Gabriel Galípolo e os vendedores de “rabinho de coelho” no Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

A cadeira de presidente do Banco Central, nos moldes atuais, é lugar de autocrata. E o atual presidente, Gabriel Galípolo, incorporou essa prática, conforme tem se revelado numa série de entrevistas com próceres do Plano Real no Youtube para comemorar os sessenta anos do Banco Central e, segundo ele, trazer sorte para a sua gestão. Suas interações ultrapassam os limites da parcimônia e omitem as barbaridades daquela trupe contra o povo e o país.

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Galípolo assume a “legitimidade” do cargo sem mandato constitucional e popular, apesar da controvertida decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a legalidade da “independência” do chamado “guardião dos valores do Brasil”, também designado como “autoridade monetária”, com a ressalva de que “é fato induvidoso que a questão da autonomia do Banco Central divide opiniões”.

Esse poder autocrático representa interesses muito bem definidos. Ele opera o principal mecanismo de controle da riqueza produzida, a circulação monetária. Quem controla o dinheiro, a mercadoria espelho de todas as outras, tem plenos poderes sobre as políticas do país, uma anomalia do Estado Democrático de Direito, que rege os programas de governo, inviabilizados quando sua essência são investimentos públicos em infraestrutura e políticas sociais.

Cenário sem horizonte

O controle do dinheiro é o cerne do poder capitalista, hoje na forma de remuneração por juros já chamados de pornográficos, parasitando o orçamento público e submetendo todos ao seu designo, inclusive o Estado e suas instituições. É o esteio do projeto neoliberal, a ideia de que o velho liberalismo de Adam Smith triunfou sobre as teorias que se apresentaram como alternativas às mazelas do capitalismo. Socialismo, socialdemocracia e keynesianismo teriam fracassado, dando razão aos dogmas liberais.

A tese não se sustenta diante dos fatos. O projeto neoliberal é uma alternativa ao próprio fracasso do liberalismo, liquidado quando os ideais de livre circulação de capitais e de mercadorias foram inviabilizadas pela corrida às matérias-primas e à força de trabalho, a competição entre grupos econômicos pelo controle de territórios, povos e países, traduzida pelas guerras, por genocídios e morticínios que marcam a história do capitalismo, teorizada como neocolonianismo e imperialismo.

No século XX e neste início do século XXI, a violência e a guerra midiática-ideológica se concentram, basicamente, no combate às ideias democráticas e patrióticas. A forma mais conhecida é o clássico anticomunismo, cada vez mais rude e primário, a plataforma que impulsiona a extrema-direita, a expressão mais pronunciada do poder político do capitalismo na contemporaneidade, com a diferença de que, ao contrário do seu passado, age num cenário de maior complexidade, com o desafio de se impor num cenário sem horizonte.

Nova fórmula do velho poder

Ou seja: o poder político com base nessa suposta ressurreição do liberalismo de Adam Smith só se viabiliza com o rompimento das regras do Estado Democrático de Direito, o direito constitucional que se formou com a Revolução Francesa e seus desdobramentos, o ideal republicano e humanista do projeto socialista. A evolução dessa contradição fundamental explica a agressividade do projeto neoliberal, em todas as suas nuances, cada vez mais extremista e hostil às ideias de democracia, soberania nacional, direitos sociais e humanos.

Esse é o arcabouço político e ideológico da autocracia no Banco Central, a nova fórmula do velho poder que precedeu a Revolução Francesa, fundado no absolutismo e no escravismo. Todos devem se submeter aos “guardiões da moeda”, que usam e abusam do dinheiro público como propriedade privada, distribuindo-o aos que alimentam a ciranda financeira, a fonte de remuneração do capital acumulado à base do trabalho excruciante, desumano e alijado das regras do Estado Democrático de Direito.

Os ideólogos desse projeto de “independência” do Banco Central proclamam essas ideias, abertamente, como um grande feito atribuído por eles a eles mesmos. Isso aparece na série de entrevistas realizadas por Galípolo com os autocratas que impuseram o arcabouço do Plano Real. Foi, na verdade, um festival de arbitrariedades confessado pelo principal deles, Pedro Malan, ao lembrar que pretendiam fazer uma revisão constitucional para, na prática, revogar a Constituição de 1998 como condição para os arbítrios do Plano Real.

Dedo no nariz

Pretendiam, à base de corrupção desbragada, fazer, de uma vez só, o que fariam, com dificuldade e autoritarismo, nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC). A ordem era tirar, com apenas um golpe de mão, as cores progressistas da Constituição. Manipularam o Artigo 3° do título constitucional das Disposições Transitórias, que determinava mudanças em alguns aspectos caso o sistema de governo fosse alterado num plebiscito que decidiu pela continuidade do presidencialismo, derrotando as propostas de parlamentarismo e monarquia.

Não houve mudança de sistema de governo. Portanto, não havia justificativa legal para a revisão constitucional. O pensamento neoliberal mostrava força, mas, nesse caso, não obteve sucesso. A vitória da legalidade democrática veio como resultado de uma ampla mobilização popular. O ponto alto foi a segunda Carta aos Brasileiros, redigida pelo jurista Goffedro da Silva Telles, histórico combatente dos desmandos da ditadura militar.

Ficaram famosas as cenas de resistência ao golpe pelas bancadas do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no dia em o projeto de resolução convocando a revisão constitucional seria votado no Congresso Nacional, numa sessão marcada por grosseira manipulação das regras parlamentares. Wilson Muller (PDT-RS) tomou o projeto das mãos do primeiro-secretário, deputado Wilson Campos (PMDB-PE), e transformou-o em papel picado. Haroldo Lima (PCdoB-BA) falou poucas e boas com o dedo a um palmo do nariz do senador Humberto Lucena (PMDB-PB), o presidente do Congresso.

Repetição goebbeliana

A “independência” é uma prática antiga, criada pela chamada “reforma bancária” da ditatura miliar, no começo de 1965, quando surgiu o mandato fixo para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), autarquia criada em 1945, em 1965 substituída pelo Banco Central, e o Conselho Monetário Nacional. A “reforma bancária” se deu com os mesmos argumentos que ecoaram pela mídia com o arcabouço do Plano Real e que, desde então, são enfiados goela abaixo do povo, numa repetição goebbeliana abusiva.

A trupe do Plano Real promoveu um festival de arbitrariedades já no início de suas atividades, com intervenções para centralizar o sistema bancário pelos ditames do Banco Central, uma operação que passou pelo Proer, mecanismo que despejou US$ 12,1 bilhões no “salvamento” de bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira, originando a clássica fórmula de instituições falidas e banqueiros riquíssimos.

A “independência” do Banco Central – existente na prática desde o lançamento do Plano Real – encampou também o papel do Conselho Monetário Nacional, transformado em instância com pouco poder.

Sobre cigarras e formigas

Já se dizia, na ditadura militar, que a “autoridade monetária” se sujeitava ao Poder Executivo, transformando a política monetária em apêndice, sem autonomia fiscal. A “independência” e o mandato fixo evitariam “injunções políticas” nas decisões monetárias, o mesmo argumento, sem tirar nem pôr, da ladainha dos “pais” do Plano Real, um léxico de tolices que serve para qualquer justificativa contra as críticas aos seus abusos, espécie de novilíngua capaz de reinventar a história, recurso que reapareceu com força nas comemorações dos trinta anos do Plano Real.

Os arautos desse léxico frequentam a mídia como salvadores da pátria – sobretudo no Grupo Globo, conforme sintetizou recentemente o apresentar Pedro Bial ao dizer que a trupe era o “genial grupo do Plano Real” –, tida por eles como um dos grandes trunfos da “estabilização da moeda”, transformado em pensamento único pelo que definiram como “eficaz meio de comunicação com a população”. Esse léxico alicerçou os crimes contra o povo e o país na “era FHC” e chegou ao governo Lula pelo macaquear do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, registrado em seu infame livro intitulado Sobre cigarras e formigas.

Rua do Ouvidor

O linguajar padronizado, medíocre e hipócrita, é repetido à exaustão, como se eles estivessem fazendo um grande favor ao país, a soberba do poder absoluto, o galo que pensa que o sol nasce porque ele canta, não sem motivos chamados de “ortodoxos de galinheiro”. Dizem que foram “convocados” para os cargos e que enfrentaram as resistências, ridicularizando quem não reza por sua ladainha, principalmente os presidentes da República que se opuseram a essa roubalheira no período neoliberal, Itamar Franco e Lula.

Não se pode negar que esse poder autoritário serve muito bem à plataforma política da direita, que não tem como se manifestar sem extremismo. São, a rigor, criminosos perante o direito constitucional. Antigamente seriam criminosos comuns. Como lembra o economista Ney Bassuino Dutra em artigo no Monitor Mercantil, na Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro, a polícia volta e meia corria procurando prender dois tipos de contraventores: um, que vendia “rabinho de coelho” para dar sorte; outro, que emprestava dinheiro a juros aos funcionários públicos a 14% ao ano.

Lula, José Serra e Ciro Gomes: três homens e um destino

Por Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 31/07/2002

O primeiro debate na Rede Bandeirantes de televisão no próximo dia quatro representará uma queda-de-braço prévia entre os programas dos candidatos à Presidência da República. Estarão em discussão, com várias nuances, as duas concepções possíveis hoje para um projeto de governo. Do ponto de vista macroeconômico, a pauta é a de sempre: estabilidade da moeda, abertura do mercado e equilíbrio das contas nacionais. Do ponto de vista administrativo, os temas devem ser o espectro de reformas – ou, por outra, o papel do Estado – e do ponto de vista social, a melhoria dos serviços públicos básicos e a geração de empregos.

A análise desses temas revela que o país vai muito mal. Mesmo que tenhamos muito em comum com as mazelas de países tão subdesenvolvidos como Paraguai e Bolívia, vários dos desafios que os próximos anos reservam ao Brasil são semelhantes aos enfrentados por Argentina e México para administrar suas opções econômicas.

Temos, portanto, problemas gigantescos a serem enfrentados nos campos social e macroeconômico. Se optarmos por atacá-los de frente, com nossa importância histórica, nossa diversidade continental e nosso papel geopolítico, a América Latina tende a seguir por outro caminho. Entraremos para o clube dos países que lutam por sua soberania. Se a opção for por manter o rumo atual, lançaremos toda a região no olho do furacão neoliberal.

Esse é um esquadro que aparece muito bem desenhado pela conjuntura latino-americana. Existem apenas dois caminhos: o atual e o proposto pela esquerda. Outubro representará uma encruzilhada decisiva para o Brasil. Não há como o centro político ser o esteio de um projeto de governo. É uma impossibilidade física. Então, o que de substancial aconteceu para que o índice de intenções de voto em Ciro Gomes subisse vertiginosamente?

Supunha-se até bem pouco tempo que Lula imporia margens folgadas sobre seus adversários no primeiro turno. No começo de julho, Serra, segundo o “Datafolha”, aparecia em segundo lugar com 20% e Lula em primeiro com 38%. Ciro Gomes, que oscilava entre 12% e 14%, caiu para 11% no começo de junho e na primeira pesquisa de julho já aparecia com 18%. Agora se isola no segundo lugar, ameaçando o favoritismo de Lula no segundo turno. Mas nada de sólido aconteceu para essa mudança. Nenhum dos escândalos da gestão FHC veio à tona novamente com força suficiente para abalar as estruturas da candidatura Serra. As manipulações do episódio de Santo André e da crise na segurança do Rio de Janeiro para atingir Lula não conseguiram arrastar o debate eleitoral para os subníveis da histeria.

Esses índices das pesquisas, portanto, não refletem o ápice do que pode fazer eleitoralmente as candidaturas de Lula e Serra. O ponto, aqui, é que o salto de Ciro Gomes encerra uma verdade: o eleitorado está muito interessado no debate dos programas de governo em disputa. Conclusão: Ciro Gomes está crescendo pelos motivos errados. Seu palavreado estridente e oco, cativa pela incisão e tende a se desmanchar pela inconsistência. Ele tenta encarnar o Joãozinho do Passo Certo para encobrir sua tortuosidade política à frente de uma coligação que vai se configurando como de direita. Sua candidatura pode até ocupar esse espaço que originalmente é de Serra, mas a tendência é a de ela se espatifar ante os embates de peso no debate eleitoral. Sua coloração de esquerda, por outro lado, vai ficando cada vez mais desbotada.

Ciro Gomes tenta repetir a tática de Collor de pautar as intervenções pela frase de efeito e pelo que seu público-alvo quer ouvir – não por seu projeto para o país. Mas nessas eleições, o eleitor quer saber como serão tratadas as questões sociais e macroeconômicas. Nesse terreno, Ciro Gomes derrapa. Não faz tempo, ele teorizou sobre a dívida interna, propondo redução dos juros para os papéis de curto prazo e aumento para os de longo prazo, e diante da reação não teve como levar o debate adiante. Preferiu o silêncio. Mas o povo quer saber. E ele terá de dizer o que pretende fazer com essa e outras questões. No campo social, suas propostas também são pífias.

As candidaturas de Serra e Lula têm propostas claras para esses temas. O governista pretende, obviamente, levar adiante o projeto neoliberal. O desafio para ele é neutralizar a dicotomia entre inflação baixa, represada pelos juros altos, e crescimento econômico sem mexer nos fundamentos do modelo. Ele diz que é possível. O povo não acredita. Por isso, não decola. Como não dá para servir a dois senhores, ele está claramente a serviço do capital financeiro e terá de deixar isso claro no curso do debate eleitoral. Não há explicação plausível para a conciliação entre juros altos, uma bola de chumbo atada ao tornozelo da produção, e a geração de empregos. FHC prometeu conciliar esses conceitos opostos e não cumpriu. Nem tentou – o que demonstra sua demagogia eleitoreira. Por que o povo acreditaria em Serra?

Lula, por seu turno, leva vantagem por ser o candidato que diz claramente o que pretende fazer na Presidência da República. E por isso contraria alguns e agrada muitos. Seu programa não deixa margem para dúvidas sobre qual rumo o governo irá seguir. O crescimento econômico e a geração de empregos, prioridades do governo Lula, não aparecem como algo estrambótico – como nas propostas de Serra. Esses itens do programa estão solidamente amarrados pelas propostas de boa administração macroeconômica e vigor na ação social. E esse escopo abarca as aspirações de camadas da população nas quais se encontram desde o sujeito socialmente excluído até uma sólida fatia do empresariado nacional produtivo.

Serra não passa verdade em seu olhar. Mas tem as costas quentes. É o candidato do sistema, do dinheiro, da mídia. A candidatura inflada de Ciro Gomes tende a perder gás. Lula, portanto, segue firme em sua trajetória de levar o país ao encontro de sua vocação histórica de independência e progresso. A conjuntura nunca esteve tão propícia para tanto. Mas sua candidatura é o alvo preferencial do poder econômico. É previsível, portanto, que o debate eleitoral, num determinado estágio, deixará a esfera das propostas de gestão para o país e entrará no terreno do espetáculo circense. Mas o circo pode pegar fogo. Resta saber como o eleitor irá reagir.

As xaropadas do professor Ciro Gomes

Por Osvaldo Bertolino

Como biruta de aeroporto, Ciro Gomes se caracterizou por se comportar como se estivesse na Escolinha do Professor Raimundo, falando aos quatro ventos sobre o que é perguntado, o que não é e o que interpreta que é. No final das contas, ele mesmo pergunta e responde sobre assuntos como marxismo-leninismo, comunismo no Brasil, regras da Previdência Social, dívida pública, Deserto do Saara, máfias de Chicago, geografia de Gaza, tarifas de Donald Trump e tudo mais que surge pela frente, numa espécie de supercondutividade opinativa.

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Ciro Gomes está de volta à ribalta política com as mesmas diatribes, disparando rajadas de denúncias contra o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um Carlos Lacerda redivivo, o ex-governador da Guanabara que usou sua língua ferina contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Como o professor Raimundo, ele sai por aí atribuindo notas sobre todas as ações do governo, além de pregar moralismo udenista.

A crise no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que resultou na saída do ministro da Previdência, Carlos Lupi, líder do Partido Democrático Trabalhista (PDT) – o atual partido de Ciro Gomes -, tem servido de mote para elevar as especulações sobre a sua projeção como potencial candidato a presidente da República pela esquerda. Suas aparições têm sido cada mais ostensiva, sempre reafirmando a retórica de salvador da pátria. E, como sempre, se mete a falar de tudo, disparando nuvens de palavras com poucas ideias.

Sem espaço para ser explícito na direita, se reveste de progressista para dar seus giros em círculos viciosos. Na prática, é mais um aventureiro bissexto que tenta induzir o eleitor a não levar o voto a sério. Seu linguajar esconde a sua projeção no ninho da direita – sobretudo no PSDB, o partido incubador do projeto neoliberal no Brasil, que ganhou raízes com o Plano Real – e confunde os que que veem nele apenas o verniz de esquerda, a exemplo de seu fantasioso livro intitulado Projeto nacional: o dever da esperança.

A probabilidade de que ele se viabilize como alternativa à esquerda ou à direita é remota. Sua projeção está baseada no que se chama de crise de representatividade, uma confrontação à política propriamente dita, o debate partidário substituído por demagogia barata, desinformação, falta de seriedade com os eleitores ou estultícia mesmo. A extrema-direita concentra essa prática de maneira mais explícita, mas ela está disseminada por todo o espectro político, inclusive na profusão de perfis e canais da extrema-esquerda.

O objetivo não é alçar Ciro Gomes à posição de sério concorrente de Lula, mas atiçá-lo para desgastar a esquerda com a desmoralização de seus partidos e corroer  sua credibilidade nas organizações sociais e populares, as verdadeiras raízes do pensamento progressista. É uma variante da direita, com seus golpes, corrupção e demagogia, armas para manter sob controle a retórica pró-democracia, uma tolerância ao princípio da soberania popular desde que sob seu controle absoluto, como se vê no comportamento do monopólio midiático.

Ciro Gomes é produto dessa manobra. Desde que ele surgiu na cena política com mais destaque, como ministro da Fazenda substituto de Rubens Ricupero – pego confessando nos bastidores de uma entrevista para a TV Globo que não tinha escrúpulos para esconder o que era ruim e divulgar o que julgava bom, no âmbito da guerra suja para eleger seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (FHC), presidente da República em 1994 –, sua truculência se mistura a promessas vazias.

No contubérnio que se formou em torno do lançamento do Plano Real, Ciro Gomes assumiu os dogmas neoliberais e chegou a pregar violência contra os petroleiros em greve pelo calote de FHC num acordo trabalhista, segundo ele “privilégios” que justificavam a ilegalidade. “Eu fiz isso no Ceará. Dava um cacete e todos voltavam ao trabalho”, receitou. Sua incitação à violência contra os trabalhadores se consumou com a invasão do Exército durante a greve dos petroleiros, início da onda neoliberal de criminalização dos movimentos sociais.

Na época, escrevi no jornal Plataforma, do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, do qual eu era diretor de imprensa: “Parece até a reencarnação do cangaço na direção do mais importante ministério do país. O ministro, que transborda vaidade e arrogância, também tem características de camaleão. Fala de modernidade e se comporta como um coronel do sertão. Diz ser guardião do dinheiro público e estoura o orçamento com pagamentos de juros escorchantes. Tagarela sobre democracia e entope o noticiário com propostas autoritárias e mentirosas.”

A China e a revolução escondida

Por Osvaldo Bertolino

O fenômeno chinês é, possivelmente, um dos assuntos mais debatidos na atualidade em todo o mundo. No Brasil, é possível afirmar que o assunto está no topo do debate político, econômico e ideológico. Com o advento das novas formas de comunicação, velhos estereótipos foram desmoralizados, sobretudo os que estigmatizam a China como ditadura e fornecedora de força de trabalho abundante a baixos custos, sem contrapartidas, como se essa fosse uma condição do sistema.

Ficou, no debate com esses novos conhecimentos, um vazio de ideias. Fala-se muito sobre a China, mas pouco sobre o essencial, a ideologia que impulsiona o seu desenvolvimento. Compreende-se pouco, pelas manifestações mais conhecidas, o dínamo daquele país, a organização que orienta politicamente a sociedade: o Partido Comunista da China (PCCh). Nele está o projeto chinês, compreendido como antípoda do imperialismo como evolução natural das ideias surgidas com Adam Smith e seus congêneres, à época chamadas de liberais. O socialismo é o processo de superação do capitalismo, não seu mero concorrente

É um anacronismo chamar o atual projeto econômico, político e social do capitalismo de liberal. O termo surgiu como sinônimo de liberdade, num mundo em que a relação entre capital e trabalho era vista como antinomia assimilável pelo princípio da liberdade, tida como universal e perene. Mais recentemente, tentou-se reavivar esse projeto, rebatizado de neoliberal, a nova ordem econômica e política do velho imperialismo.

A história logo provou a cientificidade da crítica da economia política de Karl Marx, a constatação de que a liberdade de Adam Smith não era universal e muito menos perene. A crítica de Marx é lastreada numa síntese do pensamento social desde a antiguidade clássica. Outros marxistas deram novas sistematizações a essa ideia, sobretudo Vladimir Lênin, que elaborou outra grande síntese do pensamento social.

Surge, nesse curso histórico, a concepção leninista de partido de novo tipo, o portador consciente de um processo inconsciente, as contradições manifestadas em luta política pelas categorias da dialética, transformando os trabalhadores de classe em si para classe para si, a consciência social de que o capital é instrumento de dominação, exploração e alienação. O partido leninista concentra essa teoria em suas elaborações programáticas e dá a elas sentido prático, com táticas e estratégias impulsionadas dialeticamente, conforme as realidades concretas.

Não se compreende a China sem esses elementos. Foram eles que levaram à revolução de 1949 e ao desenvolvimento do socialismo, também carregado de antinomias e contradições. As limitações teóricas foram o grande entrave a esse processo – também foram em outras experiências socialistas –, atualmente em processo de superação, mais conhecido como nova luta pelo socialismo, por experientes partidos comunistas, entre eles o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

É a busca de novas elaborações no cenário mundial de novas realidades, caminhos para a consecução do projeto socialista. O PCCh empreende grande esforço nesse sentido. Suas elaborações permitem compreender melhor a síntese leninista, a causa do sucesso chinês, um bem-sucedido projeto antinômico que transforma capital em investimentos e desenvolvimento, produzindo novas realidades, o caminho do socialismo.

Ou seja: a raiz do fenômeno chinês é o partido leninista, com a revolução de 1949 como seu marco principal. Resta saber se, com esses elementos, é possível dizer que o mundo caminha para a multipolaridade, com o imperialismo cada vez mais feroz na defesa da ordem do capital e a China em marcha acelerada com seu projeto socialista.

Plano Real: Pérsio Arida e a escandalosa operação que assaltou o Banespa

O Plano Real, lançado por uma plataforma midiática goebbeliana em 1994 e concebido por um grupo liderado por Fernando Henrique Cardoso (FHC), promoveu uma feroz investida para saquear o Estado. Em São Paulo, o principal ninho do tucanato – como eram chamados os integrando do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) -, a equipe de FHC montou sua mais escandalosa arapuca. No dia 29 de dezembro de 1994, o governador de São Paulo, Mário Covas – também do PSDB -, recebeu a visita do então presidente do Banco Central, Pérsio Arida, com uma carta pela qual o Estado pedia a intervenção no Banespa — a mesma que havia sido aceita, pouco antes, pelo então governador carioca, o também tucano Marcelo Alencar, e que resultou na intervenção no Banerj.

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Covas recusou a trama e exigiu de Arida uma justificativa para a proposta da equipe econômica. A resposta nunca veio e o imbróglio acabou com a demissão de Arida. Mas a intervenção aconteceu e o Banespa acabou em mãos privadas. Ao longo do processo, holofotes poderosos varreram o caso e revelaram a essência de como a ”era FHC” administrou a economia do país. O editor da revista CartaCapital Carlos Drummond reconstituiu o caso com a minudência de um arqueólogo.

A reportagem, baseada em depoimentos e documentos fartamente reproduzidos, é uma minuciosa descrição da reunião de 7 de agosto de 1995, na sede do BC em São Paulo, quando foi apresentado o relatório da comissão de inquérito que durante sete meses apurou ”irregularidades” no banco. Com nomes, locais, datas e diálogos, a revista divulgou que naquele dia a comissão anunciou duas decisões: denunciar algumas irregularidades ao Ministério Público e arquivar o inquérito. ”O processo tem de ser arquivado porque não há patrimônio líquido negativo e o devedor principal é o próprio governo do Estado, que está negociando com o Banco Central uma forma de amortização da dívida”, receitou, segundo a revista, o funcionário Carlos José Braz Gomes de Lemos, relator da comissão de inquérito. Mas o diretor do BC Alkimar Moura, presente à reunião, achou pouco e aceitou uma sugestão: avermelhar falsamente o balanço do Banespa.

O artifício foi considerar toda a dívida do governo paulista com o banco como crédito em liquidação. Segundo a apuração de Drummond, o Banco Central praticou uma repreensível ”manobra contábil”: no dia da intervenção, o Banespa tinha um patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão e a dívida do Estado, no total de R$ 9,4 bilhões, estava em dia, com a exceção de ”uma pequena parcela de R$ 25 milhões vencida”. ”Isso significa que, no dia em que se fez a intervenção, não havia passivo a descoberto, ou seja, créditos sem perspectiva de recebimento”, afirmou a revista. Num truque de fazer Mandrake parecer aprendiz, um saldo de patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão foi transformado em patrimônio líquido negativo de R$ 4,2 bilhões. Os principais protagonistas da trama eram basicamente tucanos paulistas, que começaram a se organizar numa espécie de confraria ainda no governo estadual de Franco Montoro, eleito em 1982 pelo PMDB.

Revoada de tucanos

Na ocasião, Orestes Quércia já era o principal líder do PMDB no Estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Montoro. FHC foi eleito senador pela sublegenda, de carona. Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta — ministro das Comunicações no governo FHC —, assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, pelo PTB, era um dos concorrentes de Quércia ao cargo de governador e não lançou candidatos ao Senado. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar — que mais tarde virou tucana de carteirinha e num banquete chamou Lula de ”aquele mecânico” — criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo Estado. Foi a senha para a criação do PSDB. Em 1995, a revista VIP publicou uma reportagem com relatos surpreendentes. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno, disputado entre Luiz Antônio Fleury e Paulo Maluf, houve uma revoada de tucanos para a candidatura do PMDB. José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury.

Ação Popular

Segundo a VIP, Vladimir Rioli foi um dos caixas da campanha do PSDB e sempre transitou pelas cercanias das finanças do Estado. Com a vitória de Fleury, Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do BC para assumir a presidência do Banespa e Rioli, que havia sido diretor do banco na gestão Montoro, assumiu a vice-presidência de finanças — de onde saiu, misteriosamente, em 1993. Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar 14,1 milhões de dólares. Rioli declarou à VIP: ”Não havia um apoio formal do PSDB ao governo Fleury. Era um canal aberto de um grupo de pessoas dentro do partido com o governo.” A VIP fez uma lista enorme de casos de negócios irregulares dos economistas do PSDB à frente do Banespa. Pouco tempo depois, dia 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no banco e mais tarde privatizá-lo.

Segundo a revista, no dia 7 de agosto de 1995 Carlos José Braz Gomes de Lemos, o relator da comissão de inquérito, leu os trabalhos da comissão de inquérito que investigou as causas da intervenção, que indicavam algumas operações de crédito a empresas privadas (empréstimos concedidos pelos economistas ligados a José Serra no governo Fleury) e mostravam indícios de irregularidades. Os detalhes da fraude nunca foram contestados de maneira convincente. Segundo CartaCapital, por mais de uma vez o diretor do BC Alkimar Moura disse que o objetivo era ”pegar o Quércia”.

– Biografia conta a vida e a luta de Péricles de Souza pela democracia e o socialismo

O livro, de autoria do jornalista e historiador Osvaldo Bertolino, intitulado Péricles de Souza – uma vida uma luta, fala, em quatrocentos e quarenta páginas, da geração que entrou na juventude na década de 1960, enfrentando uma das fases mais complexas da história do Brasil e do mundo. Narra a vida de Péricles de Souza no contexto daqueles jovens nascidos na conjuntura da Segunda Guerra Mundial e que viviam no auge da “era de ouro”, os anos de crescimento ininterrupto das principais economias, que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “trina anos gloriosos”, o período de 1945 a 1975. Geração também influenciada pela cultura erudita, a música, o cinema, a literatura e as revoluções socialistas na China (1949) e em Cuba (1959).

Filho de uma família de Vitória da Conquista que se mudara para Salvador quando o Brasil vivia os impactos das transformações promovidas pelo governo de Getúlio Vargas, eleito em 1950, em segunda passagem pela Presidência da República depois de liderar a Revolução de 1930. Péricles presenciou, aos dez anos de idade, a professora e o pai tomados pela emoção com o suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954. A cena representou o início do seu despertar político. Logo ingressaria no movimento estudantil e, quando a Ação Popular (AP) surgiu, no começo da década de 1960, ele estava entre seus fundadores.

Os militantes da juventude católica se destacavam na Bahia, um dos principais pontos da resistência às ameaças golpistas ao presidente João Goulart. No golpe de 1964, Péricles estava entre os estudantes que foram para Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, organizar a resistência, que seria comandada pelo prefeito Francisco Pinto, um foco que se somaria à resposta dos governadores de esquerda em Pernambuco e Rio Grande do Sul, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Frustrados, pela ocupação da cidade pelos militares golpistas voltaram para Salvador.

Após um episódio de enfrentamento dos estudantes com o ministro das Relações Exteriores da ditadura, Juraci Magalhães, ex-interventor e ex-governador do estado, Péricles foi para clandestinidade e se instalou no Bico do Papagaio, região Sul do estado do Maranhão, para organizar o que seria um ponto da guerra popular contra a ditadura. A AP transitava para a incorporação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), num momento em que estava em preparação, no Sul do Pará, a Guerrilha do Araguaia.

Com a incorporação, em 1973, Péricles foi para Comitê Central e se mudou para Sergipe, de onde comandaria a reorganização do PCdoB no Nordeste. Por um acaso se livrou de estar na reunião de dezembro de 1976, quando a ditadura metralhou a casa em que a direção comunista se reunia em São Paulo, no bairro da Lapa, matando alguns dirigentes e prendendo outros.

Péricles retornou a Salvador após a anistia de 1979 e assumiu a direção do PCdoB no estado. Ao mesmo tempo, como membro do Comitê Central, participou dos principais eventos que levaram o país a transitar para a redemocratização, elaborar a Constituição de 1989, enfrentar o neoliberalismo dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso e eleger e reeleger os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Osvaldo Bertolino é autor de treze livros, entre eles oito biografias de lideranças comunistas que combateram a ditadura militar. É jornalista e historiador, com experiência em assessoria sindical e parlamentar. É pesquisador de temas relacionados à política, à economia e à história, com destaque para o período da formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil.    

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– O PT e a “utopia” marxista

Osvaldo Bertolino – Portal Vermelho, 10/11/2004

Um curioso argumento do ministro da Educação Tarso Genro ocupou as páginas do jornal Folha de S. Paulo nas edições dos dias 6 e 7: o de que o Partido dos Trabalhadores (PT) é um partido “pós-comunista” e “pós-social-democrata”. Segundo ele, a destruição da estrutura de classes originária da Segunda Revolução Industrial teve uma consequência diferenciada nos países da periferia e da semiperifeira, como o Brasil. “Destruiu a centralidade da classe operária emergente, e os limites científico-tecnológicos do desenvolvimento não criaram rapidamente uma nova classe trabalhadora orgânica, que substituísse, como sujeito político, a classe operária industrial”, escreveu o ministro. “Nós temos hoje uma conflituosidade social que não se dá mais diretamente na relação de classe contra classe”, afirmou.

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O PSDB como barriga de aluguel do Plano Real

Para Tarso Genro, essa conclusão tem a ver também com a quebra dos paradigmas originários do socialismo “totalitário, estadista”, e com a crise da social-democracia. Para o ministro, a social-democracia é inaplicável num país como o nosso. “Ao mesmo tempo que estamos governando, estamos reconstruindo o partido e teorizando sobre o futuro”, escreveu ele. “Temos que rebaixar as nossas pretensões utópicas, e dizer de maneira clara que o socialismo não está na ordem do dia”, afirmou. Segundo Tarso Genro, “podemos e devemos mantê-lo (o socialismo) como uma ideia reguladora, mas temos que reconhecer, para podermos ser honestos com as nossas bases e com o país, que a questão do socialismo não é uma questão concreta da história hoje”.

Nova alternativa à barbárie

O ministro também defendeu um curioso conceito de “modernização democrática da vida republicana do Brasil” por meio do fortalecimento do PSDB — segundo ele “um partido que tem proposta, tem enraizamento social definido e, embora tenha divisões internas talvez maiores que as nossas (do PT), é um partido modernizante”. “A via de modernização que é a hegemonia do que o PSDB propõe é pela centro-direita. Mas é modernizante. O crescimento do PSDB é totalmente compatível com esse processo e com a necessidade que o país tem de ter um partido capaz de compartilhar da luta democrática. Isso nos ajuda”, escreveu Tarso Genro. Mais curioso ainda é o que o ministro chama de “rebaixamento do horizonte utópico” do PT.

Para ele, a utopia que o PT deve encarnar nesse momento configura-se com três elementos: “recuperar a ideia de nação dentro da pós-modernidade, que exige internacionalmente uma visão de compartilhamento e de integração com autonomia, e não uma visão fechada de nação como era na década de 1960; a democratização do Estado, ou seja, uma nova regulação da relação Estado-sociedade; um modelo de desenvolvimento que cause permanentemente inclusão na sociedade de classes”. “Se a nossa visão utópica era, via o socialismo, destruir a sociedade de classes, hoje é reorganizá-la. Porque isso significa reconstituir o sujeito político da democracia, isso significa poder repor, para quem quiser, num próximo período, pretensões utópicas mais radicais. Sem isso, é a barbárie”, afirmou.

O valor dos conceitos marxistas

Seria muito confortável acreditar nessas ideias, se não fosse o fato de que elas se chocam com a realidade. “Não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou”, escreve o historiador Eric Hobsbawm. Segundo ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostra “um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos”. Primeiro, o planeta deixou de girar em torno da Europa. O segundo aspecto é que a economia mundial se tornou uma unidade operacional integrada — a “globalização” enfraqueceu o papel dos Estados nacionais. Por fim, assistimos a uma revolução nos padrões de comportamento e de relacionamento humanos.

Tanto as teses de Tarso Genro quanto a de Eric Hobsbawm concluem que ainda não podemos afirmar como será a nova era. Contudo, ambos dizem que é possível observarmos suas fundações e, a partir daí, definirmos que rosto lhe daremos. A diferença é que Eric Hobsbawm deixa entrever a necessidade urgente de erradicarmos a base econômica dada pelo capitalismo. Já o ministro da Educação desconsidera um princípio básico da análise marxista das sociedades: o papel das organizações políticas como representantes de classes ou grupo de classes. É um direito dele. Mas para os marxistas os conceitos clássicos de direita e esquerda, aparentemente varridos pela nova ordem mundial, não podem ser ignorados em uma análise desse porte.

Já no século XIX, quando a maioria dos países havia trocado a monarquia de base feudal pela república baseada no liberalismo, esquerda passou a significar o projeto de modificação radical da estrutura social e do sistema econômico instituídos nas sociedades capitalistas — seu ideário reivindica a precedência do trabalho em relação ao capital. E direita tomou o significado de manutenção do status quo — seu ideário advogava a primazia do capital em relação ao trabalho. Salvo melhor entendimento, a tese de Tarso Genro é de que essa dicotomia não desapareceu de todo, mas, por estar desorganizada, está menos extremada. E, em última instância, no terreno econômico, está também, por ora, circunscrita ao neoliberalismo — com toda a coloração ideológica que este termo encerra no Brasil.

Trabalho doméstico é uma anomalia

Isso quer dizer que, se este raciocínio for levado às últimas consequências, ao definirmos a proposta do PSDB como “modernizante” estamos aceitando como socialmente cabível, embora por um certo tempo histórico, até resquícios da relação entre a Casa Grande e a Senzala na cidade e no campo. Em poucos outros lugares do mundo, por exemplo, uma família fazendo 30 mil reais por ano pode dar-se ao luxo de manter uma empregada doméstica cativa. O próprio emprego doméstico, com todo seu teor semi-escravista, é uma anomalia que não cabe em nenhum projeto moderno tão logo subamos mais um ou dois degraus em direção ao desenvolvimento social e econômico. No campo, as relações sociais ainda conservam traços nitidamente escravocratas. Por essas e outras, o projeto neoliberal enfrenta no país o visível obstáculo da imensa maioria da sociedade.

Nesse ambiente, a conceituação de direita e esquerda renova seu sentido histórico e classista. De um lado está o pensamento elitista e excludente, que privilegia a acumulação da riqueza em relação à sua distribuição, a ordem macroeconômica em relação à qualidade de vida dos indivíduos, a benesse de poucos em relação ao bem-estar de todos. De outro, está o pensamento que considera o todo e busca incluir, que visa aumentar e distribuir a riqueza, que eleva a qualidade de vida dos indivíduos à condição de prioridade econômica, que privilegia os consumidores em relação aos monopólios e o bem-estar de todos em relação ao acúmulo de alguns. A oposição, portanto, não deixou de ser entre o patrão de cartola e charuto e o trabalhador empunhando um martelo ou uma foice.

No Brasil, a esquerda luta contra o feudalismo

Pode-se admitir uma exceção extemporânea a essa regra — essa dicotomia, com tremendas ressalvas, pode até estar menos visível. Mas, independente disso, a melhor analogia é considerar, à direita, um capitalismo que em nome da “ordem” admite suprimir direitos individuais, que gosta da imprensa sob as suas rédeas e que não admite negociar a distribuição da renda nacional. E, à esquerda, o pensamento progressista, de corte humanista, que defende um Estado capaz de pensar um projeto para o conjunto da sociedade. Objetivamente, não há como haver trégua nessa luta. E a esquerda, que sempre pintou sua bandeira com cores mais nítidas e sempre a fincou de modo mais firme do que a direita, não tem motivo para recolher suas armas.

Temos, por exemplo, hoje, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), que luta contra um Brasil medieval, que precisa ser superado se quisermos de fato transformar este país numa nação democrática, em desenvolvimento e baseada nos direitos humanos fundamentais. Ou seja: enquanto a esquerda na Europa, ou o que remanesce dela, luta somente contra a hegemonia neoliberal, no Brasil ainda combatemos resquícios do escravismo. Essa constatação ajuda a desvendar por que no Brasil a direita morre de vergonha em admitir-se de direita. Manter baixa a visibilidade das cores de sua bandeira sempre contribuiu muito para diminuir sua rejeição perante o brasileiro médio.

Sem os ensinamentos da história, vem o fascismo

Ela representa privilégios escravistas, arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos por países que, não por acaso, ao fazê-lo desbloquearam seus caminhos em direção ao desenvolvimento. Daí o grande constrangimento. A direita é de fato conservadora por desejar a manutenção da estrutura inviável que temos no país, e reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder público. Daí a grande antipatia por ela arrecadada e o fato de a esquerda ter sido engolida com menos dificuldade pelo brasileiro médio ao longo do século XX. Para se ter uma base da rejeição às sua ideias, em uma pesquisa divulgada pela revista Veja, em junho de 1996, 62% dos conceitos que a elite brasileira atribuía a si própria eram negativos. E a esquerda, quem diria, foi reconhecida como a ala progressista da política nacional enquanto muros tombavam de Berlim à Sibéria.

Uma sociedade democrática deve alargar ao máximo o leque de possibilidades individuais e garantir um lugar digno a cada um. E isso, para os marxistas, não é utopia — é um projeto factível de sociedade. Para isso, é preciso assegurar, por meio de um regime verdadeiramente democrático, o direito de a sociedade escolher seu destino. Se reduzirmos tudo à aplicação prática, à eficácia estrita, à utilidade visível, imediata, comensurável, estaremos correndo o risco de ficarmos parados no tempo. A esquerda precisa, de fato, de novos projetos. Mas eles não podem ser uma abstração com pouca relação com a realidade objetiva do país. Se esquecermos os ensinamentos da história, estaremos dando chance para o fortalecimento do regime neoliberal de intolerância social e de homens autômatos. Aí vem o fascismo.

– Pablo Marçal e Jair Bolsonaro ungidos pela Faria Lima e Wall Street

Por Osvaldo Bertolino

Um mundo abstrato, movido pelo giro concreto do dinheiro, define o que é o capitalismo, potencializado pela hipertofria do mercado financeiro, controlado e manipulado por agentes sem escrúpulos. Gente já definida como “lobo de Wall Street”, ou “yuppie”, bem representada em filmes e documentários como malandros, ladrões engravatados, geralmente aventureiros com ar de bem-sucedidos. No Brasil esses malandros ganharam projeção sobretudo com a criação do arcabouço político e “institucional” – cujo esteio é a imoral Lei de Responsabilidade Fiscal -, à margem do Estado Democrático de Direito regido pela Constituição de 1988.

É um fenômeno que ganhou grande relevância com a pretensão do projeto neoliberal de revogar o keynesianismo e a social-democracia, mitigadores das mazelas do capitalismo, para centrar fogo na resistência ao imperialismo, o projeto socialista. Para se impor, vale todo tipo de golpe para destruir as soberanias nacionais e populares, um mundo de corrupção e mantras autoritários difundidos pela guerra ideológica monopolizada por um gigantesco aparato midiático organimente ligado ao mundo financeiro. Com esses recursos, o imperialismo, que regovou os princípios do liberalismo formulados por Adan Smith, se torna radicalizado, valendo-se não raro de projetos políticos de extrema-direita.

É o que pode ser visto nestes dois artigos abaixo, sobre Pablo Marçal e Jair Boolsonaro, mera repetição da fala, em 1968, do então ministro do Trabalho e da Previdência Social da ditadura militar, Jarbas Passarinho, durante a reunião do AI-5 que instarou oficialmente o terrorismo de Estado: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” O terrorismo do projeto neoliberal está bem explícito nesses textos do Portal UOL e da Folha de S. Paulo relatando a falta de escrúpulos da Faria Lima e de Wall Street em relação ao nazifascimo contemporâneo no Brasil.

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Faria Lima já flerta com Marçal para derrotar Boulos

Andreza Matais, colunista do UOL – 27/08/2024

A Faria Lima vai esconder a predileção, mas em rodas fechadas empresários estão “encantados” com Pablo Marçal, segundo lideranças políticas e empresários com quem conversei nos últimos dois dias.

A avaliação nesse grupo é que Marçal pode tirar Guilherme Boulos da disputa e esse grupo faz de tudo para não ver o candidato do PSOL eleito.

Sobre Ricardo Nunes (MDB), atual prefeito de São Paulo, avaliam que seus bairros estão sujos, com calçadas esburacadas e que a cidade não tem zeladoria necessária.

Ninguém acredita que Marçal é uma boa pessoa, mas apostam que ele defende o empresariado e que seu jeito “deixa que eu resolvo” pode ser uma solução para a cidade.

Nesta terça-feira (27), terá um jantar na casa de Marçal para empresários. A coluna apurou que entre os convidados estão representantes de bancos. Se eles irão apoiar publicamente o candidato do PRTB a resposta é não. É o chamado voto envergonhado.

Um alto executivo de um banco disse à coluna que “a maioria é Nunes”, mas “todos acham que Marçal vai ganhar”.

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Por que tanta gente em Wall Street torce por uma vitória de Bolsonaro?

Brian Winter – Folha de S. Paulo, 05/09/2018

Pessoas íntegras admitem em conversas particulares que não há espaço para sentimentos

Por um candidato que odiava tanto a austeridade que nos anos 90 apelou pelo fuzilamento de um presidente que ordenou um corte de gastos?

Por alguém que quer mudar a composição do STF e indicar juízes ligados a ele? Que declarou seis semanas atrás que “na verdade não entendo de economia”?

Bem, há duas respostas.

Porque, graças em parte a Donald Trump, em 2018 a memória é curta. E porque os investidores estrangeiros, como muitos brasileiros, querem acreditar na possibilidade de um salvador.

Para a parte de Wall Street que investe em países como o Brasil, o ano foi horrível até agora.

Enquanto o mercado de ações dos EUA batia recordes, com o corte de impostos e as medidas de desregulamentação de Trump, o principal índice de mercados emergentes registrava queda geral de 9%, puxado pelas baixas na Turquia (-55%), África do Sul (-21%) e Brasil (-20%).

Um ano ruim quer dizer bonificação ruim e pode até significar a perda do emprego. O Brasil é grande o bastante para empurrar uma virada na categoria, mas isso só vai acontecer se um presidente “amigo do mercado” —Bolsonaro ou Alckmin— vencer.

Uma vitória do PT, em contraste, poderia causar nova queda dos ativos.

Nesse contexto, a maioria dos investidores parecia preferir Alckmin. Mas o equilíbrio está mudando, e não só porque ele continua estagnado.

A indicação por Bolsonaro de Paulo Guedes como ministro da Fazenda e depositário da ortodoxia econômica parece melhor a cada dia, aos olhos do mercado.

Sob a tutela de Guedes, Bolsonaro prometeu reforma nas aposentadorias e no mês passado chegou a mencionar a possibilidade do Cálice Sagrado de Wall Street —a privatização da Petrobras. Um investidor me disse, empolgado, que o Brasil pode ter seu primeiro presidente verdadeiramente liberal em pelo menos meio século.

Calma lá, você talvez diga: e quanto ao passado não tão distante de Bolsonaro?. É aí que entra Trump.

O presidente dos EUA era membro registrado do Partido Democrata até 2010 —mas na Casa Branca ele vem realizando os maiores sonhos republicanos em termos de corte de impostos e desregulamentação da economia. Os mercados financeiros estão sujeitos a modas, e a coerência ideológica está fora de moda.

Basta a explicação de Bolsonaro: “As pessoas evoluem”.

É claro que essa abordagem acarreta riscos. Um presidente que talvez não tenha grande compromisso com a austeridade será capaz de tomar as decisões duras necessárias para reduzir um deficit ainda maior que o da Argentina?

Ele conseguirá funcionar sem apoio claro no Congresso? (Ou, diante de oposição, cumprirá sua velha promessa de fechar o Congresso?) Alguns líderes que pisotearam instituições democráticas, de Recep Erdogan na Turquia a Daniel Ortega na Nicarágua, vêm enfrentando problemas.

Mas se você conversar com investidores sobre os riscos do autoritarismo, muitos tenderão a responder “ouvimos o mesmo sobre Trump, e as coisas estão ótimas” ou “qualquer um menos Lula”.

Há, por fim, o elemento moral. Como os investidores podem apoiar um candidato com posições como as de Bolsonaro sobre mulheres, minorias e direitos humanos?

Essa é a pergunta mais fácil. Conheço muitas pessoas íntegras em Wall Street que sentem repulsa por Bolsonaro. Mas elas admitem em conversas particulares que não há espaço para sentimentos. Como me disse uma, “meu trabalho é garantir que os títulos sejam pagos na data. Quanto ao resto — cabe aos brasileiros decidir”.

– Gabriel Galípolo e o galinheiro do Banco Central

Por Osvaldo Bertolino

Atual diretor de política monetária e provável futuro presidente do Banco Central assume discurso dogmático do projeto neoliberal. Resta saber se é recuo tático ou rendição.

Num evento da Warren Investimentos, organização do mundo da especulação financeira, na segunda-feira (12) em São Paulo, Galipolo disse que a alta da taxa básica de juros é uma possibilidade que está na mesa do Comitê de Política Monetária (Copom). “Enquanto diretores do Banco Central, nós vamos perseguir a meta, isso com custo maior ou custo menor, segundo variáveis que não temos controle”, afirmou. “Espero que daqui a alguns anos possamos falar que a política monetária do Brasil é muito mais em função do arcabouço legal e institucional desenhado para a política monetária do que da idiossincrasia de um diretor A ou B”, completou.

Arcabouço legal e institucional pressupõe regras bem mais amplas do que a famigerada Lei de Responsabilidade Fiscal – corretamente chamada por José Alencar, vice-presidente da República do primeiro governo Lula, de lei da “irresponsabilidade fiscal” –, espécie de camisa de força que molda fórmulas como essa proclamada por Galípolo e amarra o país à estagnação do crescimento econômico e à paralisa do desenvolvimento. Funciona como cortina de ferro que separa o arcabouço legal e institucional dos interesses privados governados de maneira autocrática pelo Banco Central “independente”, que opõe sérias resistências – ou mesmo impossibilidades – para o governo priorizar investimentos públicos e sociais.

O impasse vem da ditadura militar, com o fracasso do “milagre econômico”, agravado pelo projeto neoliberal, sobretudo após o arcabouço do Plano Real. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pouco lembrada atualmente, é a fonte desses dilemas e de patetices panfletárias, a exemplo do que disse Pedro Malan, ministro da Fazenda dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), também na segunda-feira (12), num evento do mundo financeiro chamado Finance Of Tomorrow: “A sociedade brasileira hoje não permitirá que nenhum governo tenha uma atitude excessivamente leniente e complacente acerca da inflação.”

Esfriamento da economia

Por trás dessa retórica vazia está a preservação dos privilégios conquistados pelo mundo das finanças na “era FHC”. Esse dogma  autoritáro e excludente é uma tendência que vem do golpe militar de 1964. Os economistas que assumiram o controle chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio”: produto de fantasia; devaneio, utopia. Gustavo Franco, presidente do Banco Central na “era FHC”, repetiu a ladainha ao dizer que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso.

Tempos depois, já no primeiro governo Lula, outro ideólogo do arcabouço neoliberal do Plano Real, Luiz Carlos Mendonça de Barros, criticou, em artigo no jornal Folha de S. Paulo, “o consumo das famílias e os gastos do governo”, responsáveis pelo “nível de absorção interna de bens e serviços”, segundo ele indutores da inflação. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

Seguir à risca esses mandamentos é repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, atribuída a Delfim Netto. Aquela análise monetária-culinária já desconsiderava o princípio de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento nacional, de que conceitos monetários não podem determinar a política econômica de maneira absoluta. Era a linha que estava trocando a fase em que o Estado deu prioridade ao crescimento de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais), adotado sobretudo pela “era Vargas”, pela acumulação financeira.

As consequências foram um longo período de inflação alta, concentração de riqueza e crescimento econômico pífio, sem melhoria dos serviços básicos e sem integração dos milhões de brasileiros que viviam à margem da cidadania e do poder aquisitivo na dinâmica social e econômica do país. Passaram ao largo da premissa de que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento e da sua variada relação de causas e efeitos monetários e estruturais, a afirmação de teses ditas únicas que apresentaram resultados melancólicos.

O desmentido de promessas feitas em tom de profecias, fez crescer as evidências de que o país tomara o caminho errado, mesmo na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci enveredando pelo caminho neoliberal. Eram os “ortodoxos de galinheiro”, na definição do economista Paulo Batista Nogueira Júnior. E seguem incorrendo na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Para eles, a gestão da economia só pode dar resultados positivos se estiver submetida às suas elucubrações.

Ilha da fantasia

O reinado absoluto de Palocci repetiu o viés autoritário dos “ortodoxos” da ditadura militar e da “era FHC”, a ponto de bater de frente até com o vice-presidente da República, José Alencar, crítico ferrenho da acumulação financeira via elevação da taxa de juros pelo Banco Central a pretexto de combater a inflação. “A Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura de bater na taxa de juros. Essa censura existe, tenho sofrido e sido vítima dela”, disse ele numa palestra para empresários na Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Essa gestão macroeconômica é um mundo separado dos reais problemas do país, no qual a razão cede lugar à adivinhação, à cartomancia, uma ilha da fantasia. Ao longo de sua vigência, o que se viu foi uma elite ignorando completamente a racionalidade econômica para justificar, com argumentos matemáticos, a diminuição de suas obrigações diante do Estado e assim se eximir de suas responsabilidades perante a coletividade, abusando do caixa do Estado, principalmente por meio da alta taxa de juros.

A arrogância dos arautos dessa teoria, somada à monopolização dos meios de comunicação pela mídia cartelizada e corrompida, dificulta um debate às claras sobre qual seria o melhor caminho para o Brasil. Esse samba de uma nota só ganhou superpoder com a “independência” do Banco Central, um dos principais itens do programa do golpe do impeachment fraudulento contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, entregue à autocracia protegida pela impunidade garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, um mundo à parte, privado, regido pela farra financeira, com a tese farsesca da “despolitização da moeda”. Isso remete ao problema do Estado, que deve ser visto como instrumento para atender aos interesses da nação, e não atentar contra eles.

– Contubérnio de parasitas no Banco Central “independente”

Por Osvaldo Bertolino

Não existe Estado Democrático de Direito sem transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar a eficácia de suas medidas. Esse é um direito humano fundamental, sonegado pelo controle autoritário da comunicação por uma mídia cartelizada e corrupta à raiz do cabelo.

Nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, está claro, sob o risco de afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do processo deliberativo. O grau exato depende, portanto, do tipo de atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos. Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de regras claras sobre o tema.

Mas, com o controle do Estado por grupos privados, a essência da ditadura do projeto neoliberal, esse princípio básico da democracia fica inviabilizado. Consequentemente, o setor público passa a ser saqueado impiedosamente por grupos de interesses que põem o Estado a seu serviço para pagar-lhes as contas e garantir um fluxo contínuo de dinheiro a custo zero, saído do couro do povo.

Recentemente, o noticiário da mídia corrompida mostrou que o Banco Central “independente” anunciou novas regras para as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o agendamento. É uma espécie de contubérnio entre compadres, sócios do projeto de saque ao Orçamento e ao patrimônio públicos.