– A história da relação entre Getúlio Vargas e o Partido Comunista do Brasil

Por Osvaldo Bertolino

A primeira avaliação dos comunistas sobre Getúlio Vargas ocorreu no processo da Revolução de 1930, tida como oposta à tática de fazer uma terceira revolta após o levante do Forte de Copacabana em 1922 e o movimento de São Paulo e do Rio Grande do Sul de 1924, uma sequência da Coluna Prestes. Maurício Grabois, uma das principais lideranças históricas do Partido, avaliou que durante a campanha da Aliança Liberal, o movimento político de Getúlio, os comunistas não poderiam tomar posição ao seu lado devido às suas debilidades.

Tomasse posição ao lado de Getúlio, disse, o Partido estaria na prática servindo de ala esquerda e de agitação para o golpe da Aliança Liberal. “Ao tomar essa posição independente, apresentando candidato próprio à presidência da República (Minervino Pereira), o Partido desmascarou o caráter reacionário da Aliança Liberal e a posição antidemocrática do governo de Washington Luis. Também justa foi a posição de (Luiz Carlos) Prestes, não participando do movimento armado de 1930 e desmascarando seu conteúdo imperialista. Com esta atitude, Prestes aumentou seu prestígio em contraste com a desmoralização crescente dos participantes do golpe de 1930.”

Prestes, adepto da ideia de que o Brasil precisava passar por reformas estruturais, fora consultado por Getúlio para acompanhá-lo. Mas optou por um caminho próprio e no começo de 1930 lançou o célebre Manifesto de Maio — no qual defendeu um governo baseado nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros — e criou a Liga de Ação Revolucionária.

O Partido recebeu o documento de Prestes com um misto de apoio e críticas. Para os comunistas, conforme nota publicada no jornal A Classe Operária em 5 de julho de 1930, o Manifesto desmascarava ainda mais o “caráter reacionário” da Aliança Liberal de Getúlio. “Para nós, o Manifesto representa apenas a comprovação mais segura do aprofundamento da marcha para a esquerda, agravada pela penetração cada vez maior dos imperialismos inglês e norte-americano”, dizia o texto.

Revolução Constitucionalista

O documento reconhecia, “sem confessar abertamente”, a “justeza da linha política do Partido Comunista”. Mais adiante, as críticas: “Nós temos o direito de pensar que Luiz Carlos Prestes seja de novo arrastado para o jogo da Aliança e do imperialismo. Sua categoria social, a pequena burguesia, suas ligações com os elementos reacionários da Coluna Prestes e com a Aliança Liberal, suas vacilações anteriores justificam essa nossa opinião, que temos o dever de apontar às massas.”

Grabois reconheceria, em 1972, que aquela avaliação estava errada. Um documento escrito por ele e João Amazonas – outra liderança histórica do Partido –, intitulado Cinquenta anos de luta, diz que a dubiedade decorria de duas lacunas históricas: a pouca experiência política da classe operária e o precário conhecimento do marxismo. Como consequência, o Partido não compreendeu aquele processo político e não descortinou naquelas lutas o movimento por transformações democrático-burguesas.

Considerou que o proletariado nada tinha a ver com os fatos em desenvolvimento no país e adotou posições sectárias, se ausentando da situação real. Aplicando mecanicamente as teses da Internacional Comunista, defendeu a criação de um governo apoiado em sovietes de operários e camponeses. O Partido se isolou, principalmente após o levante de São Paulo em 1932, a chamada “Revolução Constitucionalista”, quando Getúlio abria caminho para consolidar o seu governo. O Partido só daria um passo adiante quando foi ajudado pela política da Internacional Comunista que orientava a formação de frente única contra o fascismo.

De acordo com Grabois e Amazonas, a política ampla, com o gume dirigido contra o fascismo e o imperialismo, levou à organização da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que agrupou extensos setores populares e numerosos civis e militares que participaram da Revolução de 1930. Uma parte dos tenentes aderiu de vez ao governo de Getúlio, mas muitos ajudaram a fundar a ANL, que preparou e dirigiu o Levante antifascista de 1935.

O plano do capitão

Após a derrota da ANL, Getúlio jogou pesado contra os comunistas. Em quatro vezes sucessivas ele pediu — e conseguiu — ao Congresso que prorrogasse o estado de sítio por mais noventa dias. Prestes, que havia ingressado no Pàrtido, foi preso em 5 de março de 1936, depois de uma caçada comandada por Filinto Müller, o chefe da polícia política, que esquadrinhou o bairro do Méier, no Rio de Janeiro, e revistou casa por casa. Ele estava com a esposa, a alemã Olga Benário, que foi deportada grávida para a Alemanha nazista e morreu pouco tempo depois de dar à luz a menina Anita Leocádia Prestes, na câmara de gás da cidade de Bernburg.

Na prática, a onda anticomunista atingia a todos os que se opunham, minimamente que fosse, ao governo. Por qualquer motivo, os acusados eram considerados adeptos do “credo soviético” e encarcerados. Quando Carlos Marighella foi preso, em 1º de maio de 1936, a polícia alegou que encontrara em seu poder artigos datilografados, prontos para a impressão. Na Polícia Central ele foi amarrado e açoitado. Com um potente foco de luz apontado para os olhos, um torturador invisível dizia que Getúlio estava louco para saber onde se imprimia A Classe Operária, o órgão central do Partido.

Em 10 de novembro de 1937, como pretexto para contrapor-se a um novo plano dos comunistas de tomada do poder pela força, Getúlio proclamou a ditadura do Estado Novo. Na preparação do golpe, o governo interveio nos estados do Maranhão e Mato Grosso, e no Distrito Federal. O presidente da República transferiu comandantes militares de sua confiança para os estados onde seu controle era menor e em setembro de 1937 o Estado-Maior do Exército revelou o documento forjado sobre um novo plano de levante comunista — conhecido como Plano Cohen. Nos primeiros dias de outubro de 1937, a mídia divulgou o documento com grande alarde.

O texto fora redigido pelo capitão Olympio Mourão, integralista e membro do serviço de informações do Exército. O Congresso foi fechado, os partidos proscritos e uma nova Constituição, decretada pelo rádio na calada da noite do golpe, passou a conferir poderes ditatoriais ao presidente. Apesar da dura repressão, os comunistas mantiveram-se na ativa. A Classe Operária de fevereiro de 1938 publicou texto na capa com o título O “Estado Novo” não consegue consolidar-se. “A ditadura fascista de Getúlio é o mais nefasto governo que já pesou sobre a nação”, dizia o jornal.

Bloco pujante

Havia também mudanças significativas no cenário mundial. Pouco antes do Pacto de Munique, tratado assinado na cidade homônima em 29 de setembro de 1938 entre a França, a Inglaterra e a Alemanha nazista para isolar a União das Rapúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o Partido advogou, no jornal 16 de julho de março de 1938 — A Classe Operária estava temporariamente nas mãos dos trotskistas, em São Paulo —, a unificação das forças democráticas “num só bloco pujante” para “seguir o caminho das potências democráticas, especialmente os Estados Unidos, contra o fascismo e todas as potências fascistas”. No Brasil, os fascistas também davam o ar da graça. Depois de flertar com o governo, em 11 de maio de 1938 os integralistas tentaram derrubar Getúlio e foram rechaçados.

Em um Manifesto do Birô Político, o Partido cobrou uma posição do presidente, que não poderia ficar calado diante do avanço nazifascista. “Os pan-americanistas de coração não podem ficar surdos aos apelos de Litvinov (Maxim Maximovich Litvinov, ministro das Relações Exteriores soviético), Roosevelt (Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos) e Cárdenas (Lázaro Cárdenas del Río, presidente do México), três personalidades marcantes entre os mais insignes estadistas da atualidade”, disse. “Por que só o nosso presidente se cala?”, perguntou o documento. Segundo Octávio Brandão, um dos fundadores do Partido, o governo era irresoluto, contraditório e vacilante entre as suas alas fascista e democrática.

Os fascistas estavam ativos. O jornal O Estado de São Paulo disse que os líderes da repressão, Filinto Müller e o capitão Felisberto Batista Teixeira, diretor da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), moravam “no coração dos brasileiros”. Segundo o Jornal do Brasil, a nação contraiu uma dívida com a polícia pela defesa da “nacionalidade” e da “civilização cristã”. As “atividades extremistas” deveriam ser condenadas por sua “incomparável e diabólica aptidão para corromper e envenenar”.

Como denunciaria Amazonas, a reação fascista escolhera justamente o dia 7 de novembro, aniversário da Revolução Russa, para conduzir Prestes brutalmente ao nefasto Tribunal de Segurança Nacional, em 1940. “Mas Luiz Carlos Prestes reafirmou-se na sua grandeza: perante o nefasto Tribunal, saudou os imortais povos soviéticos, prestou sentida e profunda homenagem à Revolução Socialista, dando-nos, assim, com sua corajosa atitude, um exemplo que jamais será esquecido e que os comunistas sempre terão presente em sua luta contra o nazifascismo, pela democracia, progresso e bem-estar da pátria e do povo brasileiros”, afirmou.

Telegrama de Mussolini

Discursando a bordo do encouraçado Minas Gerais, em 11 de junho de 1940, Getúlio disse que o Brasil havia criado “um regime adequado às nossas necessidades”, fazendo considerações interpretadas como elogios ao governo alemão e ao italiano. O ditador da Itália, Benito Mussolini, chegou a enviar um telegrama ao presidente brasileiro cumprimentando-o por ver “a nova realidade histórica europeia como realmente é, e não como querem as chamadas democracias”.

Irritado com a repercussão de suas palavras, Getúlio fez novo pronunciamento, em 29 de junho, enfatizando que as críticas ao seu discurso partiram daqueles que interpretaram suas palavras “com comentário falseado e a publicação tendenciosa de frases isoladas”. Imediatamente após o imbróglio, o presidente determinou que o Brasil entabulasse conversações com os Estados Unidos para a defesa do hemisfério. Os norte-americanos temiam um ataque do Japão, uma das peças do Eixo nazifascista, e pretendiam aparelhar bases militares no Brasil.

O que era temor virou realidade no final de 1941, quando os japoneses atacaram Pearl Harbor. Os norte-americanos passaram à situação de beligerantes e apressaram o governo brasileiro nas negociações para permitir o uso das bases de Belém, Natal e Recife. Getúlio concordou. Estava aberta a porta para uma guinada radical da política externa brasileira.

Logo o governo adotaria uma posição de abrandamento das medidas repressivas. No teatro da Segunda Guerra Mundial, deflagrada em 1939, a URSS, invadida pelos nazistas em agosto de 1941, avançava para empurrar as forças de Adolf Hitler de volta a Berlim e as potências ocidentais se aproximavam de um concerto internacional. Getúlio determinou que o Brasil entrasse nessa aliança e entabulasse conversações com os Estados Unidos. Nos primeiros meses de 1942, o governo brasileiro deu demonstrações inequívocas de que estava caminhando para se aliar aos que combatiam o nazifascismo. Em 22 de janeiro, Getúlio decretou a pena de morte para certos atos de sabotagem. Pouco depois, o arquipélago Fernando de Noronha foi declarado zona militar.

Carne de canhão

Nos primeiros dias de fevereiro, Getúlio decretou medidas de precaução contra possíveis ataques aéreos e assinou o decreto que instituiu a base de Natal. Em 7 de março, tomou a medida mais importante — a formação da Comissão de Defesa Nacional, presidida pelo chanceler Osvaldo Aranha, com poderes extraordinários. Em meados de agosto, quando o Brasil já havia perdido uma razoável quantidade de vidas, cargas e navios, o governo reconheceu a situação de beligerância com as nações agressoras (Alemanha, Itália e Japão).

Os comunistas organizaram manifestações de rua, com faixas e slogans de protestos contra o Eixo nazifascista, para apoiar a decisão de Getúlio. O povo queria a guerra. Pela primeira vez o Brasil se engajaria em um conflito daquelas proporções e todos os brasileiros foram chamados a colaborar. Não restava dúvida de que Getúlio pendia para o lado dos aliados e recebia o devido reconhecimento dos comunistas.

Em carta a Agildo Barata em 22 de junho de 1942, Prestes disse não estar mais preocupado com seu antigo temor de que “os imperialistas quisessem fazer do nosso povo carne de canhão”. “Hoje, ao contrário, sou de opinião que só pelo sacrifício voluntário do sangue de nosso povo, pela participação ativa na luta dos povos antifascistas, onde for necessário, em qualquer parte do mundo, salvaremos nossas cidades da destruição e evitaremos o massacre de mulheres e crianças, para não falar da ignomínia que seria permitir, por omissão, a organização em nossa pátria de bases nazistas para o ataque ao povo americano”, escreveu. Para ele, seria urgente convencer o povo brasileiro da necessidade de fazer sacrifícios.

Passeata antitotalitária

Prestes também entregou uma mensagem ao comunista cubano Blas Rocas, em julho de 1942, que o visitara na prisão por arranjo de Osvaldo Aranha, dizendo que, a despeito dos sofrimentos, não estava disposto a viver em recolhimento pessoal. Considerava seu dever, e dos verdadeiros patriotas brasileiros, cessar todas as disputas de caráter interno e unir esforços para acelerar a derrocada das potências do Eixo nazifascista. A quinta-coluna, acrescentou, era mais forte no Brasil do que no resto da América, mas poderia ser imobilizada se as massas tivessem fé no programa antiEixo.

Grabois avaliou que, ao abrir caminho para o progresso do movimento patriótico e antifascista, aquelas medidas despertaram os pendores fascistas de setores do governo, nomeadamente do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, e o aparelho repressivo chefiado por Filinto Müller. Em 4 de julho de 1942, dia da Independência dos Estados Unidos, os estudantes organizaram uma “passeata antitotalitária” que contou com o apoio do ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, e a repulsa de Filinto Müller.

O chefe da repressão tentou impedir a passeata, desacatou o ministro da Justiça interino, Vasco Leitão da Cunha, foi preso e demitido. Foram demitidos também Francisco Campos, ministro titular da Justiça, e Lourival Fontes, diretor do execrado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Felisberto Batista Teixeira, o diretor do Dops, também foi afastado. O peso desse setor havia levado o governo a reagir com timidez ao torpedeamento de vários navios da Marinha brasileira por submarinos alemães.

Obsessão anticomunista

Grabois disse que a política dos comunistas de união nacional contra o nazifascismo definia bem os campos entre patriotas, independentemente dos matizes das opiniões políticas, os que aspiravam para a pátria bem-estar, progresso e cultura; e os antipatriotas, os pró-nazismo, os quinta-colunistas, os vendidos ao Eixo por dinheiro ou pela fascinação dos mitos de superioridade racial, do Estado corporativo totalitário. A união nacional haveria de realizar-se em torno do presidente, que dirigia o país em guerra.

Antigas pendências e dissensões deveriam ser postas à parte diante do quadro supremo da pátria em luta, na mais difícil e penosa de todas as guerras, afirmou. Em outra dimensão, a união nacional deveria apoiar-se em uma estrutura popular. Para enfrentar certos aspectos do esforço de guerra, era necessário compreender a importância das organizações cívicas e de classe, como a Legião Brasileira de Assistência (LBA), a Liga da Defesa Nacional, a Sociedade Amigos da América, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o movimento sindical.

Os comunistas imprimiam um ritmo acelerado na mobilização popular para liquidar o Estado Novo, mas ainda não se mostravam como corrente política organizada. A repressão ainda era intensa. Em 12 de janeiro de 1943, Dutra escreveu uma carta a Getúlio reclamando de críticas a ele por sua obsessão anticomunista pelo presidente da Sociedade Amigos da América, general Manuel Rabelo. Enviada em caráter “pessoal e secreta”, a carta queixava-se do tom ácido empregado por Rabelo em um discurso na cidade de São Paulo referindo-se ao “perigo comunista” como “espantalho e duende imaginários que serviam para distrair as atenções e deixar o povo desprevenido contra o inimigo real”.

Pacificação da família brasileira

Não era a primeira vez que os dois se estranhavam. Em 1942, o ministro da Guerra havia atacado Rabelo, também em carta a Getúlio, dizendo que ele estava “sempre cercado, em seus discursos e visitas, por elementos suspeitos de comunismo”. Em junho de 1943, quando Rabelo foi a Salvador organizar a seção local da Sociedade Amigos da América, Jacob Gorender, jornalista e futuro dirigente do Partido, fez uma entrevista com ele para a revista dos comunistas locais, chamada Seiva, publicada depois de aprovada pelo general, com críticas à indiferença do governo diante da vulnerabilidade do país depois de declarada a guerra, que resultou na prisão do repórter e dos demais integrantes da revista. “O ministro Gaspar Dutra mandou prender todos os redatores e a revista Seiva teve as portas fechadas”, rememora João Falcão, à época diretor de redação da publicação, em seu livro O Partido Comunista que eu conheci.

Rabelo escreveu a Getúlio que “a obstinada e doentia preocupação do ministro da Guerra em enxergar por toda parte o perigo comunista” era uma paranoia. “Ninguém mais sente a iminência desse perigo, sobretudo depois que a Rússia se aliou às Nações Unidas na luta contra os totalitários e principalmente depois da extinção do Comintern (a Internacional Comunista) e da adesão à Carta do Atlântico”, escreveu Rabelo, lembrando que o Brasil participava dessas alianças.

A conjuntura evoluiu para a abertura da segunda frente da guerra contra o nazifascismo, em 6 de junho de 1944, com o desembarque das tropas aliadas na Normandia. Em 17 de julho, o primeiro escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB) desembarcou em Nápoles, Itália. Era uma vitória importantíssima para os comunistas, que mobilizaram forças e organizaram grandes ações em favor desse objetivo — muitos comunistas alistaram-se e foram combater na Itália. “Fomos os primeiros a reivindicar a participação militar do Brasil e o fizemos de maneira consequente”, segundo Amazonas.

Para os comunistas, em 1944 já era possível falar publicamente das suas ideias. No ato do Dia Internacional dos Trabalhadores daquele ano, em 1º de maio, ocorrido no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, Armando Coutinho, antigo militante do Partido preso várias vezes, elogiou os princípios democráticos da Carta do Atlântico e pediu a “pacificação da família brasileira”. Segundo o escritor Jorge Amado, no livro Homens e coisas do Partido Comunista, em uma reunião da Liga da Defesa Nacional, realizada dia 6 de junho de 1944, representantes da UNE e o dirigente comunista Ivan Ramos Ribeiro falaram abertamente do Partido.

Pânico entre os esquerdistas

Getúlio recebia aquelas notícias com insatisfação e, como era do seu feitio, mexeu as peças no tabuleiro político para mostrar que ainda detinha as rédeas do Estado Novo. Ele trocou o chefe de polícia, Nelson de Melo, por Coriolano de Góis, famoso por ter comandado violências da polícia para reprimir manifestações contra o governo, quando havia sido secretário da Segurança Pública em São Paulo no ano anterior, que resultaram em mortes de estudantes e de outras pessoas.

Segundo o jornalista José Soares Maciel Filho, redator de grande parte dos discursos de Getúlio, a nomeação de Coriolano “indiscutivelmente” fora “uma bomba” para causar “pânico entre os esquerdistas”. “Os elementos comunistas estão infiltrados nas camadas das classes liberais, principalmente no Poder Judiciário e entre os advogados”, escreveu ele em carta endereçada ao irmão do presidente, Benjamin Vargas.

Grabois logo cairia na rede de Coriolano, que montou um programa de “arregimentação” de comunistas em prol da ordem pública. Na primeira leva de detidos, entre 5 e 17 de julho de 1944, estavam, além de Grabois, Amarílio Vasconcelos, Armando Coutinho, Roberto Morena e Iguatemi Ramos. Em 25 de julho, eles estavam na plateia que ouvia uma conferência do senador comunista chileno Salvador Ocampo na sede da Liga de Defesa Nacional quando foram presos novamente. Acusados de aplaudir entusiasticamente os conceitos expressos “por aquele extremista”, ficaram detidos dez dias.

A ofensiva de Coriolano atingiu também as publicações que criticavam o governo, um processo que a revista norte-americana Times chamou de “censura meticulosa”. O jornal Correio da Manhã foi multado por criticar a nomeação de Coriolano. Outros meios de comunicação chegaram a ser suspensos. Foi o caso da revista Diretrizes, do jornalista Samuel Wainer, que, mesmo com o apoio da UNE e do chanceler Osvaldo Aranha, não se salvou. O próprio Aranha foi atingido pela mão pesada de Coriolano quando se preparava para assumir a vice-presidência da Sociedade Amigos da América, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. A polícia invadiu o prédio e impediu a cerimônia. Ao saber que Getúlio, seu aliado histórico, apoiava a truculência pediu demissão da chancelaria.

Ilha de autoritarismo

Segundo o dirigente do Partido Comunista da Argentina Rodolfo Ghioldi, que como representante do Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista acompanhou os primeiros anos do Partido, a renúncia de Osvaldo Aranha era um exemplo da prevalência da política do Estado Novo. A nomeação de Coriolano, de acordo com o comunicado de Rodolfo Ghioldi, foi comemorada em uma festa de aniversário do cônego Olímpio Melo que, como presidente da Câmara Municipal, assumira o cargo de prefeito do Distrito Federal quando o titular do cargo, Pedro Ernesto, foi preso pela polícia de Filinto Müller em 1936. Os reacionários “denunciaran la iminente amenaza comunista contra la família brasileña”, dizia o texto de Ghioldi.

Coriolano espalhou agentes por todos os lados, que sempre retornavam com informes dando conta da presença de inimigos do governo nas atividades políticas que emergiam pela cidade. As anotações eram minuciosas e classificavam os vigiados como comunistas ou não. Havia também os “mais ou menos comunistas”, como o padre francês Joseph Ducatillon que atraiu vários comunistas para uma palestra, todos devidamente identificados pelos agentes de Coriolano. Na ocasião, segundo as anotações da polícia, trinta oficiais militares ouviram um discurso de crítica ao governo feito pelo coronel Juarez Távora, novo chefe do Departamento Militar da Liga de Defesa Nacional. As informações também diziam que o jornalista Carlos Lacerda acreditava no fim da ditadura no Brasil com a florescente influência da URSS.

Grabois foi mais uma vez pego pelas garras de Coriolano em dezembro de 1944, depois de várias prisões dos mapeados pela polícia. O chefe da repressão tinha em mãos cem nomes de pessoas que deveriam ser detidas. Junto com Grabois foram presas mais dezessete — doze, além dele, classificadas como comunistas. Os “adeptos do credo vermelho” foram acusados de “feitura de boletins subversivos” e detidos, segundo a Delegacia de Segurança Social, “em consequência de ligações que mantinham em frequentes encontros”.

Mas o Estado Novo já era uma ilha de autoritarismo em meio ao oceano democrático que se formava com o iminente fim dos regimes do Eixo nazifascista. Essa constatação ficou evidente até para alguns próceres da ala fascista do governo, como o ex-chefe do Estado-Maior do Exército, general Góis Monteiro, e Dutra.

Retornando de Montevidéu em outubro de 1944, Góis Monteiro declarou que, conferenciando com oficiais pelo caminho, verificou “uma ansiedade geral para a volta do país a um regime constitucional legítimo”. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, disse que chegava “para acabar com o Estado Novo”. Na mesma época, Dutra visitou a FEB na Itália e ao retornar informou que estudou relatórios confidenciais sobre a situação política e aconselhou Getúlio a tomar medidas de “normalização constitucional” antes mesmo do fim da guerra.

Em 31 de dezembro de 1944, Getúlio anunciou uma evolução gradual do quadro institucional do país, com base em “ampla e livre consulta à opinião pública”, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. Mas encaixou a advertência: estava atento à “agitação prematura” e às “perturbações demagógicas”. Os anátemas do presidente contra os movimentos democratizantes não impediram os comunistas de retomar suas atividades logo após a virada do calendário.

Evasivas e restrições

Em 22 de janeiro de 1945, conforme a escritora Carolina Nabuco, as teses dos intelectuais comunistas para o I Congresso Brasileiro de Escritores, promovido pela Associação Brasileira de Escritores (ABDE), obtiveram ampla cobertura da imprensa. Dentro de poucos dias ocorreria o evento, defendendo ideias como a redistribuição da terra nas áreas rurais, o combate sem trégua ao nazifascismo, a liberdade de expressão e a restauração da república na Espanha oprimida pelo regime do general fascista Francisco Franco.

Nomes que ficariam conhecidos como intelectuais comunistas ou ligados ao Partido estavam presentes. Entre eles, Astrojildo Pereira, Dalcídio Jurandir, Cristiano Cordeiro, Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Carlos Drummond de Andrade e Nelson Werneck Sodré. Os que não eram comunistas também se posicionaram abertamente a favor da democratização do país. “Não havia diferença entre comunistas e não comunistas; éramos todos aliados”, disse o intelectual Antônio Cândido. Segundo a Declaração de Princípios do Congresso, os intelectuais consideravam “urgente a necessidade de ajustar-se a organização política do Brasil” para a conquista completa da liberdade de expressão e a eleição de um governo “pelo voto mediante sufrágio universal, direto e secreto”.

Parecia que a cabeça de Getúlio estava em sintonia com as dos intelectuais do Congresso da ABDE. Em 28 de fevereiro de 1945 ele promulgou a Lei Constitucional número 9, um Ato Adicional que abria caminho para eleições presidenciais e parlamentares. Segundo Amazonas, a decisão fora tomada de maneira dúbia, com evasivas e restrições para eventualmente complementar os órgãos do Estado Novo. No começo de março, Getúlio concedeu entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada no dia 3, defendendo o restabelecimento das relações diplomáticas com a URSS e dizendo estar disposto a considerar uma anistia política, estudando caso a caso.

O presidente se afastava do grupo mais identificado com o fascismo e, consequentemente, se aproximava do Partido. O diplomata Orlando Leite Ribeiro foi designado por Getúlio para ser o elo com Prestes, ainda encarcerado, conforme relata o capitão Agildo Barata, líder do levante da ANL no Rio de Janeiro em 1935 e mais tarde um destacado dirigente comunista, no livro Vida de um revolucionário.

Tempos depois, Prestes avaliaria que Getúlio precisava dos comunistas. Não era mais possível ignorar o prestígio da política do Partido, que mostrara seu valor nas organizações que lutavam pela paz e no movimento sindical — o Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), surgido do departamento sindical que se organizou na Liga de Defesa Nacional e dirigido por Amazonas, gozava de grande prestígio entre os trabalhadores.

Mundo político

A essa altura, Grabois já era um articulador que buscava interlocução no mundo político. Quando Getúlio fez os primeiros movimentos dando sinais de que promoveria um “ato que reestruturará o regime”, como definiu o jornal Gazeta de Notícias em fevereiro de 1945, ele participou do grupo que assinou um telegrama endereçado a José Américo de Almeida, ex-ministro da Viação e Obras Públicas e pré-candidato à presidência da República apoiado por Getúlio para as eleições que deveriam ocorrer em 1938, que declarara em entrevista ao jornal Correio da Manhã ser favorável à ampla e irrestrita democratização do país. O telegrama dizia:

Queira aceitar nossos aplausos pelos pontos de vista de unidade e democracia defendidos em sua entrevista ao Correio da Manhã. Estamos certos de que sua sinceridade e experiência política muito contribuirão para garantir uma solução democrática aos nossos problemas, evitando que paixões partidárias deem armas a elementos antidemocráticos para entravar a marcha do processo da nossa democratização. Sua precisa e inteligente interpretação dos acontecimentos de 1937, tendo em vista a falta de unidade das correntes democráticas, serve como um brado de alerta na situação atual. Dentro de um espírito de compreensão e tolerância, esquecidos os ressentimentos, tendo por base um programa que objetive a grandeza da nossa pátria, junto caminharemos, independente de nossas convicções políticas e preferências por candidaturas, no sentido de garantir a democracia tão ansiada pelo nosso povo e heroicamente defendida pela Força Expedicionária Brasileira nos campos de batalha da Europa.

Assinavam também Álvaro Ventura, Iguatemi Ramos, Ivan Ribeiro, Roberto Morena, Amarílio Vasconcelos, José Medina Filho, Júlio Homem de Morais, Spencer Bittencourt e Armando Coutinho.

Poucos dias depois, Grabois assinou outro texto de igual teor, este endereçado a Joaquim Rodrigues Neves, Grão-Mestre da Maçonaria Brasileira.

Apresentamos a vossa senhoria nossas entusiásticas felicitações pelo grande exemplo de civismo dado com sua entrevista. Os pontos de vista de unidade e os conceitos patrióticos que vossa senhoria defendeu, aliados à sua clara visão dos problemas fundamentais do Brasil, constituem motivo de satisfação pata todos os brasileiros honestos. Desta maneira, a maçonaria, coerente com seu passado de luta antifascista, veio mostrar que está integrada no movimento de união nacional destinado a assegurar uma solução democrática e unitária para o país, através de um governo de coalizão nacional capaz de garantir eleições livres dentro de um clima de liberdade e confiança.

Assinaram também Álvaro Ventura, Iguatemi Ramos, Spencer Bittencourt, Ivan Ribeiro e José Medina Filho.

Não havia mais grandes riscos de perseguição policial. Getúlio acabara de nomear João Alberto Lins de Barros, antigo companheiro de Prestes na Coluna, para a chefia de polícia no Rio de Janeiro. Ele chegou declarando que a anistia deveria ser concedida “sem restrições” e anunciou que Prestes poderia receber as visitas que desejasse. João Alberto visitou o Cavaleiro da Esperança na prisão para estender-lhe a mão do governo. “Encontrei-o muito receptivo a uma reaproximação com Getúlio, querendo esquecer as queixas do passado”, disse o novo chefe de polícia, segundo testemunho do jornalista Murilo Melo Filho. Logo em seguida Prestes telegrafou ao presidente, cumprimentando-o pelo reatamento das relações com a URSS e cobrando a anistia.

A propósito das relações diplomáticas com a URSS, Grabois liderou um telegrama a Getúlio, com os seguintes dizeres:

Excelentíssimo senhor presidente da República

Palácio do Catete

O estabelecimento de relações diplomáticas do Brasil com a União Soviética vem reforçar a coesão das Nações Unidas e contribui eficazmente para elevar o prestígio internacional da nossa pátria e ampliar as condições para o progresso e efetiva democratização do nosso país. Essa medida é a concretização de anseios longamente alimentados pelo povo brasileiro, já irmanado com as armas soviéticas na luta pelo aniquilamento do nazi-fascismo, através da gloriosa Força Expedicionária Brasileira. A nação espera que esse ato seja acompanhado pela imediata concessão de anistia ampla e irrestrita a todos os presos políticos não comprometidos com o Eixo, a fim de comparecermos mais fortes e unidos na Conferência de São Francisco (refere-se à reunião de cinquenta países que criou a Organização das Nações Unidas), ocupando o lugar de sexta potência no Conselho de Segurança Mundial.

Assinaram mais de trinta pessoas, entre elas Alzira da Costa Reis — a esposa de Maurício Grabois —, Aydano do Couto Ferraz, Armênio Guedes e Henrique Cordeiro Oest.

Problemas programáticos

A campanha pela anistia crescia rapidamente e ganhava as ruas. Em 6 de abril de 1945, a UNE, a Liga de Defesa Nacional, o MUT e outras organizações promoveram a Semana nacional pró-anistia, que terminou com um comício “monstro” no Largo da Carioca, no dia 13.

Na tarde de 18 de abril de 1945, uma aglomeração se formou em frente ao presídio Frei Caneca para presenciar a saída de Prestes, beneficiado pelo decreto assinado por Getúlio que concedia “anistia a todos quantos tenham cometido crimes políticos desde 16 de julho de 1934”. Não foi possível vê-lo. Ele saiu escoltado pelos militares Trifino Correia e Orlando Leite Ribeiro. Segundo Murilo Melo Filho, a libertação de Prestes fazia parte de um pacote negociado pelo Brasil com a URSS para o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países.

De acordo com o documento Cinquenta anos de Luta, nesse período os comunistas não abordavam as questões relacionadas à revolução. Tratavam apenas de problemas pragmáticos para um tempo limitado. Em 1944 chegaram à posição errônea de união nacional para a guerra e para a paz em torno de Getúlio, grave erro corrigido um ano depois. “Assim, ao término da guerra o Partido reconstruído realizou uma fecunda atividade entre as massas, lançando as bases para o rápido desenvolvimento de suas fileiras”, escreveram Grabois e Amazonas.

A bússola do Partido apontava para um norte bem definido: a redemocratização do país por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte livremente eleita, uma tecla na qual os comunistas batiam fazia tempo. O primeiro objetivo seria trazer Getúlio para esse caminho, uma engenharia de precisão levando em conta o comportamento arisco do presidente e os sabotadores dos avanços democráticos. O apoio às ações do governo era cuidadosamente estudado. “Adotando essa orientação (de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte), o Partido apoia, de certa forma, o governo de Vargas, que, então, tomava medidas de sentido democrático, pretendendo permanecer do poder”, escreveram Grabois e Amazonas referindo-se à Conferência da Mantiqueira de 1943.

A força dos comunistas aparecia por todos os lados. Em um curto espaço de tempo, saíram das cavernas do Estado Novo e começaram a respirar fundo o ar da democracia, sobretudo após o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, entre os dias 8 e 9 de maio de 1945. Consideráveis setores da população viam no Partido o combatente de 1935, o adversário corajoso do Estado Novo, o patriota abnegado na luta contra o nazismo e, por isso, o mais perseguido.

Segundo Grabois e Amazonas, o povo identificava nos comunistas os heroicos combatentes que, sob a direção do líder comunista soviético Joseph Stálin, foram o fator decisivo da vitória sobre o hitlerismo. “Dezenas e dezenas de milhares de homens do povo afluem ao Partido. Aos atos públicos por ele organizados comparecem verdadeiras multidões. Se criam (sic), também, numerosos Comitês Populares, que agrupam grandes massas e seguem a política do PC do Brasil. O movimento sindical, ganhando impulso, procura se libertar do controle do Ministério do Trabalho e aceita os comunistas como força dirigente. Surgem no interior diversas Ligas Camponesas”, escreveram.

Visita a Monteiro Lobato

A força do Partido se mostrou também em comícios nos estádios São Januário, Rio de Janeiro, e Pacaembu, em São Paulo. Na capital paulista, o poeta chileno Pablo Neruda leu um texto sobre o papel de Prestes. O escritor Monteiro Lobato, adoentado, leu, por telefone, uma carta, numa transmissão pelos alto-falantes do estádio. Depois, ele recebeu uma delegação do Partido integrada por Prestes, Neruda e Pedro Pomar, também liderança comunista histórica.

Além da cortesia, a visita a Lobato teve o propósito de sondar a sua disposição para se candidatar a deputado federal nas eleições de 1945. Poucos dias depois, seu nome foi anunciado na chapa apresentada pelo Comitê Estadual paulista do Partido. Lobato desistiria da candidatura por discordar do apoio dos comunistas ao governo, que ele chamou de “perdão a Getúlio”.

No Estado Novo, o escritor fora condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional depois de ter enviado cartas ao presidente da República e ao então ministro da Guerra Góis Monteiro — que precedera Eurico Gaspar Dutra no cargo — dizendo que eles cometiam crimes de lesa-pátria com a vergonhosa subserviência às imposições da Standard Oil, sabotando na prática o potencial industrial petrolífero brasileiro. Cumpriu pena no Presídio Tiradentes, em São Paulo, parte dela em regime de incomunicabilidade. Na prisão, conhecera o comunista José Maria Crispim e se aproximou do Partido.

Os comunistas defendiam a realização das eleições presidenciais depois de aprovada a nova Constituição que sairia da Assembleia Nacional Constituinte. Essa posição foi oficializada no “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto e de 1945. Em um telegrama enviado a Getúlio, cujo texto fora aprovado no pleno, os comunistas pediram uma reforma da Lei Constitucional número 9 “a fim de colocar o problema da reconstitucionalização democrática da nação nos seus verdadeiros termos, através de um decreto que convoque no menor prazo a Assembleia Constituinte, como a maneira mais acertada e segura de derrotarmos política e moralmente o fascismo e garantirmos, ampliarmos e consolidarmos o progresso e a democracia para nossa pátria”.

O Partido estava confiante na aceitação da proposta pelo presidente da República, a julgar pelas palavras iniciais do telegrama. “O Comitê Nacional do Partido Comunista do Brasil, no ato de encerramento de sua primeira reunião pública plenária, em que foram tomadas resoluções que visam acelerar a nossa marcha pacífica para a democracia, vem reafirmar a v. excia. o seu apoio e aplausos às medidas de conteúdo democrático adotadas pelo governo, principalmente a partir do início deste ano”, dizia o texto.

Pronunciamento de generais

O Informe Político apresentado por Prestes delineou a proposta, segundo ele uma sugestão da Comissão Executiva do Partido. “Reclamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, em que os verdadeiros representantes do povo possam livremente discutir, votar e promulgar a Carta Constitucional que pede a nação”, diz o texto, que reprovou a ideia de eleições presidenciais com a Constituição golpista de 1937 em vigor. “O governo que aí temos é um governo de fato e qualquer eleição presidencial, enquanto estiver em vigor a Carta de 1937, inaceitável para qualquer patriota consciente, nada mais significa do que a simples mudança de homens no poder, a substituição de um governo de fato por outro governo de fato, igualmente armado dos poderes vastos e arbitrários que confere ao Executivo a referida Carta”, lavrou o Informe.

A ameaça de entregar uma Constituição discricionária de brinde ao presidente eleito, por meio da vigência sem reforma do Ato Adicional assinado por Getúlio em 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições, era agravada pelos dois candidatos que se apresentaram para a disputa da presidência da República: o general Eurico Gaspar Dutra, que segundo Amazonas fora um dos assinantes da Carta fascista de 1937 – que, de acordo com Pomar, continha até antissemitismo indireto, consequência da marcha ascendente das forças nazifascista em todo o mundo – e o brigadeiro Eduardo Gomes. Segundo o Informe apresentado por Prestes, era evidente o desinteresse popular pelas duas candidaturas que traziam a marca de uma politicagem sem princípios, em que predominavam os interesses e paixões pessoais, servindo apenas para dividir o povo e dificultar o processo de organização das agremiações políticas.

Os comunistas corriam para acumular forças capazes de impedir um retrocesso no processo de democratização. Um sinal de que as coisas poderiam degringolar foi uma boataria que tomou conta do país a respeito de um suposto pronunciamento de generais contra a convocação da Constituinte. A Folha Carioca entrevistou Góis Monteiro, que negou o fato enfaticamente. Não era a primeira vez que se pronunciava contra essa boataria, disse. “As contradições da política não interessam às Forças Armadas”, sentenciou. O ambiente no país estava conturbado por declarações do embaixador dos Estados Unidos, Adolf Berle Júnior, na cidade de Petrópolis, contra a Constituinte e com pitacos anticomunistas.

Getúlio disse que a convocação da Constituinte era um direito do povo. A declaração ocorreu em um comício dia 3 de outubro de 1945 no Largo da Carioca, Rio de Janeiro, promovido pelo Comitê pró-candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República — um movimento que ficou conhecido como “queremista”. “Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre sementes de desordem e revolta”, disse o presidente.

Confiança nacional

Ao comentar a declaração de Getúlio, Pomar disse que o governo sabia quais eram as aspirações da maioria da nação. “O povo saberá apoiar o governo no caminho da democracia”, destacou. Segundo ele, os reacionários tudo fariam para impedir a ampliação e a consolidação da democracia. “O Partido Comunista do Brasil, porém, reafirma sua serena orientação independente e ordeira, com mais um apelo à união nacional em torno da necessidade da convocação da Assembleia Constituinte”, disse.

Pomar entrevia naquela cortina de fumaça sinais de labaredas. Apelou para a formação de um governo de confiança nacional, “capaz não só de assegurar a ordem interna e a união nacional como também enfrentar os sérios problemas da carestia e da inflação, que servem como pretextos de desordem para os agentes reacionários do capital colonizador e monopolista”. Era o que restava naquele momento, disse ele com ênfase. Suas opiniões derivavam de um telegrama que enviara a Getúlio, aplaudindo o “discurso democrático de 3 de outubro”. Em nome de Prestes, que percorria o estado do Rio Grande Sul em comícios pró-Constituinte, Pomar escreveu:

Exmo. Sr. Presidente da República, senhor Getúlio Dorneles Vargas.

Palácio Guanabara — Distrito federal

O Comitê Nacional do Partido Comunista do Brasil vem aplaudir o discurso democrático de V. Excia., ontem pronunciado, no qual, coerente com os últimos passos dados pelo governo, V. Excia. apoia e reconhece o anseio democrático crescente do povo brasileiro a favor da convocação de uma Assembleia Constituinte como melhor caminho para alcançar a democracia em nossa pátria. O Partido Comunista do Brasil, fiel à sua orientação unitária e patriótica, de ordem e tranquilidade, para derrotar os remanescentes do fascismo vem reafirmar a V. Excia. sua posição decidida em prol da modificação da Lei Constitucional nº 9 e a convocação de eleições para uma Assembleia Constituinte que a Nação reclama. O Partido Comunista do Brasil que tem suas forças empenhadas na conquista pacífica dessa conquista democrática se compromete a redobrar esforços, em ação comum com outras correntes políticas, entidades de classe e organizações populares pela mobilização cada vez maior do povo em apoio a mais esta justa medida do governo, que derrotará os reacionários, que procuram entravar a marcha da democracia no Brasil.

Atenciosas saudações

Pelo Secretário-geral

PEDRO POMAR

No comício, Getúlio disse que vinha “recebendo de todos os recantos do país, por telegramas, cartas e notícias de comícios públicos, insistentes apelos, agora reiterados pelo povo da capital federal naquela demonstração impressionante, para convocar uma Constituinte com poderes expressos para elaborar nova carta básica da organização política do país, isto é, uma nova Constituição”. Ele ouviu de um orador referência do embaixador dos Estados Unidos, Adolf Berle Júnior, a um golpe de Estado. “Nenhum diplomata estrangeiro tem o direito de interferir na nossa vida política”, disse o orador. “E isso porque nenhum diplomata brasileiro nunca protestou contra as discriminações raciais americanas”, arrematou.

Em seu discurso, Getúlio fez menção ao caso, sem citá-lo diretamente. “Sem dúvida, a eleição de uma Constituinte é um processo democrático, em perfeito acordo com as nossas tradições. Assim se fez em 1891, assim se fez em 1934, não precisamos, para isso, ir buscar exemplos nem lições no estrangeiro. Possuímos também a nossa tradição de democracia política, étnica e social”, disse.

O presidente esclareceu que para atender àqueles reclamos, manifestados na forma direta e espontânea nos verdadeiros pronunciamentos populares, o governo teria de modificar a Lei Constitucional número 9, e não poderia fazê-lo sem a posição favorável dos órgãos autorizados de opinião — os partidos, as entidades de classe, as forças organizadas. “O meu dever é cumprir a lei. Farei tudo que de mim depender para que o povo escolha livremente os seus candidatos”, afirmou.

Tom de denúncia

Getúlio mostrou desprendimento para buscar uma solução ao impasse político que se acirrava. “Perante Deus, que é o supremo juiz da minha consciência, perante o povo brasileiro com o qual tenho deveres indeclináveis, reafirmo que não sou candidato e só desejo presidir eleições dignas da nossa educação política, entregando o governo ao meu substituto legalmente escolhido pela nação. Mas, se para realizar as aspirações do povo em relação à Constituinte e abrir com a sua convocação novas possibilidades a uma melhor solução do problema eleitoral, que julgam não estar colocadas em bases democráticas, dissipando assim dúvidas e conciliando todos os brasileiros, for necessário o meu afastamento do governo não hesitarei em tomar essa resolução espontaneamente, com o ânimo sereno de quem cumpre um dever até o fim”, discursou.

O presidente finalizou em tom de denúncia. “Devo acrescentar que atravesso um momento dramático da minha vida pública e que preciso falar ao povo com prudência e lealdade. A convocação de uma Constituinte é um ato profundamente democrático que o povo tem o direito de exigir. Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre fermentos de desordem e revolta. E nós precisamos resolver o nosso problema político dentro da ordem e da lei. Devo dizer-vos que há forças reacionárias poderosas, ocultas umas, ostensivas outras, contrárias todas à convocação de uma Constituinte. Posso afirmar-vos que, naquilo que de mim depender, o povo pode contar comigo. Quero terminar apresentando-vos os meus agradecimentos por esta demonstração cívica de alta significação. Ela bem demonstra que o povo brasileiro possui educação cívica, sabe o que quer e sabe para onde vai. Diante dessa manifestação, que considero como uma delegação da vontade popular, me sinto largamente compensado das agruras que tenho sofrido por servir com devotamento ao povo brasileiro.”

Dois dias depois, o Secretariado Nacional reuniu-se na sede do Partido, na Rua da Glória número 52, para debater o assunto. Grabois disse que a fala de Getúlio foi uma vitória do povo. “O discurso do presidente Vargas, por ocasião da manifestação de 3 de outubro, foi a primeira grande vitória do povo na sua luta organizada pela convocação das eleições para uma Assembleia Constituinte. O senhor Getúlio Vargas deu mais um passo no caminho da democracia, ao afirmar que satisfará os anseios do povo. Cumpre agora à nação coroar a campanha pró-Constituinte, obtendo através das organizações políticas, sindicais e populares a vitória final, enfrentando todos os reacionários que, com medo do povo, reagem desesperadamente, tentando conduzir o país ao caos e à guerra civil. O resultado positivo da oração do presidente da República, fruto da luta do povo, deve servir de estímulo a todos os patriotas a prosseguirem no combate aos remanescentes do fascismo no país, contra a rearticulação nazi-integralista e pela união nacional”, declarou.

O pronunciamento de Getúlio reforçou consideravelmente a campanha do Partido pela Constituinte. Os comícios aprovavam uma proposta de telegrama a Getúlio pedindo que ele ouvisse os apelos populares. Segundo Grabois, nenhum acontecimento na história do Brasil teve a profundidade e a envergadura, como movimento popular, como aquela campanha. “Nem na luta pela Abolição, nem a campanha republicana. Nem mesmo a vitoriosa jornada da anistia que arrancou dos cárceres os melhores filhos do povo alcançou tal mobilização de massas”, disse.

Havia também as ameaças dos integralistas, caraterizadas como atrevimento dos nazifascistas, que levaram o Partido a mobilizar vários segmentos, inclusive o presidente da República. Telegramas foram enviados a Getúlio denunciando a rearticulação dos integralistas sob a máscara da Cruzada Brasileira do Civismo.

Poderosos reacionários

Na verdade, os comunistas enfrentavam uma batalha dura para manter em ação o projeto da Constituinte. O próprio Getúlio vacilava e deu um passo atrás ao modificar por decreto a Lei Eleitoral marcando eleições simultâneas para presidente da República, deputados e senadores. A lei também previa que os interventores outorgassem constituições estaduais. “Sem dúvida, esse decreto está em profunda contradição com o discurso do senhor Getúlio Vargas pronunciado a 3 de outubro”, denunciou Grabois.

Depois de um comício organizado pelos comunistas, a massa marchou para o Palácio da Guanabara, a residência oficial da Presidência da República, onde contestou o decreto de Getúlio. A manifestação atingiu o auge quando Getúlio apareceu. A Tribuna Popular, jornal dos comunistas, descreveu a cena assim: “Milhares e milhares de bocas prorromperam em estrondosas aclamações e o grito de ‘O povo quer a Constituinte!’ reboou uníssono e incessante, um grande grito histórico traduzindo os melhores sentimentos do povo, cada vez mais democrata e patriota. Foguetes estouravam no ar e extraordinária alegria dos homens e das mulheres, dos velhos e jovens subindo aos céus.”

Em seu discurso, o presidente lembrou o que dissera em 3 de outubro sobre a existência de poderosos reacionários contrários à convocação da Assembleia Constituinte, medida considerada por eles um golpe contra as eleições marcadas para 2 de dezembro de 1945. Segundo Getúlio, ele não podia tomar decisões que aumentassem a intranquilidade que a luta política trouxera ao país. O assunto, afirmou, precisava ser encaminhado com sabedoria e prudência, ouvindo todos os partidos políticos, as classes trabalhadoras e produtoras, todas as forças organizadas, enfim, para que elas assumissem as responsabilidades por suas atitudes perante a opinião pública.

Enquanto Getúlio falava, a multidão gritava pedindo a Constituinte. Impávido, ele prosseguiu: “Eu nunca assumiria a responsabilidade de praticar um ato que viesse provocar a luta e o derramamento de sangue dos brasileiros.” Cada um deveria estar ciente de que responderia, dali em diante, pelos seus atos, disse o presidente. “Eu vos prometo fazer essa consulta para que cada corrente de opinião assuma perante o povo a parcela de responsabilidade que lhe cabe”, afirmou.

Fora das fronteiras

Segundo o presidente, cada uma delas precisava dizer às claras se estava de acordo com os clamores populares ou se apoiava as correntes reacionárias. Foi aplaudidíssimo. Ainda encoberto pelos aplausos, Getúlio terminou: “Não vos devo, porém, prometer senão aquilo que posso fazer.” A multidão deixou o Palácio da Guanabara satisfeita com as palavras do presidente e gritando: Constituinte! O povo exige a Constituinte! O povo quer a Constituinte! Uma parte foi para a Praça do Russel, onde um novo comício foi realizado, com discursos até as 23h30.

Em um comício em Belo Horizonte, Minas Gerais, Prestes também fez severa crítica ao decreto. Em Juiz de Fora, outra cidade mineira, Prestes voltou a falar do decreto e demorou-se na contestação ao que chamou de “golpes salvadores”. “Apoiaremos o governo contra a desordem”, proclamou. Tomasse cuidado a militância para evitar pretextos. Na Tribuna Popular, Grabois chegou a dizer que o Partido Comunista do Brasil não vacilaria em desmascarar os fomentadores de desordens e greves, que procuravam iludir as massas tentando “arrastar a mocidade das escolas para uma greve sem objetivo a fim de entravar a marcha para a democracia no país”.

Mas, na falta de pretextos, os golpistas foram buscar argumentos fora das fronteiras brasileiras. Disseram que Getúlio, à semelhança do que fazia Juan Domingos Perón, na Argentina — que se preparava para as eleições que deveriam ocorrer no começo do ano seguinte —, estaria aglutinando apoio dos trabalhadores, com a ajuda dos comunistas, para conquistar o poder nas eleições presidenciais.

Com esse e outros argumentos, os candidatos à sucessão presidencial, brigadeiro Eduardo Gomes — pela União Democrática Nacional (UDN) — e o general Eurico Gaspar Dutra — pelo Partido Social Democrático (PSD) —, convenceram seus aliados militares, liderados pelo general Góis Monteiro, a deporem o presidente em 29 de outubro de 1945. Na verdade, Getúlio estava sentado no epicentro da crescente tempestade que se formava no país. Ele não desconhecia os detalhes que transformava o desenrolar da crise em complô.

Origem de classe

O problema era que o Ato Adicional de 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições se transformou em amarras que o deixava de pés e mãos atados. Só um gesto ousado, reformando a decisão anteriormente tomada, poderia dar vazão à torrente de manifestações que exigiam a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Getúlio jamais pôde explicar por que decidiu levar sua indecisão até o limite, quando já não havia mais forças para sustentá-lo na presidência da República.

Preso entre a força das massas, impulsionadas pelos comunistas, e os grupos que o ameaçavam, resolveu resignar-se quando viu que não havia mais volta e a contenda prosseguiria sem o seu protagonismo. Os golpistas temiam que ele sucumbisse à tática do Partido de marcar as eleições presidenciais para depois da promulgação de uma nova Constituição, o que poderia significar a consolidação do processo de democratização do país.

Segundo Pomar, o golpe, aparentemente dirigido contra Getúlio. foi na verdade contra os comunistas. Ao não reagir, como queria o Partido, o presidente revelou sua origem de classe, seu desprezo pelo povo, a traição que mais uma vez cometia contra as massas que nele confiavam. Tanto os generais golpistas quanto Getúlio, disse Pomar, quiseram atingir um duplo objetivo. Os golpistas, ao mesmo tempo em que sonhavam com uma nova ditadura pretendiam liquidar o Partido com um banho de sangue sobre o movimento operário nascente. Getúlio teve também as suas pretensões: voltar ao poder depois de provar aos adversários que seria impossível governar sem ele, mas antes esmagando o proletariado e seu Partido de vanguarda por meio de provocações grevistas tentadas por seus agentes.

Mas os golpistas e Getúlio viram seus sonhos desfeitos, avaliou Pomar. A democracia estava em ascensão e as grandes massas ficaram alertadas pelo trabalho de educação política em seis meses de legalidade dos comunistas. “Não assumimos nenhum compromisso formal ou secreto com Vargas. Apenas, em 1945, o movimento operário e democrático que defendíamos coincidia com as políticas de Vargas”, afirmou. “Seguíamos uma estrada paralela e por isso nos encontramos lutando em determinado instante pelos mesmos objetivos, sem fazer pacto algum”, esclareceu.

Interesses de classe

Diógenes Arruda Câmara, também histórico dirigente comunista, conta que o golpe foi preparado depois do discurso do embaixador norte-americano Adolf Berle em Petrópolis, Rio de Janeiro, dizendo que o “comunismo” era um perigo, que estava avassalando o Brasil, e deixando a entender que Getúlio fazia demasiadas concessões aos comunistas.

“Nós procuramos estabelecer um contato, e teve entendimentos antes do golpe dado contra ele em 1945. Dissemos: vamos à greve geral, vamos levantar as Forças Armadas! Nós tínhamos muita força, principalmente no Exército. E o Vargas disse: Prefiro renunciar e ir embora a fazer uma guerra civil. Porque começa comigo e vai terminar nas mãos dos comunistas. E o Vargas foi embora para a sua fazenda lá em São Borja e não quis enfrentar os golpistas no terreno que deviam ser enfrentados — através de uma greve geral, paralisando toda a vida do país, e através da luta armada. Porque os golpistas eram fracos. Quem tinha força nas Forças Armadas de fato era o Getúlio, naquele tempo, e os comunistas, o nosso Partido. E Getúlio não quis enfrentar a luta no terreno que era possível para garantir o processo democrático”, disse.

Prestes também falou que Getúlio não resistiu porque não quis. “No dia 29 de outubro, quando os tanques marchavam para depô-lo, por ordens do general Góis Monteiro, eu estava com o general Estillac Leal e o coronel Osvino Ferreira Alves. Nós mandamos um recado para ele: ‘Resista, porque alguns tanques vão virar os canhões contra o Alcio Souto, comandante das tropas. E a massa vai lhe apoiar.’ Mas ele preferiu ficar sentado de charuto na mão, esperando ordens para ir para a casa. Foi o mesmo caso de Perón, na Argentina: o povo clamava por armas para defendê-lo, em frente à Casa Rosada, mas ele preferiu fugir e abrigar-se num navio de guerra do Paraguai. Não foi para evitar derramamento de sangue que Getúlio deixou de resistir. Ele preferiu agir assim, pois compreendeu que, no choque, o nosso Partido cresceria muito. Preferiu optar pela defesa dos seus interesses de classe. Assim, ele e Perón acabaram agindo de forma semelhante: capitularam em defesa dos interesses de classe.”

Segundo Grabois, o apoio aos atos democráticos do governo Getúlio fora uma prova de que os comunistas estavam dispostos a realizar a união nacional. Por esse motivo, o golpe de 29 de outubro não mirava especificamente o presidente da República, mas o povo que apoiava seus atos democráticos e, sobretudo, o Partido Comunista do Brasil e as organizações genuinamente populares.

Angu com pimenta

Góis Monteiro falou abertamente que o golpe foi motivado pela influência que os comunistas exerciam sobre a grande mobilização popular alcançada com a campanha pró-Constituinte. “Nessa altura dos acontecimentos (quando houve o golpe) e percebendo os perigos para o país decorrentes das marchas e contramarchas, declarei várias vezes, pela imprensa e ao próprio senhor Getúlio Vargas, que não era possível pensar-se numa Assembleia Constituinte a não ser que todas as correntes partidárias estabelecessem um consenso geral nesse sentido, pois, do contrário seria deflagrar um movimento subversivo, porquanto não podiam admitir as Forças Armadas que fosse adotada a iniciativa do Partido Comunista”, declarou o general.

Nos dias seguintes, o projeto de democratizar o país com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte dançou em cima do muro. Os comícios foram proibidos. A Tribuna Popular foi invadida pela polícia e suas instalações destruídas. Sedes do Partido foram vandalizadas em diferentes localidades do país. Sindicatos e Comitês Populares sofreram ameaças. Até os integralistas se assanharam e partiram para as provocações. Em Pernambuco, nas cidades de Goiana e Arcoverde, grupos deles invadiram as sedes do Partido de armas em punho.

Mas a campanha pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte entrava em uma nova fase, um ambiente que Getúlio caracterizou como angu com muita pimenta, segundo o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias, que fora companheiro de Prestes na Coluna Invicta, o responsável por entregar ao presidente deposto o ultimato dos generais golpistas sob o comando de Góis Monteiro.

Cinco dias após o golpe, uma nota do Partido disse que a situação criada levava “a nação ao risco iminente da guerra civil, do terrível e desnecessário derramamento de sangue de seus filhos, que só não aconteceu devido à atitude firme e consequente do nosso Partido e de outras forças populares”. Pouco depois, em 10 de novembro de 1945, uma nova nota aplaudia José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que assumira o posto de Getúlio, pelos “atos positivos e as manifestações de caráter democrático” que adotara, entre eles a convocação da Constituinte. Decretos foram revogados. Artigos autoritários da Constituição foram suprimidos. E as constituições estaduais outorgadas pelos interventores foram derrogadas. O tom era bem mais ameno do que o da nota anterior.

Posição de unidade

Na verdade, as forças dos golpistas não permitiram que eles fossem além da deposição de Getúlio. Tanto que no mesmo dia 10 de novembro de 1945 o Partido obteve o registro como apto a participar das eleições. Nas eleições, os comunistas elegeram catorze deputados e Prestes como senador. Getúlio também foi eleito senador por dois estados: Rio Grande do Sul pelo Partido Social Democrático, e por São Paulo, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Mas deu as costas para a Constituinte. Grabois disse que ele recebeu muitos votos de amplas camadas populares e estava plantado em São Borja, no Rio Grande do Sul, onde se refugiou em sua fazenda. Para os comunistas, a atitude de Getúlio deixava o PTB, criado por ele, como linha auxiliar do PSD de Dutra, eleito presidente da República.

Um caso ocorreu quando o deputado e general Euclides Figueiredo (UDN-RJ) sugeriu a revogação de artigos da Lei de Anistia decretada em 18 de abril de 1945 que impedia a reintegração dos militares anistiados aos postos anteriormente ocupados. O deputado Segadas Vianna (PTB-DF), manifestando a posição da bancada trabalhista — que, segundo Grabois, entrou no Palácio Tiradentes na “garupa do ex-ditador” —, criticou a proposta.

No encaminhamento da posição da bancada comunista, Grabois disse que ao pôr em liberdade os presos políticos Getúlio não concedeu anistia. Tivesse concedido, o assunto estava encerrado. “Anistia significa esquecimento e vemos que o governo não esqueceu, mas, ao contrário, procura perpetuar mentiras contra brasileiros dignos e honestos”, afirmou. E lamentou a posição assumida pela bancada do PTB. “É triste para nós, democratas, ver que, neste recinto, tomam a defesa de uma causa ingrata aqueles que se dizem representantes dos trabalhadores e lhes pediram votos, prometendo pugnar, aqui, pelos interesses do proletariado. São esses homens que estão à vanguarda da reação no Brasil, colocando-se contra a democracia, contra os trabalhadores”, discursou.

Para Grabois, a vergonhosa decisão da bancada do PTB era uma traição também aos interesses nacionais. “Nós, comunistas, nos declaramos dispostos a esquecer todas as perseguições que sofremos. Ninguém mais do que nós, comunistas, teve o sentimento de esquecer tudo o que foi articulado contra nós, todas as torturas físicas que padecemos. Não vimos a esta tribuna desfiar as pretensões que nos foram feitas. Isso é do conhecimento de todos. Fazendo essa declaração de voto da bancada comunista, reafirmo a nossa posição de unidade, de cooperação e de paz. Achamos que o requerimento do deputado Euclides Figueiredo é o melhor teste democrático para os representantes (da Constituinte)”, finalizou, entre aplausos.

Briga na rua

Na verdade, o processo de democratização do país entrava em uma fase de declínio. A UDN, que no início do governo Dutra se opusera ao PSD e ao PTB, começava a rachar, com um grupo indo se juntar aos que atacavam os comunistas. Depois de certo tempo, Getúlio deu o ar da graça numa acalorada sessão da Constituinte. Aliomar Baleeiro (UDN-BA) apontou o dedo para Getúlio dizendo que ele era culpado pelo clima de repressão que voltava ao país. A fala incendiou a bancada getulista, cuja gritaria ganhou o reforço de alguns constituintes de outros partidos. Chegou-se às ameaças de agressão, que não se consumaram por conta da ação de outros parlamentares menos exaltados.

Ao remover águas passadas, Aliomar Baleeiro trouxera à tona velhos ressentimentos e provocara o instinto belicoso de Getúlio. Segundo o deputado baiano, se o ex-presidente quisesse se defender das acusações era só ocupar a tribuna que ele estava ocupando naquele momento. E foi o que Getúlio fez. Na tribuna, o ex-presidente começou a discursar calmamente, dizendo que quando as duas câmaras se separassem para assumir o papel legislativo ele prestaria informações ao país sobre o seu governo. Quando o ex-presidente foi aparteado pelo deputado Souza Leão (PSP-AL) dizendo que no passado ele não procedera assim, o caldo entornou.

Getúlio respondeu: “Quando for votada a Constituição, falarei ao público para definir minha posição perante a história de minha pátria. Mas, para que não suponham que haja nesta atitude qualquer vislumbre de receio, venho declarar que, se houver alguém que tiver contra mim motivos de ordem pessoal ou se julgar com direitos ao desagravo ou injúria, fora do recinto desta Assembleia, eu estarei à sua disposição.” O desafio de Getúlio, chamando seus desafetos para brigar na rua, foi recebido com espanto. Enquanto deixava o Palácio Tiradentes, o general Euclides Figueiredo, de pé no recinto, disse que se não houvesse quem aceitasse o desafio ele se candidatava ao pugilato. Foi contido por um grupo de parlamentares que o convenceu a desistir da ideia.

Logo surgiu a campanha para a cassação da legalidade dos comunistas, quando o obscuro deputado Barreto Pinto (PTB-DF) — eleito com apenas quatrocentos votos por conta da grande votação obtida por Getúlio e, segundo os comunistas, um integralista que ajudou a apunhalar o parlamento brasileiro em 10 de novembro de 1937 — defendeu a ideia em entrevista ao jornal O Globo.

O jornal foi ouvir o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Waldemar Falcão, que declarou: “Os senhores devem ler a lei eleitoral.” Mas os discípulos de Barreto Pinto, conforme diziam os comunistas, lendo ou não a lei eleitoral, com o apoio da mídia entraram de cabeça na campanha pela cassação do registro do Partido, que logo ganharia o reforço do ex-conselheiro do Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, Himalaia Virgulino — caracterizado pela Tribuna Popular como um “lombrosiano”, indivíduo que apresenta traços físicos típicos de criminoso nato, segundo a teoria do criminologista italiano Cesare Lombroso, que iniciou os estudos da antropologia criminal ao publicar, em 1874, o livro L’uomo delinquente (O homem criminoso).

Aliança em São Paulo

Prevendo dias piores, Pomar aproximou-se de Adhemar de Barros, ex-interventor do Estado Novo em São Paulo e industrial, com vistas a estabelecer uma aliança eleitoral. A ideia inicial era apoiar Prestes Maia, o candidato de Getúlio. Prestes teria conferenciado com o ex-presidente sobre o assunto, segundo os jornais paulistas. Depois de algumas vacilações, Prestes Maia declarou que não aceitaria ser candidato e Getúlio voltou-se para a candidatura de Adhemar de Barros.

Em entrevista coletiva em São Paulo no dia 13 de dezembro de 1946, Pomar afirmou: “A nossa legalidade e a democracia são o nosso primeiro objetivo. A defesa da Constituição é para nós fundamental. Compreendemos que o momento é muito grave. Ainda não há unidade das forças políticas para a defesa da ordem constitucional democrática, que é o que nos interessa, por interesse ao povo brasileiro.”

O Diário da Noite, em sua edição de 21 de dezembro de 1946, disse que Prestes Maia pedira uma conversa com Adhemar de Barros, com quem conferenciou demoradamente sobre a situação política em São Paulo. O assunto seria o lançamento da candidatura de Adhemar com o apoio dos comunistas, questão tratada com Getúlio, conforme declaração de Pomar, segundo o jornal. “Por outro lado, são bastante conhecidas as relações do senhor Prestes Maia com o Partido Comunista, pois sua própria senhora é membro militante daquela organização”, afirmou o Diário da Noite.

A aliança foi fechada na tarde do dia 3 de janeiro de 1947. As candidaturas comunistas de Pomar e Arruda para deputado federal seriam transferidas para o então recém-criado Partido Social Progressista, pelo qual Adhemar de Barros se candidataria a governador. A aliança aproximava o industrial do eleitorado trabalhador e os candidatos comunistas se protegiam das ameaças do anticomunismo. De quebra, garantiam a candidatura ao Senado de Cândido Portinari. Adhemar de Barros seria eleito, assim como Pomar e Arruda.

Traição de Adhemar de Barros

Segundo Arruda, a eleição para o Senado foi fraudada. “Nós elegemos um senador, que foi o Cândido Portinari, o grande pintor. Ele foi eleito. Basta dizer o seguinte: o Roberto Simonsen, que havia sido apoiado pelo PSD, pelo Getúlio e por todo mundo, estava atrás da votação de Portinari cerca de 50 mil votos. Essa noite ia ser fechada a ata geral das eleições em São Paulo. Na noite seguinte, para surpresa, os quase 50 mil votos de diferença a favor do Portinari haviam passado milagrosamente… ou melhor dito: foram roubados e passados para Roberto Simonsen. Quer dizer: o Roberto Simonsen não foi eleito pelo eleitorado. Foi eleito pelo Tribunal Estadual Eleitoral de São Paulo. O verdadeiro senador eleito foi Cândido Portinari”, diz ele.

Naquele ambiente tensionado, São Paulo seria um tabuleiro decisivo para a sucessão do presidente Dutra e atraía a atenção de todas as forças políticas do país. Com os olhos voltados para os movimentos políticos no estado, o governo federal pressionava Adhemar de Barros, exigindo que ele eliminasse a força dos comunistas. Estes, por sua vez, conclamavam as forças democráticas para que cerrassem fileiras contra novos golpes na democracia.

Em 18 de setembro de 1947, o governador mandara dissolver um comício comemorativo do primeiro aniversário da Constituição, no Vale do Anhangabaú, segundo Pomar um acontecimento vergonhoso. Para ele, Adhemar de Barros atentava contra a Constituição, tentando evitar, por todos os meios, que a palavra dos representantes do povo, e especialmente dos comunistas, chegasse às grandes massas.

Pomar escreveu na Tribuna Popular que o governador tomava tal atitude porque “as tradições de liberdade da gente de Piratininga” estavam contra sua posição de mero interventor da “ditadura” em São Paulo. “Adhemar de Barros, se tem memória e se de fato é bom calculista, deve compreender que as forças que o elevaram ao governo do estado em 19 de janeiro longe de se enfraquecerem tornaram-se mais poderosas. E essas forças não compactuam com a sua traição”, escreveu.

Manifesto de Agosto

Uma das campanhas anticomunistas no estado de São Paulo dava conta de suposta reaproximação dos comunistas com Getúlio. As tropelias contra os comícios que citavam o ex-presidente eram denunciadas por Pomar e outros parlamentares comunistas sempre que surgiam informações de truculências promovidas pelo governo paulista. Na Câmara dos Deputados, Pomar protestou contra um projeto que considerava feriado o dia 29 de outubro, data do golpe que tirou Getúlio da Presidência da República em 1945.

Pomar, contudo, não apoiou a volta de Getúlio à Presidência da República. Segundo ele, sua candidatura era resultado de uma solução eleitoral reacionária para a crise do país. A base de seu argumento foi o impedimento à participação nas eleições das personalidades “mais populares do povo, como Luiz Carlos Prestes, João Amazonas, Gregório Bezerra e tantos outros líderes da classe operária”, depois da cassação do registro do Partido em 1947 e dos mandatos comunistas em 1948. A outra solução seria a golpista, não levada a cabo por conta das vacilações das classes dominantes.

O caráter e o sentido das eleições, segundo a visão dos comunistas, foram comentados por Prestes no Manifesto de Agosto de 1950, lido na íntegra por Pomar na tribuna da Câmara dos Deputados. Pressionado pelo deputado Aureliano Leite (PSD-SP) a dizer em quem os comunistas votaram, Pomar afirmou que não pretendia fazer um balanço geral, mas denunciar à nação os motivos que levaram a reação a afastar os comunistas daquele processo.

Pomar explicou que era fácil verificar que os comunistas não tiveram candidatos próprios. “Então vossa excelência quer dizer, com rodeios, em outras palavras, que os comunistas não votaram nessas eleições, não compareceram ao pleito?”, indagou Aureliano Leite. Depois de uma troca ríspida de perguntas e respostas, Pomar disse: “Vossa excelência está fazendo, aqui, um papel muito conhecido.” “Qual é? O de provocador?”, insistiu o deputado do PSD. “O de trapalhão, unicamente”, tascou Pomar.

Segundo Pomar, os comunistas diziam que tanto Getúlio como Cristiano Machado ou o brigadeiro Eduardo Gomes — os três principais candidatos à Presidência da República — não resolveriam os problemas que afligiam a grande maioria do povo. A atuação de qualquer um deles seria reacionária.

Guinada radical

Os comunistas haviam tomado uma linha que seria considerada esquerdista. O Manifesto de Janeiro de 1948 dizia que a luta pelas reivindicações imediatas das massas trabalhadoras deveria ser organizada dentro das entidades sindicais já existentes ou, onde isso fosse impossível, em novas organizações profissionais criadas nos próprios locais de trabalho. A indicativa de formação de associações profissionais estava vinculada à impossibilidade de atuação nos sindicatos existentes sob a intervenção do Ministério do Trabalho.

Grabois disse, num texto intitulado Mobilizar grandes massas para defender a paz e derrotar o imperialismo e a ditadura, de agosto de 1949, que a posição de abandonar os sindicatos oficiais, que a militância sindical havia compreendido esquematicamente a importância da criação das associações profissionais. O fundamental para os comunistas era a organização por local de trabalho e as lutas pelas reivindicações econômicas imediatas dos trabalhadores.

Os comunistas, apesar das duras críticas à estrutura sindical vigente, lutavam por eleições livres para as direções sindicais, sem a intervenção direta do Ministério do Trabalho, e o fim do imposto sindical como condições para o estabelecimento da efetiva liberdade sindical.

No balanço sobre o desenvolvimento da sua política sindical desde o início de 1948, a direção do Partido foi bastante crítica. O documento Ampliar a organização e a unidade da classe operária, aprovado em julho de 1952, diz que os comunistas não haviam posto em prática a unidade do movimento operário. A própria diretiva de organização nas empresas, acertada em princípio, para ser justa deveria ter apresentado claramente como tarefa precípua o reforço da luta dos trabalhadores e levá-los à conquista de seus sindicatos e não à criação de novas associações profissionais ou de uma nova organização sindical no país.

O debate se deu num contexo de guinada radical à esquerda. Segundo Arruda, o Partido saíra de uma posição “oportunista de direita”. “Hoje se olhando verifica-se, eu pelo menos acho, que a nossa linha política do período de 1945 a 1947 foi oportunista de direita. Nós acreditávamos que podíamos conquistar o poder através de um processo democrático, eleitoral, parlamentar etc. Éramos dirigentes jovens, os êxitos subiram à cabeça. Grandes vitórias, verdadeiramente desconhecidas na história do Partido e do movimento operário brasileiro. Bem… Mas nós tivemos muitas ilusões de classe. Entretanto, não podemos considerar, não creio correto, que era errada a política que adotamos em relação ao Getúlio. Tinham aspectos que deveriam ser corrigidos. Por exemplo: falar em ordem e tranquilidade — isso era uma atitude oportunista. Não querer realizar muitas greves — outra atitude oportunista. O apoio incondicional a Vargas — também uma atitude oportunista”, diz ele.

No Manifesto de Agosto, de 1950, os comunistas reafirmaram a linha esquerdista ao proporem a formação da Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN) que conduziria a massa pelo caminho das lutas revolucionárias, “como exigia os superiores interesses nacionais”. À medida que se agravava a situação do país e aumentava o perigo de guerra no mundo inteiro, cresciam a radicalização e a combatividade das massas trabalhadoras. E à frente delas deveriam estar os democratas e patriotas, que não podiam recear as formas de lutas mais altas e vigorosas, inclusive choques violentos com as forças da reação e os combates parciais que levariam o povo à luta vitoriosa pelo poder e à libertação nacional do jugo imperialista.

Reformas de base

Naqueles dias, os jornais divulgaram que Prestes se aproximava de Getúlio. Respondendo à pergunta de um jornalista sobre uma possível intervenção dos Estados Unidos no país caso ele fosse apresentado como candidato à sucessão de Dutra, Getúlio respondeu: “Recuso-me a acreditar nisso, pois pobre seria do país que dependesse da aprovação estrangeira para a escolha de seus dirigentes.” Ao comentar uma reportagem da revista norte-americana Time sobre os principais acontecimentos da metade do século XX no mundo, Getúlio disse que para ele os fatos mais relevantes foram “a Revolução Russa de 1917, a desintegração do átomo e a descoberta da penicilina”. “Pode-se acrescentar a primeira e segunda guerra mundial, pois sem uma não seria possível a Revolução Russa e sem a outra não se teria ainda resolvido o problema da desintegração do átomo”, complementou.

A repetição da Revolução Russa fez com que ele advertisse os jornalistas para a forma de divulgar o assunto. “Veja lá como vai publicar isso, senão ainda vão me considerar comunista”, recomendou. Getúlio comentou que nas eleições de 1945 e 1947 o Partido Comunista do Brasil se colocou contra o PTB e explicou que suas teorias sobre o que chamava de “reformas de base” em nada se pareciam com o “comunismo”. Não fazia sentido, portanto, segundo o ex-presidente, os boatos dos jornais dando conta de que Prestes fora visto atravessando a fronteira rio-grandense, fato que levou o chefe de polícia do estado a cercar todos os caminhos que levavam à fazenda Itu, no município gaúcho de Itaqui, onde Getúlio morava.

Segundo ele, os jornalistas estavam divulgando declarações que nunca dera e omitindo o que dissera. Um exemplo era a própria Time, que não publicou sua resposta sobre a iminência de uma guerra — hipótese considerada improvável por Getúlio — e sua opinião contrária à cassação do registro do Partido Comunista do Brasil. “Acho que o nosso governo, que tem imitado o governo americano em tantos pontos, também poderia imitá-lo neste”, falou. Sobre a ida de Prestes em sua fazenda, afirmou: “Essa foi uma medida ridícula. Se Prestes quisesse conferenciar comigo, ele não iria se arriscar a atravessar a imensa vastidão que separa a minha fazenda de qualquer centro urbano.”

Voto em branco

Os comunistas defenderam o voto em branco, mas, segundo o historiador Hélio Silva, muitos votos do Partido migraram para o PTB.  No documento Cinquenta anos de luta, Grabois e Amazonas escreveram que o Manifesto de Agosto mesclava questões programáticas e posições táticas, o que levava, na atividade prática, a interpretações esquerdistas. Além disso, apresentava a burguesia em bloco como força inimiga. “O Partido cai em posições sectárias, abstém-se de participar das eleições presidenciais de 1950, que levam Vargas outra vez ao poder. Diante do novo governo, o Partido se define. Sem levar em conta a situação real, adota atitude rígida de combate sistemático a Vargas, que obteve expressiva votação popular e representa, em certo grau, setores progressistas da nação”, avaliaram.

Eleito, Getúlio se deparou com problemas complexos. A alta do custo de vida, que se acelerou ainda no governo Dutra, agravou os conflitos sociais. A situação da balança de pagamentos se deteriorou rapidamente. O passivo foi coberto à custa de empréstimos contraídos no estrangeiro. Ao mesmo tempo, agravaram-se a falta de energia elétrica e os problemas com o transporte, afetando o desenvolvimento da economia.

O clima de “desassossego” se manifestava no governo, reflexo da luta entre as correntes nacionalistas e entreguistas. A solução adotada por Getúlio, de forte intervenção do Estado na economia, respondia à necessidade de “suprir as deficiências da iniciativa privada, ou acautelar os superiores interesses da nação, quer contra a ação predatória destas forças de rapina, que não conhecem a bandeira nem cultuam outra religião que não seja a do lucro”, segundo mensagem enviada pelo presidente ao Congresso Nacional.

A atenção do governo estava concentrada nas medidas que asseguravam o desenvolvimento pela via da industrialização, apoiado no capital nacional e orientado para o mercado interno. A heterogeneidade, no entanto, às vezes empurrava o governo para a colaboração com o capital estrangeiro, mas o presidente reforçava o controle nacional sobre todas essas operações. Por esse meio, pretendia solucionar os problemas da falta de divisas, do desemprego e da soberania do país. Para atingir esses objetivos, o presidente apelou para a colaboração dos trabalhadores e dos empresários, sob a arbitragem do Estado.

Ampla coalizão

O país que vagueava sem rumo começava a ter nova feição. Getúlio atendeu a algumas reivindicações dos trabalhadores das camadas inferiores das cidades, angariando considerável popularidade. Em 1951, uma lei proibiu os bancos e pessoas particulares de cobrar juros anuais sobre créditos superiores a 12%. Em janeiro de 1952, o salário-mínimo, sem aumento desde 1943, recebeu um reajuste considerável. Apesar dessas medidas, o impulso da onda grevista que surgia no país aumentou. Em 1951, 264 mil trabalhadores participaram de greves. Em 1952, esse número subiu para 411 mil e, em 1953, chegaria a 800 mil.

O PTB não dispunha de maioria no Congresso Nacional. Para ter governabilidade, o presidente formou uma ampla coalizão. Mas os partidos de direita, a mídia e muitas organizações empresariais formaram uma aliança conspiradora e passaram a hostilizar Getúlio. O apoio limitado à lógica da Guerra Fria e o estabelecimento do controle nacional sobre o petróleo com a criação da Petrobras provocaram irritação nos Estados Unidos que, em 1953, retiraram seus técnicos de uma comissão americano-brasileira de cooperação econômica criada por Dutra.

Quando Getúlio voltou à Presidência da República, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria. Ele iniciou uma administração dúbia, cedendo aos setores golpistas das Forças Armadas, porta-vozes dos interesses militares norte-americanos, com o acordo militar Brasil-Estados Unidos — segundo Pomar um “tratado de colonização, de terror e de guerra”, conforme ele escreveu no jornal comunista Voz Operária —, ao passo que amainava a repressão política. Com o passar do tempo, o governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investirem no país. O clima golpista se instalou. O pavio começou a arder atrás de Getúlio.

Empedernido tirano

Ao analisar aquela conjuntura, o Partido classificou o governo de Getúlio como de preparação de guerra e de traição nacional. O presidente era um instrumento útil e necessário aos imperialistas, que facilitava a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos. Grabois, no jornal comunista Voz Operária de 9 de fevereiro de 1952, desancou Getúlio ao lembrar a passagem do primeiro aniversário da sua posse. Chamou-o de “velho opressor e explorador do povo brasileiro”, “politiqueiro”, “latifundiário”, “tirano” e “demagogo”. “Há doze meses o empedernido tirano empolgava o poder através da intensa e cínica demagogia, fazendo sem o menor escrúpulo toda espécie de promessas, explorando com a mais deslavada má fé os profundos sentimentos anti-imperialistas do nosso povo e as aspirações das grandes massas a uma vida melhor.”

O presidente, afirmou Grabois, só foi eleito porque enganou o povo. “O politiqueiro da república velha, o ditador sem entranhas no Estado Novo, as vésperas das eleições de outubro de 1950, afivelava à face nova máscara e apresentava-se sem qualquer cerimônia aos trabalhadores como defensor dos interesses nacionais e reivindicações populares. ‘Trago-vos a bandeira das reivindicações sociais e do nacionalismo econômico’, afirmava com descaramento o candidato Vargas aos eleitores que buscavam por um novo regime social e desejavam a emancipação do país do jugo imperialista. Vargas proclamava-se solenemente candidato do povo e declarava não ser candidato nem dos interesses privados de grupos.”

Segundo ele, bastou um ano de atividade do governo para confirmar em toda a plenitude e justeza das palavras de Prestes e de seu Partido, antes das últimas eleições presidenciais, de que Getúlio continuaria a política de Dutra, “política de traição nacional, de guerra e de entrega do país aos monopolistas norte-americanos, de esfomeamento e perseguições contra o povo”. “Os atos do atual governo desmentem todas as afirmações demagógicas de Getúlio e negam todas as suas promessas de candidato. Na verdade, o governo de Vargas evidenciou ser um governo dos ricos contra os pobres.”

Para Grabois, a saída era contrapor sempre às soluções das classes dominantes a “solução de Prestes”, que indicava “a todo povo brasileiro o caminho da luta por um governo democrático popular”. “Se agirmos de outro modo, as massas serão novamente ludibriadas por qualquer aventureiro que apresente uma plataforma demagógica”, afirmou. “Diante do rápido desmascaramento do demagogo Vargas, quando os trabalhadores, pela própria experiência, começam a comprovar a justeza da orientação dos comunistas, devemos nos colocar audaz e corajosamente à frente da classe operária e do povo na luta por suas reivindicações políticas e econômicas imediatas, elevando cada vez mais o nível dessas lutas, aumentando-as sempre de acordo com o amadurecimento político e o grau de radicalização das massas, no sentido da luta pela paz, contra o imperialismo ianque, por um governo democrático popular.”

Derrubada do governo

O IV Congresso do Partido, realizado em 1954, deu forma às ideias que pontuaram os documentos desta fase dos comunistas, realçando o caráter anti-imperialista da revolução naquela etapa histórica. O Programa aprovado previa a substituição do governo por outro capaz de defender a soberania nacional, expulsando do território brasileiro os domínios e as missões dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, anularia os acordos lesivos com os norte-americanos e estabeleceria relações amistosas com a URSS e demais países do campo da paz.

No início dos debates do Congresso, Grabois polemizou com o histórico membro do Partido Fernando Lacerda sobre o governo de Getúlio. “Aproveitando os debates que se processam para o IV Congresso, arremete, agora, contra o Programa do Partido. Mas na reunião de dezembro do Comitê Central que aprovou o projeto de Programa do Partido manifestou Fernando Lacerda seu apoio ao projeto em debate. Assim agindo, dá uma demonstração de leviandade, de que não prima pela coerência, nem pelo respeito ao organismo a que pertence.”

Segundo Grabois, Fernando Lacerda pretendia suprimir do Programa toda referência à derrota ou à derrubada do governo Getúlio. “Esta sugestão, aparentemente inocente, se aceita, eliminaria do Programa do Partido sua essência revolucionária. Sob o pretexto de luta contra hipotéticos ‘delírios esquerdistas’. Fernando Lacerda procura impedir a luta firme e decidida do povo brasileiro pela derrubada do governo de Getúlio para acabar com o regime dos latifundiários e dos grandes capitalistas, dos imperialistas norte-americanos.”

Não havia no projeto de Programa, disse, a diretiva imediata de derrubada do governo Getúlio. “Onde está no Programa o apelo à ação para derrubar, agora, o governo de Vargas? Fernando Lacerda dá a entender que o Programa do Partido manda preparar tecnicamente a derrubada do governo Vargas, que o Partido está organizando a insurreição e assim alimenta ‘tendências e ilusões putchistas de certos democratas e patriotas e de importantes massas que os escutam’”, afirmou.

O problema era a visão estratégica sobre o país e não aquele governo especificamente. “Admitindo-se que tudo corra normalmente e que em 1955 haja eleições para presidente da República, é justa a afirmação do Programa do Partido de que é indispensável a derrubada do governo Vargas? Sim. Esta afirmação é inteiramente correta e oportuna. O Programa proclama: ‘Se queremos viver e prosperar, se queremos que nossa pátria alcance o futuro radioso a que tem direito, se queremos nos livrar da odiosa escravidão americana e tirar nosso povo do atraso, da miséria e da ignorância em que vegeta, é indispensável acabar com o regime dos latifundiários e grandes capitalistas a serviço dos imperialistas norte-americanos, derrubar o governo Vargas’. Fica, portanto, perfeitamente claro no Programa que o povo brasileiro só se libertará do jugo dos imperialistas norte-americanos, do atraso e da ignorância em que vive, liquidando com o regime de latifundiários e grandes capitalistas a serviço do imperialismo ianque.”

Não se tratava de simples mudanças de homens do poder, mas mudar de regime, substituí-lo por outro, democrático e popular, asseverou Grabois. “Todo Programa está impregnado dessa tese. Mas a luta contra o atual regime e pela conquista do regime democrático popular não é uma coisa abstrata, nem é um objetivo longínquo pelo qual só é possível lutar daqui a alguns anos, como deseja Fernando Lacerda. A luta por este objetivo é uma luta atual, a ser realizada de acordo com as presentes condições objetivas e subjetivas. Como, no entanto, lutar contra o atual regime, sem lutar pela derrubada do governo que representa os latifundiários e grandes capitalistas a serviço dos monopólios norte-americano contra o governo de Vargas?”

Suicídio de Getúlio

Aquela era a razão por que o Programa indicava a necessidade de substituir o “governo antipopular e antinacional, o governo de Vargas, por um governo democrático de libertação nacional”. “Para derrubar o atual regime de latifundiários e grandes capitalistas a serviço dos monopólios ianques é preciso lutar, hoje, pela derrota do governo de Vargas, sem especular se o governo Vargas deixará de existir ou não em 1955. Trata-se, agora, de unificar todas as forças democráticas, progressistas, nacionais e libertadoras para substituir o governo Vargas pelo governo democrático de libertação nacional. A maior ou menor rapidez na conquista deste objetivo dependerá do ritmo de fortalecimento e unificação das forças interessadas na libertação do Brasil do jugo imperialista norte-americano e na instauração de um regime de paz e felicidade para o povo.”

Para ganhar as grandes massas para o Programa do Partido, disse Grabois, era preciso empregar uma tática a mais ampla possível, utilizando, hábil e flexivelmente, todos os meios ao alcance e todas as oportunidades que surgissem. “A campanha eleitoral é uma dessas grandes oportunidades. As eleições despertam milhões para a vida política. Cada dia que passa o povo brasileiro revela abertamente o seu descontentamento com o governo antipopular e de traição nacional de Vargas e com a proximidade das eleições, manifesta por todos os modos seu desejo de mudar a política dos atuais governantes e de encontrar a saída para seus angustiantes problemas.”

O Partido teria de digerir o suicídio de Getúlio, em 24 de agosto sw 1954. A morte dramática do presidente pegou os comunistas no contrapé. Enquanto faziam oposição pela esquerda, a direita promovia um violento ataque ao seu governo. Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou sua morte, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais, inclusive um do Partido, no Rio Grande do Sul.

O episódio ocorrera bem no auge dos debates do IV Congresso, apesar de não ter sido objeto de discussão. A proposta de Programa, no entanto, foi aprovada com a supressão das passagens em que Getúlio era pesadamente criticado. Prestes diria depois que, com o recrudescimento das ameaças da direita, os comunistas cogitavam apoiar o presidente em caso de golpe.

Força do povo

Em um Manifesto do Comitê Central, o Partido carimbou o governo do presidente Café Filho, o vice de Gertúlio, como “ditadura americana” e se disse disposto à união para salvar a democracia. E diagnosticou que novos e maiores perigos ameaçavam a vida e a segurança do povo brasileiro. Pela força das armas, os piores inimigos do povo conseguiram chegar ao poder. Os que levaram Getúlio ao suicídio eram os mais vis lacaios dos provocadores de guerra dos Estados Unidos, que protagonizaram um ato revelador da brutalidade dos métodos norte-americanos de dominação e pôs a nu a violência com que os agentes do Departamento de Estado faziam e desfaziam governos no Brasil. “Nós, comunistas, lutamos pela derrubada do atual governo e por um governo democrático de libertação nacional, mas estamos prontos a entrar em entendimentos com todas as forças políticas, líderes políticos e correntes patrióticas que queiram unir-se em torno de uma plataforma democrática a fim de derrotar eleitoralmente as forças da reação e do entreguismo”, dizia o documento.

Segundo Prestes, a mobilização popular surgida logo após a morte de Getúlio revelara aos comunistas que a real força do povo brasileiro, que estaria disposto a defender a liberdade e a independência da pátria, estava vertebrada pelos comunistas e trabalhistas, estes vistos agora como “irmãos”. “Foram os acontecimentos, portanto, que nos colocaram no mesmo terreno de luta. Trabalhistas e comunistas lutamos contra o mesmo inimigo, que é o imperialismo norte-americano, lutamos contra seus agentes em nosso país — os generais fascistas e os politiqueiros reacionários da UDN”, disse. Seria uma união contra os entreguistas, que deveriam ser derrotados nas urnas ainda em 1954, quando o país elegeria representantes para o Congresso Nacional, assembleias legislativas, câmaras de vereadores, além de alguns governadores e prefeitos.

O Comitê Central decidiu indicar ao eleitorado os nomes de Juscelino Kubitscheck e João Goulart aos cargos de presidente e vice-presidente da República. Para o Partido, em torno daquelas candidaturas poderiam ser agrupadas amplas forças que se oporiam ao golpe e defenderiam a Constituição e as liberdades democráticas para garantir a realização das eleições em 3 de outubro. Amazonas conta que ele e Lincoln Oest, este também membro do Comitê Central, conversaram com o candidato Juscelino Kubitschek. Segundo Amazonas, ele disse: “Vocês têm no Brasil o que: trezentos mil votos? Numa eleição presidencial trezentos mil votos não têm importância nenhuma. Agora, se eu for eleito vou mandar suspender essa perseguição jurídica que há aí contra vocês. Eu vou parar com isso.”

Juscelino Kubitscheck seria eleito com menos de trezentos mil votos de diferença em relação ao segundo colocado, com a vigorosa “campanha antigolpe” promovida pelo Partido. Mas a posse do presidente eleito só foi possível porque o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, com uma ação armada neutralizou o golpe que pretendia “liquidar as liberdades públicas e rasgar a Constituição” para implantar “no Brasil uma ditadura terrorista a serviço dos monopólios norte-americanos”, de acordo com uma nota do Comitê Central do Partido.

Imposições de Prestes

Nos debates do V Congresso do Partido Comunista do Brasil, em 1960, que levariam à sua reorganização em 1962, Pomar disse que a atitude diante do governo de Getúlio no período 1951-1954 não fora correta. As consequências daquele erro também ficaram visíveis, mesmo antes do suicídio do presidente. Os comunistas sofreram golpes em sua própria carne. Era uma crítica a um artigo de Prestes que, segundo Pomar, superdimensionava o erro dos comunistas, que levava à ideia de que Getúlio fora um grande líder anti-imperialista que os comunistas ajudaram a matar.

Não queria excluir a responsabilidade dos comunistas no caso, mas ela deveria ser melhor pesada, afirmou. Pomar indagou: o que revelou a crise governamental de 1954, do ponto de vista do agravamento das contradições internas e anti-imperialistas? Por que Vargas não se matou em 1945, por ocasião do golpe de 29 de outubro? Lembrou que o Partido apoiava Getúlio e manifestara disposição de resistir ao golpe. Sempre, porém, na dependência de que ele tomasse a iniciativa de resistir.

Pomar revelou que aquele erro se devia ao sistema existente no Partido, a começar pela sua direção. Tanto o Manifesto de Agosto de 1950 como a decisão de abster-se na luta eleitoral de outubro de 1950 foram aprovados contra a vontade da maioria da direção. Foram impostos porque assim queria principalmente Prestes. Entre parênteses, disse que não queria lembrar, naquele momento, a imposição sobre a luta pela renúncia de Dutra, feita por Prestes em tais termos que seria quase impossível acreditar. Recordava também que a decisão de não aliar-se ao PTB nas eleições municipais de 1951 tinha sido levada adiante com o esmagamento impiedoso dos discordantes, que mesmo timidamente manifestaram-se contra a infantilidade da posição do Partido.

Naquela época já se podia observar certo desalento nas fileiras comunistas e perceber que a linha política claudicava diante dos acontecimentos que se precipitavam, como os de 24 de agosto de 1954 (data do suicídio de Getúlio) e os de 11 de novembro de 1955 (posse de Juscelino Kubitscheck), analisou. Pomar constatou que nas fileiras comunistas propagou-se rapidamente uma sensação de frustração, sobretudo nos setores da intelectualidade ligada aos comunistas ou sob a influência do Partido. “Cresceu a confusão ideológica em face das enormes vacilações da direção partidária e da sua impotência para enfrentar os ataques dos revisionistas”, comentou.

– Lideranças sindicais destacam, em nota, legado de Getúlio Vargas

Getúlio Vargas, presente!

Neste 24 de agosto de 2024 completam-se 70 anos da trágica morte do presidente Getúlio Vargas. Como estadista, modernizador, comprometido com o povo e com o país, sua memória deve ser reverenciada.

Todo trabalhador e trabalhadora do Brasil que tem carteira profissional, jornada regulamentada, férias, licença maternidade, representação e benefícios das convenções coletivas é herdeiro do legado de Getúlio. Todos os filhos e filhas de trabalhadores, criados sob a segurança proporcionada pela CLT, é herdeiro deste legado.

Como sindicalistas lutamos para que este patrimônio do povo brasileiro se fortaleça.

Getúlio rompeu com a oligarquia de fazendeiros que controlava o país antes de 1930 e conseguiu implementar um projeto de desenvolvimento que contemplava lutas sindicais, reformulando as relações de trabalho.

Em seu governo foi criado o Ministério do Trabalho e Emprego, regulamentada a sindicalização das classes operárias e patronais, criado o Primeiro Código Eleitoral do país, a carteira profissional e consolidadas diversas leis trabalhistas em 1º de maio de 1943.

Através da criação de grandes empresas nacionais como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale) e a Petrobras, estabeleceu-se o protagonismo de um sistema industrial na economia estimulando a mobilidade social. Com diferentes arranjos políticos e institucionais, o Brasil mudou de sociedade agrário exportadora de base rural para uma sociedade urbano-industrial.

Isso exigiu uma mudança de mentalidade contra a qual a elite de perfil escravocrata reagiu de forma contundente e violenta. Sobre sistemática pressão, em 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas decidiu tirar a própria vida ao invés de ceder às chantagens da elite golpista.

Seu suicídio desencadeou uma grande comoção nacional, como registrou o escritor Araken Távora [1]:

“Homens e mulheres, velhos e moços, caíam ao chão, sob fortes choques emocionais, enquanto outros não continham o pranto convulso. Os vivas a Getúlio misturavam-se aos versos do Hino Nacional, cantado por um côro de milhares de vozes. Cumpria-se, dramaticamente, a promessa de Vargas: ‘Só morto sairei do Palácio’”.

Quando a Carta-Testamento deixada pelo presidente foi transmitida pela Rádio Nacional, a comoção cresceu ainda mais.

Na Carta, Vargas enfatizou a soberania e a valorização do povo trabalhador, não deixou dúvida sobre as pressões políticas que precipitaram sua morte e disse que seus detratores se revoltavam “contra o regime de garantia do trabalho”. “Não querem que o trabalhador seja livre”, sentenciou.

Ao final, através de palavras carregadas de emoção, exaltou a população que quis libertar: “Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém” (…) “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.

A perseguição ao legado getulista adentrou os governos seguintes até consagrar-se no golpe de 1964. A ditadura militar e os anos subsequentes, de aprofundamento do neoliberalismo, foram marcados pela tentativa de dilapidar o que foi construído em termos de legislação trabalhista, patrimônio e soberania nacional.

Mas as mudanças protagonizadas por Getúlio Vargas foram sólidas e profundas e, mesmo com as investidas udenistas, mesmo com a ditadura militar e mesmo com a lógica dominante do mercado, o conjunto de leis consolidado em 1º de maio de 1943 ainda é o porto seguro da classe trabalhadora.

É por isso que lutamos, e é por isso que estamos aqui hoje prestando esta homenagem a este grandioso estadista brasileiro: Getúlio Dornelles Vargas!

Miguel Eduardo Torres, presidente da Força Sindical.

Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT).

Adilson Araújo, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Antônio Neto, presidente da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB).

Moacyr Tesch Auersvald, presidente da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST).

José Gozze, Presidente da PÚBLICA, Central do Servidor.

Aires Ribeiro, presidente da Confederação dos Servidores Públicos Municipais do Brasil (CSPB).

Alberto Broch, vice-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

Aldo Amaral de Araujo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias e Obras de Terraplenagem no Estado de Pernambuco.

Alex Santos Custódio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Betim.

Alvaro Egea, secretário geral da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB).

Antonieta Dorledo Farias, presidente do Sindicato dos Servidores do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Sisipsemg).

Antonio Vitor, presidente da Federação dos Trabalhadores em Alimentação de São Paulo.

Aprígio Guimarães, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI).

Artur Bueno de Camargo Junior, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (CNTA).

Assis Melo, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias do Sul.

Augusto Vasconcelos, presidente do Sindicato dos Bancário da Bahia.

Canindé Pegado, secretário geral da União Geral dos Trabalhadores (UGT).

Clarice Inês Mainardi, presidente da Federação dos Municipários do Rio Grande do Sul (Femergs).

Cláudio Figueroba Raimundo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e Cultura (Cnteec).

Cristina Helena Silva Gomes, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Itapira.

Diany Dias, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Mato Grosso (Sintap).

Eduardo Annunciato (Chicão), presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo.

Eliseu Silva Costa, presidente da Federação dos Metalúrgicos de São Paulo.

Emerson Silva Gomes, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Pesada (Sintepav) da Bahia

Eusébio Pinto Neto, presidente do Sindicato dos Empregados em Postos de Combustíveis do Rio de Janeiro.

Francisco Moura, presidente do Sindicato dos Taxistas do Ceará (Sinditaxi).

Francisco Pereira (Chiquinho), presidente do Sindicato dos Padeiros de São Paulo.

Gilberto Almazan (Ratinho), presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região.

Gilberto Dourado, presidente do Sindicato dos Telefônicos do Estado de São Paulo (Sintetel).

Gustavo Walfrido, presidente da Federação dos Bancários de Alagoas, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

Gustavo Walfrido, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT) de Pernambuco.

Jefferson Caproni, presidente do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem de São Paulo.

João Carlos Gonçalves (Juruna), secretário geral da Força Sindical.

Jose Avelino Pereira (Chinelo), presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Itatiba.

Jose Ferreira da Silva (Frei Chico), vice-presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados.

José Francisco de Jesus Pantoja Pereira, presidente da Federação dos Trabalhadores no Comércio do Para e Amapá

José Ribamar Frazão Oliveira, presidente do Sindicato dos Empregados em Condomínios do Maranhão.

Lucia Maria Pimentel, diretora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Luiz Carlos Motta, presidente da Federação dos Comerciários de São Paulo (Fecomerciarios).

Marcelo Lavigne, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT) Bahia.

Márcio Ayer, presidente do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro.

Marcio Ferreira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Borracha de São Paulo (Sintrabor).

Maria Auxiliadora dos Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Instrumentos musicais e Brinquedos do Estado de São Paulo.

Maria Bárbara, presidente da Federação dos Empregados em Estabelecimentos de Saúde do Rio de Janeiro.

Maria Lúcia Nicacio, presidente do Sindicato Trabalhadores Rurais de Manaus e Região.

Milton Baptista de Souza (Cavalo), presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos.

Murilo Pinheiro, presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo.

Nilson Duarte da Costa, presidente Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Pesada do Rio de Janeiro.

Nilton Neco da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio de Porto Alegre.

Nivaldo Santana, secretário de relações internacionais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Oswaldo Mafra, presidente dos Trabalhadores em Alimentação de Itajaí.

Paulo Ferrari, presidente do Sindicato dos Empregados em Edifícios de São Paulo.

Paulo Oliveira, presidente do Sindicato dos Empregados de Agentes Autônomos do Comércio (Seaac) de Presidente Prudente.

Pedro Francisco Araújo, presidente da Federação dos Trabalhadores em Segurança e Vigilância Privada do Estado de São Paulo.

Raimundo Firmino dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral.

Renê Vicente, primeiro tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema).

Ricardo Pereira de Oliveira, presidente interino do Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região.

Rogério Fernandes, presidente da Federação dos Empregados em Serviços de Saúde de Minas Gerais.

Rosa de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Supermercados da Bahia.

Rui Oliveira, primeiro secretário da Associação dos Professores Licenciados do Brasil, Secção da Bahia (APLB/Sindicato).

Ruth Coelho Monteiro, secretária nacional de cidadania e direitos humanos da Força Sindical.

Sérgio Arnaud, presidente da Federação dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul.

Sérgio Butka, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba.

Sergio Luiz Leite, presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias. Químicas e Farmacêuticas do Estado de São Paulo (FEQUIMFAR).

Severino Ramos de Santana, presidente do Sindicato dos Comerciários de Recife.

Ubiraci Dantas, vice-presidente Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Valdir de Souza Pestana, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestre (CNTTT).

Valéria Morato, presidente do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (Sinpro).

Vicente Selistre, vice-presidente do Sindicato dos Sapateiros de Campo Bom.

Wilson Pereira, presidente Confederação Nacional dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade (Contratuh).

[1] Távora, Araken, O Dia em que Getúlio Morreu, Editora do Reporter, 1966

– A longa Revolução de Getúlio Vargas

Por Osvaldo Bertolino

Na passagem dos setenta anos do suicídio de Getúlio Vargas, na madrugada de 24 de agosto de 1954, o balanço de sua era revela que o Brasil é o que é, com seus vícios e virtudes, seus esplendores e suas misérias, graças, fundamentalmente, às mãos que o conduziram a partir da Revolução de 1930. Após sair da pasmaceira que deu o tom da República Velha, o país entrou no período difuso do Estado Novo para em seguida chegar à era da “união nacional”.

Getúlio Vargas (o dos anos 1930) industrializou um Brasil que praticamente só plantava café. Derrubado por militares, quando seu projeto unitário avançava a passos largos, foi substituído, nas eleições de 1945, pelo general Eurico Gaspar Dutra — francamente pró-americano no processo de nascimento da Guerra Fria. Seu governo foi determinante para a formação, no Brasil, de dois campos abertamente em conflito.

Dutra perseguiu os patriotas — em seu governo, o registro do Partido Comunista do Brasil (então PCB) e a bancada parlamentar comunista foram cassados — e franqueou o país aos interesses dos Estados Unidos. Nas eleições seguintes, este projeto entreguista sofreu uma derrota — Vargas venceu em 1950 com um projeto de programa nacional. Ameçado de novo golpe, saiu morto do Palácio do Catete, então a sede do governo no Rio de Janeiro.

Em 1956, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República também sob ameaças. Fez um governo de conciliação, com boa dose de apoio da sociedade, e foi sucedido por Jânio Quadros. Os gestos histriônicos e os bilhetes teatrais do novo presidente pouco fizeram além de criar um clima de grande tensão política no país. Sua renúncia abriu lugar a outro presidente popular, João Goulart — fato que despertou a ira dos interesses dominantes.

O golpe militar de 1964 condensou um processo histórico de luta da elite contra o povo, que ganhou contornos bem definidos no segundo período Vargas: o modelo entreguista, alheio ao interesse nacional, versus o desenvolvimento. No ciclo militar, o país sangrou e, do ponto de vista econômico, foi uma mediocridade fardada em cujo legado é difícil encontrar qualquer coisa de positivo.

Resposta dos conservadores

Depois desse período, o país experimentou o período neoliberal, quando multidões saíram às ruas com palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo e tumulto. Este cenário era comum nos conturbados processos de privatização brasileiros dos anos 1990, um quadro do qual decorre uma pergunta óbvia: que importância é essa que a venda das estatais brasileiras angariou no enfrentamento entre as forças da transformação e da reação?

A resposta é a determinação, expressa pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC) na sua primeira posse como presidente da República, de acabar com a “era Vargas”. Era uma reação conservadora ao salto proporcionado pelos esforços empreendidos por Vargas para industrializar o país, alicerçados na bandeira do nacionalismo — condição fundamental para o governo do presidente Juscelino Kubitscheck conduzir a industrialização pesada dos anos 1950. Sob essa bandeira, o Brasil combateu o domínio dos trustes internacionais e advogou a formação de novas áreas de consumo interno.

Essas iniciativas impulsionaram os movimentos operários — em 1953, trezentos mil trabalhadores aderiram a uma greve em São Paulo; em 1954, uma greve geral anticarestia, liderada pelo Pacto de Unidade Intersindical (PUI), chegou à adesão de um milhão também em São Paulo; e em 1957, 400 mil operários pararam, ainda na capital paulista, reivindicando aumento de 25%, além das lutas camponesas.

Avanço da industrialização

O Brasil vivia uma polarização decorrente de uma renhida luta entre as forças do desenvolvimento e os círculos que defendiam a dependência econômica e política. Este cenário manifestava-se inclusive dentro do governo Juscelino Kubitscheck e refletia a evolução do quadro político desenhado pelos embates das décadas anteriores.

Quando Vargas assumiu o seu segundo governo, se deparou com problemas complexos herdados do governo do general Dutra e enfrentou a crise econômica acelerando o papel do Estado na economia e atraindo os trabalhadores para o seu projeto. Ao contrário de Dutra, que considerava indevida a intervenção do Estado na economia, Vargas aplicou — como havia feito no início da década de 1940 — uma orientação política que correspondia às tendências nacionalistas das forças que o apoiavam e à sua doutrina de harmonia dos interesses de classes.

A atenção de seu governo concentrou-se nas medidas que possibilitariam o avanço da industrialização, que deveria ser apoiada preferencialmente no capital nacional e orientada para o mercado interno. A industrialização naqueles moldes era considerada por Vargas uma solução para a falta de divisas, para o desemprego e para a independência do país. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), pelo qual ele foi eleito, não dispunha de maioria no Congresso Nacional e o governo compôs um bloco de sustentação parlamentar com representantes de outros partidos.

O suicídio do presidente adiou o golpe pró-americano por dez anos. No início dos anos 1960, os elementos das duas opções estratégicas para o país se condensaram e em 1964 os golpistas acabaram com o sonho das reformas de base lançadas por Vargas e preconizadas pelo governo do presidente João Goulart.

Uma nova era

As forças democráticas e progressistas podem aprender boas lições com o estudo da experiência de Vargas. Quando ele chegou ao Palácio do Catete, em 1930, em um trem militar vindo do Estado do Rio Grande do Sul, o país inaugurou uma nova era. O líder da Revolução vestia um uniforme cáqui, com um revólver metido na cintura, e representava, até na forma de vestir, os tenentes rebeldes que promoveram dois levantes e uma marcha histórica — a Coluna Prestes — na década de 1920 contra a República Velha.

Até então, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) revezavam-se no poder. O país era essencialmente rural — apenas 10% do Produto Interno Bruto (PIB) era industrial. Quando o esquife de Vargas deixou o Catete, 24 anos mais tarde, o Brasil não era nem sombra daquele país esculpido pelas oligarquias paulista e mineira. Em 1955, a produção industrial já representava 30% do PIB.

Intervenção do Estado

Uma das primeiras providências de Vargas foi alterar o papel do Estado. Antes, o governo interferia na economia apenas para garantir a boa vida dos oligarcas. O Estado comprava o café para preservar os fazendeiros de eventuais problemas na produção e da oscilação de preços no exterior. A moeda nacional flutuava ao sabor dos interesses dos fazendeiros — quando o preço caía no mercado internacional, o governo desvalorizava o dinheiro brasileiro e assim garantia os ganhos dos cafeicultores.

O novo presidente optou pela intervenção do Estado na economia para promover o desenvolvimento industrial. De 1932 a 1937, o PIB cresceu, em média, 7% ao ano. O Estado construiu empresas estratégicas para a economia nacional, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, e criou uma vasta legislação trabalhista — a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) — e social, especialmente a Previdência Social. No seu segundo governo, Vargas criou a Petrobras — iniciativa que resultou de um vigoroso movimento patriótico — e fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), hoje acrescido da palavra Social, agora com a sigla BNDES.

Divisão do país

As turbulências políticas do primeiro governo Vargas decorreram das contradições que envolviam o país. Os levantes dos tenentes e a Coluna Prestes tinham como objetivo único derrotar as oligarquias da República Velha. Eles não formaram um partido político e deram seqüência às suas carreiras políticas por caminhos distintos.

De um lado, o movimento operário avançava e sua liderança — o Partido Comunista do Brasil — via a Revolução de 1930 como algo que deveria ser substituído por um governo “apoiado em sovietes de operários e camponeses”, avaliação que evoluiu para o levante revolucionário de 1935 liderado pela Aliança Nacional Libertadora (ANL). De outro, a oligarquia paulista lançou a campanha pela constitucionalização do país e promoveu a guerra civil de 1932. Dois anos depois, uma assembléia eleita pelo povo promulgou a nova Constituição. Como resposta ao levante de 1935, Vargas desencadeou a repressão e, mais tarde — em 1937 —, instaurou a ditadura do Estado Novo.

Os tenentes se dividiram, basicamente, entre os que apoiaram Vargas e os que participaram do levante de 1935. A ditadura investiu com fúria contra os comunistas até a hábil política do então PCB de propor a “união nacional” contra o nazi-fascismo — palavra de ordem que logo seria associada à defesa da democracia. O governo se dividiu.

De um lado, apoiando o Eixo Roma-Berlin-Tóquio, ficaram o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o sucessor de Vargas, e o feroz chefe do aparelho repressivo, Filinto Müler. De outro, ficaram o presidente e o ministro das Relações Exteriores, o chanceler Osvaldo Aranha. Com forte apoio dos comunistas, o governo criou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que foi combater o nazi-fascismo na Europa. Essas posturas democráticas de Vargas e a vitória dos aliados fizeram do presidente um campeão de popularidade.

Apoio dos trabalhadores

Quando ele voltou ao governo, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria e respirava os ares reacionários do governo Dutra — aliado incondicional do imperialismo norte-americano. Vargas fez um governo dúbio: cedeu aos setores golpistas das Forças Armadas, doutrinados pela Escola Superior de Guerra (Esg), criada em 1949, tutelada pelo expansionismo da ideologia norte-america liderado pelo ocupante da Casa Branca HarryTruman (o famoso Plano Truman), com o acordo militar Brasil-Estados Unidos, mas amainou a repressão política.

O governo também desenvolveu uma política nacional de impulso à industrialização, enfrentou a crise econômica deixada por Dutra e procurou atrair o apoio dos trabalhadores. O ministro do Trabalho, João Goulart, propôs um reajuste de 100% no salário mínimo, sofreu um violento ataque de militares reacionários e caiu — mas Vargas bancou a proposta e concedeu o reajuste. O governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investir no país.

Violentamente atacado pela direita, Vargas respondeu ao ultimato para que renunciasse dizendo que só sairia do Catete morto — como de fato aconteceu. Com a popularidade em alta, seu suicídio revoltou a população, que chorou a morte do presidente, apedrejou a embaixada dos Estados Unidos e incendiou jornais. Sua marca ficou gravada, de forma indelével, na memória do povo brasileiro e na história do Brasil. E seu Testamento, registrado na carta famosa, é um dos importantes documentos da luta pela independência e soberania do país.

– Guerra híbrida e cultural na história do Brasil

Por Osvaldo Bertolino

Precisamente às 18h30 de 31 de junho de 1963, uma quarta-feira, o então governador do estado da Guanabara, Calos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), recebeu no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, a escritora francesa Suzanne Labin. O motivo da visita era o lançamento do livro Em cima da Hora – a conquista sem guerra, obra prefaciada e traduzida por ele. Em seu texto, Lacerda escreveu que certas faculdades de Filosofia, de Direito e de Economia estavam pondo em circulação centenas de jovens líderes, doutrinados e condicionados pelo treinamento comunista custeado pela nação.

O mesmo ramerrame seria ouvido anos depois, com o alarido sobre a “Escola sem partido” e outras diatribes do gênero. Como diz a extrema-direita agora, Lacerda dissera que “os liberais arrependidos, os socialistas retardados, os religiosos tomados de surpresa, os ensaístas deslumbrados, os jornalistas alfabetizados, os intelectuais ressentidos, os desajustados da liberdade, os novos-ricos de certos bancos e os novos-pobres de certo espírito, formam as mais estranhas contribuições para abrir caminho à propaganda, ao sofisma, às ideias-força da guerra subversiva que os soviéticos movem contra o mundo livre”.

O conjunto listado pelo então governador da Guanabara pertencia à categoria dos que, à falta de melhor definição, são nominados por “comunistas”, uma minoria ínfima que manipulava “uma parte considerável e poderosa das elites dirigentes, para induzir o povo a aceitar as teses de Moscou”. Eram aqueles que não seguiam a cartilha da extrema-direita e nem rezavam por sua ladainha, além de ousar pensar pela ciência e, com ela, contestar o obscurantismo ideológico. Na definição de Lacerda, seria uma “camada de autômatos” que estava sendo preparada “para dirigir o Brasil por conta dos soviéticos”.

O diapasão daquele lacerdismo obtuso, muito familiar aos ouvidos da contemporaneidade, expressava, mais do que o histórico anticomunismo rombudo, uma ojeriza ao Brasil. Seu histrionismo chegava ao ponto de enxergar propaganda soviética nas livrarias, nas bancas de revistas e nos jornais, uma confraria que atendia pelo nome-fantasia de “nacionalistas”. O Brasil estava sendo alvejado por essa propaganda para ser o epicentro da conquista da América Latina pelo comunismo, uma ameaça ao destino da liberdade no mundo.

Seria uma colonização cultural, já dominante na política e na economia. A nação, escreveu Lacerda, estava dominada por um medo intelectual e psíquico, traduzido pelo pavor de muitos de serem chamados de reacionários e perder o bonde da história, uma “enxurrada de estupidez” que estaria “burrificando a mocidade e degradando a velhice de tão grande parcela da intelligentsia brasileira”. A autodeterminação dos povos, pregada por Woodrow Wilson, um dos presidentes dos Estados Unidos, estaria servindo de pretexto para que o Brasil fosse posto, por brasileiros, “a reboque da Rússia e dos seus títeres, como Fidel Castro”.

Estado de guerra

As ideias de Lacerda guardavam proporção com seu destempero verbal – seu conhecido palavreado estridente e oco –, mas foram a base do golpe militar de 1964. Assim como agora, elas ganharam certa popularidade, repetindo o que ocorrera em 1937 com o “Plano Cohen”. O historiador Hélio Silva conta em seu livro A América vermelha que “a história do Brasil não registrou, felizmente, outro embuste, farsa, mentira, impostura, fraude, falsidade, felonia, traição, deslealdade, que se equipare em suas intenções pérfidas, de efeitos políticos calculados, além do Plano Cohen, atirado à face da nação, em sua publicidade cavilosa, chamada nos jornais em 30 de setembro de 1937”.

A fraude grosseira do militar de extrema-direita Olympio Mourão Filho – o primeiro que marcharia quando o golpe de 1964 foi deflagrado, agora como general – não poderia ser ignorada por quem não viveu aquele acontecimento e desconhecia “o que foi e o que fez o documento, ou melhor, o papel sujo, o texto ardilosamente explorado e transformado na ‘prova’ da ameaça de uma subversão comunista”. “Não obstante a origem sabida e o autor conhecido, a finalidade verdadeira, fatos e pessoas desmascaradas logo que havia colimado o objetivo de apavorar a nação e arrancar do Executivo e do Legislativo o estado de guerra, a fraude permaneceu impune e os seus exploradores não foram punidos”, indignou-se.

Mourão Filho e seus cúmplices — o mais destacado deles o general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército — iludiram as Forças Armadas e violentaram o Congresso Nacional para lançar o país na trilha do absolutismo, denunciou Hélio Silva. Mourão filho era chefe dos serviços secretos da Ação Integralista Brasileira, condição na época só conhecida por não mais que cinco pessoas. Batizara o plano de “Cohen” por ser um sobrenome judaico comum, derivado de “Bela Kun”, nome de um conhecido dirigente da Internacional Comunista e do Partido Comunista da Hungria.

Os fios da trama começaram a aparecer em 28 de setembro de 1937, quando os jornais publicaram um comunicado de Góis Monteiro negando rumores de que projetava um golpe militar e realçando o apoio do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, à “obra de fortalecimento moral e material do Exército”. No mesmo dia, a Câmara dos Deputados aprovou a inserção do comunicado nos seus Anais e assegurou, “em nome da representação nacional”, a decisão de “colaborar em todas as medidas que se fizerem mister, em nome da pátria e da autoridade”. A proposta do Legislativo terminou expressando o desejo “de acolher as sugestões do Conselho Superior da Segurança Nacional, em tudo quanto toque às necessidades urgentes da ordem pública e da defesa das instituições nacionais”.

No dia 30, os jornais estamparam parcialmente um plano de ação comunista, também levado ao ar pela Hora do Brasil. O autor seria o Komintern, do alemão Kommunistische Internationale, a Internacional Comunista. O ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, estava em São Paulo e foi chamado com urgência ao Rio de Janeiro para apreciar o pedido de providências dos ministros militares ao presidente da República. Apesar de fazer a viagem de carro, chegou antes do anoitecer. Conversou demoradamente com Góis Monteiro, Dutra, o presidente da República Getúlio Vargas e o ministro da Marinha, almirante Aristides Guilhem. No mesmo dia, divulgou a mensagem solicitando autorização do Congresso Nacional para decretar o estado de guerra.

Levante de 1935

A perfídia do grupo vinha antecedida de palavras adocicadas. “Logo que assumi a pasta da Justiça e Negócios Interiores, e mercê de firme e sincera convicção formada pela evidência dos fatos que se apresentavam à observação, propus a vossa excelência, em exposição datada de 20 de junho, o levantamento do estado de guerra. Disse, então, que se abria novo período de funcionamento livre das instituições, numa atmosfera de tranquilidade sintomática de vitória da nação sobre seus inimigos, e que confiava na sabedoria do povo brasileiro, cumprindo a todos velar, com meios legais de ação, à preservação da ordem triunfante”. Em seguida, lia-se o que interessava: “Afirmam, entretanto, os excelentíssimos ministros da Guerra e da Marinha, em exposição dirigida a vossa excelência, que no momento atual, como em 1935, as ameaças do comunismo são evidentes e que não é possível que fiquemos inertes ante a catástrofe que se aproxima”.

Macedo Soares, alegando o disposto nos termos da Emenda Constitucional número 1, pediu que o presidente determinasse estado de guerra. A situação era grave, muito grave, segundo ele. O Estado-Maior do Exército havia desvendado o plano de ação dos comunistas, “um documento cuidadosamente arquitetado, cujo desenvolvimento meticuloso vem da preparação psicológica das massas ao desencadear do terrorismo sem peias”. Para ele, o diabo vermelho andava solto e para encontrá-lo não era preciso esforço. Macedo Soares disse que o plano incluía “a propaganda comunista”, que invadira “todos os setores da atividade pública e privada”. O comércio, a indústria, as classes laboriosas, a sociedade em geral e a própria família viviam em constante sobressalto.

Mas as portas teriam olhos e as paredes ouvidos, segundo a parola do ministro da Justiça. A polícia civil do Distrito Federal, mesmo após a vitória da lei sobre o Levante de 1935, não deixou nunca de acompanhar de perto a ação subversiva dos comunistas, garantiu ele. Apesar de toda vigilância, nenhuma prova foi apresentada. O debate no Congresso Nacional baseou-se somente na proverbial algazarra midiática e na declaração de Macedo Soares.

Em 10 de novembro de 1937, teve lugar o golpe de Estado que deu início ao chamado Estado Novo, com a promulgação da Constituição de 1937, elaborada e redigida em sua maior parte pelo ministro da Justiça, Francisco Campos (nomeado para o cargo por Getúlio Vargas dias antes do golpe e que mais tarde elaboraria também Atos Institucionais da ditadura de 1964), com a ajuda de líderes integralistas um ano antes. A Carta ficou conhecida como “Polaca” por ter sido baseada na Constituição da Polônia outorgada pelo marechal József Pilsudski, líder do golpe militar que o levou ao poder em 1921.

Hélio Silva constatou, amargamente, que “já se disse, mais de uma vez, que a história do Brasil tem sido assolada pela irrupção e pelas consequências de documentos falsos”. Lembrou que em 1921, por exemplo, a falsificação das famosas cartas do candidato presidencial Arthur Bernardes acabou capturando, por muitos anos, a indignação de grande parte dos atores políticos. “Os documentos falsos se notabilizaram exatamente quando produzem efeitos sensíveis, quando funcionam. Seria limitado demais, entretanto, restringir o estudo da história brasileira ao esquadrinhamento de papéis espúrios, à investigação de suas origens e de seu impacto”, afirmou.

Sociedade tecnológica

As similaridades dos motivos que deflagraram os golpes de 1937 e de 1964 se inserem naquilo que já foi chamado de “sociedade tecnológica”, conceito debatido desde que o capitalismo consolidou um patamar industrial desenvolvido. No Brasil ele chegou quando o povo já estava num estágio avançado de lutas sociais e políticas, processo iniciado em meados do século XIX quando a indústria começou a nascer efetivamente e, com ela, uma nova realidade social, dinamizada pelo desenvolvimento do comércio, dos bancos e do trabalho livre.

O fim do regime escravista foi fundamental para esse salto. As experiências industriais pioneiras de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, faliram exatamente porque surgiram quando ainda prevalecia o que Clóvis Moura chamou, em sua obra Dialética radical do Brasil negro, de “escravismo tardio”, que se deu após a abolição do tráfico internacional. Suas iniciativas não poderiam prosseguir em meio a um sistema de monopólio da terra – os grandes latifúndios –, que impedia a formação de um mercado interno. Mauá era a expressão da capacidade do povo brasileiro, mas não compreendeu que os escravos seriam a classe social capaz de superar aquele quadro de atraso, opressão e miséria.

Essa compreensão marcaria abolicionistas como André Rebouças, que via o latifúndio como o maior problema social brasileiro. Ela não poderia existir antes pelas características do “escravismo pleno”, na definição de Clóvis Moura, entre mais ou menos 1550 e 1850, precedido da escravidão indígena, que abrangeu todo o período colonial. Foram mais de trezentos anos que estruturaram e dinamizaram o modo de produção escravista no Brasil, determinando o comportamento básico das classes fundamentais da sua estrutura social – senhores e escravos.

Liberalismo escravista

A vinda de dom João VI para o Brasil em 1808 rompeu o monopólio colonial com medidas como a abertura dos portos, uma liberdade de comércio que fez crescer a importação de africanos, denominado por Caio Prado Júnior, em sua obra História econômica do Brasil, como “era do liberalismo”, sem acrescentar que era um “liberalismo escravista”, como observou Clóvis Moura. Para o autor de Dialética radical do Brasil negro, mesmo os movimentos contestadores que surgiram antes ou depois da Independência – como a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Sabinada de 1837 – não puseram em seus programas políticos a abolição da escravidão.

O “liberalismo escravista” satisfazia econômica e socialmente o sistema e ninguém pensava ou articulava um movimento que objetivasse substituí-lo por outro regime de trabalho. Clóvis Moura cita como exemplo José Bonifácio que, no processo da Independência, repelia qualquer ideia que criticasse, mesmo tangencialmente, a escravidão. Somente a Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de setembro de 1850 proibindo o tráfico de escravos – quase trinta anos após a Independência –, fez surgir o embrião de uma burguesia, que se consolidaria em 1889 com a proclamação da República, período denominado por Caio Prado Júnior como “o império escravocrata e a aurora burguesa”.

Em sua fase de “escravismo tardio”, a luta contra o sistema, após a Lei Eusébio de Queirós, começou a se ampliar, deixando de ser exclusiva do escravo negro. Na descrição de Clóvis Moura, logo após a Guerra do Paraguai, acontecimento que foi um modificador importantíssimo na desarticulação do “escravismo pleno”, as manifestações humanistas, emancipacionistas, sucederam-se e o silêncio foi rompido; a discussão sobre a substituição da escravidão pelo trabalho livre se dava à luz do dia.

Surgiram as primeiras medidas protetoras, como A “Lei do ventre livre” (1871), a “Lei dos sexagenários” (1885), a lei que extinguiu a pena de açoite (1886) e a lei que proibiu a venda separada de escravos casados. A evolução para a Abolição passou pela administração dos resultados econômicos da Guerra do Paraguai, que exauriu o país, obrigado a contrair dívidas e a entregar seu comércio exterior aos interesses do capitalismo britânico. Clóvis Moura relata que o escravismo em decomposição foi substituído pelo trabalho livre sob controle do bloco de poder que administrava dois problemas: a mão de obra e a terra.

Estrutura da sociedade

Sobre o trabalho, realizou-se um plano ideológico, interessado na vinda de imigrantes, e o latifúndio estava garantido pela Lei de Terras, de 1850, que regulamentou as grandes propriedades quando o tráfico de escravos foi proibido. Eram as estratégias de dominação daquelas classes que assistiram à “modernização” do sistema escravista no Brasil e procuravam, na transição, evitar mudanças na estrutura social, segundo Clóvis Moura. De acordo com ele, o surto imigrantista impediu o acesso da massa de ex-escravos, posta como sobrante no novo sistema.

Mas o modo de produção escravista, ao determinar o comportamento básico de senhores e escravos como classes fundamentais, legou contradições antagônicas nítidas, que perpassaram as etapas seguintes da estrutura social brasileira. A conjunção de acontecimentos que levaram à derrocada daquele sistema – a Independência, a Abolição e a proclamação da República – determinou o dilema que Clóvis Moura definiu como “revolução democrática-burguesa” e Nelson Werneck Sodré, em sua obra Introdução à revolução brasileira, chamou de revolução “sem o proletariado”, referindo-se à Revolução de 1930.

Clóvis Moura trata o conceito no âmbito da Abolição, segundo ele vista como “uma possível revolução democrática-burguesa”, o que seria “no mínimo ingenuidade”. O problema da revolução burguesa no Brasil, escreveu, era polêmico, “especialmente porque muitos dos que a abordam tomam como paradigma as revoluções burguesas europeias como se tivéssemos de repeti-las aqui, na época do imperialismo e no contexto de uma sociedade que tinha até cem anos atrás como forma fundamental de trabalho a escravidão e as instituições correspondentes”.

A Abolição, na análise de Clóvis Moura, não mudou qualitativamente a estrutura da sociedade. O senhor de escravos foi substituído pelo fazendeiro de café. Cristalizaram-se, também, as oligarquias do Norte e do Nordeste, igualmente apoiadas no monopólio da terra, como os antigos senhores de escravos. A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre não mudou as estratégias de dominação antecipadamente estabelecidas, impedindo que o antigo escravo entrasse como força de trabalho na dinâmica desse processo, mesmo como força secundária.

Ao escravismo que imperou até às barbas do século XX se somou o extermínio da população originária, o índígena, que, segundo Darcy Ribeiro, teve uma fase genocida entre 1900 e 1957 e que segue vítimas de garimpeiros e empresas transnacionais. Como lembra Clóvis Moura, os índios destribalizados se incorporaram aos camponeses pobres e são também perseguidos, expulsos das terras e assassinados. Aquilo que o jurista Dalmo de Abreu Dallari definiu como desenvolvimento econômico contra o índio, não com o índio.

Uma nova configuração social do povo trabalhador formou-se em meio a esse conjunto de transformações. Foi o período em que a acumulação cafeeira obteve lucros que superavam a capacidade de investimento no setor. Esse capital deslocou-se para a indústria, que se concentrou em São Paulo e Rio de Janeiro, facilitando a organização dos trabalhadores e suas lutas. Houve uma explosão de manifestações e uma evolução natural para níveis de organização mais elevados, como a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, que trouxe para o movimento sindical uma política de unidade classista.

Relações de trabalho

A Revolução de 1930 promoveu uma série de regulação das relações de trabalho, mas, quando o governo de Getúlio Vargas passou a flertar com o nazifascismo, começou-se a organizar um movimento amplo, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que liderou a Insurreição de 1935. A derrota e a repressão varguista levaram à escalada autoritária que se consolidou com o golpe de 1937. A política ampla dos comunistas fez o PCB reentrar como protagonista na cena política no combate ao nazifascismo, possibilitando o enterro do Estado Novo com a Constituinte de 1946.

Mas a “sociedade tecnológica” já era forte e uma nova onda anticomunista foi deflagrada pelo governo do general Eurico Gaspar Dura, eleito em 1945. O registro e os mandatos do PCB foram cassados em 1947 e 1948, respectivamente, em meio a mais uma gigantesca onda anticomunista puxada pela mídia.

O conceito de “sociedade tecnológica” já foi definido como “sociedade industrial”. Seria a influência do complexo científico-tecnológico na sociabilidade, uma mudança de paradigmas com base em novas tecnologias, que estariam servindo de instrumentos do capital contra as ideias emancipacionistas dos trabalhadores. Hoje ela é mais forte do que nunca.

O historiador Eric Hobsbawm diz que não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra começou. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, houve uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.

Direito à propriedade

Seus primórdios se encontram na formulação de Saint-Simon, pensador francês e socialista utópico, de que a industrialização como estágio mais recente da humanidade exigia uma nova organização social, tese depois acolhida por Auguste Comte, entre outros. A ideia de uma nova organização social ganhou cientificidade na teoria de Karl Marx e Friedrich Engels. Para o pensamento marxista, as liberdades políticas conforme enunciadas na doutrina francesa dos Direitos Humanos de 1789, apesar do seu valor histórico, constituem uma hierarquia de direitos.

De acordo com a Constituição Francesa de 1793, o direito à propriedade privada permite a cada cidadão o gozo e a disposição (…), conforme ele deseja, de seus bens e rendas, dos frutos de seu trabalho e atividade. Na expressão “conforme ele deseja” está implícita a ideia de que cada um deve ver o seu semelhante como inimigo, um objeto obstaculizando os meios de aquisição ou manutenção da propriedade. Alguém só pode defender o direito à propriedade se possuir propriedade, disse Karl Marx em O Capital. De outro modo, o direito se torna vazio e faccioso. Ou seja: cada indivíduo deve ter como objetivo assegurar a sua propriedade.

Cada um dos outros direitos, segundo a análise de Marx, deve ser compreendido como subserviente ao direito à propriedade. “Assim como os indivíduos expressam suas vidas, assim eles são. O que eles são coincide com sua produção, tanto o que eles produzem quanto como produzem”, escreveram Marx e Engels. Este relacionamento recíproco determina o estado do homem durante qualquer período histórico, porque é a partir de suas produções que ele transforma o mundo. No modo privado de produção, diz Marx, o homem é desumanizado mentalmente e fisicamente – síntese fundada na expressão “trabalho alienado”.

Combate ao comunismo

Há ainda a contradição da tecnologia com as relações de produção. “Sob sua forma máquina (…), o meio de trabalho se torna imediatamente o concorrente do trabalhador. A máquina cria uma população supérflua, isto é, inútil para as necessidades momentâneas da exploração capitalista. (…) Em determinado grau de desenvolvimento, um progresso extraordinário na produção pode ser acompanhado de uma diminuição não só relativa como absoluta do número de operários empregados”, escreveu Marx em O Capital.

No artigo Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels diz: “É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob a pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano (…). A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a produção. A colisão torna-se inevitável.”

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels escreveram: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção”. Essa contradição teria uma evolução para um sistema social, político e econômico mais avançado.

Engels, no prefácio ao livro A luta de Classes na França, de Karl Marx, disse: “A ironia da história põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘revoltosos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com os meios ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles mesmos se chamam, vão a pique com a legalidade criada por eles mesmos. Exclamam desesperados, como Odilon Barrot: ‘La legalité nous tue’ (A legalidade nos mata), enquanto nós ganhamos, com essa legalidade, músculos vigorosos e faces coradas. E parece que fomos tocados pelo sopro da eterna juventude e, se não somos tão loucos para nos deixarmos arrastar ao combate de rua simplesmente para satisfazê-los, não terão afinal outro caminho senão romper eles mesmos com a legalidade que lhe és tão fatal.”

O combate ao comunismo foi constatado por Marx e Engels já no que é considerado o primeiro documento programático do marxismo, o Manifesto do Partido Comunista. “Todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele (o espectro do comunismo): o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Qual partido de oposição não foi qualificado de comunista por seus adversários no poder? Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou de volta a acusação de comunista, tanto a outros opositores mais progressistas quanto a seus adversários reacionários?”, escreveram na abertura do texto.

Conceito de liberdade

Esse combate remete ao conceito de liberdade, o mais manipulado na guerra ideológica da direita. Além dos epítetos de baixa intensidade, há a indução ao senso comum de que a “sociedade tecnológica” satisfaz plenamente a liberdade, sem considerar a variedade de necessidades de cada grupo ou camada social. A definição filosófica de liberdade é antiga, sempre associada à igualdade. Para existir a liberdade, é preciso existir a igualdade. Aristóteles, o maior pensador da antiguidade, em seus estudos sobre a lei do valor, descobriu que as mercadorias têm dois valores – um de uso e outro de troca.

Mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, disse Aristóteles. Qual seria a medida dessa igualdade? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século XVIII, pelo estudo do economista clássico inglês David Ricardo – o que há de igualdade é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias. Marx diz em O Capital que Aristóteles era filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo. A compreensão da igualdade de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas. A partir do memento em que a igualdade política se afirmou.

Foi a Revolução Francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental: todos os homens são iguais. Adam Smith, outro economista clássico inglês, considerado o pai do pensamento liberal, também falou do assunto em sua obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, publicado em 1776, ao defender a mão invisível do mercado como meio para a livre concorrência de todos os capitalistas na busca do equilíbrio da sociedade. Ele recomendou que os empresários não frequentassem o mesmo clube para evitar a tentação de se associarem em monopólios. Adam Smith estava dizendo que a liberdade não é um conceito absoluto e precisa da igualdade.

É óbvio que essas ideias pouco têm a ver com o capitalismo em sua fase superior, o imperialismo, como bem demonstrou Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917. As estruturas de classes nas sociedades contemporâneas já não são nem sombra do que foram quando o capitalismo deu seus primeiros passos, como sistematizou Lênin na obra Imperialismo, fase superior do capitalismo. A liberdade nesse sistema é propagada como introjeção de necessidades que atendem mais à reprodução e à acumulação de capital do que ao bem-estar social.

Essa evidente contradição faz os cérebros que comandam a mão invisível do mercado, agora hipertrofiado pelo sistema financeiro, mobilizarem o aparato tecnológico – e todos os seus recursos disponíveis – que está em seu poder para manter as instituições a seu serviço. As formas de controle social se expandem com o caráter global dessa hipertrofia, mantendo a ideia de que existe um inimigo contra o qual é preciso mobilizar todas as forças. A imagem do adversário é inflada para que seja apresentado como inimigo total, uma ameaça à sociedade da “liberdade”.

A dilatação máxima dessa imagem cotidianamente, 24 horas por dia, é imposta de todas as formas e por todos os meios. Os prognósticos mais tenebrosos são atirados ao público de todas as formas possíveis — pela televisão, pelas rádios, pelos jornais, pelas revistas, pela internet e até por seitas religiosas, para não falar nas consultorias, departamentos de análise de bancos, institutos de pesquisa e por aí afora. A ideia é forjar razões para que o inimigo seja asfixiado e não conteste o status quo.

Autoridades coloniais e imperiais

As formas hoje são outras, mas o conteúdo e os objetivos são os mesmos de sempre. O livro de Suzanne Labin, por exemplo, foi largamente difundido quando Lacerda a trouxe para o Brasil. O convide do governador da Guanabara tinha uma extensa agenda de conferências sobre “as táticas de infiltração comunista no mundo livre”, segundo suas declarações aos jornais. Seu périplo incluía São Paulo e outros estados, em pregação “democrática e anticomunista”.

Circulou a informação de que a embaixada dos Estados Unidos teria mandado, junto com os convites para um coquetel aos 41 novos diplomatas formados pelo Curso Rio Branco, três livros, sendo dois deles de Suzanne Labin, um dos quais Em cima da hora. Os jovens recém-formados retribuíram a gentileza comparecendo ao coquetel na sede da embaixada dos Estados Unidos. O secretário-geral do Instituto Rio Branco, Hélio Scarabotolo, declarou não ser verdade que a embaixada tinha presenteado os diplomatas, mas confirmou que os livros foram distribuídos, sem saber quem os enviou ao Itamaraty.

Uma das conferências de Suzanne Labin foi na Escola Superior de Guerra, onde ela declarou que “os comunistas, no plano militar, ensinavam os soldados a conquista do espírito” e que, “ao contrário do que acontece com os democratas, quando querem empreender uma conquista, mandam antes seus agentes para minar a opinião pública, a fim de poderem, mais tarde, com grandes facilidades, fazer a conquista”. O livro foi um sucesso de vendas, a julgar por uma notícia do Jornal do Brasil de que Lacerda comprou um sítio com o dinheiro ganho com a tradução.

Segundo um anúncio comercial nos jornais, “tudo o que estava acontecendo no Brasil foi previsto neste livro admirável”. “Compreenda a que ponto chegou a infiltração comunista do governo (João) Goulart e para onde nos querem levar”, completava. A revista O Cruzeiro, do então poderoso grupo de mídia “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, publicou uma matéria de capa sob o título Suzanne Labin declara guerra ao comunismo. O golpismo fervilhava na mídia. A criação da “Cadeia da democracia” formalizou um cartel da conspiração, unindo as rádios Jornal do BrasilGlobo e Tupi.

Depois do golpe, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, falando ao jornal O Estado de S. Paulo, afirmou que “a revolução de 64” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coreia”. O primeiro ditador-presidente, Castello Branco, ofereceu um jantar ao adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Gordon e Walters organizaram uma rede de ativos conspiradores que criaram uma profusão de organizações e movimentos de extrema direita.

Meridiano primevo

O povo brasileiro sempre se insurgiu contra esses arbítrios. As autoridades coloniais imperiais — como os donos do poder hoje em dia —, ao punirem com tamanho rigor os combatentes do povo, sabiam quem estavam enfrentando. Os que até hoje perseguem e caluniam lideranças populares são os legatários dos governadores gerais, ou vice-reis, que pensavam a mesma coisa de Zumbi dos Palmares, de Tiradentes, de Felipe dos Santos, dos Alfaiates da Bahia de 1798, dos republicanos do Nordeste de 1817 e 1824, que lutaram movidos pelas ideias da Revolução Francesa e da Independência Americana.

A síntese do pensamento de ontem e de hoje dos algozes do povo brasileiro está na forma como o barão de Cotegipe (um dos líderes do Partido Conservador, eleito senador pela Província da Bahia e presidente do Senado de 1882 a 1885) se referiu às multidões entusiasmadas que assistiam às sessões do parlamento durante a votação da Abolição: o Império libertou uma “raça”. Essa “raça” teve ainda em suas fileiras os camponeses de Canudos, do Contestado e legou para a história do povo brasileiro vultos notáveis de líderes populares como Borges da Fonseca, Frei Caneca, Cipriano Barata e tantos outros, valentes, combativos e que tinham um norte definido. Todos odiados pelos inimigos do povo.

Na punição à “Inconfidência Mineira”, por exemplo, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer da execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade —, eles tinham perfeita consciência de que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas.

Esse protagonismo do povo sempre foi inaceitável para os que se consideram donos do poder. Todas as atrocidades praticadas por eles se deram em nome da lei e da ordem. ”Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe”, escreveu Karl Marx. A lei universal desses algozes foi bem traduzida pela fina ironia do escritor George Bernard Shaw referindo-se aos racistas do Sul dos Estados Unidos: primeiro, reduziam os negros à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”. No Brasil, essa imagem aparece com nitidez nas gravuras de Jean Baptiste Debret e nas páginas de José Lins do Rego.

Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso. A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país.

Os donos do poder não aceitam outra posição do povo, senão a completa subordinação. Eles são movidos pelos mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre a larga porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela. A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis.

Por esse plano, a metrópole doou três milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento.

A dívida que o país acumulou com seu povo que ainda vive as sequelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas capitanias hereditárias, pelos donatários de dom João III, e mantidas por gerações de sucessores só poderá ser paga numa intervenção movida por espírito político radicalmente novo. Seria algo capaz de mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a brasileira.

A raiz das coisas

A realização do progresso social pressupõe a via democrática, o respeito às leis, especialmente as que contemplam os direitos dos trabalhadores tornados cidadãos. Da mesma forma, os movimentos e organizações sociais devem ser vistos como entes estruturais da dinâmica progressista do país. Mais ainda: não se pode falar em democracia quando a cidadania é afrontada no seu direito de votar e de ser votada. Isso quer dizer que todos devem ter as mesmas condições de exercer o poder, votando ou sendo votado, para estabelecer as conexões entre seus atos e as estruturas constituídas.

Esse conceito de democracia põe em evidência o exercício dos direitos legais, a prática das decisões de alcance político e a formação da consciência cidadã. Uma democracia de massas, com o povo se organizando em partidos políticos e entidades associativas, é a antítese da trama de golpes palacianos. A própria tradição republicana brasileira é essencialmente progressista — nenhum presidente da República elegeu-se com o voto popular prometendo claramente defender a plataforma ideológica da direita. Na história do Brasil, existem muitos exemplos de governos odiados pelo povo por prometer uma coisa e fazer outra.

Em contrapartida, todos os presidentes que cumpriram — ou tentaram cumprir — o que prometeram foram atacados pelas oligarquias. Os conflitos políticos surgem dessa dicotomia povo-elite. Toda a nossa história mostra que a República é vista pela ampla maioria da sociedade como a negação do poder oligárquico e sinônimo de independência nacional — um movimento que marcou profundamente o século XX no país.

Se há interesses antagônicos em uma sociedade, como é o caso brasileiro, há também a disputa política expressa por meio do embate entre os partidos, que refletem as concepções de um ou outro conjunto de forças sociais. Numa perspectiva republicana, portanto, governos democráticos levam a sério o papel dos partidos e respeitam o voto do cidadão. A negação dessa obviedade cerceia a manifestação democrática do povo e nega os ideais republicanos.

O regime dos golpistas de 1964 representou o anticlímax do processo de aceleração da industrialização do país, que ampliou a infraestrutura de serviços básicos orientada para a integração do mercado nacional nos anos 1950, um processo que nasceu com a Revolução de Getúlio Vargas, em 1930, quando o país entrou numa fase de desenvolvimento e de rápida urbanização. Uma onda de otimismo se espalhou com a criação de perspectiva e de esperança, mesmo com os maiores benefícios concentrados nas mãos de uma minoria.

Somente com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2003, o país voltou a ter a respeitabilidade que não tinha desde os tempos de Juscelino Kubitschek, Brasília e a Bossa Nova, substituídos pelas turbulências do governo Jânio Quadros e pelo golpismo contra João Goulart. A eleição de um projeto popular engendrado num curso histórico de enfrentamento com a ditadura militar, e que passou por movimentos como as Diretas Já!, a Frente Brasil Popular, o Fora, Collor! e o combate ao neoliberalismo, trouxe o Brasil de volta ao respeitável clube dos países que prezam seus interesses acima de tudo. Havia pelo menos três gerações de brasileiros que não sabiam o que era isso.

A eleição de Lula representou o resgate dos ideais de governos que combateram as injustiças brutais que sempre reinaram por aqui, um processo abortado pela marcha golpista e pelos desdobramentos do golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, agora com o desafio de ser restaurado com a eleição de Lula em 2022. Quase na virada para o século XX — apenas há pouco mais de 100 anos —, o país era monarquista e escravocrata, uma miscelânea de mazelas. Mesmo trocando a monarquia pela República, a estrutura social se manteve. Essa trajetória explica por que ainda uns detêm muito e muitos não têm coisa alguma. Só não está pior porque o Estado, em determinados períodos, preocupou-se com a industrialização do país.

Vil tristeza do jaburu

Assim o Brasil pôde entrar numa era de realização do ideal republicano, o processo de superação do conservadorismo constatado já nos primeiros anos de vida da República, como demostra a literatura dos explicadores do Brasil daquela época. O próprio Rui Barbosa, que participou da elaboração da Constituição de 1891, apontou os limites da República presidencial quando ela se afasta da vontade popular. Para ele, a onipotência do Congresso Nacional e o arbítrio do Poder Executivo, apoiados na irresponsabilidade das maiorias políticas, criavam uma situação autocrática. Somente “a majestade da Constituição escrita, interpretada, em última alçada, por uma magistratura independente”, poderia contrabalançar tal poderio perverso. Como lembrou Oliveira Vianna, Rui Barbosa, na defesa dos direitos do cidadão, pela doutrinação do habeas corpus, soube conter os poderes dentro dos limites da justiça e do respeito à lei.

Essa conquista, ainda nas palavras de Oliveira Vianna, muito vale em um país “sem tradição de respeito à lei e ao direito”, tese de Rui Barbosa, um dos fundadores e organizadores da República, que seria a base da ideologia do progresso nacional, desejo das novas camadas sociais que emergiram antes mesmo do fim do Império. Na contramão dessa ideologia, como atestou o militante republicano Alberto Sales em artigo intitulado Balanço político — necessidade de uma reforma política, publicado no jornal O Estado de S. Paulo nos dias 18 e 26 de junho de 1901, citado por Carlos Henrique Cardim no livro A raiz das coisas, estava o fracasso do ideal republicano.

Para ele, “ao cabo de uma experiência tão curta” já se via a República convertida, “para descrédito das instituições e a infelicidade de nossa pátria, na mais completa ditadura política”. Aplicava-se, já na época, o famoso “sorites” de Nabuco de Araújo sobre o Império: “O presidente da República faz os governadores dos estados, os governadores fazem as eleições, e as eleições fazem o presidente da República”. Segundo Alberto Sales, a consciência nacional deveria pronunciar o seu julgamento de que “a máquina política montada em 15 de novembro de 1889 já teve tempo preciso para fazer a sua experiência” e que era necessário “dizer com franqueza o que ela é, e o que deve ser”.

Confrontar o ideal republicano com a realidade, após dez anos de regime, disse, “é reconhecer com amargura que a estrutura política que levantamos, cheios de entusiasmo e fé, sobre os destroços do antigo regime, não tem sido mais que uma longa decepção, um desengano mortificante às nossas mais ardentes aspirações”, querendo dizer, como era voz corrente entre importantes figuras do republicanismo, segundo Carlos Henrique Cardim: “Essa não é a República de nossos sonhos”.

Contudo, cumpre observar que Alberto Sales era um analista de uma sociedade recém-saída do trabalho escravo. A compreensão mais exata do ideal republicano só pôde existir quando ele se firmou pelas experiências, embora esparsas, dos governos progressistas. E todas elas resultaram de movimentos de massas, acontecimentos que infundem consciência política e despertam amplos setores para a importância de ações políticas com objetivos bem definidos.

Mas nem por isso o pessimismo de Alberto Sales deixou de se manifestar; ele se deve à atualidade da visão de Capistrano de Abreu sobre o Brasil da negação das aspirações republicanas das duas primeiras décadas do século XX, mais presente do que nunca, traduzida em sua proposta de transformar o jaburu em símbolo nacional. “O jaburu (…), a ave que para mim simboliza a nossa terra, tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela austera e vil tristeza”, escreveu ele.

Ruy Castro, exploda-se

Por Osvaldo Bertolino

Em sua coluna na Folha de S. Paulo nesta quarta-feira (14), Ruy Castro dá o título Maduro, exploda-se. Ponho o texto de cabeça para cima e troco o personagem para expressar melhor o conteúdo.

As opiniões de Ruy Castro sobre as atas que que estão disponíveis no sistema de Justiça da Venezuela, de acordo com sua institucionalidade democrática, equivalem aos caminhões de nitroglicerina do filme O Salário do Medo

Um dos grandes momentos do cinema europeu de todos os tempos é um filme francês, O Salário do Medo (Le Salaire de la Peur), de 1953, dirigido por Henri-Georges Clouzot. A história se passa num vilarejo perdido na Venezuela, controlado por uma companhia de petróleo e, mesmo assim, mantido em indescritível miséria. Entre seus habitantes, há quatro estrangeiros condenados a apodrecer ali por falta de opções.

E, então, eles ganham uma oportunidade: US$ 2.000 para cada um pelo transporte de dois caminhões de nitroglicerina para uma cidade a 150 km. É, com trocadilho, um caminhão de dinheiro. O problema é chegarem lá. Os 150 km consistem de estradas esburacadas, curvas fechadas quase impossíveis de fazer, pontes de madeira que ameaçam desabar ao peso do líquido dentro dos tanques, precipícios que surgem de repente e tudo mais que, com um peteleco, pode fazer os caminhões irem pelos ares.

Os quatro personagens, dois franceses, um alemão e um italiano, são homens duros, violentíssimos. Os atores que os interpretam —respectivamente, Yves Montand, Charles Vanel, Peter van Eick e Folco Lulli— também eram. A história da filmagem, toda em externas no sul da França e sob terríveis condições, fala deles saindo aos murros uns contra os outros e contra o diretor Clouzot. O filme retrata isso. São 147 minutos de tensão quase insuportável, com os caminhões a 10 por hora, como duas bombas sobre rodas.

Imagino Ruy Castro nessa mesma Venezuela, conduzindo um caminhão de nitroglicerina – as atas da votação, forjadas e fraudadas por Maria Corina Machado e Edmundo Gonzáles, prestes a explodir se não forem reveladas. E, se forem, também. A estrada, bombardeada pelos países que sabotam a democracia e por “jornalistas” goebbelianos, não pode estar mais esburacada. A esta altura, ele não tem mais alternativa: ou prende o país inteiro ou é ele próprio quem vai preso.

Não leve a mal, Ruy Castro, mas queremos que você se exploda.

– Gabriel Galípolo e o galinheiro do Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

Atual diretor de política monetária e provável futuro presidente do Banco Central assume discurso dogmático do projeto neoliberal. Resta saber se é recuo tático ou rendição.

Num evento da Warren Investimentos, organização do mundo da especulação financeira, na segunda-feira (12) em São Paulo, Galipolo disse que a alta da taxa básica de juros é uma possibilidade que está na mesa do Comitê de Política Monetária (Copom). “Enquanto diretores do Banco Central, nós vamos perseguir a meta, isso com custo maior ou custo menor, segundo variáveis que não temos controle”, afirmou. “Espero que daqui a alguns anos possamos falar que a política monetária do Brasil é muito mais em função do arcabouço legal e institucional desenhado para a política monetária do que da idiossincrasia de um diretor A ou B”, completou.

Arcabouço legal e institucional pressupõe regras bem mais amplas do que a famigerada Lei de Responsabilidade Fiscal – corretamente chamada por José Alencar, vice-presidente da República do primeiro governo Lula, de lei da “irresponsabilidade fiscal” –, espécie de camisa de força que molda fórmulas como essa proclamada por Galípolo e amarra o país à estagnação do crescimento econômico e à paralisa do desenvolvimento. Funciona como cortina de ferro que separa o arcabouço legal e institucional dos interesses privados governados de maneira autocrática pelo Banco Central “independente”, que opõe sérias resistências – ou mesmo impossibilidades – para o governo priorizar investimentos públicos e sociais.

O impasse vem da ditadura militar, com o fracasso do “milagre econômico”, agravado pelo projeto neoliberal, sobretudo após o arcabouço do Plano Real. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pouco lembrada atualmente, é a fonte desses dilemas e de patetices panfletárias, a exemplo do que disse Pedro Malan, ministro da Fazenda dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), também na segunda-feira (12), num evento do mundo financeiro chamado Finance Of Tomorrow: “A sociedade brasileira hoje não permitirá que nenhum governo tenha uma atitude excessivamente leniente e complacente acerca da inflação.”

Esfriamento da economia

Por trás dessa retórica vazia está a preservação dos privilégios conquistados pelo mundo das finanças na “era FHC”. Esse dogma  autoritáro e excludente é uma tendência que vem do golpe militar de 1964. Os economistas que assumiram o controle chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio”: produto de fantasia; devaneio, utopia. Gustavo Franco, presidente do Banco Central na “era FHC”, repetiu a ladainha ao dizer que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso.

Tempos depois, já no primeiro governo Lula, outro ideólogo do arcabouço neoliberal do Plano Real, Luiz Carlos Mendonça de Barros, criticou, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, “o consumo das famílias e os gastos do governo”, responsáveis pelo “nível de absorção interna de bens e serviços”, segundo ele indutores da inflação. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

Seguir à risca esses mandamentos é repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, atribuída a Delfim Netto. Aquela análise monetária-culinária já desconsiderava o princípio de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento nacional, de que conceitos monetários não podem determinar a política econômica de maneira absoluta. Era a linha que estava trocando a fase em que o Estado deu prioridade ao crescimento de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais), adotado sobretudo pela “era Vargas”, pela acumulação financeira.

As consequências foram um longo período de inflação alta, concentração de riqueza e crescimento econômico pífio, sem melhoria dos serviços básicos e sem integração dos milhões de brasileiros que viviam à margem da cidadania e do poder aquisitivo na dinâmica social e econômica do país. Passaram ao largo da premissa de que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento e da sua variada relação de causas e efeitos monetários e estruturais, a afirmação de teses ditas únicas que apresentaram resultados melancólicos.

O desmentido de promessas feitas em tom de profecias, fez crescer as evidências de que o país tomara o caminho errado, mesmo na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci enveredando pelo caminho neoliberal. Eram os “ortodoxos de galinheiro”, na definição do economista Paulo Batista Nogueira Júnior. E seguem incorrendo na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Para eles, a gestão da economia só pode dar resultados positivos se estiver submetida às suas elucubrações.

Ilha da fantasia

O reinado absoluto de Palocci repetiu o viés autoritário dos “ortodoxos” da ditadura militar e da “era FHC”, a ponto de bater de frente até com o vice-presidente da República, José Alencar, crítico ferrenho da acumulação financeira via elevação da taxa de juros pelo Banco Central a pretexto de combater a inflação. “A Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura de bater na taxa de juros. Essa censura existe, tenho sofrido e sido vítima dela”, disse ele numa palestra para empresários na Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Essa gestão macroeconômica é um mundo separado dos reais problemas do país, no qual a razão cede lugar à adivinhação, à cartomancia, uma ilha da fantasia. Ao longo de sua vigência, o que se viu foi uma elite ignorando completamente a racionalidade econômica para justificar, com argumentos matemáticos, a diminuição de suas obrigações diante do Estado e assim se eximir de suas responsabilidades perante a coletividade, abusando do caixa do Estado, principalmente por meio da alta taxa de juros.

A arrogância dos arautos dessa teoria, somada à monopolização dos meios de comunicação pela mídia cartelizada e corrompida, dificulta um debate às claras sobre qual seria o melhor caminho para o Brasil. Esse samba de uma nota só ganhou superpoder com a “independência” do Banco Central, um dos principais itens do programa do golpe do impeachment fraudulento contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, entregue à autocracia protegida pela impunidade garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, um mundo à parte, privado, regido pela farra financeira, com a tese farsesca da “despolitização da moeda”. Isso remete ao problema do Estado, que deve ser visto como instrumento para atender aos interesses da nação, e não atentar contra eles.

– Lula e os dilemas de Delfim Netto

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Por Osvaldo Bertolino

Economista falecido nesta segunda-feira (12) transitou de feroz defensor do desastrado “milagre econômico”, surgido no âmbito do terrorista AI-5, para crítico da radicalidade neoliberal.  

Em sua coluna de 7 de maio de 2003 no jornal Folha de S. Paulo, Delfim Netto mencionou um seminário sobre “Economia socialista” promovido pela Fundação Perseu Abramo em 2000 no qual Luiz Inácio Lula da Silva teria dito, num depoimento espontâneo, que “o ser humano é eminentemente competitivo”. “À medida que se bloqueia a capacidade competitiva do ser humano e que se colocam todos para ganhar a mesma coisa dentro de uma fábrica, cortam-se as possibilidades de sucesso daquela fábrica. As pessoas são niveladas por baixo e não por cima. O socialismo não conseguiu resolver esse problema”, disse Lula, segundo Delfim.

Era uma simplificação vulgar do conceito de socialismo, mas a fala agradou aos ouvidos de Delfim. Lula teria dito ainda que “o mercado só funciona se houver um Estado muito forte regulando-o e obrigando-o a cumprir algumas cláusulas sociais”. “Só o mercado não resolve. Compatibilizá-lo com um Estado regulador, capaz de garantir que ele atenda a todas as necessidades das pessoas, seria o ideal. Como fazer isso é o desafio que está colocado para o PT”, prosseguiu Lula.

Delfim conclui: “Por que desconfiar que há 30 meses, num seminário acadêmico reservado, o futuro presidente estivesse escondendo o seu verdadeiro pensamento quando afirmava com todas as letras e até com certa rudeza na presença de intelectuais (…) que o PT não é um sonho, mas um instrumento político para construir, pragmaticamente, uma sociedade com liberdade, igualdade e justiça, combinando o ‘mercado’ com a ação do Estado? Por que, afinal, insistir na crítica a um suposto descumprimento de um programa abandonado? Todos os partidos querem uma sociedade eficiente, que utilize o mercado, garanta as liberdades individuais e reduza as desigualdades. Nós (os não-petistas) tivemos a nossa oportunidade de construí-la com resultados medíocres. É a vez de o PT tentar! Vamos criticá-lo quando errar nessa construção.”

Nova economia brasileira

Na essência, o PT não errou a ponto de receber críticas de Delfim, conforme prometera na condição de ungido por ele mesmo como oráculo da economia brasileira. Mas ele não deixou de avaliar criticamente o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Aparentemente, aquela certeza de que a sua política econômica dos tempos da ditadura militar salvaria o país não existia mais. O Brasil havia pagado um alto preço pela opção de receber os dólares empurrados pelas baixas taxas de juros internacionais para fazer o “milagre econômico” e pagá-los a juros exorbitantes, política que levou o país ao caos econômico e social no começo dos anos 1980.

O “milagre econômico” representou uma afluência excludente – a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de uma sociedade industrial e a outros apenas a cota de sacrifício necessária àquele salto econômico. Aquele modelo econômico colapsou preso às contradições de uma violenta concentração de capital, produzindo insuportáveis mazelas sociais. Um dado revelado em 1974 pelo senador de oposição do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de São Paulo, Franco Montoro, eleito em 1970, dava bem a medida das dimensões da crise – em dez anos, o Produto Interno Bruto (PIB) crescera 56% e o salário-mínimo caíra 55%. Ou seja: a riqueza nacional aumentou quase na mesma proporção do empobrecimento da classe trabalhadora.

A ideia daquela política econômica está no livro A Nova economia brasileira, de Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, que, com Delfim, comandaram a economia na ditadura militar. Os objetivos básicos eram o combate à inflação, o reequilíbrio do balanço de pagamentos e a criação de bases sobre as quais deveria ocorrer o desenvolvimento de longo prazo, tese que ficaria bem mais conhecida com o arcabouço do Plano Real, adotado em 1994 para dar forma e conteúdo ao projeto neoliberal. Ou seja: primeiro vem a “estabilidade monetária” para surgir o crescimento econômico impulsionado por investimentos privados e só então haveria as condições para se distribuir a produção.

O Brasil pós-milagre

O livro apresenta o dilema: produtivismo ou distribuitivismo? “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram. O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista – que se tornou popular quando Delfim afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. A forma seria, basicamente, o arrocho salarial. Em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, o economista desenvolvimentista Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.”

Um caso emblemático ocorreu em meados de 1977 quando o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) descobriu que 120 mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP) haviam perdido 34,1% de poder aquisitivo nos salários em consequência da compressão nos índices de custo de vida, determinada em 1972, 1973 e nos primeiros meses de 1974 por Delfim, então ministro da Fazenda.

Outras categorias também foram atingidas. Mais de 10 mil jornalistas do estado de São Paulo foram lesados em 12% e cerca de 100 mil bancários viram seus salários reajustados em 17,8% a menos do que o índice de inflação. O estudo do Dieese desencadeou um movimento vigoroso para pressionar o governo pelo ressarcimento do prejuízo. Catorze sindicatos paulistas e outros tantos de outros estados iniciaram, em agosto de 1977, a campanha pela reposição daquelas perdas. Reuniões e assembleias se espalharam pelo país. Outros sindicatos também consultaram o Dieese.

Estopim para as greves

Tudo começou quando a revista Conjuntura Econômica, de julho daquele ano, divulgou a revisão das contas nacionais feita pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) — ligado à Fundação Getúlio Vargas. A revisão apontou um aumento de 20,5% no custo de vida de 1973, e não de 13,7% como fora divulgado.

O substituto de Delfim, Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério da Fazenda em março de 1974, reconheceu o erro em relatório enviado ao presidente da República, general Ernesto Geisel, e publicado pelo jornal Gazeta Mercantil. “Em 1973, o governo, procurando aproximar-se da meta de 12% de inflação, reprimiu ao máximo possível os aumentos de preços via tabelamento e controle (…). Assim, o índice, em dezembro de 1973, registrava a carne de primeira ao preço de 6,60 cruzeiros, quando o preço no mercado paralelo se situava em torno de 14 cruzeiros, ou seja, 112% a mais (…). Se os cálculos fossem corrigidos para tomar por base os preços reais do mercado e não os preços oficiais das tabelas, o aumento global do custo de vida em 1973 subiria 26,6%”, explicou o ministro.

Foi o estopim para as greves de 1978, retomadas dez anos após a ofensiva da ditadura contra os trabalhadores em 1968, a perseguição aos operários que desafiaram o regime com grandes paralisações em Contagem e Belo Horizonte, Minas Gerais, e em Osasco, São Paulo, na conjuntura da edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), o chamado golpe dentro golpe que desencadeou oficialmente o terrorismo de Estado, do qual Delfin foi um dos signatários. As greves ganharam volume e passaram a fazer parte da luta que levaria ao fim da ditadura em 1985.

Produtividade do trabalho  

Delfim foi um dos personagens centrais desse período. Com a disparada da inflação, os aumentos salariais acima do índice oficial do governo começavam a despertar a atenção dos trabalhadores. Segundo a lei salarial vigente à época, o item produtividade deveria ser solucionado entre as partes. Delfim, agora ministro do Planejamento depois de ter passado pelo Ministério da Agricultura, afirmara à revista IstoÉ que, após o reajuste automático dos salários previsto na lei, “eles poderão sentar à mesa e discutir à vontade o aumento da produtividade”. E acrescentou: “Há sérias dúvidas sobre como vai funcionar isto ou aquilo, as pessoas ficam preocupadas com a forma de calcular a produtividade sem deixar de entender que essa é a discussão verdadeira, que se trata de sentar-se à mesa para discutir a distribuição funcional da renda. E vai aprender, na minha opinião. Todos vão aprender.”

A questão era delicada para os empresários. A produtividade do trabalho – criação de mais valor por hora trabalhada – crescia verticalmente e eles temiam que esse mecanismo levasse os trabalhadores a autocontrolarem o processo por meio da organização nos locais de trabalho. A batalha por aumentos salariais acima do índice oficial ganhava volume rapidamente. Não demorou e o próprio Delfim disse que os aumentos reais dos salários eram as causas da disparada da inflação. Para ele, havia um “descalabro” salarial no país que precisava ser contido. Ele chegou a reunir-se com Lula e Arnaldo Gonçalves – presidentes dos sindicatos dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e de Santos – para propor uma trégua nas greves durante dois anos como instrumento de combate à inflação.

Membros do governo manifestaram “oficiosamente” a intenção de aceitar a concessão de um índice de produtividade de 10% e voltaram atrás. Um grupo de empresas multinacionais teria manifestado essa intenção, que foi prontamente rechaçada por Delfim. Obcecado com a ideia de “combate à inflação”, ele chegou a ameaçar deixar o governo se a proposta fosse adiante – ignorando sua definição, segundo a qual a distribuição “funcional” da renda estaria ligada ao ganho de produtividade por meio do “entendimento entre as partes”. A lógica do ministro se coadunava com os interesses dos empresários brasileiros, que julgavam o índice de 10% suportável apenas para as multinacionais.

Porta-voz do Parque Jurássico

Delfim estava diante do dilema apontado por Mário Henrique Simonsen que, em 1979, ao deixar o Ministério do Planejamento, recomendou a Delfim suas ideias sobre “estabilidade”, “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”, termos do projeto neoliberal que invadiria o noticiário econômico nos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Os problemas da economia brasileira se agravavam rapidamente. O país estava atado a um quadro macroeconômico internacional complexo, resultado do acentuado endividamento externo promovido para financiar o “milagre econômico”. A inflação acumulada em 1982 foi de 99,71%. Delfim recorreu a um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 4,4 bilhões, sob a regência de uma Carta de intenções assumindo compromissos com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial.

Após a ditadura, Delfim tornou-se um crítico da radicalidade neoliberal. O Brasil tornara-se um dos lugares em que a teoria de uma lógica do mercado financeiro funcionando como mão invisível impedindo distorções localizadas mais vicejou. Os “guardiões da moeda” da “era FHC” garantiam que o fluxo mirabolante de capital não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Eles diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país. O Brasil, portanto, precisava entrar nesse jogo com um modelo econômico “competitivo”. Ao responder a críticas de Delfim a essa retórica, Gustavo Franco, o arrogante então presidente do Banco Central, disse que ele era “porta-voz do Parque Jurássico”.

No governo Lula, quando Palocci deu prosseguimento à política econômica de FHC, ele voltou a criticar a exacerbação do neoliberalismo. O novo ministro da Fazenda assumiu anunciando cortes no orçamento, aumento dos juros e “reformas” neoliberais. Delfim disse que o cenário imaginado por Palocci era irrealista. O “ajuste fiscal” sozinho não resolveria o problema da crise herdada. O governo corria o risco de promover um arrocho violento e ficar sem os resultados esperados. “É absolutamente impossível ter um ajuste com o país crescendo a uma taxa anual de 1% do PIB ou inferior a isso”, disse. “Não existem exemplos na história econômica do mundo de um equilíbrio construído com crescimento tão pífio”, ressaltou.

Burla do déficit nominal zero

Antes da Posse de Lula, Palocci bateu o pé até convencê-lo a fazer o anúncio por escrito dos compromissos da “era FHC” com o FMI – metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário, num documento chamado Carta ao Povo Brasileiro que Delfim passou a chamar de Carta de Ribeirão Preto, numa referência à cidade paulista da qual o ministro fora prefeito.

A equipe de Palocci, segundo Delfim, era de gente necolonizada. “Para eles, o desenvolvimento é a recompensa que desaba sobre a cabeça dos bem-aventurados que praticam as normas que (eles mesmos) supõem ser a boa e dura ‘ciência econômica’. É uma espécie de religião. Qualquer mobilização para o desenvolvimento econômico por parte do Estado é perda de tempo. Pior, é pecado! Contraria os princípios pelos quais se vai aos céus: a definitiva aceitação do deus mercado e a obediência estrita aos cânones da ‘ciência dura’. Quem ‘peca’ pode ter algum prazer no curto prazo, mas vai para o inferno no longo prazo”, escreveu ele na edição da revista CartaCapital de junho de 2003.

Ele mudaria de opinião quando Palocci se isolou no governo. Segundo a revista Veja, Delfim avaliava que Palocci deveria ser “indemissível” porque sua grande missão no governo era evitar que Lula voltasse a ser petista. A avaliação de Delfim se deu no contexto em que ele se aproximou do ministro com a proposta de “déficit nominal zero”, uma burla, segundo o economista Carlos Lessa, que acabara de ser demitido da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por não aceitar as imposições da política de Palocci. “Cortar gastos não faz a economia crescer. Cortar gastos faz a economia cair”, resumiu. Desde então, apesar da proximidade com Lula, Delfim manteve-se discreto tanto nas críticas quanto nos elogios às políticas econômicas.

– Contubérnio de parasitas no Banco Central “independente”

Por Osvaldo Bertolino

Não existe Estado Democrático de Direito sem transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar a eficácia de suas medidas. Esse é um direito humano fundamental, sonegado pelo controle autoritário da comunicação por uma mídia cartelizada e corrupta à raiz do cabelo.

Nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, está claro, sob o risco de afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do processo deliberativo. O grau exato depende, portanto, do tipo de atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos. Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de regras claras sobre o tema.

Mas, com o controle do Estado por grupos privados, a essência da ditadura do projeto neoliberal, esse princípio básico da democracia fica inviabilizado. Consequentemente, o setor público passa a ser saqueado impiedosamente por grupos de interesses que põem o Estado a seu serviço para pagar-lhes as contas e garantir um fluxo contínuo de dinheiro a custo zero, saído do couro do povo.

Recentemente, o noticiário da mídia corrompida mostrou que o Banco Central “independente” anunciou novas regras para as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o agendamento. É uma espécie de contubérnio entre compadres, sócios do projeto de saque ao Orçamento e ao patrimônio públicos.

– Raízes profundas da conspiração contra a Venezuela

Por Osvaldo Bertolino

Atual ofensiva da direita contra a democracia na Venezuela, com perfil nazifascista e conteúdo da roubalheira neoliberal, tem um fio histórico. Hostilidades recente ao presidente democraticamente reeleito Nicolás Maduro fazem parte de um processo montado nos Estados Unidos para pilhar outras nações à base de um gigantesco aparato militar e ideológico.

Por qualquer ângulo que se olhe para o regime dos Estados Unidos é impossível não ver criminosos de guerra. Os senhores da guerra são uma importante fonte de poder. A ordem militar, até a década de 1950 uma instituição débil, transformou-se no escalão mais importante e mais caro do governo dos Estados Unidos. Saíram de cena os sorridentes homens de relações públicas e apareceu a face da sinistra burocracia instalada na máquina de guerra. Todos os fenômenos políticos e econômicos passaram a ser julgados à luz de interpretações militares.

O “realismo militar” dos chefes militares instalados no poderoso Estado-Maior Conjunto transformou-se no guia mais inspirado do grupo dirigente do país. Desde os anos da Segunda Guerra Mundial, essa força ampliou seu campo de ação em assuntos relativos à política exterior e doméstica do país e atualmente pode-se dizer que a ordem militar do Estado-Maior Conjunto está solidamente instalada no Estado.

Existem dois governos nos Estados Unidos. O primeiro é o governo sobre o qual o mundo se informa na internet, no rádio, na televisão e nos jornais, e as crianças nos livros escolares. O segundo é invisível e conduz a espionagem e a rede de informações, um aparato maciço que emprega centenas de milhares de pessoas secretamente e conduz a política externa do país. Esse governo invisível emergiu das imposições dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial.

Mundo ocidental

Os demais países centrais, exaustos pela guerra, foram obrigados a aceitar essa ordem em troca de ajuda para a sua reconstrução. Assim, os Estados Unidos deixaram de ser apenas mais um agregado no conjunto de países que lutavam por pedaços do mundo e passaram a ocupar o pico de uma pirâmide solidamente dirigida por eles. As regras desse jogo foram definidas num momento privilegiado para o grande país americano. Nenhum representante do chamado Terceiro Mundo participou desses tratados.

A Europa, destruída e ensanguentada por duas grandes guerras num curto espaço de tempo, não estava em condições de se opor à grande capacidade de produção norte-americana proporcionada pela Segunda Revolução Industrial — que dotou o país de uma poderosa e inovadora indústria. Na Ásia, o Japão, destroçado pela guerra, foi ocupado pelos Estados Unidos, que ditaram o rumo da sua reconstrução.

Esse processo do pós-Segunda Guerra Mundial que desencadeou a dominação norte-americana no chamado mundo ocidental, portanto, levou o capitalismo a uma transformação profunda. No final dos anos 1940, somente os Estados Unidos estavam em condições de exportar capital em grande escala. E o país usou essa condição privilegiada para manter sob o seu controle as rédeas num mundo que buscava alternativas ao seu modelo político e econômico.

Na Europa, o projeto social-democrata procurou adaptar a economia planejada à tradição comercial liberal do velho continente. No Japão, o Estado se reforçava para desempenhar um papel de destaque no planejamento econômico. E cerca de um terço da população mundial rompeu com esses paradigmas e se juntou à União Soviética para reforçar o sistema de economia totalmente planificada. Desde então, os Estados Unidos intervieram em vários países e promoveram uma feroz cruzada anticomunista em todo o mundo.

Declaração de Independência

A política norte-americana sempre foi expansionista e agressiva com a América Latina. A própria constituição dos Estados Unidos como nação encerra uma contradição entre o que foi proclamado dia 4 de julho de 1776, quando o povo norte-americano aprovou a Declaração de Independência, e a política exterior da jovem pátria. As premissas do expansionismo continental norte-americano foram criadas com as guerras contra a população originária e as reivindicações dos latifundiários do Sul do país de ampliar o território avançando pelas fronteiras de seus vizinhos. William Foster, estudioso da história política do continente americano, diz que o próprio nome do país — Estados Unidos da América — expressa suas pretensões panamericanas.

Já no começo do século XIX, a contradição entre os princípios humanitários e democráticos proclamados pela Declaração de Independência e a política exterior do jovem Estado levou à renúncia das suas tradições libertárias. A doutrina do direito natural de todos os povos decidirem seu próprio destino — um dos fundamentos da Declaração de Independência — passou a ser interpretada de modo a justificar como “natural” o expansionismo norte-americano. Para os dirigentes dos Estados Unidos, essa doutrina dava ao país o direito de encarar o continente como sua área de influência direta.

Colônias sul-americanas

Com esse argumento, a princípio os presidentes Thomas Jefferson e John Adams “compraram” a Luisiana — que pertencia à França — e ocuparam a Flórida — que pertencia à Espanha. Depois, no dia 2 de dezembro de 1823, com a mensagem do presidente James Monroe ao Congresso, foi proclamada a famosa “Doutrina Monroe” — que expressa sem ambiguidades as pretensões norte-americanas à hegemonia em todo o hemisfério ocidental.

Monroe não foi efetivamente o pai da criança — antes dele, todos os presidentes haviam trabalhado para moldar aquela ordem. A mensagem do presidente foi a consequência de um movimento na Europa — envolvendo Inglaterra, França e Espanha — que pretendia “pacificar” as colônias sublevadas na América do Sul. A França enviou o seu exército à Espanha para repor no trono Fernando VII, monarca espanhol deposto por uma onda revolucionária, e despertou a reação da Inglaterra.

As colônias sul-americanas sublevadas estavam dentro do círculo comercial inglês e a França havia prometido devolvê-las à Espanha. O êxito francês significaria a automática conquista do direito de comércio na região. A Inglaterra, então, propôs aos Estados Unidos uma união para travar as pretensões francesas e sugeriu que o acordo fosse selado por uma declaração conjunta baseada no poderio marítimo dos dois países anglo-saxônicos.

Declaração conjunta

Quando Monroe tomou conhecimento da proposta inglesa, imediatamente consultou os ex-presidentes Thomas Jefferson e Jacobo Madison — e recebeu o conselho de aceitar o plano da Inglaterra, mas com uma modificação. Jefferson disse que o assunto era da mesma magnitude da Ata da Independência dos Estados Unidos. “Aquela nos fez uma nação, esta fixa na nossa bússola a rota a seguir através do oceano do tempo que se abre perante nós”, disse ele. “A América, tanto no Norte como no Sul, tem um conjunto de interesses diferentes dos da Europa e que lhe são muito próprios.”

A proposta da Inglaterra foi aceita, mas a declaração conjunta, recusada. Assim, no dia 2 de dezembro de 1823 o mundo conheceu a mensagem de Monroe e soube que os Estados Unidos haviam deixado a Inglaterra de lado e tomado a decisão de determinar os destinos dos povos da América. Em vez de dar a mão para a Inglaterra, os Estados Unidos deram um pontapé na Europa. De mãos livres, se apoderaram dos territórios que estavam em seus planos — como Cuba e Porto Rico —, iniciaram a monopolização do comércio na região e começaram a exportação maciça de seus capitais para os países que se tornaram independentes.

Desde então, a propaganda expansionista invocou esses princípios para justificar as ações políticas e militares extraterritoriais dos Estados Unidos. Para os meios de comunicação fortemente vinculados ao poder econômico, os norte-americanos têm o dever natural e sagrado de levar as suas tradições “liberais” e “democráticas” aos povos “incultos” do resto do mundo. Por mais simplista e racista que esse pensamento possa parecer, ele é abertamente proclamado no país desde a instauração do chamado Destino Manifesto — uma “teoria” que surgiu e se difundiu nos Estados Unidos na metade do século XIX, segundo a qual os norte-americanos nasceram para ser o melhor povo do mundo.

Anticomunismo sem escrúpulo

É muito forte a influência da religião nessa “teoria”, um destino que teria sido profetizado pela “providência divina”. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, levava ao pé da letra a frase “In God we trust (Em Deus nós confiamos)” impressa nas notas do dólar. Quando ele era presidente, as reuniões ministeriais na Casa Branca começavam com orações; frases bíblicas sempre apareciam em seus discursos.

Em sua gestão, Bush propôs a canalização de recursos sociais para entidades religiosas, a autorização de preces e sermões em escolas públicas, o subsídio a faculdades geridas por grupos religiosos e o financiamento do trabalho de entidades religiosas em presídios — uma ofensiva jamais feita, apesar da tradição religiosa do país, contra a separação entre igreja e Estado, um dos princípios basilares consagrado na Primeira Emenda à Constituição.

O ex-presidente norte-americano certamente não era refém da fé e pode-se dizer que a rigor ele tomava o nome de Deus em vão. Por trás de sua política estavam os interesses de uma parcela significativa da economia que lidera o mundo. A ideologia do Destino Manifesto age como um poderoso elemento mobilizador da energia do país para a conquista de novos territórios. Ao longo da história, ela foi um verdadeiro elixir do expansionismo e do intervencionismo norte-americano.

No século XX, particularmente na sua segunda metade, essa ideia, traduzida em anticomunismo sem escrúpulo, permeou a propaganda do regime norte-americano, marcada pela Doutrina Truman com seus aparatos financeiros dos tratados de Bretton Woods e seu braço armado, a Organização do Tratado do âtlântico Norte (Otan), proclamada pelo então presidente Harry Truman sob as cinzas da Segunda Guerra Mundial. E isso explica a visão dominante no país de que o restante do planeta — sobretudo o chamado Terceiro Mundo — é cultura e economicamente subdesenvolvido.

Essa propaganda ganhou, evidentemente, novos contornos desde a queda do muro de Berlim, mas sua essência permanece a mesma e constitui, basicamente, em levar a “democracia” aos países que recusam a cartilha de Washington e em “ensinar” os “segredos” da boa gestão econômica. O aparato de propaganda norte-americano, por exemplo, contra todas as evidências diz que a presença dos Estados Unidos em países invadidos ou sob sua vigilância — como a Ucrânia — tem missão modernizadora e libertária. Mesmo quando os fatos insistem em desmenti-lo, nas entrelinhas essa ideia é largamente difundida.

Democracia mundial

A reprodução acrítica dessa prática pela mídia brasileira é bem conhecida, como seu viu na recente visita do presidente Nicolás Maduro. Ignoram o princípio básico da soberania dos povos — caberia ao povo venezuelano, se fosse o caso, reunir forças para derrocar o seu governo, como já fizeram outros povos, inclusive o brasileiro —, pilar da democracia mundial. Tampouco o direito internacional, descaradamente golpeado.

Foi assim com o golpe militar pró-Estados Unidos de 1964 no Brasil. E com os movimentos congêneres que se alastraram pela região nos anos 1950-1960-1970. E etc. A política externa do regime de Washington segue a lógica de que a economia norte-americana depende das imensas riquezas da América Latina. Logo, seus destinos políticos devem ser controlados pelos interesses econômicos dos Estados Unidos.

A “Doutrina Monroe” ainda é um punhal cravado nas entranhas dos nossos povos. De George Washington até Joe Baden, os 46 presidentes que passaram pela Casa Branca não mudaram a essência expansionista da política externa dos Estados Unidos. Hoje, com o agravamento da crise estrutural da economia norte-americana decorrente dos seus monumentais déficits comercial e orçamentário, recrudesce a lógica da “Doutrina Monroe”.

Embora sem perder a hegemonia, no século passado — principalmente após a Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos travaram uma dura disputa comercial com a Europa e o Japão. Agora, diante da formação de megablocos comerciais relativamente sólidos — particularmente a União Europeia —, o controle de sua área de influência não pode correr o menor risco de enfraquecer. O seu domínio político e econômico, portanto, precisa de amarras jurídicas mais firmes para enfrentar as recorrentes tentativas de insurgência na região e fechar os espaços para eventuais investidas de outros blocos comerciais.

Obra de Lênin

Esse foi o sentido político da proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), derrotada pela ascensão de governos progressistas na região, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998. O sempre atual diagnóstico de Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, no Capítulo X da obra Imperialismo – Fase Superior do Capitalismo, intitulado O lugar do imperialismo na história, diz que o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capitalismo monopolista. Ele pode ser aplicado inteiramente à atual situação.

Além de outras características, Lênin afirmou que os monopólios agudizam a luta pela conquista das mais importantes fontes de matérias-primas. “A posse monopolista das fontes mais importantes de matérias-primas aumentou enormemente o poderio do grande capital e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada e a não cartelizada”, escreveu ele. “Aos numerosos ‘velhos’ motivos da política colonial, o capital financeiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de capitais, pelas ‘esferas de influência’, isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território econômico em geral”, acrescentou.

Outra importante constatação de Lênin é que da tendência dos monopólios para a dominação em vez da tendência para a liberdade, da exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas por um punhado de nações riquíssimas ou muito fortes, originaram os traços distintivos do imperialismo. “Esse capital financeiro que cresceu com uma rapidez tão extraordinária, precisamente porque cresceu desse modo não tem qualquer inconveniente em se apossar das colônias — as quais devem ser conquistadas não só por meios pacíficos pelas nações mais ricas”, escreveu ele. “A comparação, por exemplo, entre a burguesia republicana norte-americana e a burguesia monárquica japonesa ou alemã mostra que as maiores diferenças políticas se atenuam ao máximo na época do imperialismo. E não porque essa diferença não seja importante em geral, mas porque em todos esses casos se trata de uma burguesia com traços definidos de parasitismo”, acrescentou.

Poderio militar

A radiografia é perfeita para se entender o atual estágio da economia norte-americana. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), caso se mantenha o consumo médio das duas últimas décadas as atuais reservas mundiais de petróleo devem exaurir-se antes de 100 anos. Os Estados Unidos, maiores consumidores do mundo, responsáveis todos os anos pela combustão de 30% do petróleo extraído no planeta, sabem que essa limitação é crítica para a sua hegemonia.

Assim, ao mesmo tempo em que gastam fortunas no desenvolvimento de alternativas energéticas — como as células de hidrogênio, por exemplo —, procuram assegurar-se de suprimentos que permitam ao país atravessar as próximas décadas. Para tanto, pretendem explorar até jazidas localizadas em áreas protegidas como reserva ambiental, no Alasca.

É evidente que uma economia com essas características, com o peso de um Produto Interno Bruto (PIB) que rompe a barreira dos US$ 8 trilhões, não tem como conviver com a paralisia das engrenagens que lhe são peculiares. A disparidade de poder — sobretudo militar — entre os Estados Unidos e os demais países também deve ser considerada nessa equação. Seu histórico é um bom guia para se entender o que isso significa.

Tensões abafadas

Sob a proteção do guarda-chuva nuclear norte-americano, esteio da Guerra Fria, as demais potências capitalistas se desenvolveram num ambiente sem guerras entre elas. A economia japonesa, umbilicalmente ligada à economia norte-americana, floresceu. E a Europa Ocidental evoluiu ao ponto de construir uma entidade supranacional, a União Europeia. Os grandes conflitos mundiais estavam sujeito ao direito internacional.

Assim, nuitas tensões antes abafadas pelo jogo internacional afloraram e foram reduzidas à pura expressão militar. Novos inimigos, reais ou forjados, entraram em cena e passaram a ser considerados pela estratégia expansionista como alvos — destacadamente as nações e regimes que não rezam pela cartilha de Washington. No âmbito imperialista, esse quadro foi construindo uma tática belicosa fundada basicamente num imaginário “choque de civilizações” — ideia expressa por Samuel Huntington em seu livro homônimo. Segundo o autor, a conjunção da “civilização confuciana com a islâmica” seria, hoje, a maior ameaça ao ocidente. O corte é mais econômico do que geográfico.

Na verdade, a relação do ocidente com o oriente é uma das formas clássicas de entender a configuração mundial moldada por duas guerras mundiais — e algumas guerras locais — ao longo do século XX. Mais do que projeções geográficas e culturais, esse modo de ver o planeta é corroborado pela análise econômica. A economia capitalista asiática, umbilicalmente ligada à economia norte-americana, tem um crédito monumental em títulos do Tesouro dos Estados Unidos — recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva da “globalização”, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona. O Japão, que enfrenta uma longa crise, é o país da região com maiores dificuldades para se levantar. Para complicar mais ainda o cenário japonês, há em seu flanco a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial.

Esse quadro tem tudo a ver com a dinâmica da especulação financeira internacional. A “bolha especulativa” chegou ao seu limite com o esgotamento da capacidade mundial de financiamento do alucinado endividamento público norte-americano pelo agravamento da crise de seus principais financiadores. Assim, os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. E o tombo da economia norte-americana, que inevitavelmente levaria as demais economias à bancarrota, passou a assombrar o mundo.

Aparelhos ideológicos

No pós-Segunda Guerra Mundial, o regime norte-americano fincou suas bandeiras no oriente porque era real a possibilidade de o continente asiático seguir por um caminho próprio. Coréia e China são exemplos nesse sentido. Com seu feixe de tradições preservado, a China, por exemplo, inventou o seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. De quebra, o país tem sido hábil em adaptar-se às transformações do ambiente em que atua, em absorver, mesmo que de projetos rivais e teorias adversárias, aquilo que é fundamental ao seu desenvolvimento.

Essa flexibilidade inteligente é um dos aspectos mais notáveis do sistema chinês. Aquele país tem grande interesse na disposição das peças políticas no tabuleiro mundial — assim como a Rússia. Essa contradição talvez seja o maior ponto de interrogação que se forma com a decisão dos brutamontes de Washington de forçar um atalho na busca de uma estratégia que responda à desesperadora necessidade de uma saída para a crise econômica norte-americana.

Esses fatos demonstram que é falso o argumento dos aparelhos ideológicos do regime de que as armas norte-americanas têm um sentido defensivo, uma função política de balanço de forças. Quando se vira a moeda, a sua outra face revela que o belicismo está mais perto do que se imagina. Além do conflito na Ucrânia, sob o ardiloso pretexto de combate ao narcotráfico e ao terrorismo o Pentágono segue apregoando aos quatro ventos que entre os alvos de sua doutrina de atacar primeiro estão organizações políticas e países da América Latina. Chama a atenção, nesse sentido, a proliferação de bases militares norte-americanas na região e a formação de equipes especializadas para responder pelos assuntos latino-americanos, encarregadas do roteiro de hostilidades a Cuba e a Venezuela — e a quem os apoia.

 

Corvo do Banco Central pretende impor desemprego em massa

Por Osvaldo Bertolino

O comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom) que explicou a decisão de manter, pela segunda vez seguida, a taxa básica de juros, a Selic, em 10,5% ao ano, comprova que o Brasil passa por um acentuado acirramento da histórica disputa entre forças progressistas e entreguistas, tendo como ponto central o “ajuste fiscal”, exigido pelo controle autocrático da política monetária do Banco Central “independente”. A pressão midiática sobre o governo, com manifestações explícitas de censura e ataques virulentos, subqualificados, ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, potencializa a perversidade dessa política.

É uma realidade que impõe a máxima inversa à do corvo de Allan Poe: “Sempre mais”. Não há corte orçamentário que dê conta da voracidade financeira. Os recentes bloqueio e contingenciamento de R$ 15 bilhões do Orçamento é um bom parâmetro para se entender essa crueldade, adotado para cumprir a imoral e draconiana Lei de Responsabilidade Fiscal, criada para burlar e criminalizar dispositivos da Constituição que garantem projetos e investimentos públicos. Esse projeto da direita tem a inflação como questão central, sem considerar o emprego e a industrialização. Porque a inflação afeta os ativos, os valores dos títulos públicos e de todo papelório inventado pelos financistas internacionais.

Organização mais poderosa

O bloqueio e o contingenciamento se deram no âmbito do “arcabouço fiscal”, concebido dentro do limite da conjuntura em que Lula tomou posse em 2023 e que possibilitou desatar o nó da emenda constitucional do teto dos gastos públicos, imposta como projeto do golpe de Estado de 2016 contra a presidenta da República, Dilma Rousseff. O “arcabouço” estabeleceu que a meta fiscal – a garantia do exorbitante recurso público consumido pela engrenagem da dívida pública manipulada pela política monetária sob controle da autocracia do Banco Central “independente” – tenha uma banda de flutuação de até 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima e para baixo.

O corte no Orçamento visou o mínimo, para cumprir a imposição da burlesca Lei de Responsabilidade Fiscal, numa demonstração de compromisso do governo com a reconstrução do país. Logo em seguida, desconsiderando esse esforço do governo, o Copom – a organização mais poderosa do país, que se sobrepõe à Constituição e a toda institucionalidade da República – adotou a manutenção da Selic. Em essência, a justificativa foi de que era preciso uma ação preventiva diante da possibilidade de alta da inflação. A principal causa, deduz-se, é a elevação do nível de emprego.

A tese do sistema financeiro é de que a aceleração do rendimento médio aquece o consumo e leva a aumentos salariais acima da inflação, um dos pilares do projeto neoliberal, a teoria da “taxa natural de desemprego”. Ou seja: o controle da inflação pela contenção da demanda dos trabalhadores, uma crueldade que vai além do conceito de exército industrial de reserva desenvolvido por Karl Marx, correspondente à força de trabalho que excede as necessidades da produção, medida adotada, não raro, de forma preventiva. Além de lançar um vasto contingente de trabalhadores no desemprego, os juros elevados encarecem o crédito, com forte impacto no consumo, e travam os investimentos, comprometendo o desenvolvimento do país.

Sentenças de editoriais

Essa é a causa principal da alegação do comunicado do Copom de “que uma política fiscal crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida contribui para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de risco (juros altos) dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”. Não usaram o pretexto do cenário externo, sempre alegado para justificar decisões como essa, ignorando a decisão do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, que manteve inalterada, pela oitava vez seguida, a taxa de juros de referência daquele país, com indicação de queda diante dos sinais de desaceleração da atividade econômica, com redução de criação de postos de trabalho e aumento do desemprego.

Seguindo sentenças de editoriais dos jornalões, o Relatório Focus, divulgado semanalmente com pareceres de consultores financeiros – o “mercado” em carne e osso – sobre suas avaliações futuras de variáveis da economia – entre elas, a especulação com a alta do dólar –, que serve de baliza para a decisão do Copom, tem ignorado esse cenário externo, reforçando o aspecto interno, sobretudo a queda do desemprego, além da forte pressão sobre cortes orçamentários, com a alegação de que existe excesso de gastos públicos, que também pressionaria a inflação.

Gastos públicos – na verdade, investimentos e políticas sociais, como o aumento do salário-mínimo acima da inflação – e demanda interna em crescimento pela queda do desemprego são a essência do projeto de governo do presidente Lula, eleito por uma frente ampla em 2022 que isolou e derrotou, nas urnas, o bolsonarismo. Foi uma operação que implicou também o debate sobre os rumos do projeto neoliberal, que se firmou na década de 1990 com as eleições de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e seu projeto tocado por uma poderosa equipe de tecnocratas, sob o rótulo do Plano Real, após um precário ensaio no final do governo de José Sarney e as turbulências do período de Fernando Collor de Mello.

Hostilidades neoliberais

O ciclo dos governos Lula e Dilma Rousseff rompeu muitas amarras do arcabouço do Plano Real, mas o projeto neoliberal recobrou forças com a marcha golpista e após o golpe do impeachment de 2016. A condução trôpega do processo golpista, sobretudo pelo governo Bolsonaro, levou os ideólogos da direita a se voltar para a tática de dar à frente ampla a sua dinâmica, numa atitude de confronto aberto com o projeto representado pelo núcleo de esquerda que se uniu em torno de Lula numa trajetória iniciada nas eleições de 1989. Assim que saiu o resultado das eleições de 2022, as forças políticas da frente ampla procuraram ajustar sua tática para redefinir suas posições em busca de influência nos diversos setores da sociedade.

Ao assumir a Presidência da República, Lula passou a enfrentar as hostilidades neoliberais, uma condição que remete à reflexão sobre os grandes momentos históricos nacionais, sempre precedidos de duras lutas, inclusive pelas armas. Foi assim nas lutas pela independência, pela Abolição, pela derrocada da Primeira República, pelo fim do Estado Novo e da ditadura militar. E as vitórias ocorreram sempre que as forças mudancistas optaram pela tática da mais ampla unidade nacional.

Mais uma vez, estamos diante de um momento histórico assim, com o desafio de transformar possibilidades em realidades. O governo está sob forte pressão pela manutenção da ordem neoliberal restaurada com o golpe de 2016, a integração plena do país ao cassino global, caminho oposto, por exemplo, ao da China, que escapou da agonia da especulação financeira com seu sistema imunológico melhor definido basicamente pelo bloqueio da conversão da moeda local, o yuan, em moeda externa.