a indução ao senso comum de que a “sociedade tecnológica” satisfaz plenamente a liberdade, sem considerar a variedade de necessidades de cada grupo ou camada social. A definição filosófica de liberdade é antiga, sempre associada à igualdade. Para existir a liberdade, é preciso existir a igualdade. Aristóteles, o maior pensador da antiguidade, em seus estudos sobre a lei do valor, descobriu que as mercadorias têm dois valores – um de uso e outro de troca.

Mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, disse Aristóteles. Qual seria a medida dessa igualdade? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século XVIII, pelo estudo do economista clássico inglês David Ricardo – o que há de igualdade é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias. Marx diz em O Capital que Aristóteles era filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo. A compreensão da igualdade de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas. A partir do memento em que a igualdade política se afirmou.

Foi a Revolução Francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental: todos os homens são iguais. Adam Smith, outro economista clássico inglês, considerado o pai do pensamento liberal, também falou do assunto em sua obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, publicado em 1776, ao defender a mão invisível do mercado como meio para a livre concorrência de todos os capitalistas na busca do equilíbrio da sociedade. Ele recomendou que os empresários não frequentassem o mesmo clube para evitar a tentação de se associarem em monopólios. Adam Smith estava dizendo que a liberdade não é um conceito absoluto e precisa da igualdade.

É óbvio que essas ideias pouco têm a ver com o capitalismo em sua fase superior, o imperialismo, como bem demonstrou Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917. As estruturas de classes nas sociedades contemporâneas já não são nem sombra do que foram quando o capitalismo deu seus primeiros passos, como sistematizou Lênin na obra Imperialismo, fase superior do capitalismo. A liberdade nesse sistema é propagada como introjeção de necessidades que atendem mais à reprodução e à acumulação de capital do que ao bem-estar social.

Essa evidente contradição faz os cérebros que comandam a mão invisível do mercado, agora hipertrofiado pelo sistema financeiro, mobilizarem o aparato tecnológico – e todos os seus recursos disponíveis – que está em seu poder para manter as instituições a seu serviço. As formas de controle social se expandem com o caráter global dessa hipertrofia, mantendo a ideia de que existe um inimigo contra o qual é preciso mobilizar todas as forças. A imagem do adversário é inflada para que seja apresentado como inimigo total, uma ameaça à sociedade da “liberdade”.

A dilatação máxima dessa imagem cotidianamente, 24 horas por dia, é imposta de todas as formas e por todos os meios. Os prognósticos mais tenebrosos são atirados ao público de todas as formas possíveis — pela televisão, pelas rádios, pelos jornais, pelas revistas, pela internet e até por seitas religiosas, para não falar nas consultorias, departamentos de análise de bancos, institutos de pesquisa e por aí afora. A ideia é forjar razões para que o inimigo seja asfixiado e não conteste o status quo.

Autoridades coloniais e imperiais

As formas hoje são outras, mas o conteúdo e os objetivos são os mesmos de sempre. O livro de Suzanne Labin, por exemplo, foi largamente difundido quando Lacerda a trouxe para o Brasil. O convide do governador da Guanabara tinha uma extensa agenda de conferências sobre “as táticas de infiltração comunista no mundo livre”, segundo suas declarações aos jornais. Seu périplo incluía São Paulo e outros estados, em pregação “democrática e anticomunista”.

Circulou a informação de que a embaixada dos Estados Unidos teria mandado, junto com os convites para um coquetel aos 41 novos diplomatas formados pelo Curso Rio Branco, três livros, sendo dois deles de Suzanne Labin, um dos quais Em cima da hora. Os jovens recém-formados retribuíram a gentileza comparecendo ao coquetel na sede da embaixada dos Estados Unidos. O secretário-geral do Instituto Rio Branco, Hélio Scarabotolo, declarou não ser verdade que a embaixada tinha presenteado os diplomatas, mas confirmou que os livros foram distribuídos, sem saber quem os enviou ao Itamaraty.

Uma das conferências de Suzanne Labin foi na Escola Superior de Guerra, onde ela declarou que “os comunistas, no plano militar, ensinavam os soldados a conquista do espírito” e que, “ao contrário do que acontece com os democratas, quando querem empreender uma conquista, mandam antes seus agentes para minar a opinião pública, a fim de poderem, mais tarde, com grandes facilidades, fazer a conquista”. O livro foi um sucesso de vendas, a julgar por uma notícia do Jornal do Brasil de que Lacerda comprou um sítio com o dinheiro ganho com a tradução.

Segundo um anúncio comercial nos jornais, “tudo o que estava acontecendo no Brasil foi previsto neste livro admirável”. “Compreenda a que ponto chegou a infiltração comunista do governo (João) Goulart e para onde nos querem levar”, completava. A revista O Cruzeiro, do então poderoso grupo de mídia “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, publicou uma matéria de capa sob o título Suzanne Labin declara guerra ao comunismo. O golpismo fervilhava na mídia. A criação da “Cadeia da democracia” formalizou um cartel da conspiração, unindo as rádios Jornal do BrasilGlobo e Tupi.

Depois do golpe, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, falando ao jornal O Estado de S. Paulo, afirmou que “a revolução de 64” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coreia”. O primeiro ditador-presidente, Castello Branco, ofereceu um jantar ao adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Gordon e Walters organizaram uma rede de ativos conspiradores que criaram uma profusão de organizações e movimentos de extrema direita.

Meridiano primevo

O povo brasileiro sempre se insurgiu contra esses arbítrios. As autoridades coloniais imperiais — como os donos do poder hoje em dia —, ao punirem com tamanho rigor os combatentes do povo, sabiam quem estavam enfrentando. Os que até hoje perseguem e caluniam lideranças populares são os legatários dos governadores gerais, ou vice-reis, que pensavam a mesma coisa de Zumbi dos Palmares, de Tiradentes, de Felipe dos Santos, dos Alfaiates da Bahia de 1798, dos republicanos do Nordeste de 1817 e 1824, que lutaram movidos pelas ideias da Revolução Francesa e da Independência Americana.

A síntese do pensamento de ontem e de hoje dos algozes do povo brasileiro está na forma como o barão de Cotegipe (um dos líderes do Partido Conservador, eleito senador pela Província da Bahia e presidente do Senado de 1882 a 1885) se referiu às multidões entusiasmadas que assistiam às sessões do parlamento durante a votação da Abolição: o Império libertou uma “raça”. Essa “raça” teve ainda em suas fileiras os camponeses de Canudos, do Contestado e legou para a história do povo brasileiro vultos notáveis de líderes populares como Borges da Fonseca, Frei Caneca, Cipriano Barata e tantos outros, valentes, combativos e que tinham um norte definido. Todos odiados pelos inimigos do povo.

Na punição à “Inconfidência Mineira”, por exemplo, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer da execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade —, eles tinham perfeita consciência de que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas.

Esse protagonismo do povo sempre foi inaceitável para os que se consideram donos do poder. Todas as atrocidades praticadas por eles se deram em nome da lei e da ordem. ”Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe”, escreveu Karl Marx. A lei universal desses algozes foi bem traduzida pela fina ironia do escritor George Bernard Shaw referindo-se aos racistas do Sul dos Estados Unidos: primeiro, reduziam os negros à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. No Brasil, essa imagem aparece com nitidez nas gravuras de Jean Baptiste Debret e nas páginas de José Lins do Rego.

Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso. A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país.

Os donos do poder não aceitam outra posição do povo, senão a completa subordinação. Eles são movidos pelos mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre a larga porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela. A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis.

Por esse plano, a metrópole doou três milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento.

A dívida que o país acumulou com seu povo que ainda vive as sequelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas capitanias hereditárias, pelos donatários de dom João III, e mantidas por gerações de sucessores só poderá ser paga numa intervenção movida por espírito político radicalmente novo. Seria algo capaz de mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a brasileira.

A raiz das coisas

A realização do progresso social pressupõe a via democrática, o respeito às leis, especialmente as que contemplam os direitos dos trabalhadores tornados cidadãos. Da mesma forma, os movimentos e organizações sociais devem ser vistos como entes estruturais da dinâmica progressista do país. Mais ainda: não se pode falar em democracia quando a cidadania é afrontada no seu direito de votar e de ser votada. Isso quer dizer que todos devem ter as mesmas condições de exercer o poder, votando ou sendo votado, para estabelecer as conexões entre seus atos e as estruturas constituídas.

Esse conceito de democracia põe em evidência o exercício dos direitos legais, a prática das decisões de alcance político e a formação da consciência cidadã. Uma democracia de massas, com o povo se organizando em partidos políticos e entidades associativas, é a antítese da trama de golpes palacianos. A própria tradição republicana brasileira é essencialmente progressista — nenhum presidente da República elegeu-se com o voto popular prometendo claramente defender a plataforma ideológica da direita. Na história do Brasil, existem muitos exemplos de governos odiados pelo povo por prometer uma coisa e fazer outra.

Em contrapartida, todos os presidentes que cumpriram — ou tentaram cumprir — o que prometeram foram atacados pelas oligarquias. Os conflitos políticos surgem dessa dicotomia povo-elite. Toda a nossa história mostra que a República é vista pela ampla maioria da sociedade como a negação do poder oligárquico e sinônimo de independência nacional — um movimento que marcou profundamente o século XX no país.

Se há interesses antagônicos em uma sociedade, como é o caso brasileiro, há também a disputa política expressa por meio do embate entre os partidos, que refletem as concepções de um ou outro conjunto de forças sociais. Numa perspectiva republicana, portanto, governos democráticos levam a sério o papel dos partidos e respeitam o voto do cidadão. A negação dessa obviedade cerceia a manifestação democrática do povo e nega os ideais republicanos.

O regime dos golpistas de 1964 representou o anticlímax do processo de aceleração da industrialização do país, que ampliou a infraestrutura de serviços básicos orientada para a integração do mercado nacional nos anos 1950, um processo que nasceu com a Revolução de Getúlio Vargas, em 1930, quando o país entrou numa fase de desenvolvimento e de rápida urbanização. Uma onda de otimismo se espalhou com a criação de perspectiva e de esperança, mesmo com os maiores benefícios concentrados nas mãos de uma minoria.

Somente com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2003, o país voltou a ter a respeitabilidade que não tinha desde os tempos de Juscelino Kubitschek, Brasília e a Bossa Nova, substituídos pelas turbulências do governo Jânio Quadros e pelo golpismo contra João Goulart. A eleição de um projeto popular engendrado num curso histórico de enfrentamento com a ditadura militar, e que passou por movimentos como as Diretas Já!, a Frente Brasil Popular, o Fora, Collor! e o combate ao neoliberalismo, trouxe o Brasil de volta ao respeitável clube dos países que prezam seus interesses acima de tudo. Havia pelo menos três gerações de brasileiros que não sabiam o que era isso.

A eleição de Lula representou o resgate dos ideais de governos que combateram as injustiças brutais que sempre reinaram por aqui, um processo abortado pela marcha golpista e pelos desdobramentos do golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, agora com o desafio de ser restaurado com a eleição de Lula em 2022. Quase na virada para o século XX — apenas há pouco mais de 100 anos —, o país era monarquista e escravocrata, uma miscelânea de mazelas. Mesmo trocando a monarquia pela República, a estrutura social se manteve. Essa trajetória explica por que ainda uns detêm muito e muitos não têm coisa alguma. Só não está pior porque o Estado, em determinados períodos, preocupou-se com a industrialização do país.

Vil tristeza do jaburu

Assim o Brasil pôde entrar numa era de realização do ideal republicano, o processo de superação do conservadorismo constatado já nos primeiros anos de vida da República, como demostra a literatura dos explicadores do Brasil daquela época. O próprio Rui Barbosa, que participou da elaboração da Constituição de 1891, apontou os limites da República presidencial quando ela se afasta da vontade popular. Para ele, a onipotência do Congresso Nacional e o arbítrio do Poder Executivo, apoiados na irresponsabilidade das maiorias políticas, criavam uma situação autocrática. Somente “a majestade da Constituição escrita, interpretada, em última alçada, por uma magistratura independente”, poderia contrabalançar tal poderio perverso. Como lembrou Oliveira Vianna, Rui Barbosa, na defesa dos direitos do cidadão, pela doutrinação do habeas corpus, soube conter os poderes dentro dos limites da justiça e do respeito à lei.

Essa conquista, ainda nas palavras de Oliveira Vianna, muito vale em um país “sem tradição de respeito à lei e ao direito”, tese de Rui Barbosa, um dos fundadores e organizadores da República, que seria a base da ideologia do progresso nacional, desejo das novas camadas sociais que emergiram antes mesmo do fim do Império. Na contramão dessa ideologia, como atestou o militante republicano Alberto Sales em artigo intitulado Balanço político — necessidade de uma reforma política, publicado no jornal O Estado de S. Paulo nos dias 18 e 26 de junho de 1901, citado por Carlos Henrique Cardim no livro A raiz das coisas, estava o fracasso do ideal republicano.

Para ele, “ao cabo de uma experiência tão curta” já se via a República convertida, “para descrédito das instituições e a infelicidade de nossa pátria, na mais completa ditadura política”. Aplicava-se, já na época, o famoso “sorites” de Nabuco de Araújo sobre o Império: “O presidente da República faz os governadores dos estados, os governadores fazem as eleições, e as eleições fazem o presidente da República”. Segundo Alberto Sales, a consciência nacional deveria pronunciar o seu julgamento de que “a máquina política montada em 15 de novembro de 1889 já teve tempo preciso para fazer a sua experiência” e que era necessário “dizer com franqueza o que ela é, e o que deve ser”.

Confrontar o ideal republicano com a realidade, após dez anos de regime, disse, “é reconhecer com amargura que a estrutura política que levantamos, cheios de entusiasmo e fé, sobre os destroços do antigo regime, não tem sido mais que uma longa decepção, um desengano mortificante às nossas mais ardentes aspirações”, querendo dizer, como era voz corrente entre importantes figuras do republicanismo, segundo Carlos Henrique Cardim: “Essa não é a República de nossos sonhos”.

Contudo, cumpre observar que Alberto Sales era um analista de uma sociedade recém-saída do trabalho escravo. A compreensão mais exata do ideal republicano só pôde existir quando ele se firmou pelas experiências, embora esparsas, dos governos progressistas. E todas elas resultaram de movimentos de massas, acontecimentos que infundem consciência política e despertam amplos setores para a importância de ações políticas com objetivos bem definidos.

Mas nem por isso o pessimismo de Alberto Sales deixou de se manifestar; ele se deve à atualidade da visão de Capistrano de Abreu sobre o Brasil da negação das aspirações republicanas das duas primeiras décadas do século XX, mais presente do que nunca, traduzida em sua proposta de transformar o jaburu em símbolo nacional. “O jaburu (…), a ave que para mim simboliza a nossa terra, tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela austera e vil tristeza”, escreveu ele.

Ruy Castro, exploda-se

Por Osvaldo Bertolino

Em sua coluna na Folha de S. Paulo nesta quarta-feira (14), Ruy Castro dá o título Maduro, exploda-se. Ponho o texto de cabeça para cima e troco o personagem para expressar melhor o conteúdo.

As opiniões de Ruy Castro sobre as atas que que estão disponíveis no sistema de Justiça da Venezuela, de acordo com sua institucionalidade democrática, equivalem aos caminhões de nitroglicerina do filme O Salário do Medo

Um dos grandes momentos do cinema europeu de todos os tempos é um filme francês, O Salário do Medo (Le Salaire de la Peur), de 1953, dirigido por Henri-Georges Clouzot. A história se passa num vilarejo perdido na Venezuela, controlado por uma companhia de petróleo e, mesmo assim, mantido em indescritível miséria. Entre seus habitantes, há quatro estrangeiros condenados a apodrecer ali por falta de opções.

E, então, eles ganham uma oportunidade: US$ 2.000 para cada um pelo transporte de dois caminhões de nitroglicerina para uma cidade a 150 km. É, com trocadilho, um caminhão de dinheiro. O problema é chegarem lá. Os 150 km consistem de estradas esburacadas, curvas fechadas quase impossíveis de fazer, pontes de madeira que ameaçam desabar ao peso do líquido dentro dos tanques, precipícios que surgem de repente e tudo mais que, com um peteleco, pode fazer os caminhões irem pelos ares.

Os quatro personagens, dois franceses, um alemão e um italiano, são homens duros, violentíssimos. Os atores que os interpretam —respectivamente, Yves Montand, Charles Vanel, Peter van Eick e Folco Lulli— também eram. A história da filmagem, toda em externas no sul da França e sob terríveis condições, fala deles saindo aos murros uns contra os outros e contra o diretor Clouzot. O filme retrata isso. São 147 minutos de tensão quase insuportável, com os caminhões a 10 por hora, como duas bombas sobre rodas.

Imagino Ruy Castro nessa mesma Venezuela, conduzindo um caminhão de nitroglicerina – as atas da votação, forjadas e fraudadas por Maria Corina Machado e Edmundo Gonzáles, prestes a explodir se não forem reveladas. E, se forem, também. A estrada, bombardeada pelos países que sabotam a democracia e por “jornalistas” goebbelianos, não pode estar mais esburacada. A esta altura, ele não tem mais alternativa: ou prende o país inteiro ou é ele próprio quem vai preso.

Não leve a mal, Ruy Castro, mas queremos que você se exploda.

– Gabriel Galípolo e o galinheiro do Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

Atual diretor de política monetária e provável futuro presidente do Banco Central assume discurso dogmático do projeto neoliberal. Resta saber se é recuo tático ou rendição.

Num evento da Warren Investimentos, organização do mundo da especulação financeira, na segunda-feira (12) em São Paulo, Galipolo disse que a alta da taxa básica de juros é uma possibilidade que está na mesa do Comitê de Política Monetária (Copom). “Enquanto diretores do Banco Central, nós vamos perseguir a meta, isso com custo maior ou custo menor, segundo variáveis que não temos controle”, afirmou. “Espero que daqui a alguns anos possamos falar que a política monetária do Brasil é muito mais em função do arcabouço legal e institucional desenhado para a política monetária do que da idiossincrasia de um diretor A ou B”, completou.

Arcabouço legal e institucional pressupõe regras bem mais amplas do que a famigerada Lei de Responsabilidade Fiscal – corretamente chamada por José Alencar, vice-presidente da República do primeiro governo Lula, de lei da “irresponsabilidade fiscal” –, espécie de camisa de força que molda fórmulas como essa proclamada por Galípolo e amarra o país à estagnação do crescimento econômico e à paralisa do desenvolvimento. Funciona como cortina de ferro que separa o arcabouço legal e institucional dos interesses privados governados de maneira autocrática pelo Banco Central “independente”, que opõe sérias resistências – ou mesmo impossibilidades – para o governo priorizar investimentos públicos e sociais.

O impasse vem da ditadura militar, com o fracasso do “milagre econômico”, agravado pelo projeto neoliberal, sobretudo após o arcabouço do Plano Real. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pouco lembrada atualmente, é a fonte desses dilemas e de patetices panfletárias, a exemplo do que disse Pedro Malan, ministro da Fazenda dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), também na segunda-feira (12), num evento do mundo financeiro chamado Finance Of Tomorrow: “A sociedade brasileira hoje não permitirá que nenhum governo tenha uma atitude excessivamente leniente e complacente acerca da inflação.”

Esfriamento da economia

Por trás dessa retórica vazia está a preservação dos privilégios conquistados pelo mundo das finanças na “era FHC”. Esse dogma  autoritáro e excludente é uma tendência que vem do golpe militar de 1964. Os economistas que assumiram o controle chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio”: produto de fantasia; devaneio, utopia. Gustavo Franco, presidente do Banco Central na “era FHC”, repetiu a ladainha ao dizer que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso.

Tempos depois, já no primeiro governo Lula, outro ideólogo do arcabouço neoliberal do Plano Real, Luiz Carlos Mendonça de Barros, criticou, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, “o consumo das famílias e os gastos do governo”, responsáveis pelo “nível de absorção interna de bens e serviços”, segundo ele indutores da inflação. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

Seguir à risca esses mandamentos é repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, atribuída a Delfim Netto. Aquela análise monetária-culinária já desconsiderava o princípio de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento nacional, de que conceitos monetários não podem determinar a política econômica de maneira absoluta. Era a linha que estava trocando a fase em que o Estado deu prioridade ao crescimento de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais), adotado sobretudo pela “era Vargas”, pela acumulação financeira.

As consequências foram um longo período de inflação alta, concentração de riqueza e crescimento econômico pífio, sem melhoria dos serviços básicos e sem integração dos milhões de brasileiros que viviam à margem da cidadania e do poder aquisitivo na dinâmica social e econômica do país. Passaram ao largo da premissa de que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento e da sua variada relação de causas e efeitos monetários e estruturais, a afirmação de teses ditas únicas que apresentaram resultados melancólicos.

O desmentido de promessas feitas em tom de profecias, fez crescer as evidências de que o país tomara o caminho errado, mesmo na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci enveredando pelo caminho neoliberal. Eram os “ortodoxos de galinheiro”, na definição do economista Paulo Batista Nogueira Júnior. E seguem incorrendo na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Para eles, a gestão da economia só pode dar resultados positivos se estiver submetida às suas elucubrações.

Ilha da fantasia

O reinado absoluto de Palocci repetiu o viés autoritário dos “ortodoxos” da ditadura militar e da “era FHC”, a ponto de bater de frente até com o vice-presidente da República, José Alencar, crítico ferrenho da acumulação financeira via elevação da taxa de juros pelo Banco Central a pretexto de combater a inflação. “A Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura de bater na taxa de juros. Essa censura existe, tenho sofrido e sido vítima dela”, disse ele numa palestra para empresários na Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Essa gestão macroeconômica é um mundo separado dos reais problemas do país, no qual a razão cede lugar à adivinhação, à cartomancia, uma ilha da fantasia. Ao longo de sua vigência, o que se viu foi uma elite ignorando completamente a racionalidade econômica para justificar, com argumentos matemáticos, a diminuição de suas obrigações diante do Estado e assim se eximir de suas responsabilidades perante a coletividade, abusando do caixa do Estado, principalmente por meio da alta taxa de juros.

A arrogância dos arautos dessa teoria, somada à monopolização dos meios de comunicação pela mídia cartelizada e corrompida, dificulta um debate às claras sobre qual seria o melhor caminho para o Brasil. Esse samba de uma nota só ganhou superpoder com a “independência” do Banco Central, um dos principais itens do programa do golpe do impeachment fraudulento contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, entregue à autocracia protegida pela impunidade garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, um mundo à parte, privado, regido pela farra financeira, com a tese farsesca da “despolitização da moeda”. Isso remete ao problema do Estado, que deve ser visto como instrumento para atender aos interesses da nação, e não atentar contra eles.

– Lula e os dilemas de Delfim Netto

Ì

Por Osvaldo Bertolino

Economista falecido nesta segunda-feira (12) transitou de feroz defensor do desastrado “milagre econômico”, surgido no âmbito do terrorista AI-5, para crítico da radicalidade neoliberal.  

Em sua coluna de 7 de maio de 2003 no jornal Folha de S. Paulo, Delfim Netto mencionou um seminário sobre “Economia socialista” promovido pela Fundação Perseu Abramo em 2000 no qual Luiz Inácio Lula da Silva teria dito, num depoimento espontâneo, que “o ser humano é eminentemente competitivo”. “À medida que se bloqueia a capacidade competitiva do ser humano e que se colocam todos para ganhar a mesma coisa dentro de uma fábrica, cortam-se as possibilidades de sucesso daquela fábrica. As pessoas são niveladas por baixo e não por cima. O socialismo não conseguiu resolver esse problema”, disse Lula, segundo Delfim.

Era uma simplificação vulgar do conceito de socialismo, mas a fala agradou aos ouvidos de Delfim. Lula teria dito ainda que “o mercado só funciona se houver um Estado muito forte regulando-o e obrigando-o a cumprir algumas cláusulas sociais”. “Só o mercado não resolve. Compatibilizá-lo com um Estado regulador, capaz de garantir que ele atenda a todas as necessidades das pessoas, seria o ideal. Como fazer isso é o desafio que está colocado para o PT”, prosseguiu Lula.

Delfim conclui: “Por que desconfiar que há 30 meses, num seminário acadêmico reservado, o futuro presidente estivesse escondendo o seu verdadeiro pensamento quando afirmava com todas as letras e até com certa rudeza na presença de intelectuais (…) que o PT não é um sonho, mas um instrumento político para construir, pragmaticamente, uma sociedade com liberdade, igualdade e justiça, combinando o ‘mercado’ com a ação do Estado? Por que, afinal, insistir na crítica a um suposto descumprimento de um programa abandonado? Todos os partidos querem uma sociedade eficiente, que utilize o mercado, garanta as liberdades individuais e reduza as desigualdades. Nós (os não-petistas) tivemos a nossa oportunidade de construí-la com resultados medíocres. É a vez de o PT tentar! Vamos criticá-lo quando errar nessa construção.”

Nova economia brasileira

Na essência, o PT não errou a ponto de receber críticas de Delfim, conforme prometera na condição de ungido por ele mesmo como oráculo da economia brasileira. Mas ele não deixou de avaliar criticamente o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Aparentemente, aquela certeza de que a sua política econômica dos tempos da ditadura militar salvaria o país não existia mais. O Brasil havia pagado um alto preço pela opção de receber os dólares empurrados pelas baixas taxas de juros internacionais para fazer o “milagre econômico” e pagá-los a juros exorbitantes, política que levou o país ao caos econômico e social no começo dos anos 1980.

O “milagre econômico” representou uma afluência excludente – a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de uma sociedade industrial e a outros apenas a cota de sacrifício necessária àquele salto econômico. Aquele modelo econômico colapsou preso às contradições de uma violenta concentração de capital, produzindo insuportáveis mazelas sociais. Um dado revelado em 1974 pelo senador de oposição do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de São Paulo, Franco Montoro, eleito em 1970, dava bem a medida das dimensões da crise – em dez anos, o Produto Interno Bruto (PIB) crescera 56% e o salário-mínimo caíra 55%. Ou seja: a riqueza nacional aumentou quase na mesma proporção do empobrecimento da classe trabalhadora.

A ideia daquela política econômica está no livro A Nova economia brasileira, de Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, que, com Delfim, comandaram a economia na ditadura militar. Os objetivos básicos eram o combate à inflação, o reequilíbrio do balanço de pagamentos e a criação de bases sobre as quais deveria ocorrer o desenvolvimento de longo prazo, tese que ficaria bem mais conhecida com o arcabouço do Plano Real, adotado em 1994 para dar forma e conteúdo ao projeto neoliberal. Ou seja: primeiro vem a “estabilidade monetária” para surgir o crescimento econômico impulsionado por investimentos privados e só então haveria as condições para se distribuir a produção.

O Brasil pós-milagre

O livro apresenta o dilema: produtivismo ou distribuitivismo? “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram. O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista – que se tornou popular quando Delfim afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. A forma seria, basicamente, o arrocho salarial. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, o economista desenvolvimentista Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”

Um caso emblemático ocorreu em meados de 1977 quando o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) descobriu que 120 mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP) haviam perdido 34,1% de poder aquisitivo nos salários em consequência da compressão nos índices de custo de vida, determinada em 1972, 1973 e nos primeiros meses de 1974 por Delfim, então ministro da Fazenda.

Outras categorias também foram atingidas. Mais de 10 mil jornalistas do estado de São Paulo foram lesados em 12% e cerca de 100 mil bancários viram seus salários reajustados em 17,8% a menos do que o índice de inflação. O estudo do Dieese desencadeou um movimento vigoroso para pressionar o governo pelo ressarcimento do prejuízo. Catorze sindicatos paulistas e outros tantos de outros estados iniciaram, em agosto de 1977, a campanha pela reposição daquelas perdas. Reuniões e assembleias se espalharam pelo país. Outros sindicatos também consultaram o Dieese.

Estopim para as greves

Tudo começou quando a revista Conjuntura Econômica, de julho daquele ano, divulgou a revisão das contas nacionais feita pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) — ligado à Fundação Getúlio Vargas. A revisão apontou um aumento de 20,5% no custo de vida de 1973, e não de 13,7% como fora divulgado.

O substituto de Delfim, Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério da Fazenda em março de 1974, reconheceu o erro em relatório enviado ao presidente da República, general Ernesto Geisel, e publicado pelo jornal Gazeta Mercantil. “Em 1973, o governo, procurando aproximar-se da meta de 12% de inflação, reprimiu ao máximo possível os aumentos de preços via tabelamento e controle (…). Assim, o índice, em dezembro de 1973, registrava a carne de primeira ao preço de 6,60 cruzeiros, quando o preço no mercado paralelo se situava em torno de 14 cruzeiros, ou seja, 112% a mais (…). Se os cálculos fossem corrigidos para tomar por base os preços reais do mercado e não os preços oficiais das tabelas, o aumento global do custo de vida em 1973 subiria 26,6%”, explicou o ministro.

Foi o estopim para as greves de 1978, retomadas dez anos após a ofensiva da ditadura contra os trabalhadores em 1968, a perseguição aos operários que desafiaram o regime com grandes paralisações em Contagem e Belo Horizonte, Minas Gerais, e em Osasco, São Paulo, na conjuntura da edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), o chamado golpe dentro golpe que desencadeou oficialmente o terrorismo de Estado, do qual Delfin foi um dos signatários. As greves ganharam volume e passaram a fazer parte da luta que levaria ao fim da ditadura em 1985.

Produtividade do trabalho  

Delfim foi um dos personagens centrais desse período. Com a disparada da inflação, os aumentos salariais acima do índice oficial do governo começavam a despertar a atenção dos trabalhadores. Segundo a lei salarial vigente à época, o item produtividade deveria ser solucionado entre as partes. Delfim, agora ministro do Planejamento depois de ter passado pelo Ministério da Agricultura, afirmara à revista IstoÉ que, após o reajuste automático dos salários previsto na lei, “eles poderão sentar à mesa e discutir à vontade o aumento da produtividade”. E acrescentou: “Há sérias dúvidas sobre como vai funcionar isto ou aquilo, as pessoas ficam preocupadas com a forma de calcular a produtividade sem deixar de entender que essa é a discussão verdadeira, que se trata de sentar-se à mesa para discutir a distribuição funcional da renda. E vai aprender, na minha opinião. Todos vão aprender.”

A questão era delicada para os empresários. A produtividade do trabalho – criação de mais valor por hora trabalhada – crescia verticalmente e eles temiam que esse mecanismo levasse os trabalhadores a autocontrolarem o processo por meio da organização nos locais de trabalho. A batalha por aumentos salariais acima do índice oficial ganhava volume rapidamente. Não demorou e o próprio Delfim disse que os aumentos reais dos salários eram as causas da disparada da inflação. Para ele, havia um “descalabro” salarial no país que precisava ser contido. Ele chegou a reunir-se com Lula e Arnaldo Gonçalves – presidentes dos sindicatos dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e de Santos – para propor uma trégua nas greves durante dois anos como instrumento de combate à inflação.

Membros do governo manifestaram “oficiosamente” a intenção de aceitar a concessão de um índice de produtividade de 10% e voltaram atrás. Um grupo de empresas multinacionais teria manifestado essa intenção, que foi prontamente rechaçada por Delfim. Obcecado com a ideia de “combate à inflação”, ele chegou a ameaçar deixar o governo se a proposta fosse adiante – ignorando sua definição, segundo a qual a distribuição “funcional” da renda estaria ligada ao ganho de produtividade por meio do “entendimento entre as partes”. A lógica do ministro se coadunava com os interesses dos empresários brasileiros, que julgavam o índice de 10% suportável apenas para as multinacionais.

Porta-voz do Parque Jurássico

Delfim estava diante do dilema apontado por Mário Henrique Simonsen que, em 1979, ao deixar o Ministério do Planejamento, recomendou a Delfim suas ideias sobre “estabilidade”, “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”, termos do projeto neoliberal que invadiria o noticiário econômico nos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Os problemas da economia brasileira se agravavam rapidamente. O país estava atado a um quadro macroeconômico internacional complexo, resultado do acentuado endividamento externo promovido para financiar o “milagre econômico”. A inflação acumulada em 1982 foi de 99,71%. Delfim recorreu a um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 4,4 bilhões, sob a regência de uma Carta de intenções assumindo compromissos com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial.

Após a ditadura, Delfim tornou-se um crítico da radicalidade neoliberal. O Brasil tornara-se um dos lugares em que a teoria de uma lógica do mercado financeiro funcionando como mão invisível impedindo distorções localizadas mais vicejou. Os “guardiões da moeda” da “era FHC” garantiam que o fluxo mirabolante de capital não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Eles diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico “competitivo”. Ao responder a críticas de Delfim a essa retórica, Gustavo Franco, o arrogante então presidente do Banco Central, disse que ele era “porta-voz do Parque Jurássico”.

No governo Lula, quando Palocci deu prosseguimento à política econômica de FHC, ele voltou a criticar a exacerbação do neoliberalismo. O novo ministro da Fazenda assumiu anunciando cortes no orçamento, aumento dos juros e “reformas” neoliberais. Delfim disse que o cenário imaginado por Palocci era irrealista. O “ajuste fiscal” sozinho não resolveria o problema da crise herdada. O governo corria o risco de promover um arrocho violento e ficar sem os resultados esperados. “É absolutamente impossível ter um ajuste com o país crescendo a uma taxa anual de 1% do PIB ou inferior a isso”, disse. “Não existem exemplos na história econômica do mundo de um equilíbrio construído com crescimento tão pífio”, ressaltou.

Burla do déficit nominal zero

Antes da Posse de Lula, Palocci bateu o pé até convencê-lo a fazer o anúncio por escrito dos compromissos da “era FHC” com o FMI – metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário, num documento chamado Carta ao Povo Brasileiro que Delfim passou a chamar de Carta de Ribeirão Preto, numa referência à cidade paulista da qual o ministro fora prefeito.

A equipe de Palocci, segundo Delfim, era de gente necolonizada. “Para eles, o desenvolvimento é a recompensa que desaba sobre a cabeça dos bem-aventurados que praticam as normas que (eles mesmos) supõem ser a boa e dura ‘ciência econômica’. É uma espécie de religião. Qualquer mobilização para o desenvolvimento econômico por parte do Estado é perda de tempo. Pior, é pecado! Contraria os princípios pelos quais se vai aos céus: a definitiva aceitação do deus mercado e a obediência estrita aos cânones da ‘ciência dura’. Quem ‘peca’ pode ter algum prazer no curto prazo, mas vai para o inferno no longo prazo”, escreveu ele na edição da revista CartaCapital de junho de 2003.

Ele mudaria de opinião quando Palocci se isolou no governo. Segundo a revista Veja, Delfim avaliava que Palocci deveria ser “indemissível” porque sua grande missão no governo era evitar que Lula voltasse a ser petista. A avaliação de Delfim se deu no contexto em que ele se aproximou do ministro com a proposta de “déficit nominal zero”, uma burla, segundo o economista Carlos Lessa, que acabara de ser demitido da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por não aceitar as imposições da política de Palocci. “Cortar gastos não faz a economia crescer. Cortar gastos faz a economia cair”, resumiu. Desde então, apesar da proximidade com Lula, Delfim manteve-se discreto tanto nas críticas quanto nos elogios às políticas econômicas.

– Contubérnio de parasitas no Banco Central “independente”

Por Osvaldo Bertolino

Não existe Estado Democrático de Direito sem transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar a eficácia de suas medidas. Esse é um direito humano fundamental, sonegado pelo controle autoritário da comunicação por uma mídia cartelizada e corrupta à raiz do cabelo.

Nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, está claro, sob o risco de afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do processo deliberativo. O grau exato depende, portanto, do tipo de atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos. Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de regras claras sobre o tema.

Mas, com o controle do Estado por grupos privados, a essência da ditadura do projeto neoliberal, esse princípio básico da democracia fica inviabilizado. Consequentemente, o setor público passa a ser saqueado impiedosamente por grupos de interesses que põem o Estado a seu serviço para pagar-lhes as contas e garantir um fluxo contínuo de dinheiro a custo zero, saído do couro do povo.

Recentemente, o noticiário da mídia corrompida mostrou que o Banco Central “independente” anunciou novas regras para as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o agendamento. É uma espécie de contubérnio entre compadres, sócios do projeto de saque ao Orçamento e ao patrimônio públicos.

– Raízes profundas da conspiração contra a Venezuela

Por Osvaldo Bertolino

Atual ofensiva da direita contra a democracia na Venezuela, com perfil nazifascista e conteúdo da roubalheira neoliberal, tem um fio histórico. Hostilidades recente ao presidente democraticamente reeleito Nicolás Maduro fazem parte de um processo montado nos Estados Unidos para pilhar outras nações à base de um gigantesco aparato militar e ideológico.

Por qualquer ângulo que se olhe para o regime dos Estados Unidos é impossível não ver criminosos de guerra. Os senhores da guerra são uma importante fonte de poder. A ordem militar, até a década de 1950 uma instituição débil, transformou-se no escalão mais importante e mais caro do governo dos Estados Unidos. Saíram de cena os sorridentes homens de relações públicas e apareceu a face da sinistra burocracia instalada na máquina de guerra. Todos os fenômenos políticos e econômicos passaram a ser julgados à luz de interpretações militares.

O “realismo militar” dos chefes militares instalados no poderoso Estado-Maior Conjunto transformou-se no guia mais inspirado do grupo dirigente do país. Desde os anos da Segunda Guerra Mundial, essa força ampliou seu campo de ação em assuntos relativos à política exterior e doméstica do país e atualmente pode-se dizer que a ordem militar do Estado-Maior Conjunto está solidamente instalada no Estado.

Existem dois governos nos Estados Unidos. O primeiro é o governo sobre o qual o mundo se informa na internet, no rádio, na televisão e nos jornais, e as crianças nos livros escolares. O segundo é invisível e conduz a espionagem e a rede de informações, um aparato maciço que emprega centenas de milhares de pessoas secretamente e conduz a política externa do país. Esse governo invisível emergiu das imposições dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial.

Mundo ocidental

Os demais países centrais, exaustos pela guerra, foram obrigados a aceitar essa ordem em troca de ajuda para a sua reconstrução. Assim, os Estados Unidos deixaram de ser apenas mais um agregado no conjunto de países que lutavam por pedaços do mundo e passaram a ocupar o pico de uma pirâmide solidamente dirigida por eles. As regras desse jogo foram definidas num momento privilegiado para o grande país americano. Nenhum representante do chamado Terceiro Mundo participou desses tratados.

A Europa, destruída e ensanguentada por duas grandes guerras num curto espaço de tempo, não estava em condições de se opor à grande capacidade de produção norte-americana proporcionada pela Segunda Revolução Industrial — que dotou o país de uma poderosa e inovadora indústria. Na Ásia, o Japão, destroçado pela guerra, foi ocupado pelos Estados Unidos, que ditaram o rumo da sua reconstrução.

Esse processo do pós-Segunda Guerra Mundial que desencadeou a dominação norte-americana no chamado mundo ocidental, portanto, levou o capitalismo a uma transformação profunda. No final dos anos 1940, somente os Estados Unidos estavam em condições de exportar capital em grande escala. E o país usou essa condição privilegiada para manter sob o seu controle as rédeas num mundo que buscava alternativas ao seu modelo político e econômico.

Na Europa, o projeto social-democrata procurou adaptar a economia planejada à tradição comercial liberal do velho continente. No Japão, o Estado se reforçava para desempenhar um papel de destaque no planejamento econômico. E cerca de um terço da população mundial rompeu com esses paradigmas e se juntou à União Soviética para reforçar o sistema de economia totalmente planificada. Desde então, os Estados Unidos intervieram em vários países e promoveram uma feroz cruzada anticomunista em todo o mundo.

Declaração de Independência

A política norte-americana sempre foi expansionista e agressiva com a América Latina. A própria constituição dos Estados Unidos como nação encerra uma contradição entre o que foi proclamado dia 4 de julho de 1776, quando o povo norte-americano aprovou a Declaração de Independência, e a política exterior da jovem pátria. As premissas do expansionismo continental norte-americano foram criadas com as guerras contra a população originária e as reivindicações dos latifundiários do Sul do país de ampliar o território avançando pelas fronteiras de seus vizinhos. William Foster, estudioso da história política do continente americano, diz que o próprio nome do país — Estados Unidos da América — expressa suas pretensões panamericanas.

Já no começo do século XIX, a contradição entre os princípios humanitários e democráticos proclamados pela Declaração de Independência e a política exterior do jovem Estado levou à renúncia das suas tradições libertárias. A doutrina do direito natural de todos os povos decidirem seu próprio destino — um dos fundamentos da Declaração de Independência — passou a ser interpretada de modo a justificar como “natural” o expansionismo norte-americano. Para os dirigentes dos Estados Unidos, essa doutrina dava ao país o direito de encarar o continente como sua área de influência direta.

Colônias sul-americanas

Com esse argumento, a princípio os presidentes Thomas Jefferson e John Adams “compraram” a Luisiana — que pertencia à França — e ocuparam a Flórida — que pertencia à Espanha. Depois, no dia 2 de dezembro de 1823, com a mensagem do presidente James Monroe ao Congresso, foi proclamada a famosa “Doutrina Monroe” — que expressa sem ambiguidades as pretensões norte-americanas à hegemonia em todo o hemisfério ocidental.

Monroe não foi efetivamente o pai da criança — antes dele, todos os presidentes haviam trabalhado para moldar aquela ordem. A mensagem do presidente foi a consequência de um movimento na Europa — envolvendo Inglaterra, França e Espanha — que pretendia “pacificar” as colônias sublevadas na América do Sul. A França enviou o seu exército à Espanha para repor no trono Fernando VII, monarca espanhol deposto por uma onda revolucionária, e despertou a reação da Inglaterra.

As colônias sul-americanas sublevadas estavam dentro do círculo comercial inglês e a França havia prometido devolvê-las à Espanha. O êxito francês significaria a automática conquista do direito de comércio na região. A Inglaterra, então, propôs aos Estados Unidos uma união para travar as pretensões francesas e sugeriu que o acordo fosse selado por uma declaração conjunta baseada no poderio marítimo dos dois países anglo-saxônicos.

Declaração conjunta

Quando Monroe tomou conhecimento da proposta inglesa, imediatamente consultou os ex-presidentes Thomas Jefferson e Jacobo Madison — e recebeu o conselho de aceitar o plano da Inglaterra, mas com uma modificação. Jefferson disse que o assunto era da mesma magnitude da Ata da Independência dos Estados Unidos. “Aquela nos fez uma nação, esta fixa na nossa bússola a rota a seguir através do oceano do tempo que se abre perante nós”, disse ele. “A América, tanto no Norte como no Sul, tem um conjunto de interesses diferentes dos da Europa e que lhe são muito próprios.”

A proposta da Inglaterra foi aceita, mas a declaração conjunta, recusada. Assim, no dia 2 de dezembro de 1823 o mundo conheceu a mensagem de Monroe e soube que os Estados Unidos haviam deixado a Inglaterra de lado e tomado a decisão de determinar os destinos dos povos da América. Em vez de dar a mão para a Inglaterra, os Estados Unidos deram um pontapé na Europa. De mãos livres, se apoderaram dos territórios que estavam em seus planos — como Cuba e Porto Rico —, iniciaram a monopolização do comércio na região e começaram a exportação maciça de seus capitais para os países que se tornaram independentes.

Desde então, a propaganda expansionista invocou esses princípios para justificar as ações políticas e militares extraterritoriais dos Estados Unidos. Para os meios de comunicação fortemente vinculados ao poder econômico, os norte-americanos têm o dever natural e sagrado de levar as suas tradições “liberais” e “democráticas” aos povos “incultos” do resto do mundo. Por mais simplista e racista que esse pensamento possa parecer, ele é abertamente proclamado no país desde a instauração do chamado Destino Manifesto — uma “teoria” que surgiu e se difundiu nos Estados Unidos na metade do século XIX, segundo a qual os norte-americanos nasceram para ser o melhor povo do mundo.

Anticomunismo sem escrúpulo

É muito forte a influência da religião nessa “teoria”, um destino que teria sido profetizado pela “providência divina”. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, levava ao pé da letra a frase “In God we trust (Em Deus nós confiamos)” impressa nas notas do dólar. Quando ele era presidente, as reuniões ministeriais na Casa Branca começavam com orações; frases bíblicas sempre apareciam em seus discursos.

Em sua gestão, Bush propôs a canalização de recursos sociais para entidades religiosas, a autorização de preces e sermões em escolas públicas, o subsídio a faculdades geridas por grupos religiosos e o financiamento do trabalho de entidades religiosas em presídios — uma ofensiva jamais feita, apesar da tradição religiosa do país, contra a separação entre igreja e Estado, um dos princípios basilares consagrado na Primeira Emenda à Constituição.

O ex-presidente norte-americano certamente não era refém da fé e pode-se dizer que a rigor ele tomava o nome de Deus em vão. Por trás de sua política estavam os interesses de uma parcela significativa da economia que lidera o mundo. A ideologia do Destino Manifesto age como um poderoso elemento mobilizador da energia do país para a conquista de novos territórios. Ao longo da história, ela foi um verdadeiro elixir do expansionismo e do intervencionismo norte-americano.

No século XX, particularmente na sua segunda metade, essa ideia, traduzida em anticomunismo sem escrúpulo, permeou a propaganda do regime norte-americano, marcada pela Doutrina Truman com seus aparatos financeiros dos tratados de Bretton Woods e seu braço armado, a Organização do Tratado do âtlântico Norte (Otan), proclamada pelo então presidente Harry Truman sob as cinzas da Segunda Guerra Mundial. E isso explica a visão dominante no país de que o restante do planeta — sobretudo o chamado Terceiro Mundo — é cultura e economicamente subdesenvolvido.

Essa propaganda ganhou, evidentemente, novos contornos desde a queda do muro de Berlim, mas sua essência permanece a mesma e constitui, basicamente, em levar a “democracia” aos países que recusam a cartilha de Washington e em “ensinar” os “segredos” da boa gestão econômica. O aparato de propaganda norte-americano, por exemplo, contra todas as evidências diz que a presença dos Estados Unidos em países invadidos ou sob sua vigilância — como a Ucrânia — tem missão modernizadora e libertária. Mesmo quando os fatos insistem em desmenti-lo, nas entrelinhas essa ideia é largamente difundida.

Democracia mundial

A reprodução acrítica dessa prática pela mídia brasileira é bem conhecida, como seu viu na recente visita do presidente Nicolás Maduro. Ignoram o princípio básico da soberania dos povos — caberia ao povo venezuelano, se fosse o caso, reunir forças para derrocar o seu governo, como já fizeram outros povos, inclusive o brasileiro —, pilar da democracia mundial. Tampouco o direito internacional, descaradamente golpeado.

Foi assim com o golpe militar pró-Estados Unidos de 1964 no Brasil. E com os movimentos congêneres que se alastraram pela região nos anos 1950-1960-1970. E etc. A política externa do regime de Washington segue a lógica de que a economia norte-americana depende das imensas riquezas da América Latina. Logo, seus destinos políticos devem ser controlados pelos interesses econômicos dos Estados Unidos.

A “Doutrina Monroe” ainda é um punhal cravado nas entranhas dos nossos povos. De George Washington até Joe Baden, os 46 presidentes que passaram pela Casa Branca não mudaram a essência expansionista da política externa dos Estados Unidos. Hoje, com o agravamento da crise estrutural da economia norte-americana decorrente dos seus monumentais déficits comercial e orçamentário, recrudesce a lógica da “Doutrina Monroe”.

Embora sem perder a hegemonia, no século passado — principalmente após a Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos travaram uma dura disputa comercial com a Europa e o Japão. Agora, diante da formação de megablocos comerciais relativamente sólidos — particularmente a União Europeia —, o controle de sua área de influência não pode correr o menor risco de enfraquecer. O seu domínio político e econômico, portanto, precisa de amarras jurídicas mais firmes para enfrentar as recorrentes tentativas de insurgência na região e fechar os espaços para eventuais investidas de outros blocos comerciais.

Obra de Lênin

Esse foi o sentido político da proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), derrotada pela ascensão de governos progressistas na região, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998. O sempre atual diagnóstico de Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, no Capítulo X da obra Imperialismo – Fase Superior do Capitalismo, intitulado O lugar do imperialismo na história, diz que o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capitalismo monopolista. Ele pode ser aplicado inteiramente à atual situação.

Além de outras características, Lênin afirmou que os monopólios agudizam a luta pela conquista das mais importantes fontes de matérias-primas. “A posse monopolista das fontes mais importantes de matérias-primas aumentou enormemente o poderio do grande capital e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada e a não cartelizada”, escreveu ele. “Aos numerosos ‘velhos’ motivos da política colonial, o capital financeiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de capitais, pelas ‘esferas de influência’, isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território econômico em geral”, acrescentou.

Outra importante constatação de Lênin é que da tendência dos monopólios para a dominação em vez da tendência para a liberdade, da exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas por um punhado de nações riquíssimas ou muito fortes, originaram os traços distintivos do imperialismo. “Esse capital financeiro que cresceu com uma rapidez tão extraordinária, precisamente porque cresceu desse modo não tem qualquer inconveniente em se apossar das colônias — as quais devem ser conquistadas não só por meios pacíficos pelas nações mais ricas”, escreveu ele. “A comparação, por exemplo, entre a burguesia republicana norte-americana e a burguesia monárquica japonesa ou alemã mostra que as maiores diferenças políticas se atenuam ao máximo na época do imperialismo. E não porque essa diferença não seja importante em geral, mas porque em todos esses casos se trata de uma burguesia com traços definidos de parasitismo”, acrescentou.

Poderio militar

A radiografia é perfeita para se entender o atual estágio da economia norte-americana. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), caso se mantenha o consumo médio das duas últimas décadas as atuais reservas mundiais de petróleo devem exaurir-se antes de 100 anos. Os Estados Unidos, maiores consumidores do mundo, responsáveis todos os anos pela combustão de 30% do petróleo extraído no planeta, sabem que essa limitação é crítica para a sua hegemonia.

Assim, ao mesmo tempo em que gastam fortunas no desenvolvimento de alternativas energéticas — como as células de hidrogênio, por exemplo —, procuram assegurar-se de suprimentos que permitam ao país atravessar as próximas décadas. Para tanto, pretendem explorar até jazidas localizadas em áreas protegidas como reserva ambiental, no Alasca.

É evidente que uma economia com essas características, com o peso de um Produto Interno Bruto (PIB) que rompe a barreira dos US$ 8 trilhões, não tem como conviver com a paralisia das engrenagens que lhe são peculiares. A disparidade de poder — sobretudo militar — entre os Estados Unidos e os demais países também deve ser considerada nessa equação. Seu histórico é um bom guia para se entender o que isso significa.

Tensões abafadas

Sob a proteção do guarda-chuva nuclear norte-americano, esteio da Guerra Fria, as demais potências capitalistas se desenvolveram num ambiente sem guerras entre elas. A economia japonesa, umbilicalmente ligada à economia norte-americana, floresceu. E a Europa Ocidental evoluiu ao ponto de construir uma entidade supranacional, a União Europeia. Os grandes conflitos mundiais estavam sujeito ao direito internacional.

Assim, nuitas tensões antes abafadas pelo jogo internacional afloraram e foram reduzidas à pura expressão militar. Novos inimigos, reais ou forjados, entraram em cena e passaram a ser considerados pela estratégia expansionista como alvos — destacadamente as nações e regimes que não rezam pela cartilha de Washington. No âmbito imperialista, esse quadro foi construindo uma tática belicosa fundada basicamente num imaginário “choque de civilizações” — ideia expressa por Samuel Huntington em seu livro homônimo. Segundo o autor, a conjunção da “civilização confuciana com a islâmica” seria, hoje, a maior ameaça ao ocidente. O corte é mais econômico do que geográfico.

Na verdade, a relação do ocidente com o oriente é uma das formas clássicas de entender a configuração mundial moldada por duas guerras mundiais — e algumas guerras locais — ao longo do século XX. Mais do que projeções geográficas e culturais, esse modo de ver o planeta é corroborado pela análise econômica. A economia capitalista asiática, umbilicalmente ligada à economia norte-americana, tem um crédito monumental em títulos do Tesouro dos Estados Unidos — recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva da “globalização”, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona. O Japão, que enfrenta uma longa crise, é o país da região com maiores dificuldades para se levantar. Para complicar mais ainda o cenário japonês, há em seu flanco a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial.

Esse quadro tem tudo a ver com a dinâmica da especulação financeira internacional. A “bolha especulativa” chegou ao seu limite com o esgotamento da capacidade mundial de financiamento do alucinado endividamento público norte-americano pelo agravamento da crise de seus principais financiadores. Assim, os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. E o tombo da economia norte-americana, que inevitavelmente levaria as demais economias à bancarrota, passou a assombrar o mundo.

Aparelhos ideológicos

No pós-Segunda Guerra Mundial, o regime norte-americano fincou suas bandeiras no oriente porque era real a possibilidade de o continente asiático seguir por um caminho próprio. Coréia e China são exemplos nesse sentido. Com seu feixe de tradições preservado, a China, por exemplo, inventou o seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. De quebra, o país tem sido hábil em adaptar-se às transformações do ambiente em que atua, em absorver, mesmo que de projetos rivais e teorias adversárias, aquilo que é fundamental ao seu desenvolvimento.

Essa flexibilidade inteligente é um dos aspectos mais notáveis do sistema chinês. Aquele país tem grande interesse na disposição das peças políticas no tabuleiro mundial — assim como a Rússia. Essa contradição talvez seja o maior ponto de interrogação que se forma com a decisão dos brutamontes de Washington de forçar um atalho na busca de uma estratégia que responda à desesperadora necessidade de uma saída para a crise econômica norte-americana.

Esses fatos demonstram que é falso o argumento dos aparelhos ideológicos do regime de que as armas norte-americanas têm um sentido defensivo, uma função política de balanço de forças. Quando se vira a moeda, a sua outra face revela que o belicismo está mais perto do que se imagina. Além do conflito na Ucrânia, sob o ardiloso pretexto de combate ao narcotráfico e ao terrorismo o Pentágono segue apregoando aos quatro ventos que entre os alvos de sua doutrina de atacar primeiro estão organizações políticas e países da América Latina. Chama a atenção, nesse sentido, a proliferação de bases militares norte-americanas na região e a formação de equipes especializadas para responder pelos assuntos latino-americanos, encarregadas do roteiro de hostilidades a Cuba e a Venezuela — e a quem os apoia.

 

Corvo do Banco Central pretende impor desemprego em massa

Por Osvaldo Bertolino

O comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom) que explicou a decisão de manter, pela segunda vez seguida, a taxa básica de juros, a Selic, em 10,5% ao ano, comprova que o Brasil passa por um acentuado acirramento da histórica disputa entre forças progressistas e entreguistas, tendo como ponto central o “ajuste fiscal”, exigido pelo controle autocrático da política monetária do Banco Central “independente”. A pressão midiática sobre o governo, com manifestações explícitas de censura e ataques virulentos, subqualificados, ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, potencializa a perversidade dessa política.

É uma realidade que impõe a máxima inversa à do corvo de Allan Poe: “Sempre mais”. Não há corte orçamentário que dê conta da voracidade financeira. Os recentes bloqueio e contingenciamento de R$ 15 bilhões do Orçamento é um bom parâmetro para se entender essa crueldade, adotado para cumprir a imoral e draconiana Lei de Responsabilidade Fiscal, criada para burlar e criminalizar dispositivos da Constituição que garantem projetos e investimentos públicos. Esse projeto da direita tem a inflação como questão central, sem considerar o emprego e a industrialização. Porque a inflação afeta os ativos, os valores dos títulos públicos e de todo papelório inventado pelos financistas internacionais.

Organização mais poderosa

O bloqueio e o contingenciamento se deram no âmbito do “arcabouço fiscal”, concebido dentro do limite da conjuntura em que Lula tomou posse em 2023 e que possibilitou desatar o nó da emenda constitucional do teto dos gastos públicos, imposta como projeto do golpe de Estado de 2016 contra a presidenta da República, Dilma Rousseff. O “arcabouço” estabeleceu que a meta fiscal – a garantia do exorbitante recurso público consumido pela engrenagem da dívida pública manipulada pela política monetária sob controle da autocracia do Banco Central “independente” – tenha uma banda de flutuação de até 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima e para baixo.

O corte no Orçamento visou o mínimo, para cumprir a imposição da burlesca Lei de Responsabilidade Fiscal, numa demonstração de compromisso do governo com a reconstrução do país. Logo em seguida, desconsiderando esse esforço do governo, o Copom – a organização mais poderosa do país, que se sobrepõe à Constituição e a toda institucionalidade da República – adotou a manutenção da Selic. Em essência, a justificativa foi de que era preciso uma ação preventiva diante da possibilidade de alta da inflação. A principal causa, deduz-se, é a elevação do nível de emprego.

A tese do sistema financeiro é de que a aceleração do rendimento médio aquece o consumo e leva a aumentos salariais acima da inflação, um dos pilares do projeto neoliberal, a teoria da “taxa natural de desemprego”. Ou seja: o controle da inflação pela contenção da demanda dos trabalhadores, uma crueldade que vai além do conceito de exército industrial de reserva desenvolvido por Karl Marx, correspondente à força de trabalho que excede as necessidades da produção, medida adotada, não raro, de forma preventiva. Além de lançar um vasto contingente de trabalhadores no desemprego, os juros elevados encarecem o crédito, com forte impacto no consumo, e travam os investimentos, comprometendo o desenvolvimento do país.

Sentenças de editoriais

Essa é a causa principal da alegação do comunicado do Copom de “que uma política fiscal crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida contribui para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de risco (juros altos) dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”. Não usaram o pretexto do cenário externo, sempre alegado para justificar decisões como essa, ignorando a decisão do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, que manteve inalterada, pela oitava vez seguida, a taxa de juros de referência daquele país, com indicação de queda diante dos sinais de desaceleração da atividade econômica, com redução de criação de postos de trabalho e aumento do desemprego.

Seguindo sentenças de editoriais dos jornalões, o Relatório Focus, divulgado semanalmente com pareceres de consultores financeiros – o “mercado” em carne e osso – sobre suas avaliações futuras de variáveis da economia – entre elas, a especulação com a alta do dólar –, que serve de baliza para a decisão do Copom, tem ignorado esse cenário externo, reforçando o aspecto interno, sobretudo a queda do desemprego, além da forte pressão sobre cortes orçamentários, com a alegação de que existe excesso de gastos públicos, que também pressionaria a inflação.

Gastos públicos – na verdade, investimentos e políticas sociais, como o aumento do salário-mínimo acima da inflação – e demanda interna em crescimento pela queda do desemprego são a essência do projeto de governo do presidente Lula, eleito por uma frente ampla em 2022 que isolou e derrotou, nas urnas, o bolsonarismo. Foi uma operação que implicou também o debate sobre os rumos do projeto neoliberal, que se firmou na década de 1990 com as eleições de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e seu projeto tocado por uma poderosa equipe de tecnocratas, sob o rótulo do Plano Real, após um precário ensaio no final do governo de José Sarney e as turbulências do período de Fernando Collor de Mello.

Hostilidades neoliberais

O ciclo dos governos Lula e Dilma Rousseff rompeu muitas amarras do arcabouço do Plano Real, mas o projeto neoliberal recobrou forças com a marcha golpista e após o golpe do impeachment de 2016. A condução trôpega do processo golpista, sobretudo pelo governo Bolsonaro, levou os ideólogos da direita a se voltar para a tática de dar à frente ampla a sua dinâmica, numa atitude de confronto aberto com o projeto representado pelo núcleo de esquerda que se uniu em torno de Lula numa trajetória iniciada nas eleições de 1989. Assim que saiu o resultado das eleições de 2022, as forças políticas da frente ampla procuraram ajustar sua tática para redefinir suas posições em busca de influência nos diversos setores da sociedade.

Ao assumir a Presidência da República, Lula passou a enfrentar as hostilidades neoliberais, uma condição que remete à reflexão sobre os grandes momentos históricos nacionais, sempre precedidos de duras lutas, inclusive pelas armas. Foi assim nas lutas pela independência, pela Abolição, pela derrocada da Primeira República, pelo fim do Estado Novo e da ditadura militar. E as vitórias ocorreram sempre que as forças mudancistas optaram pela tática da mais ampla unidade nacional.

Mais uma vez, estamos diante de um momento histórico assim, com o desafio de transformar possibilidades em realidades. O governo está sob forte pressão pela manutenção da ordem neoliberal restaurada com o golpe de 2016, a integração plena do país ao cassino global, caminho oposto, por exemplo, ao da China, que escapou da agonia da especulação financeira com seu sistema imunológico melhor definido basicamente pelo bloqueio da conversão da moeda local, o yuan, em moeda externa.

– A Operação Lava Jato e a vida pregressa de Sérgio Moro

Na tarde do domingo 22 de novembro de 2015, um forte esquema de segurança fechou uma grande avenida no centro da cidade de Maringá, Paraná, em frente a um hotel de luxo. Policiais ocuparam todo o entorno e quem entrava no auditório passava por um detector de metal. Tanta segurança, conforme transmitiu a rádio CBN, era porque o juiz federal Sérgio Moro participava como convidado especial de um “ato interreligioso contra a corrupção”.

Ele comandava a força-tarefa da Operação Lava Jato, “a maior operação de combate à corrupção que já se viu no país”, conforme disse a repórter Luciana Penha. E prosseguiu informando que no evento estavam presentes seis religiões. “Sérgio Moro nasceu em Maringá e aqui se formou em Direito. A primeira experiência profissional foi no escritório do advogado Irivaldo Souza, idealizador do ato interreligioso contra a corrupção”, noticiou.

Irivaldo é tributarista e assessorou o ex-prefeito de Maringá Jairo Gianoto, do PSDB. Foi condenado em 2006 por desvio de dinheiro público (valor estimado em mais de um bilhão de reais), formação de quadrilha e sonegação fiscal. O advogado foi preso e só teria conseguido um habeas corpus depois que Moro testemunhou a seu favor. “Eu gosto muito do Sérgio, ele é um juiz justo, determinado, e tem cumprido a sua função, a sua missão, e nós, por isso, fizemos esse ato interreligioso em favor dele”, comentou o advogado em entrevista à CBN, ao lado dos “representantes de seis religiões reunidos para refletir sobre a corrupção”, conforme a repórter.

Assassinato de Paolicchi

Segundo Luciana Penha, o presidente da Ordem dos Pastores, Noel Cruz, disse que católicos, evangélicos e muçulmanos, todos concordavam que a corrupção é um mal que mata. “Porque a corrupção, ela está levando, na verdade, o dinheiro que ia para a saúde e também para as empresas. Então os jovens estão desempregados e as mães reclamando com os filhos nas portas dos hospitais e morrendo. Então eu creio que chegou a hora em que o povo de Deus está unido orando a Deus, e Deus ouviu o clamor. Chegou o momento de acabar com a corrupção”, falou o pastor, de viva voz.

O arcebispo, dom Anuar Battisti, afirmou que Sérgio Moro era para muitos a esperança de justiça, de acordo com a repórter. Com sua voz, a autoridade católica disse que “ele (Moro) hoje é o cabeça, é aquele que está dando a canetada final dentro desse processo de corrupção, do processo de julgamento da Lava Jato”. “Tudo passa pela mão dele. E ele está sendo extremamente rígido, extremamente decisivo, não tem medo, enfrentando situações muito complicadas. Nesta oração pedimos que ele continue sendo corajoso”, completou o arcebispo.

Luciana Penha disse que Sérgio Moro não deu entrevista, mas no evento falou por dezessete minutos. E explicou por que decidiu participar do ato interreligioso. Às tantas, ele disse que era um prazer estar ali naquela união de religião com combate à corrupção. A lei valia para todos, afirmou, antes de agradecer a Irivaldo Souza pelo evento. Os representantes das seis religiões que participaram do ato redigiram “A Carta de Maringá contra a corrupção”, que entregaram a Moro, finalizou Luciana Penha.

Ninguém mencionou o caso envolvendo Irivaldo Souza, que teve a participação do então secretário da Fazenda de Maringá, Luiz Antônio Paolicchi, assassinado em outubro de 2011. Seu corpo foi encontrado amarrado dentro do porta-malas de um carro e com dois tiros. Em entrevista ao O Diário, de Maringá, Vagner Eising Ferreira Pio, que se disse mentor do assassinato — segundo o jornal, orientado por seus advogados, que fizeram questão de acompanhar e gravar toda a entrevista —, afirmou que o advogado do Daniel Dantas (banqueiro) teria aconselhado o ex-secretário a firmar uma união estável entre eles por questões patrimoniais.

Acordo branco

O caso nunca foi esclarecido. O que se sabe é que no dia 7 de março de 2001 o ex-governador e senador do Paraná Álvaro Dias protocolou, na Vara Federal Criminal de Maringá, solicitação para que lhe fosse fornecida uma cópia do depoimento prestado à Justiça Federal por Paolicchi. O juiz federal substituto Anderson Furlan Freire da Silva deferiu o requerimento. Igual pedido havia sido encaminhado à Vara Criminal no dia 5 de março de 2001 pelo governador Jaime Lerner e também obteve resposta positiva do magistrado. O que o ex-secretário disse não foi revelado.

Sabe-se também que em 1994, na sucessão do governador Roberto Requião (PMDB), Lerner, o candidato da direita, enfrentava um franco favorito Álvaro Dias. Um esquema financeiro forte foi montado pelos empresários Mário Celso Petraglia e Atilano de Oms Sobrinho, da empresa paranaense Indústrias e Construções (INEPAR). Utilizando-se do prestígio nacional e internacional da empresa, e da reconhecida habilidade de Petraglia para construir operações financeiras intrincadas, levantaram um “papagaio” numa off-shore no Uruguai. Assim, com um caixa razoável, começou a campanha vitoriosa.

Petraglia foi uma das personagens centrais da CPI dos Precatórios, operação nascida de dentro do Banestado como incubadora de desvios do Bradesco e de alguns pequenos bancos liquidados pelo Banco Central (BC) no rastro das denúncias dos então senadores Vilson Kleinubing (PFL-SC) e Roberto Requião (PMDB-PR). Lerner entregara-lhe o Banestado. Em 1998, Lerner fez um “acordo branco” com Álvaro Dias. Candidato ao Senado, ele não apoiou Requião, adversário de Lerner que, buscando a reeleição, não lançou candidato ao Senado. Em 2002, no segundo turno, contra Requião, Lerner abriu seu voto em favor de Dias. Perderam ambos.

Prévia da Lava Jato

Esse caso praticamente não apareceu na mídia; ficou restrito ao noticiário local. O “caixa dois” não era tão visível como ficou após as farsas do “mensalão” e da Operação Lava Jato, apesar de ser público e notório — inclusive na Petrobrás, conforme relata um documento interno da empresa de 2000, mostrado no livro A mentira das urnas —, como demonstram os relatórios de várias CPIs da década de 1990.

Mas Sérgio Moro já estava atuando nesse meio. Antes da aprovação, em 2013, da lei que regulamentou a “delação premiada” ele se utilizou desse instrumento, em 2004, para reduzir a pena do doleiro Alberto Yousseff no caso envolvendo o empresário e ex-deputado estadual paranaense Antônio Celso Garcia, o Toni Garcia (do então PMDB), acusado de crime contra o Sistema Financeiro Nacional com a falência do Consórcio Nacional Garibaldi. Moro foi acusado de agir com arbitrariedade e abuso de autoridade com todos os advogados e de ter concedido imunidade a criminosos com a homologação de acordos de delação.

Ele usou esse instrumento também no caso Banestado, uma espécie de prévia da Operação Lava Jato. Foi ali que os procuradores e policiais aprenderam a usar os acordos de delação e a cooperação com outros países, sobretudo os Estados Unidos. Um deles, Carlos Fernando dos Santos Lima — que ficaria famoso na Lava Jato —, protagonizou, em 2003, uma cena descrita pela revista IstoÉ como um tour de force nos Estados Unidos para que a documentação da quebra de sigilo de várias contas, realizada pelo escritório da Procuradoria Distrital de Manhattan, não viesse à luz. Ele teria na gaveta um dossiê detalhadíssimo sobre o caso Banestado que recebera em 1998 — sua esposa, Vera Lúcia dos Santos Lima, trabalhava no Departamento de Abertura de Contas da filial do Banestado, em Foz do Iguaçu.

Em 2010, a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começou um julgamento só encerrado em 2013 em que foram contestados atos de Moro na Operação Banestado. As contestações foram encaminhadas ao Conselho Nacional de Justiça, onde a apuração foi arquivada. Gilmar Mendes disse, à época, que o caso mostrava um “conjunto de atos abusivos” e “excessos censuráveis” praticados por Moro. “São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior”, escreveu o ministro no acórdão da decisão, que resumiu o debate do julgamento.

Josef Mengele

O juiz federal Fausto Martin De Sanctis também criticou Moro por fazer, segundo ele, acordos de delação em que se fixava de antemão o benefício que o réu receberia. Um caso assim aconteceu com o megadoleiro Hélio Laniado, liberado após permanecer preso por 420 dias com a assinatura de acordo de delação premiada. Esse tipo de acordo já havia beneficiado também doleiros conhecidos pela Lava Jato, como Antônio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, e o próprio Alberto Youssef.

Delegados da Polícia Federal (PF) — muitos dos que atuaram na Lava Jato tiveram atuação político-partidária descarada — que conheciam os negócios de Laniado disseram que ele trabalhava para bancos e grandes empresas, segundo uma matéria do jornal Folha de S. Paulo. Laniado foi preso quando desembarcava no aeroporto de Praga, no dia 16 de agosto de 2005, de um voo vindo de Israel. Ele fugira para lá, onde havia obtido cidadania israelense após a Justiça Federal decretar a sua prisão. A Folha disse que foi o serviço secreto de Israel, o Mossad, que informou à Interpol que Laniado estava no avião, segundo dois delegados da PF.

Não se sabe bem por que o Mossad dedurou Laniado — um dos delegados levantou a hipótese de que poderia ser gratidão pelo esforço da PF brasileira em esclarecer o caso de Josef Mengele, o carrasco nazista cuja ossada foi descoberta em 1985 e posteriormente identificada, conforme a matéria. Moro, segundo a Folha, disse que não podia comentar o caso porque o processo e a decisão de liberar Laniado estavam sob segredo de Justiça.

Luzes da ribalta

Em 2010, cento e onze brasileiros foram investigados pela PF, acusados de enviar ilegalmente US$ 2,2 bilhões para uma agência do Israel Discount Bank, em Nova York, entre 2000 e 2005. O valor foi apurado pela promotoria de Nova York numa investigação sobre lavagem de dinheiro em decorrência dos casos do Banestado, Merchants Bank e Beacon Hill, todos usados por doleiros brasileiros.

Conforme informações da Folha de S. Paulo, a apuração demorou cinco anos para ouvir os suspeitos. Em 2006, a Justiça brasileira recebeu da promotoria de Nova York informações sobre 221 contas do Israel Discount Bank supostamente de brasileiros. Só em 30 de agosto de 2010 Moro mandou instaurar 111 inquéritos. Não há notícia, na mídia, dos seus resultados. No caso das delações e de depoimentos de muitos investigados na Operação Lava Jato que denunciaram esquemas de “caixa dois” — como o empresário Eike Batista e o “marketeiro do PT” João Santana —, nem inquéritos foram instaurados.

O jornal Público, de Portugal, publicou uma matéria sobre a Lava Jato, em 9 de agosto de 2015, e, às tantas, citou um artigo do então coordenador da Federação Nacional dos Petroleiros, Emanuel Cancella, dizendo que “a esposa do juiz Sérgio Moro, que está à frente da operação Lava Jato, advoga para o PSDB do Paraná e para multinacionais do petróleo”. “A denúncia foi publicada no Wikileaks”, teria dito o sindicalista. A matéria afirma, também, que Deltan Dallagnol, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, “é um evangélico engajado da Igreja Batista” e “busca as luzes da ribalta”.

– Manuel Domingos Neto, Roberto Amaral e José Genoino Neto: Washington não pode proclamar González

Manuel Domingos Neto
Roberto Amaral
José Genoino Neto

A política tem sua lógica, nem sempre clara à primeira vista, notadamente em tempo de mudanças radicais.

Está em curso a mais espetacular virada desde a queda de Roma. A supremacia anglo-saxã, imposta paulatinamente desde as circunavegações e revoluções burguesas, busca sobrevida perante a arrancada, até há pouco implausível, de desafiantes poderosos.

Os sinais de hecatombe se anunciam com a exibição de instrumentos de destruição em massa, o cerco à Rússia, a concentração de arsenais em torno da China, o estimulado ressurgimento da capacidade militar da Alemanha e do Japão, a tentativa de naturalização do genocídio em Gaza, os massacres incontáveis e invisíveis de africanos, a ardilosa capacidade de manipulação de comportamentos de indivíduos, sociedades e Estados pelas novas mídias e pelos múltiplos estímulos à bestialidade neonazista.

Ontem à tarde, Washington avisou aos latino-americanos: percam as ilusões de autonomia, domínio da riqueza própria, desenvolvimento integrado, respeito aos direitos humanos, superação de valores racistas e patriarcais, reconhecimento de povos originários e vida social em harmonia com a natureza: nada disso nos interessa, o mundo é dos fortes e nós somos os fortes. Washington não se move por nossos interesses.

Anthony Blinken, em outras palavras, encarnou a religiosidade consagrada em 4 de julho de 1776, segundo a qual o novo país seria terra da promissão e, por mandato divino, surgira para dominar o mundo. Encarnou também o recado de Monroe, emitido em 1823, segundo o qual ninguém d’além-mar se metesse em terras americanas.

Pleno de autoridade, Blinken declarou encerrada as eleições na Venezuela e proclamou eleito Edmundo González. Santificou os baderneiros à soldo de golpistas, atribuindo-lhes a condição de cidadãos de bem. Exigiu que as forças da lei não reprimissem o quebra-quebra terrorista.

Diante de um governo venezuelano envolto em procedimentos eleitorais demorados e de líderes latino-americanos demasiado prudentes, para não dizer desavisados, Washington atribuiu-se poderes de junta eleitoral no país que abriga a maior reserva de petróleo do mundo, projeta-se sobre o Atlântico e o Pacífico e é porta de entrada para a Amazônia.

Anthony Blinken ungiu-se da condição de porta-voz do povo venezuelano e da “comunidade internacional”. Ditou regras para “uma transição transparente” do poder na Venezuela. Com uma penada, jogou ao córner tratativas de entendimento com os maiores países latino-americanos: Brasil, México e Colômbia. Deixou três respeitáveis líderes democratas na condições de atores irrelevantes.

Trata-se de intervenção direta, sem meneios.
A arrogância desmesurada acaba prestando serviços aos latino-americanos: alerta os crédulos na profissão de fé democrática dos candidatos a donos do mundo.

Não há grandes novidades no processo vivido pela Venezuela. Muitos imaginavam que a lisura das eleições seria o grande objetivo de Washington. Preferiam esquecer o longo rol de intervenções que, desde o século XIX, impossibilitaram o exercício efetivo da soberania, a estabilidade política, o desenvolvimento socioeconômico, as reformas sociais e a integração latino-americana. Depositaram fé em bons propósitos de quem se acredita credenciado por Deus a organizar a vida no Planeta.

Os democratas e reformistas sociais latino-americanos estão diante de duas opções: acatar a sina de colono submisso ou rejeitar a vontade imperialista. Não se trata de apoiar ou rejeitar Maduro ou Gonzáles. Trata-se de defender a soberania venezuelana e, por extensão, a soberania dos países latino-americanos, lembrando que nenhum deles pode se defender sozinho.

Não se trata, ainda, de simpatizar ou não com programas governamentais que afetem a vida do povo venezuelano, eternamente saqueado pelo Império. Trata-se simplesmente do direito de cada Estado definir com autonomia suas políticas públicas e erradicar de vez a condição de Washington de xerife e tribunal do mundo.

A carência de petróleo de Washington não pode ser resolvida através da guerra.  Aliás, a guerra amplia desmesuradamente tal carência. A ordem mundial será digna quando as práticas de pilhagem forem substituídas por negócios vantajosos para as partes interessadas. Essa proposição se choca com a experiência histórica, mas não podemos deixar de sonhar com um mundo de paz.

Não existem perspectivas alvissareiras para a América Latina sem a formação de uma grande corrente que conjugue a luta contra o imperialismo com a luta pela democracia e por reformas sociais. A integração de esforços da América Latina não pode ser postergada.

Não vivemos numa ilha isenta das turbulências planetárias. Podemos entrar subitamente no olho do furacão provocado pela mudança da ordem mundial. As pretensões de Washington estão nos conduzindo neste sentido. É hora de nosso subcontinente tomar decididamente partido contra a presunção da unipolaridade.

A política tem lógica e a intervenção estadunidense na Venezuela escancara as pretensões imperiais dos Estados Unidos. Washington não tem direito de proclamar González presidente da Venezuela.

Defendendo o povo e o Estado venezuelano, defenderemos os povos do mundo.