Um curioso argumento do ministro da Educação Tarso Genro ocupou as páginas do jornal Folha de S. Paulo nas edições dos dias 6 e 7: o de que o Partido dos Trabalhadores (PT) é um partido “pós-comunista” e “pós-social-democrata”. Segundo ele, a destruição da estrutura de classes originária da Segunda Revolução Industrial teve uma consequência diferenciada nos países da periferia e da semiperifeira, como o Brasil. “Destruiu a centralidade da classe operária emergente, e os limites científico-tecnológicos do desenvolvimento não criaram rapidamente uma nova classe trabalhadora orgânica, que substituísse, como sujeito político, a classe operária industrial”, escreveu o ministro. “Nós temos hoje uma conflituosidade social que não se dá mais diretamente na relação de classe contra classe”, afirmou.
Para Tarso Genro, essa conclusão tem a ver também com a quebra dos paradigmas originários do socialismo “totalitário, estadista”, e com a crise da social-democracia. Para o ministro, a social-democracia é inaplicável num país como o nosso. “Ao mesmo tempo que estamos governando, estamos reconstruindo o partido e teorizando sobre o futuro”, escreveu ele. “Temos que rebaixar as nossas pretensões utópicas, e dizer de maneira clara que o socialismo não está na ordem do dia”, afirmou. Segundo Tarso Genro, “podemos e devemos mantê-lo (o socialismo) como uma ideia reguladora, mas temos que reconhecer, para podermos ser honestos com as nossas bases e com o país, que a questão do socialismo não é uma questão concreta da história hoje”.
Nova alternativa à barbárie
O ministro também defendeu um curioso conceito de “modernização democrática da vida republicana do Brasil” por meio do fortalecimento do PSDB — segundo ele “um partido que tem proposta, tem enraizamento social definido e, embora tenha divisões internas talvez maiores que as nossas (do PT), é um partido modernizante”. “A via de modernização que é a hegemonia do que o PSDB propõe é pela centro-direita. Mas é modernizante. O crescimento do PSDB é totalmente compatível com esse processo e com a necessidade que o país tem de ter um partido capaz de compartilhar da luta democrática. Isso nos ajuda”, escreveu Tarso Genro. Mais curioso ainda é o que o ministro chama de “rebaixamento do horizonte utópico” do PT.
Para ele, a utopia que o PT deve encarnar nesse momento configura-se com três elementos: “recuperar a ideia de nação dentro da pós-modernidade, que exige internacionalmente uma visão de compartilhamento e de integração com autonomia, e não uma visão fechada de nação como era na década de 1960; a democratização do Estado, ou seja, uma nova regulação da relação Estado-sociedade; um modelo de desenvolvimento que cause permanentemente inclusão na sociedade de classes”. “Se a nossa visão utópica era, via o socialismo, destruir a sociedade de classes, hoje é reorganizá-la. Porque isso significa reconstituir o sujeito político da democracia, isso significa poder repor, para quem quiser, num próximo período, pretensões utópicas mais radicais. Sem isso, é a barbárie”, afirmou.
O valor dos conceitos marxistas
Seria muito confortável acreditar nessas ideias, se não fosse o fato de que elas se chocam com a realidade. “Não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou”, escreve o historiador Eric Hobsbawm. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, assistimos a uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.
Tanto as teses de Tarso Genro quanto a de Eric Hobsbawm concluem que ainda não podemos afirmar como será a nova era. Contudo, ambos dizem que é possível observarmos suas fundações e, a partir daí, definirmos que rosto lhe daremos. A diferença é que Eric Hobsbawm deixa entrever a necessidade urgente de erradicarmos a base econômica dada pelo capitalismo. Já o ministro da Educação desconsidera um princípio básico da análise marxista das sociedades: o papel das organizações políticas como representantes de classes ou grupo de classes. É um direito dele. Mas para os marxistas os conceitos clássicos de direita e esquerda, aparentemente varridos pela nova ordem mundial, não podem ser ignorados em uma análise desse porte.
Já no século XIX, quando a maioria dos países havia trocado a monarquia de base feudal pela república baseada no liberalismo, esquerda passou a significar o projeto de modificação radical da estrutura social e do sistema econômico instituídos nas sociedades capitalistas — seu ideário reivindica a precedência do trabalho em relação ao capital. E direita tomou o significado de manutenção do status quo — seu ideário advogava a primazia do capital em relação ao trabalho. Salvo melhor entendimento, a tese de Tarso Genro é de que essa dicotomia não desapareceu de todo, mas, por estar desorganizada, está menos extremada. E, em última instância, no terreno econômico, está também, por ora, circunscrita ao neoliberalismo — com toda a coloração ideológica que este termo encerra no Brasil.
Trabalho doméstico é uma anomalia
Isso quer dizer que, se este raciocínio for levado às últimas consequências, ao definirmos a proposta do PSDB como “modernizante” estamos aceitando como socialmente cabível, embora por um certo tempo histórico, até resquícios da relação entre a Casa Grande e a Senzala na cidade e no campo. Em poucos outros lugares do mundo, por exemplo, uma família fazendo 30 mil reais por ano pode dar-se ao luxo de manter uma empregada doméstica cativa. O próprio emprego doméstico, com todo seu teor semi-escravista, é uma anomalia que não cabe em nenhum projeto moderno tão logo subamos mais um ou dois degraus em direção ao desenvolvimento social e econômico. No campo, as relações sociais ainda conservam traços nitidamente escravocratas. Por essas e outras, o projeto neoliberal enfrenta no país o visível obstáculo da imensa maioria da sociedade.
Nesse ambiente, a conceituação de direita e esquerda renova seu sentido histórico e classista. De um lado está o pensamento elitista e excludente, que privilegia a acumulação da riqueza em relação à sua distribuição, a ordem macroeconômica em relação à qualidade de vida dos indivíduos, a benesse de poucos em relação ao bem-estar de todos. De outro, está o pensamento que considera o todo e busca incluir, que visa aumentar e distribuir a riqueza, que eleva a qualidade de vida dos indivíduos à condição de prioridade econômica, que privilegia os consumidores em relação aos monopólios e o bem-estar de todos em relação ao acúmulo de alguns. A oposição, portanto, não deixou de ser entre o patrão de cartola e charuto e o trabalhador empunhando um martelo ou uma foice.
No Brasil, a esquerda luta contra o feudalismo
Pode-se admitir uma exceção extemporânea a essa regra — essa dicotomia, com tremendas ressalvas, pode até estar menos visível. Mas, independente disso, a melhor analogia é considerar, à direita, um capitalismo que em nome da “ordem” admite suprimir direitos individuais, que gosta da imprensa sob as suas rédeas e que não admite negociar a distribuição da renda nacional. E, à esquerda, o pensamento progressista, de corte humanista, que defende um Estado capaz de pensar um projeto para o conjunto da sociedade. Objetivamente, não há como haver trégua nessa luta. E a esquerda, que sempre pintou sua bandeira com cores mais nítidas e sempre a fincou de modo mais firme do que a direita, não tem motivo para recolher suas armas.
Temos, por exemplo, hoje, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), que luta contra um Brasil medieval, que precisa ser superado se quisermos de fato transformar este país numa nação democrática, em desenvolvimento e baseada nos direitos humanos fundamentais. Ou seja: enquanto a esquerda na Europa, ou o que remanesce dela, luta somente contra a hegemonia neoliberal, no Brasil ainda combatemos resquícios do escravismo. Essa constatação ajuda a desvendar por que no Brasil a direita morre de vergonha em admitir-se de direita. Manter baixa a visibilidade das cores de sua bandeira sempre contribuiu muito para diminuir sua rejeição perante o brasileiro médio.
Sem os ensinamentos da história, vem o fascismo
Ela representa privilégios escravistas, arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos por países que, não por acaso, ao fazê-lo desbloquearam seus caminhos em direção ao desenvolvimento. Daí o grande constrangimento. A direita é de fato conservadora por desejar a manutenção da estrutura inviável que temos no país, e reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder público. Daí a grande antipatia por ela arrecadada e o fato de a esquerda ter sido engolida com menos dificuldade pelo brasileiro médio ao longo do século XX. Para se ter uma base da rejeição às sua ideias, em uma pesquisa divulgada pela revista Veja, em junho de 1996, 62% dos conceitos que a elite brasileira atribuía a si própria eram negativos. E a esquerda, quem diria, foi reconhecida como a ala progressista da política nacional enquanto muros tombavam de Berlim à Sibéria.
Uma sociedade democrática deve alargar ao máximo o leque de possibilidades individuais e garantir um lugar digno a cada um. E isso, para os marxistas, não é utopia — é um projeto factível de sociedade. Para isso, é preciso assegurar, por meio de um regime verdadeiramente democrático, o direito de a sociedade escolher seu destino. Se reduzirmos tudo à aplicação prática, à eficácia estrita, à utilidade visível, imediata, comensurável, estaremos correndo o risco de ficarmos parados no tempo. A esquerda precisa, de fato, de novos projetos. Mas eles não podem ser uma abstração com pouca relação com a realidade objetiva do país. Se esquecermos os ensinamentos da história, estaremos dando chance para o fortalecimento do regime neoliberal de intolerância social e de homens autômatos. Aí vem o fascismo.
Em 18 de setembro de 1946, a primeira Constituição brasileira de perfil amplamente democrático foi promulgada. Era uma quarta-feira, data da tomada de Camaiori, a primeira vitória da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial dois anos antes, a pedido da “Associação dos ex-combatentes”. Após a solenidade de abertura daquela última sessão, os constituintes foram chamados, um a um, para assinar a nova Constituição. Era um momento solene, de emoção para a bancada comunista.
Falando à Agência Nacional, o senador Luiz Carlos Prestes, líder máximo do Partido Comunista do Brasil – à época, com a sigla PCB –, disse que aquele era um momento de grande satisfação para a bancada comunista e para todos os membros do Partido Comunista do Brasil. “Saímos do regime dos decretos-leis, de falta de garantias para os cidadãos e entramos, assim, no regime da lei, em que o Poder está em condições de garantir os direitos dos cidadãos e fazer justiça”, afirmou. “Para nós, é um momento de festa, porque é o resultado de muitos anos de luta e sacrifícios pela democracia. Somos insuspeitos para nos manifestar sobre a Constituição. Votamos contra o primeiro projeto, contra a maioria das emendas apresentadas e propostas. A Carta constitucional que hoje adotamos, cremos que não está à altura das aspirações e necessidades do nosso povo, mas é uma Carta democrática”, avaliou.
Mesmo com as ressalvas, o PCB seria um defensor intransigente do seu rigoroso cumprimento, concluiu Prestes. Carlos Marighella também falou à Agência Nacional. Segundo ele, apesar da rejeição da maioria das emendas apresentadas pela bancada comunista, com a nova Constituição o país saía oficialmente do regime de opressão, do arbítrio dos ditadores. Jorge Amado igualmente manifestou sua opinião à Agência Nacional. “A bancada comunista concorreu com seu esforço para a Constituição, defendendo o Programa Mínimo com que se apresentou ao eleitorado. E apesar de que a Constituição hoje promulgada ainda não é aquela que o povo reclama é, no entanto, mais um passo na consolidação da democracia. Por isso mesmo, os comunistas serão seus maiores e mais intransigentes defensores.”
A bancada comunista apresentou, em todo o processo constituinte, cento e oitenta emendas e uma grande quantidade de requerimentos. A atuação dos constituintes do PCB centrou-se basicamente na defesa da democracia, dos direitos trabalhistas e sociais, das liberdades políticas e individuais — com destaque para a liberdade partidária, sindical e religiosa — e da soberania nacional.
O presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, pronunciou um discurso saudando a nova Carta. “Todos esperamos que a estrutura de governo que ele (o regime democrático) estabelece, vivificada pelo gênio político da nossa gente, venha a ser um instrumento hábil para que os brasileiros realizem a sua vida comum, alcançando o bem-estar coletivo e beneficiando-se de fecunda paz social”, disse ele a certa altura.
Segundo Maurício Grabois, os quinze “representantes do povo” honraram seus mandatos, travando duros embates com os reacionários que queriam impingir uma Carta constitucional fascista ao povo. Citou o Programa Mínimo de União Nacional defendido pelos constituintes do PCB e a luta pelo parlamentarismo e pela autonomia dos municípios, “negada vergonhosamente pelos demais partidos”. Mesmo com essas limitações, o povo deveria defender intransigentemente a nova Constituição, recomendou.
Pleno da Vitória
A luta dos comunistas pela Assembleia Nacional Constituinte vinha dos combates ao regime do Estado Novo de 1937, quando o governo do presidente Getúlio Vargas outorgou o que o PCB considerou uma Constituição parafascista. Quando a ideia ganhou força, os comunistas defenderam eleições presidenciais após a aprovação da nova Constituição, que sairia da Assembleia Nacional Constituinte.
Essa posição foi oficializada no “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto e de 1945. Em telegrama a Getúlio Vargas, cujo texto fora aprovado no Pleno, o PCB pediu uma reforma da Lei Constitucional que havia sido promulgada pelo presidente da República “a fim de colocar o problema da reconstitucionalização democrática da nação nos seus verdadeiros termos, através de um decreto que convoque no menor prazo a Assembleia Constituinte, como a maneira mais acertada e segura de derrotarmos política e moralmente o fascismo e garantirmos, ampliarmos e consolidarmos o progresso e a democracia para nossa pátria”.
O InformePolítico apresentado por Prestes delineou a proposta, segundo ele uma sugestão da Comissão Executiva do Partido. “Reclamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, em que os verdadeiros representantes do povo possam livremente discutir, votar e promulgar a Carta Constitucional que pede a nação”, diz o texto, que reprovou a ideia de eleições presidenciais com a Constituição golpista de 1937 em vigor. “O governo que aí temos é um governo de fato e qualquer eleição presidencial, enquanto estiver em vigor a Carta de 1937, inaceitável para qualquer patriota consciente, nada mais significa do que a simples mudança de homens no poder, a substituição de um governo de fato por outro governo de fato, igualmente armado dos poderes vastos e arbitrários que confere ao Executivo a referida Carta”, lavrou o Informe.
A ameaça de entregar uma Constituição discricionária de brinde ao presidente eleito, por meio da vigência sem reforma do Ato Adicional assinado por Getúlio Vargas em 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições, era agravada pelos dois candidatos que se apresentaram para a disputa da presidência da República: o general Eurico Gaspar Dutra, que segundo João Amazonas fora um dos assinantes da Carta fascista de 1937, e o brigadeiro Eduardo Gomes. Segundo o Informe apresentado por Prestes, era evidente o desinteresse popular pelas duas candidaturas que traziam a marca de uma politicagem sem princípios, em que predominavam os interesses e paixões pessoais, servindo apenas para dividir o povo e dificultar o processo de organização das agremiações políticas.
Grabois, que seria o principal líder da campanha popular pela Constituinte, disse em comício dia 21 de agosto de 1945 em frente à estátua de Rio Branco, na Esplanada do Castelo na Esplanada do Castelo que o avanço da democracia dependia de amarras jurídicas e políticas que dessem consistência ao arcabouço institucional que sustentaria a democracia no país.
Ou seja: uma Assembleia Nacional Constituinte livremente eleita no menor prazo possível, conforme definiu o “Pleno da Vitória”. “Por quê? O partido Comunista do Brasil lança esta palavra de ordem, a Assembleia Constituinte livremente eleita no menor prazo possível porque quer que o Brasil marche realmente para a democracia. A verdade, como já disse o camarada Luiz Carlos Prestes, é que não se trata de substituição de um homem por outro, de um governo de fato por outro governo de fato. A verdade é que, para marcharmos para a democracia, temos de pôr de lado a Carta de 10 de novembro, Carta reacionária, outorgada contra a vontade do povo”, explicou.
A própria segurança de uma eventual Assembleia Nacional Constituinte estaria em risco com a vigência da Constituição de 1937, disse Grabois, que conferia ao presidente da República a prerrogativa de dissolver o parlamento quando bem entendesse. “Apelo, portanto, para todos os intelectuais democráticos e antifascistas, para os burgueses progressistas, homens e mulheres, jovens e velhos, para o próprio proletariado e para o povo em geral, no sentido de que todos nós, fortemente unidos, lutemos com todas as nossas forças pela eleição de uma Assembleia Constituinte livremente eleita no menor prazo possível”, afirmou.
O apelo era dirigido também ao governo, que deveria reforçar seu perfil democrático para estreitar as margens dos saudosistas do Estado Novo abrigados em seu interior. “O governo, por sua vez, precisa colocar-se novamente ao lado do povo, decretando a medida da Assembleia Constituinte. Para isso, sem dúvida, o governo precisa fortalecer-se com homens de prestígio popular, precisa transformar-se num governo de confiança nacional que, inclusive, terá meios bastantes, sob as condições que de fato se estabelecerão, para vibrar golpes certeiros na inflação e na carestia de vida, no emperrado problema da terra”, destacou.
Desprendimento de Getúlio Vargas
Vargas também estava em campanha pela Constituinte. Falando em um comício do movimento “queremista”, organizado por seus partidários em 3 de outubro de 1945 no Largo da Carioca, ele disse que vinha “recebendo de todos os recantos do país, através de telegramas, cartas e notícias de comícios públicos, insistentes apelos, agora reiterados pelo povo da capital federal naquela demonstração impressionante, para convocar uma Constituinte com poderes expressos para elaborar nova carta básica da organização política do país, isto é, uma nova Constituição”.
Poucos dias antes, o embaixador dos Estados Unidos, Adolf Berle Júnior, havia incitado um golpe de Estado em discurso pronunciado na cidade de Petrópolis. Getúlio Vargas ouviu um orador comentar o assunto no comício antes da sua fala, dizendo que “nenhum diplomata estrangeiro tem o direito de interferir na nossa vida política”. “E isso porque nenhum diplomata brasileiro nunca protestou contra as discriminações raciais americanas”, arrematou. Em seu discurso, Getúlio fez menção ao caso, sem citá-lo diretamente. “Sem dúvida, a eleição de uma Constituinte é um processo democrático, em perfeito acordo com as nossas tradições. Assim se fez em 1891, assim se fez em 1934, não precisamos, para isso, ir buscar exemplos nem lições no estrangeiro. Possuímos também a nossa tradição de democracia política, étnica e social”, disse.
Getúlio mostrou desprendimento para buscar uma solução ao impasse político que se acirrava. “Perante Deus, que é o supremo juiz da minha consciência, perante o povo brasileiro com o qual tenho deveres indeclináveis, reafirmo que não sou candidato e só desejo presidir eleições dignas da nossa educação política, entregando o governo ao meu substituto legalmente escolhido pela nação. Mas, se para realizar as aspirações do povo em relação à Constituinte e abrir com a sua convocação novas possibilidades a uma melhor solução do problema eleitoral, que julgam não estar colocadas em bases democráticas, dissipando assim dúvidas e conciliando todos os brasileiros, for necessário o meu afastamento do governo não hesitarei em tomar essa resolução espontaneamente, com o ânimo sereno de quem cumpre um dever até o fim”, discursou.
O presidente finalizou sua fala em tom de denúncia. “Devo acrescentar que atravesso um momento dramático da minha vida pública e que preciso falar ao povo com prudência e lealdade. A convocação de uma Constituinte é um ato profundamente democrático que o povo tem o direito de exigir. Quando a vontade do povo não é satisfeita, ficam sempre fermentos de desordem e revolta. E nós precisamos resolver o nosso problema político dentro da ordem e da lei. Devo dizer-vos que há forças reacionárias poderosas, ocultas umas, ostensivas outras, contrárias todas à convocação de uma Constituinte. Posso afirmar-vos que, naquilo que de mim depender, o povo pode contar comigo. Quero terminar apresentando-vos os meus agradecimentos por esta demonstração cívica de alta significação. Ela bem demonstra que o povo brasileiro possui educação cívica, sabe o que quer e sabe para onde vai. Diante dessa manifestação, que considero como uma delegação da vontade popular, me sinto largamente compensado das agruras que tenho sofrido por servir com devotamento ao povo brasileiro.”
Fantásticas mobilizações
Dois dias depois, o Secretariado Nacional reuniu-se na sede do PCB, na Rua da Glória número 52, para debater o assunto. Grabois disse que a fala de Getúlio foi uma vitória do povo. “O discurso do presidente Vargas, por ocasião da manifestação de 3 de outubro, foi a primeira grande vitória do povo na sua luta organizada pela convocação das eleições para uma Assembleia Constituinte. O senhor Getúlio Vargas deu mais um passo no caminho da democracia, ao afirmar que satisfará os anseios do povo. Cumpre agora à nação coroar a campanha pró-Constituinte, obtendo através das organizações políticas, sindicais e populares a vitória final, enfrentando todos os reacionários que, com medo do povo, reagem desesperadamente, tentando conduzir o país ao caos e à guerra civil. O resultado positivo da oração do presidente da República, fruto da luta do povo, deve servir de estímulo a todos os patriotas a prosseguirem no combate aos remanescentes do fascismo no país, contra a rearticulação nazi-integralista e pela união nacional”, declarou.
O pronunciamento de Getúlio reforçou consideravelmente a campanha do PCB pela Constituinte. Dali a poucos dias, Grabois estaria diante do que considerou as mais fantásticas mobilizações populares presenciadas por seus olhos. Em 6 de outubro de 1945, um sábado de clima agradável, ele participou do comício pró-Constituinte em Niterói, promovido pelo Comitê Municipal do PCB, que reuniu dez mil pessoas, segundo os organizadores. Afirmou para a multidão que a única maneira de consolidar a democracia no país seria a convocação da Assembleia Constituinte. Grabois, sempre que falava em público, fazia um breve retrospecto da história do PCB, um dado fundamental para respaldar a campanha pró-Constituinte que ganhara as ruas.
Em Niterói ele comentou a posição histórica que os comunistas assumiram frente aos grandes problemas nacionais e ao nazifascismo. Segundo Grabois, foram posições coerentes com as gloriosas tradições do PCB. “Nosso Partido, ao conquistar a legalidade não foi atrás das aventuras políticas dos que queriam arrastar o povo a golpes salvadores. Nosso Partido procurou marchar com o povo, sentindo os seus sofrimentos, auscultando suas reivindicações e procurando resolvê-las. A única solução que encontrou, pois, para tais problemas, foi uma Constituinte livremente eleita. E esta é hoje uma reivindicação de todo o povo, uma conquista do povo organizado”, discursou.
Grabois terminou a fala conclamando todos a não descansarem um só momento até a concretização da maior aspiração do Brasil: a Assembleia Nacional Constituinte. No encerramento do comício foi transmitido um pedido semelhante de Luiz Carlos Prestes, gravado em disco. Quatro dias depois, ele estava falando novamente em um dos comícios pró-Constituinte do PCB que se realizavam no Distrito Federal simultaneamente, dessa vez na Praça Quinze, no Rio de Janeiro.
A campanha pró-Constituinte do PCB se transformou em manifestações de massa, como demonstrou o gigantesco comício realizado no Largo da Carioca em 13 de outubro de 1945, um sábado, com início às 17h30. A essa altura, a bandeira da Constituinte levantada pelo PCB já era segurada por uma ampla gama de partidos e entidades populares.
Quando Grabois começou a discursar, a multidão presente impressionava. “Essa festa tem um grande significado na luta pacífica em que o povo brasileiro está empenhado para a convocação de uma Assembleia Constituinte livremente eleita”, iniciou. “Este comício tem um significado novo porque representa uma pujante demonstração de unidade, pois aqui estão presentes neste ato partidos políticos, Comitês Populares, o Movimento Unificador dos Trabalhadores, todos reivindicando o cumprimento da grande aspiração do povo: a convocação de uma Assembleia Constituinte. Nenhum acontecimento em nossa história teve a profundidade e a envergadura, como movimento popular, como está tendo em todo o Brasil a campanha nacional pela Constituinte. Nem na luta pela Abolição, nem a campanha republicana. Nem mesmo a vitoriosa jornada da anistia que arrancou dos cárceres os melhores filhos do povo alcançou tal mobilização de massas”, discursou.
O progresso da abertura democrática, lembrou Grabois, merecia os mais entusiasmados aplausos, mas era preciso consolidar aquela marcha. “Há cinco meses saímos de uma noite negra, em que não tínhamos liberdade para o funcionamento dos partidos políticos, liberdade de reunião, para uma nova situação em que estas liberdades fundamentais foram conquistadas. Incontestavelmente vivemos num clima de democracia. Entretanto, muito falta ainda para que consolidemos definitivamente a democracia em nossa terra. Precisamos consolidá-la. E somente através de uma Assembleia Constituinte é que isto conseguiremos. O povo organizado o conseguirá.”
Velhas raposas políticas
O país havia entrado em um processo que não deixava espaço para meio-termo: era o avanço ou o retrocesso. Existia no país, na visão de Grabois, uma fenda que separava duas tendências radicalmente opostas. “A luta pela Assembleia Constituinte está assumindo tal importância para o destino da democracia em nossa terra que polariza todas as forças verdadeiramente democráticas de um lado — o da Constituinte — e as forças reacionárias e pró-fascistas do outro lado. O que há de mais reacionário em nosso meio, as velhas raposas políticas, os remanescentes nazi-integralistas e os agentes do capital estrangeiro colonizador, se unem abertamente contra a convocação da Constituinte a fim de impedir a consolidação da democracia. Ainda há pouco tivemos uma demonstração na intervenção indébita do representante da potência amiga, o qual falou não como representante do ‘bom vizinho’, e sim dos elementos mais retrógrados do seu país, aqueles mesmos que combateram a política do grande Roosevelt.”
Sob intensos aplausos em cada pausa, Grabois prosseguiu o discurso pedindo ao presidente Getúlio Vargas compromisso efetivo com a democracia. “O governo, que nesses últimos tempos tem dado largos passos para a democracia, precisa continuar a marchar nesse sentindo, convocando a Assembleia Constituinte. O povo espera novos atos democráticos do governo e não medidas que significam retrocessos na marcha democrática em que o Brasil está empenhado. Por isso, estamos contra o último decreto do governo que modifica a Lei Eleitoral, marcando eleições simultâneas para presidente da República e governador, para o parlamento e as assembleias estaduais. Sem dúvida esse decreto está em profunda contradição com o discurso do senhor Getúlio Vargas pronunciado a 3 de outubro.”
Para Grabois, as vacilações de Getúlio comprometiam os esforços unitários na busca de uma solução pacífica da crise política. “Se o povo luta pela liquidação da Carta parafascista de 37, não é possível compreender que, em pleno período de derrota do nazismo, se dê direito a que vinte e um interventores outorguem Cartas do tipo parafascista da de 37 aos estados da Federação. Essa lei em nada facilitou a solução da crise política e institucional brasileira. Pelo contrário. Veio trazer mais confusão e fornecer elementos para os golpistas e reacionários continuarem a sua trama contra a ordem e a tranquilidade indispensáveis à consolidação da democracia. Fazemos esta crítica para mostrar ao governo que este não é o caminho da democracia.”
As últimas palavras foram uma espécie de declaração política diante da perspectiva de agravamento da crise política. “O verdadeiro caminho é o da Assembleia Constituinte para prosseguir no caminho no qual o governo contará com o apoio decidido do povo e, particularmente, do Partido Comunista do Brasil. Não há o que temer dos golpistas e conspiradores. O povo organizado afastará qualquer ameaça contra a ordem, porque a desordem só interessa aos fascistas. Nós, comunistas, reafirmamos nossa política inabalável de defesa da ordem e da tranquilidade. Não admitimos agitações estéreis. Lutaremos com o povo organizado. À frente do proletariado e do povo obteremos, no mais curto prazo, a convocação da Assembleia Constituinte.”
Manifestação no Palácio da Guanabara
O decreto de Getúlio foi contestado pela multidão no mesmo dia, na cara dele, no Palácio da Guanabara, a residência oficial da presidência da República. Após o comício, uma marcha gigantesca, anteriormente programada, percorreu o trajeto até lá empunhando archotes, bandeiras e cartazes alusivos à Constituinte. Dos ônibus, bondes, praças e janelas ecoavam saudações e se viam acenos aos manifestantes. À frente da marcha ia uma caminhonete com alguns dirigentes do PCB ao seu lado — entre eles, Grabois —, seguida de uma banda de música executando a marcha “Constituinte”, palavra repetida ininterruptamente em diferentes tons e formatos.
O Palácio Guanabara foi tomado pela multidão, que ocupou seus jardins, cujo espaço não foi suficiente para a presença de todos os manifestantes. A manifestação atingiu o auge quando Getúlio apareceu. A Tribuna Popular descreveu a cena assim: “Milhares e milhares de bocas prorromperam em estrondosas aclamações e o grito de ‘O povo quer a Constituinte!’ reboou uníssono e incessante, um grande grito histórico traduzindo os melhores sentimentos do povo, cada vez mais democrata e patriota. Foguetes estouravam no ar e extraordinária alegria dos homens e das mulheres, dos velhos e jovens subindo aos céus.”
Em seu discurso, o presidente lembrou o que dissera em 3 de outubro sobre a existência de poderosos reacionários contrários à convocação da Assembleia Constituinte, medida considerada por eles um golpe contra as eleições marcadas para 2 de dezembro de 1945. Segundo Getúlio, ele não podia tomar decisões que aumentassem a intranquilidade que a luta política trouxera ao país. O assunto, afirmou, precisava ser encaminhado com sabedoria e prudência, ouvindo todos os partidos políticos, as classes trabalhadoras e produtoras, todas as forças organizadas, enfim, para que elas assumissem as responsabilidades por suas atitudes perante a opinião pública.
Enquanto Getúlio falava, a multidão gritava pedindo a Constituinte. Impávido, ele prosseguiu: “Eu nunca assumiria a responsabilidade de praticar um ato que viesse provocar a luta e o derramamento de sangue dos brasileiros.” Cada um deveria estar ciente de que responderia, dali em diante, pelos seus atos, disse o presidente. “Eu vos prometo fazer essa consulta para que cada corrente de opinião assuma perante o povo a parcela de responsabilidade que lhe cabe”, afirmou.
Segundo o presidente, cada uma delas precisava dizer às claras se estava de acordo com os clamores populares ou se apoiava as correntes reacionárias. Foi aplaudidíssimo. Ainda encoberto pelos aplausos, Getúlio terminou: “Não vos devo, porém, prometer senão aquilo que posso fazer.” A multidão deixou o Palácio da Guanabara satisfeita com as palavras do presidente e gritando: Constituinte! O povo exige a Constituinte! O povo quer a Constituinte! Uma parte foi para a Praça do Russel, onde um novo comício foi realizado, com discursos até as 23h30.
Complô contra Getúlio Vargas
Grabois detectou que a ameaça do “comunismo” era um pretexto para as forças golpistas e se movimentou para desfazer a pecha colada por eles nas manifestações pró-Constituinte. Em artigo na Tribuna Popular, ele disse que não se podia esconder o papel do Partido Comunista do Brasil, uma das forças mais poderosas das que se batiam pela convocação da Assembleia, mas era errado dizer que a vitória da campanha beneficiaria apenas os comunistas. Não havia como negar, disse Grabois, que o PCB era o responsável pelo movimento que empolgava o país, fruto do trabalho das forças mais desenvolvidas politicamente, que compreendiam a realidade e interpretavam os acontecimentos de maneira justa, apresentando soluções adequadas para os problemas fundamentais do povo.
Ao tocar nesses problemas, os comunistas despertaram a consciência de amplas camadas do povo, que segundo Grabois abrangiam a classe média e a burguesia progressista. O caudal de povo nas ruas nas principais cidades do país não era um movimento espontâneo, mas resultado da visão descortinada pela política do PCB. “Não negamos que a Constituinte será também uma vitória dos comunistas. A vitória, porém, será de todas as forças democráticas. Isto compreendem outras correntes políticas, que sentindo os anseios e as aspirações das massas se incorporam à luta pela Assembleia Constituinte”, escreveu. Era uma luta política que precisava ser corretamente orientada para livrar o país da ameaça golpista e ao mesmo segurar os ímpetos dos que defendiam a passagem do carro à frente dos bois.
Na verdade, Getúlio Vargas estava sentado no epicentro da crescente tempestade que se formava no país. Ele não desconhecia as minúcias dos detalhes que transformava o desenrolar da crise em complô. O problema era que o Ato Adicional de 28 de fevereiro de 1945 instituindo as eleições se transformou em amarras que o deixava de pés e mãos atados. Só um gesto ousado, reformando a decisão anteriormente tomada, poderia dar vazão à torrente de manifestações que exigiam a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Getúlio jamais pôde explicar por que decidiu levar sua indecisão até o limite, quando já não havia mais forças para sustentá-lo na presidência da República.
Preso entre a força das massas, impulsionadas pelo PCB, e os grupos que o ameaçavam, resolveu resignar-se quando viu que não havia mais volta e a contenda prosseguiria sem o seu protagonismo — o presidente foi deposto, em 29 de outubro de 1945, exatamente por conta das suas concessões democráticas. Os golpistas temiam que ele sucumbisse à tática do PCB de marcar as eleições presidenciais para depois da promulgação de uma nova Constituição, o que poderia significar a consolidação do processo de democratização do país.
Segundo Pedro Pomar, o golpe, aparentemente dirigido contra Getúlio Vargas foi na verdade contra o PCB. Ao não reagir, como queriam os comunistas, o presidente revelou sua origem de classe, seu desprezo pelo povo, a traição que mais uma vez cometia contra as massas que nele confiavam. Tanto os generais golpistas quanto Getúlio, segundo Pomar, quiseram atingir um duplo objetivo. Os golpistas, ao mesmo tempo em que sonhavam com uma nova ditadura pretendiam liquidar o PCB com um banho de sangue sobre o movimento operário nascente.
O líder do golpe, general Góis Monteiro, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, falou abertamente que o golpe foi motivado pela influência que o PCB exercia sobre a grande mobilização popular alcançada com a campanha pró-Constituinte. “Nessa altura dos acontecimentos (quando houve o golpe) e percebendo os perigos para o país decorrentes das marchas e contramarchas, declarei várias vezes, pela imprensa e ao próprio senhor Getúlio Vargas, que não era possível pensar-se numa Assembleia Constituinte a não ser que todas as correntes partidárias estabelecessem um consenso geral nesse sentido, pois, do contrário seria deflagrar um movimento subversivo, porquanto não podiam admitir as Forças Armadas que fosse adotada a iniciativa do Partido Comunista”, declarou o general.
Nos dias seguintes ao golpe, o projeto de democratizar o país com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte dançou em cima do muro. Os comícios foram proibidos. A Tribuna Popular foi invadida pela polícia e suas instalações destruídas. Sedes do PCB foram vandalizadas em diferentes localidades do país. Sindicatos e Comitês Populares sofreram todo tipo de ameaças. Até os integralistas se assanharam e partiram para as provocações. Em Pernambuco, nas cidades de Goiana e Arcoverde, grupos deles invadiram as sedes do Partido de armas em punho.
Risco de guerra civil
O Partido Comunista do Brasil não dança conforme a música. Grabois falava no palanque instalado no Largo do Machado em 12 de novembro de 1945, uma quarta-feira à noite, tão logo a proibição de comícios pró-Constituinte em todo o território nacional foi revogada. Recebido com ovação pela multidão, ele explicava que a troca de comando no governo não alterava a política do PCB. A campanha pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte entrava em uma nova fase, um ambiente que Getúlio Vargas caracterizou como angu com muita pimenta, segundo o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias, que fora companheiro de Prestes na Coluna Invicta, o responsável por entregar ao presidente deposto o ultimato dos generais golpistas sob o comando de Góis Monteiro.
Cinco dias após o golpe, uma nota do PCB disse que a situação criada levava “a nação ao risco iminente da guerra civil, do terrível e desnecessário derramamento de sangue de seus filhos, que só não aconteceu devido à atitude firme e consequente do nosso Partido e de outras forças populares”. Pouco depois, em 10 de novembro de 1945, uma nova nota aplaudia José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que assumira o posto de Getúlio, pelos “atos positivos e as manifestações de caráter democrático” que adotara. Decretos foram revogados. Artigos autoritários da Constituição foram suprimidos. E as constituições estaduais outorgadas pelos interventores foram derrogadas. O tom era bem mais ameno do que o da nota anterior.
Na verdade, as forças dos golpistas não permitiram que eles fossem além da deposição de Vargas. Tanto que no mesmo dia 10 de novembro de 1945 o PCB obteve o registro como partido apto a participar das eleições. No comício do Largo do Machado, que estava sendo realizado simultaneamente com outros dois, um na Vila Isabel e outro em Madureira, Grabois citou a última nota do Partido e disse que ao povo o que interessava, naquela nova conjuntura, era apoiar o novo governo, fortalecendo-o para que ele pudesse marchar firmemente para a democracia, para que ele pudesse “opor-se à pressão dos remanescentes fascistas”. Aquela era a política que o Partido Comunista do Brasil indicava ao povo. Não era uma política oportunista, enfatizou. “A nossa música é a música do povo e a nossa política é aquela que interessa realmente ao povo. Continuaremos a pregar a ordem e a tranquilidade. A desordem só pode interessar aos fascistas”, discursou.
O PCB, que nada tinha a ver com o angu, também rechaçou uma manobra da União Democrática Nacional (UDN), do brigadeiro Eduardo Gomes, que propunha a reforma da Constituição de 1937 como alternativa à convocação da Constituinte. Grabois não apostava uma moeda furada naquela jogada. No comício do Largo do Machado ele disse que a medida seria um retrocesso de onze anos na vida política do país. Significava lançar mão de uma Carta que vigorava em uma época de ascensão do fascismo. “Hoje, estamos vivendo em 1945 e não em 1935, 37 ou 39. Já não existem o exército nazista nem a Gestapo. Hitler e Mussolini estão mortos. O mundo marcha para a democracia”, discursou.
Dias que abalaram o Brasil
A segunda-feira, 12 de novembro de 1945, foi um dia de festa. A notícia dando conta de que o governo reconhecia a vontade popular e transformava em lei a reivindicação de convocação da Assembleia Nacional Constituinte se espalhou rapidamente pelo país e foi festejada efusivamente. No Rio de Janeiro, o Comitê Metropolitano do PCB correu para preparar um “comício monstro” no mesmo dia, no Largo da Carioca. O povo seria convocado por rádio para congratular-se com o governo pela decretação da Constituinte. Na verdade, a decisão do presidente se deu na forma de promulgação da Emenda Constitucional número 13, que delegava poderes constituintes aos parlamentares que seriam eleitos em 2 de dezembro.
Todos os compromissos dos comunistas assumidos anteriormente foram transferidos para dar lugar aos preparativos das comemorações. A solenidade de apresentação dos candidatos do PCB, anteriormente marcada para aquele dia no Instituto Nacional de Música, transformou-se em apresentação da plataforma dos comunistas para a Constituinte. Na sede do PCB, Grabois comentou a decisão. “O decreto concedendo poderes constituintes ilimitados ao futuro parlamento, a ser eleito em 2 de dezembro, vem demonstrar a justeza da causa defendida pelo povo brasileiro e liderada pelo Partido Comunista do Brasil, por uma Assembleia Constituinte. É uma legítima vitória do povo brasileiro e o governo deu um passo decisivo para a sua consolidação como um governo que quer marchar para a democracia e quer o apoio popular”, afirmou.
Prestes também, ao saudar a decisão, rememorou a campanha que tinha conquistado a consciência do povo. Mas muitos passos ainda precisavam ser dados para a consolidação da democracia no Brasil. “A convocação da Constituinte, hoje decretada, é uma vitória do proletariado e do povo. Com esse ato, o governo reconhece o desejo das amplas massas manifestado numa das mais memoráveis campanhas pela democracia em nossa terra”, comentou.
Ressalvou, no entanto, que o presidente da República em exercício poderia ter tomado alguns cuidados para garantir um processo efetivamente democrático. Um dos problemas apontados por Prestes foi a transformação da Constituinte em poder legislativo ordinário, depois de promulgada a Constituição. Tratava-se de matéria constitucional, algo, portanto, de competência exclusiva da Constituinte. Outro erro, apontou Prestes, era o estabelecimento de condições iguais para a atuação de deputados e senadores, eleitos sob critérios diversos — os primeiros pelo voto proporcional e os segundos pelo voto majoritário. Seria mais democrático se todos fossem eleitos pelo sistema proporcional.
Cinco dias depois de promulgada a Emenda Constitucional que oficializou a Assembleia Nacional Constituinte, Prestes, ladeado por Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda Câmara, anunciou o nome do engenheiro Yeddo Fiúza como candidato a presidente da República pelo Partido Comunista do Brasil. Nascido em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e radicado na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde foi prefeito, Fiúza, que também fora diretor-geral do Departamento Nacional de Estrada de Rodagens (DNER), não era membro do PCB. Foi apresentado por Prestes a uma pequena multidão formada por militantes, aliados e um numeroso grupo de jornalistas como o candidato de várias correntes políticas, o candidato do proletariado e do povo.
Segundo Grabois, as memoráveis campanhas como as da anistia e a grande jornada vitoriosa pela convocação da Assembleia Constituinte fizeram o povo tomar consciência dos seus direitos. Na curta campanha eleitoral, chamada pelo PCB de “quinze dias que abalaram o Brasil”, aquela torrente de público que compareceu aos comícios, encheram os comunistas de confiança, segundo ele. O PCB elegeria catorze deputados – entre eles, Grabois – e um senador, Luiz Carlos Prestes. Yeddo Fiuza obteve 9,7% dos votos presidenciais. A assembleia Nacional Constituinte seria palco de uma épica batalha dos comunistas por avanços democráticos no país, descrita na biografia Maurício Grabois – uma vida de combates. Após a promulgação da Constituição, ele assumiu o posto de líder do PCB na Câmara dos Deputados.
Neste 1º de outubro de 2024, transcorre o 75º aniversário da proclamação da República Popular da China. À frente da Revolução vitoriosa, em 1949, Mao Tse-tung anunciou: “De hoje em diante, a China vai se colocar de pé.” Mais de 470 milhões de pessoas passavam para o campo socialista. Apesar de ter sido um dos países fundadores das Nações Unidas, em 1945, a China revolucionária só iria ser aceita na Organização em 1971, substituindo a ilha separatista de Taiwan onde o Kuomitang de Chiang Kai-shek, ao ser derrotado pela Revolução, se refugiou. Em 23 de novembro do mesmo ano, o país socialista tornou-se membro permanente do Conselho de Segurança com direito a veto.
A tentativa malograda de incluir a China Popular na ONU logo após o triunfo da Revolução, contou com a ativa participação do Brasil. Oswaldo Aranha, o representante brasileiro, a pedido do secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Halvdan Lie, declarou-se favorável ao ingresso dos representantes do governo de Mao Tse-tung por considerá-lo o único que representava o povo chinês e também porque seria uma grande contribuição à causa da paz entre os povos. A União Soviética, como uma das potências mundiais, advogou a causa de Mao Tse-tung, mas a força diplomática anglo-americana fez prevalecer a opção por Taiwan.
Tarefa central
São dados e fatos muito pouco comentados no Brasil. Isso se deve ao cerco que a mídia promove sobre qualquer assunto afeito ao progresso social. A China, com suas complexidades e peculiaridades, contudo, merece ser analisada com mais rigor. Desde a Revolução, o país tem percorrido com sucesso o caminho do socialismo e conquistado êxitos notáveis no seu desenvolvimento. Com a execução da “Política de Reforma e Abertura”, o Produto Interno Bruto (PIB) atingiu US$ 9,4 trilhões em 2013, o que fez do país a segunda economia do mundo. A vida do povo chinês melhorou consideravelmente; 600 milhões de pessoas deixaram a pobreza.
A China vem tratando o desenvolvimento socioeconômico como tarefa central para um longo período, com o objetivo de transformar o país em uma moderna economia tecnológica até meados deste século. A meta, segundo o governo chinês, é enfrentar a situação complicada da economia mundial buscando avanços com reformas profundas para aumentar o emprego, equilibrar o crescimento regional, garantir a igualdade e a justiça, melhorar a vida da população e promover o progresso social.
Enormes benefícios internos
Todo esse arcabouço teórico trouxe enormes benefícios internos. Um deles é o salto educacional. Ao enumerar os principais eventos que afetaram a China nas últimas três décadas, a maioria dos chineses colocou o Exame Nacional para Entrada na Faculdade (Gaokao, em chinês) em primeiro lugar da lista. Em dezembro de 1977, 5,7 milhões de pessoas participaram do exame nacional, o primeiro do tipo desde o começo da catastrófica Revolução Cultural (1966-1976).
Milhões de estudantes graduaram-se em instituições de ensino superior de vários tipos para formar uma força de trabalho de alta qualidade. As instituições de ensino superior inscreveram cerca de 53,86 milhões de estudantes nas últimas três décadas, dos 128 milhões de participantes do Gaokao. Ao mesmo tempo, o governo fez grandes esforços para desenvolver a educação obrigatória e a ocupacional, com a finalidade de melhorar a qualidade de todos os cidadãos.
Educação nas áreas rurais
Nas últimas décadas, mais de 100 milhões de estudantes formaram-se nas escolas ocupacionais de diferentes tipos. Em 2000, a China alcançou a meta de garantir a educação obrigatória para as crianças e eliminar o analfabetismo entre os jovens e cidadãos de média idade. O grande sucesso nas reformas econômicas ajudou o desenvolvimento da educação no país. Com recursos financeiros suficientes, o governo passou a aumentar o investimento na educação e adotar políticas mais favoráveis, com a maior importância dada às áreas rurais.
Em 2003, um programa de ensino à distância foi lançado para cobrir 360 mil escolas primárias e secundárias rurais, beneficiando mais de 100 milhões de estudantes. Em 2004, o governo central investiu 10 bilhões de yuans (US$ 1,45 bilhão) para construir mais de 8,3 mil escolas de tempo integral nas áreas rurais. Em 2006, a China emendou sua Lei de Educação Obrigatória para isentar os estudantes primários e os estudantes nos primeiros três anos do ensino secundário de pagamento da matrícula e de outras taxas administrativas.
Idioma atrativo
Além de fazer grandes esforços para alcançar a meta de educação para todos, o governo tem encorajado o estudo no exterior. O número subiu de 860 em 1978 para 144,5 mil em 2007. Até o momento, 319,7 mil estudantes chineses voltaram após terem terminado o estudo em outros países. A China também abriu suas portas a estudantes de fora.
Nos últimos 40 anos, 1,23 milhões de pessoas de mais de 180 países e regiões estudaram em instituições de ensino chinesas. Com o sucesso da reforma e um maior prestígio internacional, o chinês tornou-se um idioma atrativo e útil. O número de estrangeiros que estudam chinês já ultrapassa 30 milhões. Até o momento, a China assinou acordos de cooperação e intercâmbio educacionais com 188 países e regiões. Foram firmados acordos de reconhecimento mútuo de diplomas com 33 países.
No campo, o país também passa por uma revolução. Entre a população de 1,3 bilhão, mais de 800 milhões vivem no na área rural. Com isso, o governo chinês prioriza a produção agrícola e a elevação do nível de vida dos camponeses. A informatização no campo prioriza o domínio da tecnologia e das informações a fim de melhorar a produção e a administração.
Indústria básica e infraestrutura
A construção da indústria básica e da infra-estrutura também foi reforçada de forma significativa, dando um suporte crescente ao desenvolvimento econômico e social do país. Entre 1979 e 2007, os capitais destinados aos dois setores somaram aproximadamente 30 trilhões de yuans, representando 38% do total dos investimentos. Um grande número de projetos essenciais como transmissão de gás natural oeste-leste, transmissão de água sul-norte e reflorestamento de terras de cultivo, foram concluídos ou seguem em ritmo acelerado.
A produtividade da indústria de base e o nível infraestrutural aumentaram significativamente. Foram criadas redes de transporte e telecomunicações que cobrem todo o país. As instalações de educação, cultura e esporte também tiveram aprimoramentos. Um aspecto que merece observação especial é o acelerado ritmo de urbanização chinês. A superfície urbanizada subiu de 17,9% para 50% do território nacional. Durante este processo, as metrópoles que mais brilharam foram Pequim, Shanghai e Shenzhen.
Estabilidade social
Em um seminário promovido pelo Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico no Rio de Janeiro, os participantes avaliaram que a política de reforma e abertura criada por Deng Xiaoping não só trouxe desenvolvimento rápido como deu uma contribuição significativa à humanidade e ao mundo. O diretor do Instituto Brasileiro da China e Ásia-Pacífico, Severino Bezerra Cabral Filho, disse que a política de reforma e abertura foi a mudança política, econômica e social mais importante do mundo nos últimos 30 anos.
Cabral Filho também destacou que, neste processo, a China tomou uma atitude programática e não imitou o modelo de desenvolvimento dos Estados Unidos e de países do Leste Europeu, mas explorou um caminho que atendia à sua própria situação — mantendo o rápido desenvolvimento econômico e a estabilidade social. Segundo ele, estudar este ”fenômeno chinês” tem um importante significado para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil e de outros países em desenvolvimento.
Cinco Princípios
Ao mesmo tempo, a China amplia seus laços comerciais e políticos, baseados nos mesmos “Cinco Princípios” de sessenta anos atrás, quando o país, junto com a Índia e o Myanmar, proclamaram a coexistência pacífica no tratamento das relações internacionais: respeito mútuo à soberania e integridade nacional; não agressão por um país ao outro; não intervenção nos assuntos internos de um país por parte de outro; igualdade e benefícios recíprocos; e coexistência pacífica.
O Relatório do 18º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCCh), realizado em 2012, deu ao capítulo sobre diplomacia o título “Continuando a promover a nobre causa da paz e desenvolvimento da humanidade”. Segundo o documento, desde o começo do século XXI a China tem feito importantes contribuições para a paz e a prosperidade mundial enquanto mantém a própria estabilidade e desenvolvimento, dando um poderoso impulso para o desenvolvimento econômico global. Ao manter um firme e acelerado crescimento doméstico, a China tem obtido uma taxa de participação média anual superior a 20% no crescimento econômico mundial no século XXI.
Boa vizinhança
Na onda da crise financeira internacional, a China contribuiu duas vezes, com um total de US$ 93 bilhões, para a recomposição do capital do Fundo Monetário Internacional (FMI) e se tornou uma importante força dirigente da recuperação econômica mundial e da reestruturação econômica e financeira internacional. Empenhada em se abrir ainda mais, a China se posicionou em 2011 no segundo lugar no mundo em volume de importações e exportações, no segundo lugar em investimento estrangeiro direto e no quinto em investimento no exterior.
O relatório diz ainda que a China tem trabalhado ativamente para promover a globalização econômica e a cooperação regional, se opondo a todos os tipos de protecionismo. O país, segundo o documento, é um entusiástico promotor e praticante da cooperação Sul-Sul; na década passada, destinou aproximadamente US$ 27,3 bilhões a uma variedade de programas de ajuda internacional e ajudou a aumentar a capacidade de desenvolvimento independente dos países em desenvolvimento pelo cancelamento de encargos de suas dívidas e outros meios, oferecendo uma importante contribuição para a causa internacional da redução da pobreza.
O pesquisador do Instituto de Estratégia Internacional da China, Gao Zugui, destaca que o país sempre persiste na política de boa vizinhança. As cooperações de benefício mútuo com os vizinhos fizeram com que a China se tornasse o maior parceiro comercial da maioria deles. “Com o crescimento econômico rápido da China, não só os arredores como também o mundo foram beneficiados. No futuro, a China deve pensar como melhor favorecer a região. Há uma grande oportunidade nesta área. Por exemplo, a transformação do modelo de desenvolvimento vai resultar no aumento significativo da importação e do investimento no exterior”, avaliou.
Desenvolvimento pacífico
O governo chinês avalia que a paz traz grandes benefícios para o país. Mesmo depois da Revolução, a falta de um ambiente pacífico, tanto dentro como fora das suas fronteiras, impossibilitava o desenvolvimento nacional. A China de então era um país de economia atrasada, debilitado e empobrecido, que enfrentava grandes desafios à sua subsistência e ao seu progresso. Foi assim que os chineses começaram a revisar suas políticas, a reavaliar as relações com o mundo e tomaram uma decisão histórica — a 3ª Sessão Plenária do 11º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, realizada em 1978, definiu o modelo de crescimento e o desenvolvimento pacífico tornou-se parte da estratégia nacional.
O desenvolvimento pacífico, segundo o governo chinês, significa buscar um ambiente internacional de paz em benefício do próprio desenvolvimento nacional. Para a China, a construção econômica interna combinada com o estabelecimento de cooperações com o exterior contribui decisivamente para melhorar o ambiente externo. Como exemplo disso, a China, além de promover as relações com os principais países e regiões, tem aprofundando o conhecimento e os intercâmbios com o Ocidente, mantendo a estabilidade do vínculo com as grandes nações.
Os chineses entendem que, tanto do ponto de vista econômico como do geopolítico, quanto mais eles puderem ajudar outras nações a se fortalecerem, melhor será o mundo para a China. O país também tenta aprender com os erros da América Latina nos anos 1980 e 1990. Por encomenda do governo, a Academia Chinesa de Ciências Sociais publicou, em 2004, um livro chamado Análises do Neoliberalismo, uma compilação de artigos de respeitados acadêmicos chineses escritos sob um ponto de vista marxista, que considera a Rússia e a América Latina como áreas do “desastre” do neoliberalismo. Um dos capítulos trata das vítimas latinas das reformas neoliberais.
A China no flanco japonês
Os chineses certamente têm muito a aprender com essas análises. O país está no centro da economia asiática, umbilicalmente ligada aos Estados Unidos, com um crédito monumental em títulos do Tesouro norte-americano — recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva da “globalização”, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona. O Japão, que enfrenta uma longa crise, é o país da região que ainda hoje enfrenta maiores dificuldades para se levantar. Para complicar mais ainda o cenário japonês, há em seu flanco a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial.
Esse quadro tem tudo a ver com a dinâmica da especulação financeira internacional. A “bolha especulativa” chegou ao seu limite com o esgotamento da capacidade mundial de financiamento do alucinado endividamento público norte-americano pelo agravamento da crise de seus principais financiadores. Assim, os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. E o tombo da economia norte-americana, que inevitavelmente levaria as demais economias à bancarrota, passou a assombrar o mundo. Desde a “crise asiática” essa tendência vem se acentuando e foi captada pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Anann, durante uma conferência internacional em Bancoc, Tailândia, em junho de 1998. “A recessão econômica da Ásia está prestes a se estender por todo o mundo”, disse ele.
As peças políticas no tabuleiro asiático
No pós-Segunda Guerra Mundial, o imperialismo norte-americano fincou suas bandeiras no Oriente porque era real a possibilidade de o continente asiático seguir por um caminho próprio. China e Coréia são exemplos nesse sentido. Com seu feixe de tradições preservado, a China chegou à fase de inventar seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. De quebra, o país tem sido hábil em adaptar-se às transformações do ambiente em que atua, em absorver, mesmo que de projetos rivais e teorias adversárias, aquilo que é fundamental à sua sobrevivência. Essa flexibilidade inteligente é um dos aspectos mais notáveis do sistema chinês.
A China tem, portanto, grande interesse na disposição das peças no tabuleiro político mundial. Daí o seu olhar atento sobre a decisão dos norte-americanos de forçar um atalho, pela via militar, na busca de uma estratégia que responda à desesperadora necessidade de uma saída para a crise econômica. Além dos interesses imediatos, é possível que o imperialismo tenha desenhado em sua estratégia os mecanismos para assegurar o controle das rotas de petróleo e gás natural da Ásia Central e do Mar Cáspio — cujas reservas serão de grande valia quando se esgotarem os recursos do Oriente Médio.
Máquina militar imperialista
O poder de veto das potências no Conselho de Segurança da ONU, contudo, impõe limites à máquina militar imperialista. Mesmo com o fim da estabilidade diplomática que equilibrava a força militar entre as duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial, a ONU representa uma certa garantia de respeito à legalidade internacional. Com a decisão dos Estados Unidos de afrontar essa ordem, abriu-se a possibilidade para que Rússia e China se unissem a fim de conter a agressividade imperialista, levada à prática com a guerra na Ucrânia.
A presença militar norte-americana nas vizinhanças da China, da Rússia — e da sua rica região siberiana — e da Índia, portanto, faz o mundo coçar a cabeça. É a mais grave crise dos últimos 60 anos. Se o conflito se estender, poderá ser cruento. A potência bélica não hesitará em lançar artefatos de extermínio em massa caso seja necessário usar seu senso de revide, sua indiferença internacional e sua sede de status. Junto com outros países, os Estados Unidos se amontoam em clubes como a Otan e, montados em seus arsenais, se autoproclamam os donos do mundo.
Uma oposição firme aos devaneios belicosos dos Estados Unidos e seus aliados só pode vir, no curto prazo, da China e da Rússia — infelizmente porque só estes dois países, entre os que se opõem com mais firmeza ao ataque imperialista, têm poderes políticos e, principalmente, bélicos para tanto. E isso é decisivo. Imagine, por exemplo, a China sem seu arsenal de 120 mísseis e 420 ogivas nucleares. Seria apenas mais um país “emergente”. Ninguém lhe perguntaria a opinião em assuntos estratégicos. Provavelmente a Inglaterra não lhe teria devolvido Hong Kong e os Estados Unidos manteriam por lá muito mais agentes especiais subvertendo a ordem socialista e trabalhando em prol da “democracia” e do “capitalismo cristão”.
Um mundo abstrato, movido pelo giro concreto do dinheiro, define o que é o capitalismo, potencializado pela hipertofria do mercado financeiro, controlado e manipulado por agentes sem escrúpulos. Gente já definida como “lobo de Wall Street”, ou “yuppie”, bem representada em filmes e documentários como malandros, ladrões engravatados, geralmente aventureiros com ar de bem-sucedidos. No Brasil esses malandros ganharam projeção sobretudo com a criação do arcabouço político e “institucional” – cujo esteio é a imoral Lei de Responsabilidade Fiscal -, à margem do Estado Democrático de Direito regido pela Constituição de 1988.
É um fenômeno que ganhou grande relevância com a pretensão do projeto neoliberal de revogar o keynesianismo e a social-democracia, mitigadores das mazelas do capitalismo, para centrar fogo na resistência ao imperialismo, o projeto socialista. Para se impor, vale todo tipo de golpe para destruir as soberanias nacionais e populares, um mundo de corrupção e mantras autoritários difundidos pela guerra ideológica monopolizada por um gigantesco aparato midiático organimente ligado ao mundo financeiro. Com esses recursos, o imperialismo, que regovou os princípios do liberalismo formulados por Adan Smith, se torna radicalizado, valendo-se não raro de projetos políticos de extrema-direita.
É o que pode ser visto nestes dois artigos abaixo, sobre Pablo Marçal e Jair Boolsonaro, mera repetição da fala, em 1968, do então ministro do Trabalho e da Previdência Social da ditadura militar, Jarbas Passarinho, durante a reunião do AI-5 que instarou oficialmente o terrorismo de Estado: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” O terrorismo do projeto neoliberal está bem explícito nesses textos do Portal UOL e da Folha de S. Paulo relatando a falta de escrúpulos da Faria Lima e de Wall Street em relação ao nazifascimo contemporâneo no Brasil.
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Faria Lima já flerta com Marçal para derrotar Boulos
Andreza Matais, colunista do UOL – 27/08/2024
A Faria Lima vai esconder a predileção, mas em rodas fechadas empresários estão “encantados” com Pablo Marçal, segundo lideranças políticas e empresários com quem conversei nos últimos dois dias.
A avaliação nesse grupo é que Marçal pode tirar Guilherme Boulos da disputa e esse grupo faz de tudo para não ver o candidato do PSOL eleito.
Sobre Ricardo Nunes (MDB), atual prefeito de São Paulo, avaliam que seus bairros estão sujos, com calçadas esburacadas e que a cidade não tem zeladoria necessária.
Ninguém acredita que Marçal é uma boa pessoa, mas apostam que ele defende o empresariado e que seu jeito “deixa que eu resolvo” pode ser uma solução para a cidade.
Nesta terça-feira (27), terá um jantar na casa de Marçal para empresários. A coluna apurou que entre os convidados estão representantes de bancos. Se eles irão apoiar publicamente o candidato do PRTB a resposta é não. É o chamado voto envergonhado.
Um alto executivo de um banco disse à coluna que “a maioria é Nunes”, mas “todos acham que Marçal vai ganhar”.
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Por que tanta gente em Wall Street torce por uma vitória de Bolsonaro?
Brian Winter – Folha de S. Paulo, 05/09/2018
Pessoas íntegras admitem em conversas particulares que não há espaço para sentimentos
Por um candidato que odiava tanto a austeridade que nos anos 90 apelou pelo fuzilamento de um presidente que ordenou um corte de gastos?
Por alguém que quer mudar a composição do STF e indicar juízes ligados a ele? Que declarou seis semanas atrás que “na verdade não entendo de economia”?
Bem, há duas respostas.
Porque, graças em parte a Donald Trump, em 2018 a memória é curta. E porque os investidores estrangeiros, como muitos brasileiros, querem acreditar na possibilidade de um salvador.
Para a parte de Wall Street que investe em países como o Brasil, o ano foi horrível até agora.
Enquanto o mercado de ações dos EUA batia recordes, com o corte de impostos e as medidas de desregulamentação de Trump, o principal índice de mercados emergentes registrava queda geral de 9%, puxado pelas baixas na Turquia (-55%), África do Sul (-21%) e Brasil (-20%).
Um ano ruim quer dizer bonificação ruim e pode até significar a perda do emprego. O Brasil é grande o bastante para empurrar uma virada na categoria, mas isso só vai acontecer se um presidente “amigo do mercado” —Bolsonaro ou Alckmin— vencer.
Uma vitória do PT, em contraste, poderia causar nova queda dos ativos.
Nesse contexto, a maioria dos investidores parecia preferir Alckmin. Mas o equilíbrio está mudando, e não só porque ele continua estagnado.
A indicação por Bolsonaro de Paulo Guedes como ministro da Fazenda e depositário da ortodoxia econômica parece melhor a cada dia, aos olhos do mercado.
Sob a tutela de Guedes, Bolsonaro prometeu reforma nas aposentadorias e no mês passado chegou a mencionar a possibilidade do Cálice Sagrado de Wall Street —a privatização da Petrobras. Um investidor me disse, empolgado, que o Brasil pode ter seu primeiro presidente verdadeiramente liberal em pelo menos meio século.
Calma lá, você talvez diga: e quanto ao passado não tão distante de Bolsonaro?. É aí que entra Trump.
O presidente dos EUA era membro registrado do Partido Democrata até 2010 —mas na Casa Branca ele vem realizando os maiores sonhos republicanos em termos de corte de impostos e desregulamentação da economia. Os mercados financeiros estão sujeitos a modas, e a coerência ideológica está fora de moda.
Basta a explicação de Bolsonaro: “As pessoas evoluem”.
É claro que essa abordagem acarreta riscos. Um presidente que talvez não tenha grande compromisso com a austeridade será capaz de tomar as decisões duras necessárias para reduzir um deficit ainda maior que o da Argentina?
Ele conseguirá funcionar sem apoio claro no Congresso? (Ou, diante de oposição, cumprirá sua velha promessa de fechar o Congresso?) Alguns líderes que pisotearam instituições democráticas, de Recep Erdogan na Turquia a Daniel Ortega na Nicarágua, vêm enfrentando problemas.
Mas se você conversar com investidores sobre os riscos do autoritarismo, muitos tenderão a responder “ouvimos o mesmo sobre Trump, e as coisas estão ótimas” ou “qualquer um menos Lula”.
Há, por fim, o elemento moral. Como os investidores podem apoiar um candidato com posições como as de Bolsonaro sobre mulheres, minorias e direitos humanos?
Essa é a pergunta mais fácil. Conheço muitas pessoas íntegras em Wall Street que sentem repulsa por Bolsonaro. Mas elas admitem em conversas particulares que não há espaço para sentimentos. Como me disse uma, “meu trabalho é garantir que os títulos sejam pagos na data. Quanto ao resto — cabe aos brasileiros decidir”.
Em sua coluna na Folha de S. Paulo nesta quarta-feira (14), Ruy Castro dá o título Maduro, exploda-se. Ponho o texto de cabeça para cima e troco o personagem para expressar melhor o conteúdo.
As opiniões de Ruy Castro sobre as atas que que estão disponíveis no sistema de Justiça da Venezuela, de acordo com sua institucionalidade democrática, equivalem aos caminhões de nitroglicerina do filme O Salário do Medo
Um dos grandes momentos do cinema europeu de todos os tempos é um filme francês, O Salário do Medo (Le Salaire de la Peur), de 1953, dirigido por Henri-Georges Clouzot. A história se passa num vilarejo perdido na Venezuela, controlado por uma companhia de petróleo e, mesmo assim, mantido em indescritível miséria. Entre seus habitantes, há quatro estrangeiros condenados a apodrecer ali por falta de opções.
E, então, eles ganham uma oportunidade: US$ 2.000 para cada um pelo transporte de dois caminhões de nitroglicerina para uma cidade a 150 km. É, com trocadilho, um caminhão de dinheiro. O problema é chegarem lá. Os 150 km consistem de estradas esburacadas, curvas fechadas quase impossíveis de fazer, pontes de madeira que ameaçam desabar ao peso do líquido dentro dos tanques, precipícios que surgem de repente e tudo mais que, com um peteleco, pode fazer os caminhões irem pelos ares.
Os quatro personagens, dois franceses, um alemão e um italiano, são homens duros, violentíssimos. Os atores que os interpretam —respectivamente, Yves Montand, Charles Vanel, Peter van Eick e Folco Lulli— também eram. A história da filmagem, toda em externas no sul da França e sob terríveis condições, fala deles saindo aos murros uns contra os outros e contra o diretor Clouzot. O filme retrata isso. São 147 minutos de tensão quase insuportável, com os caminhões a 10 por hora, como duas bombas sobre rodas.
Imagino Ruy Castro nessa mesma Venezuela, conduzindo um caminhão de nitroglicerina – as atas da votação, forjadas e fraudadas por Maria Corina Machado e Edmundo Gonzáles, prestes a explodir se não forem reveladas. E, se forem, também. A estrada, bombardeada pelos países que sabotam a democracia e por “jornalistas” goebbelianos, não pode estar mais esburacada. A esta altura, ele não tem mais alternativa: ou prende o país inteiro ou é ele próprio quem vai preso.
Não leve a mal, Ruy Castro, mas queremos que você se exploda.
Atual ofensiva da direita contra a democracia na Venezuela, com perfil nazifascista e conteúdo da roubalheira neoliberal, tem um fio histórico. Hostilidades recente ao presidente democraticamente reeleito Nicolás Maduro fazem parte de um processo montado nos Estados Unidos para pilhar outras nações à base de um gigantesco aparato militar e ideológico.
Por qualquer ângulo que se olhe para o regime dos Estados Unidos é impossível não ver criminosos de guerra. Os senhores da guerra são uma importante fonte de poder. A ordem militar, até a década de 1950 uma instituição débil, transformou-se no escalão mais importante e mais caro do governo dos Estados Unidos. Saíram de cena os sorridentes homens de relações públicas e apareceu a face da sinistra burocracia instalada na máquina de guerra. Todos os fenômenos políticos e econômicos passaram a ser julgados à luz de interpretações militares.
O “realismo militar” dos chefes militares instalados no poderoso Estado-Maior Conjunto transformou-se no guia mais inspirado do grupo dirigente do país. Desde os anos da Segunda Guerra Mundial, essa força ampliou seu campo de ação em assuntos relativos à política exterior e doméstica do país e atualmente pode-se dizer que a ordem militar do Estado-Maior Conjunto está solidamente instalada no Estado.
Existem dois governos nos Estados Unidos. O primeiro é o governo sobre o qual o mundo se informa na internet, no rádio, na televisão e nos jornais, e as crianças nos livros escolares. O segundo é invisível e conduz a espionagem e a rede de informações, um aparato maciço que emprega centenas de milhares de pessoas secretamente e conduz a política externa do país. Esse governo invisível emergiu das imposições dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial.
Mundo ocidental
Os demais países centrais, exaustos pela guerra, foram obrigados a aceitar essa ordem em troca de ajuda para a sua reconstrução. Assim, os Estados Unidos deixaram de ser apenas mais um agregado no conjunto de países que lutavam por pedaços do mundo e passaram a ocupar o pico de uma pirâmide solidamente dirigida por eles. As regras desse jogo foram definidas num momento privilegiado para o grande país americano. Nenhum representante do chamado Terceiro Mundo participou desses tratados.
A Europa, destruída e ensanguentada por duas grandes guerras num curto espaço de tempo, não estava em condições de se opor à grande capacidade de produção norte-americana proporcionada pela Segunda Revolução Industrial — que dotou o país de uma poderosa e inovadora indústria. Na Ásia, o Japão, destroçado pela guerra, foi ocupado pelos Estados Unidos, que ditaram o rumo da sua reconstrução.
Esse processo do pós-Segunda Guerra Mundial que desencadeou a dominação norte-americana no chamado mundo ocidental, portanto, levou o capitalismo a uma transformação profunda. No final dos anos 1940, somente os Estados Unidos estavam em condições de exportar capital em grande escala. E o país usou essa condição privilegiada para manter sob o seu controle as rédeas num mundo que buscava alternativas ao seu modelo político e econômico.
Na Europa, o projeto social-democrata procurou adaptar a economia planejada à tradição comercial liberal do velho continente. No Japão, o Estado se reforçava para desempenhar um papel de destaque no planejamento econômico. E cerca de um terço da população mundial rompeu com esses paradigmas e se juntou à União Soviética para reforçar o sistema de economia totalmente planificada. Desde então, os Estados Unidos intervieram em vários países e promoveram uma feroz cruzada anticomunista em todo o mundo.
Declaração de Independência
A política norte-americana sempre foi expansionista e agressiva com a América Latina. A própria constituição dos Estados Unidos como nação encerra uma contradição entre o que foi proclamado dia 4 de julho de 1776, quando o povo norte-americano aprovou a Declaração de Independência, e a política exterior da jovem pátria. As premissas do expansionismo continental norte-americano foram criadas com as guerras contra a população originária e as reivindicações dos latifundiários do Sul do país de ampliar o território avançando pelas fronteiras de seus vizinhos. William Foster, estudioso da história política do continente americano, diz que o próprio nome do país — Estados Unidos da América — expressa suas pretensões panamericanas.
Já no começo do século XIX, a contradição entre os princípios humanitários e democráticos proclamados pela Declaração de Independência e a política exterior do jovem Estado levou à renúncia das suas tradições libertárias. A doutrina do direito natural de todos os povos decidirem seu próprio destino — um dos fundamentos da Declaração de Independência — passou a ser interpretada de modo a justificar como “natural” o expansionismo norte-americano. Para os dirigentes dos Estados Unidos, essa doutrina dava ao país o direito de encarar o continente como sua área de influência direta.
Colônias sul-americanas
Com esse argumento, a princípio os presidentes Thomas Jefferson e John Adams “compraram” a Luisiana — que pertencia à França — e ocuparam a Flórida — que pertencia à Espanha. Depois, no dia 2 de dezembro de 1823, com a mensagem do presidente James Monroe ao Congresso, foi proclamada a famosa “Doutrina Monroe” — que expressa sem ambiguidades as pretensões norte-americanas à hegemonia em todo o hemisfério ocidental.
Monroe não foi efetivamente o pai da criança — antes dele, todos os presidentes haviam trabalhado para moldar aquela ordem. A mensagem do presidente foi a consequência de um movimento na Europa — envolvendo Inglaterra, França e Espanha — que pretendia “pacificar” as colônias sublevadas na América do Sul. A França enviou o seu exército à Espanha para repor no trono Fernando VII, monarca espanhol deposto por uma onda revolucionária, e despertou a reação da Inglaterra.
As colônias sul-americanas sublevadas estavam dentro do círculo comercial inglês e a França havia prometido devolvê-las à Espanha. O êxito francês significaria a automática conquista do direito de comércio na região. A Inglaterra, então, propôs aos Estados Unidos uma união para travar as pretensões francesas e sugeriu que o acordo fosse selado por uma declaração conjunta baseada no poderio marítimo dos dois países anglo-saxônicos.
Declaração conjunta
Quando Monroe tomou conhecimento da proposta inglesa, imediatamente consultou os ex-presidentes Thomas Jefferson e Jacobo Madison — e recebeu o conselho de aceitar o plano da Inglaterra, mas com uma modificação. Jefferson disse que o assunto era da mesma magnitude da Ata da Independência dos Estados Unidos. “Aquela nos fez uma nação, esta fixa na nossa bússola a rota a seguir através do oceano do tempo que se abre perante nós”, disse ele. “A América, tanto no Norte como no Sul, tem um conjunto de interesses diferentes dos da Europa e que lhe são muito próprios.”
A proposta da Inglaterra foi aceita, mas a declaração conjunta, recusada. Assim, no dia 2 de dezembro de 1823 o mundo conheceu a mensagem de Monroe e soube que os Estados Unidos haviam deixado a Inglaterra de lado e tomado a decisão de determinar os destinos dos povos da América. Em vez de dar a mão para a Inglaterra, os Estados Unidos deram um pontapé na Europa. De mãos livres, se apoderaram dos territórios que estavam em seus planos — como Cuba e Porto Rico —, iniciaram a monopolização do comércio na região e começaram a exportação maciça de seus capitais para os países que se tornaram independentes.
Desde então, a propaganda expansionista invocou esses princípios para justificar as ações políticas e militares extraterritoriais dos Estados Unidos. Para os meios de comunicação fortemente vinculados ao poder econômico, os norte-americanos têm o dever natural e sagrado de levar as suas tradições “liberais” e “democráticas” aos povos “incultos” do resto do mundo. Por mais simplista e racista que esse pensamento possa parecer, ele é abertamente proclamado no país desde a instauração do chamado Destino Manifesto — uma “teoria” que surgiu e se difundiu nos Estados Unidos na metade do século XIX, segundo a qual os norte-americanos nasceram para ser o melhor povo do mundo.
Anticomunismo sem escrúpulo
É muito forte a influência da religião nessa “teoria”, um destino que teria sido profetizado pela “providência divina”. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, levava ao pé da letra a frase “In God we trust (Em Deus nós confiamos)” impressa nas notas do dólar. Quando ele era presidente, as reuniões ministeriais na Casa Branca começavam com orações; frases bíblicas sempre apareciam em seus discursos.
Em sua gestão, Bush propôs a canalização de recursos sociais para entidades religiosas, a autorização de preces e sermões em escolas públicas, o subsídio a faculdades geridas por grupos religiosos e o financiamento do trabalho de entidades religiosas em presídios — uma ofensiva jamais feita, apesar da tradição religiosa do país, contra a separação entre igreja e Estado, um dos princípios basilares consagrado na Primeira Emenda à Constituição.
O ex-presidente norte-americano certamente não era refém da fé e pode-se dizer que a rigor ele tomava o nome de Deus em vão. Por trás de sua política estavam os interesses de uma parcela significativa da economia que lidera o mundo. A ideologia do Destino Manifesto age como um poderoso elemento mobilizador da energia do país para a conquista de novos territórios. Ao longo da história, ela foi um verdadeiro elixir do expansionismo e do intervencionismo norte-americano.
No século XX, particularmente na sua segunda metade, essa ideia, traduzida em anticomunismo sem escrúpulo, permeou a propaganda do regime norte-americano, marcada pela Doutrina Truman com seus aparatos financeiros dos tratados de Bretton Woods e seu braço armado, a Organização do Tratado do âtlântico Norte (Otan), proclamada pelo então presidente Harry Truman sob as cinzas da Segunda Guerra Mundial. E isso explica a visão dominante no país de que o restante do planeta — sobretudo o chamado Terceiro Mundo — é cultura e economicamente subdesenvolvido.
Essa propaganda ganhou, evidentemente, novos contornos desde a queda do muro de Berlim, mas sua essência permanece a mesma e constitui, basicamente, em levar a “democracia” aos países que recusam a cartilha de Washington e em “ensinar” os “segredos” da boa gestão econômica. O aparato de propaganda norte-americano, por exemplo, contra todas as evidências diz que a presença dos Estados Unidos em países invadidos ou sob sua vigilância — como a Ucrânia — tem missão modernizadora e libertária. Mesmo quando os fatos insistem em desmenti-lo, nas entrelinhas essa ideia é largamente difundida.
Democracia mundial
A reprodução acrítica dessa prática pela mídia brasileira é bem conhecida, como seu viu na recente visita do presidente Nicolás Maduro. Ignoram o princípio básico da soberania dos povos — caberia ao povo venezuelano, se fosse o caso, reunir forças para derrocar o seu governo, como já fizeram outros povos, inclusive o brasileiro —, pilar da democracia mundial. Tampouco o direito internacional, descaradamente golpeado.
Foi assim com o golpe militar pró-Estados Unidos de 1964 no Brasil. E com os movimentos congêneres que se alastraram pela região nos anos 1950-1960-1970. E etc. A política externa do regime de Washington segue a lógica de que a economia norte-americana depende das imensas riquezas da América Latina. Logo, seus destinos políticos devem ser controlados pelos interesses econômicos dos Estados Unidos.
A “Doutrina Monroe” ainda é um punhal cravado nas entranhas dos nossos povos. De George Washington até Joe Baden, os 46 presidentes que passaram pela Casa Branca não mudaram a essência expansionista da política externa dos Estados Unidos. Hoje, com o agravamento da crise estrutural da economia norte-americana decorrente dos seus monumentais déficits comercial e orçamentário, recrudesce a lógica da “Doutrina Monroe”.
Embora sem perder a hegemonia, no século passado — principalmente após a Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos travaram uma dura disputa comercial com a Europa e o Japão. Agora, diante da formação de megablocos comerciais relativamente sólidos — particularmente a União Europeia —, o controle de sua área de influência não pode correr o menor risco de enfraquecer. O seu domínio político e econômico, portanto, precisa de amarras jurídicas mais firmes para enfrentar as recorrentes tentativas de insurgência na região e fechar os espaços para eventuais investidas de outros blocos comerciais.
Obra de Lênin
Esse foi o sentido político da proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), derrotada pela ascensão de governos progressistas na região, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998. O sempre atual diagnóstico de Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, no Capítulo X da obra Imperialismo – Fase Superior do Capitalismo, intitulado O lugar do imperialismo na história, diz que o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capitalismo monopolista. Ele pode ser aplicado inteiramente à atual situação.
Além de outras características, Lênin afirmou que os monopólios agudizam a luta pela conquista das mais importantes fontes de matérias-primas. “A posse monopolista das fontes mais importantes de matérias-primas aumentou enormemente o poderio do grande capital e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada e a não cartelizada”, escreveu ele. “Aos numerosos ‘velhos’ motivos da política colonial, o capital financeiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de capitais, pelas ‘esferas de influência’, isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território econômico em geral”, acrescentou.
Outra importante constatação de Lênin é que da tendência dos monopólios para a dominação em vez da tendência para a liberdade, da exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas por um punhado de nações riquíssimas ou muito fortes, originaram os traços distintivos do imperialismo. “Esse capital financeiro que cresceu com uma rapidez tão extraordinária, precisamente porque cresceu desse modo não tem qualquer inconveniente em se apossar das colônias — as quais devem ser conquistadas não só por meios pacíficos pelas nações mais ricas”, escreveu ele. “A comparação, por exemplo, entre a burguesia republicana norte-americana e a burguesia monárquica japonesa ou alemã mostra que as maiores diferenças políticas se atenuam ao máximo na época do imperialismo. E não porque essa diferença não seja importante em geral, mas porque em todos esses casos se trata de uma burguesia com traços definidos de parasitismo”, acrescentou.
Poderio militar
A radiografia é perfeita para se entender o atual estágio da economia norte-americana. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), caso se mantenha o consumo médio das duas últimas décadas as atuais reservas mundiais de petróleo devem exaurir-se antes de 100 anos. Os Estados Unidos, maiores consumidores do mundo, responsáveis todos os anos pela combustão de 30% do petróleo extraído no planeta, sabem que essa limitação é crítica para a sua hegemonia.
Assim, ao mesmo tempo em que gastam fortunas no desenvolvimento de alternativas energéticas — como as células de hidrogênio, por exemplo —, procuram assegurar-se de suprimentos que permitam ao país atravessar as próximas décadas. Para tanto, pretendem explorar até jazidas localizadas em áreas protegidas como reserva ambiental, no Alasca.
É evidente que uma economia com essas características, com o peso de um Produto Interno Bruto (PIB) que rompe a barreira dos US$ 8 trilhões, não tem como conviver com a paralisia das engrenagens que lhe são peculiares. A disparidade de poder — sobretudo militar — entre os Estados Unidos e os demais países também deve ser considerada nessa equação. Seu histórico é um bom guia para se entender o que isso significa.
Tensões abafadas
Sob a proteção do guarda-chuva nuclear norte-americano, esteio da Guerra Fria, as demais potências capitalistas se desenvolveram num ambiente sem guerras entre elas. A economia japonesa, umbilicalmente ligada à economia norte-americana, floresceu. E a Europa Ocidental evoluiu ao ponto de construir uma entidade supranacional, a União Europeia. Os grandes conflitos mundiais estavam sujeito ao direito internacional.
Assim, nuitas tensões antes abafadas pelo jogo internacional afloraram e foram reduzidas à pura expressão militar. Novos inimigos, reais ou forjados, entraram em cena e passaram a ser considerados pela estratégia expansionista como alvos — destacadamente as nações e regimes que não rezam pela cartilha de Washington. No âmbito imperialista, esse quadro foi construindo uma tática belicosa fundada basicamente num imaginário “choque de civilizações” — ideia expressa por Samuel Huntington em seu livro homônimo. Segundo o autor, a conjunção da “civilização confuciana com a islâmica” seria, hoje, a maior ameaça ao ocidente. O corte é mais econômico do que geográfico.
Na verdade, a relação do ocidente com o oriente é uma das formas clássicas de entender a configuração mundial moldada por duas guerras mundiais — e algumas guerras locais — ao longo do século XX. Mais do que projeções geográficas e culturais, esse modo de ver o planeta é corroborado pela análise econômica. A economia capitalista asiática, umbilicalmente ligada à economia norte-americana, tem um crédito monumental em títulos do Tesouro dos Estados Unidos — recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva da “globalização”, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona. O Japão, que enfrenta uma longa crise, é o país da região com maiores dificuldades para se levantar. Para complicar mais ainda o cenário japonês, há em seu flanco a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial.
Esse quadro tem tudo a ver com a dinâmica da especulação financeira internacional. A “bolha especulativa” chegou ao seu limite com o esgotamento da capacidade mundial de financiamento do alucinado endividamento público norte-americano pelo agravamento da crise de seus principais financiadores. Assim, os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. E o tombo da economia norte-americana, que inevitavelmente levaria as demais economias à bancarrota, passou a assombrar o mundo.
Aparelhos ideológicos
No pós-Segunda Guerra Mundial, o regime norte-americano fincou suas bandeiras no oriente porque era real a possibilidade de o continente asiático seguir por um caminho próprio. Coréia e China são exemplos nesse sentido. Com seu feixe de tradições preservado, a China, por exemplo, inventou o seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. De quebra, o país tem sido hábil em adaptar-se às transformações do ambiente em que atua, em absorver, mesmo que de projetos rivais e teorias adversárias, aquilo que é fundamental ao seu desenvolvimento.
Essa flexibilidade inteligente é um dos aspectos mais notáveis do sistema chinês. Aquele país tem grande interesse na disposição das peças políticas no tabuleiro mundial — assim como a Rússia. Essa contradição talvez seja o maior ponto de interrogação que se forma com a decisão dos brutamontes de Washington de forçar um atalho na busca de uma estratégia que responda à desesperadora necessidade de uma saída para a crise econômica norte-americana.
Esses fatos demonstram que é falso o argumento dos aparelhos ideológicos do regime de que as armas norte-americanas têm um sentido defensivo, uma função política de balanço de forças. Quando se vira a moeda, a sua outra face revela que o belicismo está mais perto do que se imagina. Além do conflito na Ucrânia, sob o ardiloso pretexto de combate ao narcotráfico e ao terrorismo o Pentágono segue apregoando aos quatro ventos que entre os alvos de sua doutrina de atacar primeiro estão organizações políticas e países da América Latina. Chama a atenção, nesse sentido, a proliferação de bases militares norte-americanas na região e a formação de equipes especializadas para responder pelos assuntos latino-americanos, encarregadas do roteiro de hostilidades a Cuba e a Venezuela — e a quem os apoia.
Levante mundial da direita contra a democracia na Venezuela demonstra a extensão nazifascista do projeto neoliberal, com sérias consequências para o projeto de governo do presidente Lula.